Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2242/22.9T9BRG.G1
Relator: CARLOS DA CUNHA COUTINHO
Descritores: CRIME DE DANO
QUEIXA
EMPREITEIRO
DONO DA OBRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. No âmbito de um contrato de empreitada de uma obra pública, o empreiteiro, não sendo proprietário da coisa danificada, não tem legitimidade para apresentar queixa pela prática de um crime de dano por actos de terceiros;
2. Com efeito, quer se trate de um contrato público de empreitada, quer se trate de um contrato civil, o risco corre, em princípio, por conta do dono da obra como decorre do disposto nos artigos 1207.º e seguintes do Código Civil.
3. Consequentemente, a legitimidade ao Ministério Público para promover o processo penal pelo crime de dano de natureza semipública por actos de terceiros, está dependente da apresentação de queixa pelo dono da obra.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

A) Relatório:

1) No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal – Juiz ..., encerrado o debate instrutório realizado em 12/10/2023, foi proferida Decisão Instrutória que ordenou o arquivamento parcial dos autos, entendendo que a queixa que lhes deu origem, foi apresentada por quem carecia de legitimidade, não tendo o Ministério Público, consequentemente, legitimidade para promover o processo penal pelo crime de dano imputado na acusação à arguida AA.
*
2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs a assistente EMP01..., Construções Lda o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não se pode conformar com a decisão recorrida, a qual ordenou o arquivamento dos autos por falta de legitimidade do M.P. e da Assistente em promover o processo penal pelo crime de dano, pois o despacho carece de fundamento, quer de facto quer de direito e, bem assim, padece de erro de interpretação e de aplicação das disposições legais aplicáveis ao caso;
2. O Juiz “a quo” fundamenta tal falta de legitimidade do M.P. para promover o processo crime, no facto de a Assistente