Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
375/17.2GAVVD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: RECLAMAÇÃO ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
EXCESSO PRONÚNCIA
NULIDADE
ENTREGA TÍTULOS DE CONDUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECLAMAÇÃO DEFERIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Nos termos dos arts. 425º, n.º 4, e 379º, n.º 1, c), do CPP, não cabendo recurso ordinário do acórdão proferido pela Relação, cumpre a este Tribunal decidir a reclamação da nulidade que daquele seja deduzida, com a invocação de que nele existiu a pronúncia sobre uma questão cujo conhecimento lhe estava vedado em virtude de não ter sido objecto de recurso.

II - Sendo entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões que o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados anteriormente formados, é confinado pelo objecto da causa, que delimita o conhecimento do tribunal, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação, neste caso, seria em face do objecto do recurso, sucessivamente circunscrito pela acusação, pela sentença ora impugnada, assim como pelo conteúdo das conclusões da alegação do recorrente que se determinariam as questões concretas controversas que importaria resolver.

III - Nos termos do supra citado art. 379º, n.º 1, c), o excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conheça de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do recurso, com o concretizado conceito, prendendo-se esse vício com o conhecimento pelo tribunal de questões que não tenham sido colocadas pelos sujeitos processuais nem sejam de conhecimento oficioso, i. é, com o incumprimento do dever de resolver apenas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, não se confundindo esta expressão com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que os sujeitos processuais fundam a sua posição na controvérsia.

IV - Posto isto, o acórdão reclamado excedeu os limites do respectivo conhecimento ao revogar/alterar, em desfavor do arguido/recorrente, o segmento da sentença de 1ª instância atinente ao momento a partir do qual se deveria contar o período da sanção acessória, sem que essa «questão» integrasse o objecto do recurso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

O arguido M. C. vem arguir, nos termos dos artigos 425º, n.º 4 e 379º, n.º 1, c), do CPP, a nulidade do acórdão de 11/03/2019, mediante o qual foi mantida a sua condenação como autor de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do C. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros) e como autor de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º1 e n.º 2, do D.L. n.º 2/98, 3/1, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros) e, em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses nos termos do disposto no art. 69º, n.º1, a), do C. Penal.

Sustenta o arguido, em síntese conclusiva, que o acórdão encontra-se ferido de nulidade, por excesso de pronúncia, quanto ao ponto 2 do respectivo dispositivo em que se consignou “que só deve porém ser contados, a partir do momento em que o arguido obtenha carta de condução válida”, quando a decisão recorrida tinha determinado a sua notificação para, no prazo de dez dias, após trânsito em julgado da decisão, proceder à entrega da referida documentação, sem que tal ponto tivesse sido objecto do recurso.
*
II – O Direito

Não cabendo recurso ordinário, cumpre decidir, nos termos do art. 425º, n.º 4 do CPP.

O arguente entende que o acórdão está afectado do aludido vício porque nele existiu a pronúncia sobre uma questão – entrega de documentação relativa à condução de veículos – cujo conhecimento lhe estava vedado em virtude de não ter sido objecto de recurso.

Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados anteriormente formados, é confinado pelo objecto da causa, que delimita o conhecimento do tribunal, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação.

Portanto, neste caso, seria em face do objecto do recurso, sucessivamente circunscrito pela acusação, pela sentença ora impugnada, assim como pelo conteúdo das conclusões da alegação do recorrente que se determinariam as questões concretas controversas que importaria resolver.

Nos termos do supra citado normativo [art. 379º, n.º 1, c) do CPP], o excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conheça de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do processo, no conceito já anteriormente concretizado.

Dito de outro modo, o excesso de pronúncia advém quando o tribunal conhece de questões que não tenham sido colocadas pelas partes nem sejam de conhecimento oficioso.

Este vício do excesso de pronúncia prende-se com o incumprimento do dever de resolver apenas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, embora a expressão «questões», de modo algum, se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que os sujeitos processuais fundam a sua posição na controvérsia.

Assim, o tema da nulidade suscitada terá que ser encarado na perspectiva da pretensão punitiva do Estado, delimitada pela sentença oportunamente proferida – que, relembra-se, apreciou a responsabilidade penal do arguido por um crime de condução sob o efeito do álcool e pelo exercício da condução sem habilitação legal –, no confronto com as questões que o arguido submeteu à apreciação do tribunal e os respectivos fundamentos invocados, conformados pelas conclusões do recurso com que o arguido se insurgiu contra aquela decisão.

Posto isto, vejamos, então, se, por excesso de pronúncia, o acórdão é nulo.

Efectivamente, encontrando-se provado que o arguido conduzira um veículo automóvel ligeiro na via pública com uma T.A.S. igual a 1,58 g/l e sem que estivesse devidamente habilitado para o efeito com a necessária, válida, carta de condução, a sentença recorrida condenou-o pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º do CP, consistindo a condenação na aplicação de uma pena principal de multa e de uma pena acessória de proibição temporária de conduzir, pelo tempo de 7 meses, decisão que o acórdão reclamado manteve, apenas encurtando o período da sua duração para 4 meses.

A pena acessória traduz-se num comportamento negativo, num “non facere”, numa proibição, e tem um início que se faz coincidir com o trânsito em julgado da sentença, segundo o n.º 2 do art. 69º do CP.
O n.º 3 do preceito diz-nos que o condenado, em 10 dias a partir do trânsito em julgado da sentença «entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo». O mesmo refere o n.º 2 do art. 500.º do CPP.

Como se afirma na fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2013, publicado no Diário da República n.º 5/2013, Série I de 2013-01-08, a entrega do título, em rigor, não se confunde com a pena acessória, porque o condenado pode estar sujeito ao cumprimento desta pena, a partir do trânsito em julgado da sentença, e dispor ainda de 10 dias para efectuar a entrega.

Esta constitui, no entanto, um meio ou um instrumento, de utilidade evidente, ao serviço do controle do cumprimento da pena, de tal modo que o legislador consignou a obrigatoriedade da entrega, no próprio artigo do CP que prevê a sanção acessória, não a remetendo para o art. 500.º do CPP.

Consiste portanto numa obrigação que decorre directamente da lei e a que o condenado está vinculado, mesmo que o juiz a não mencione no dispositivo da sentença.

Nada se disse na sentença sobre a habilitação do arguido para conduzir outros tipos de veículos com motor, sendo certo que a sanção acessória é de “proibição de conduzir veículos com motor” (art. 69, n.º 1 do CP), ou seja, todos os veículos com motor e não apenas os da mesma classe daquele que era conduzido quando foi praticado o crime.

O arguido pode não possuir carta de condução de ligeiros, mas estar habilitado para conduzir outros veículos com motor.

O vício que o reclamante assaca ao acórdão desta Relação reporta-se ao segmento «só deve porém ser contados, a partir do momento em que o arguido obtenha carta de condução válida», quando na decisão recorrida ficou a constar: «Notifique, sendo o arguido com a advertência de que deverá no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, entregar todos os títulos de condução que possua neste Tribunal ou no posto policial competente na área da sua residência, com a advertência de que se não o fizer será ordenada a apreensão dos mesmos, podendo ainda incorrer num crime de desobediência”, sendo certo que as conclusões de recurso são completamente omissas sobre esta temática.

Assim, o teor literal da sentença recorrida tem expresso o entendimento de que os procedimentos para a execução da concreta sanção acessória iniciam-se logo após o trânsito em julgado e a utilidade da execução da sanção acessória não fica esvaziada pelo facto do arguido não ser titular de carta de condução de ligeiros. De outro modo, não teria sido ordenada “a entrega de todos os títulos de condução…”.

Na decisão condenatória de primeira instância, a Sra. Juíza emitiu uma ordem de entrega de todos os títulos de condução que o arguido possua, com cominação do crime de desobediência, decisão essa, que não foi acompanhada pelo acórdão desta Relação que determinou a entrega só a partir do momento em que o arguido obtenha carta de condução, sem que a questão houvesse sido suscitada.

Ora, como se extrai linearmente, o acórdão reclamado excedeu os limites do respectivo conhecimento ao determinar que os 4 meses da sanção acessória “só devem ser contados a partir do momento em que o arguido obtenha carta de condução válida”, com que revogou/alterou o correspondente segmento da sentença de 1ª instância, sem que este integrasse o objecto do recurso.

Decisão:

Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Secção Criminal em deferir a reclamação apresentada pelo arguido M. C. e, consequentemente, em declarar nulo o acórdão reclamado quanto ao ponto II do seu segmento decisório, mantendo a decisão de 1ª instância, também nessa parte.
*
Sem custas.
Notifique e, oportunamente, remeta o processo à 1ª Instância.
Guimarães, 11/6/2019

Ausenda Gonçalves (Relatora por vencimento)
Fernando Monterroso (Presidente da Secção)
Pedro Cunha Lopes (vencido)

Votei vencido, porquanto:

- não há reclamações para a conferência de decisões do Tribunal Coletivo (art.º 417º/8 C.P.P.);
- se este Tribunal podia fixar o período de inibição, podia também referir a forma como o mesmo é contado, ou se inicia, pois ainda se está na mesma questão jurídica suscitada no recurso;
- com isto, não se “revogou/alterou” o sentido da decisão recorrida, mas apenas se precisou um ponto em que a mesma era omissa.
Considero pois, não ter ocorrido excesso de pronúncia, pelo que indeferiria o requerido.

(Pedro Cunha Lopes)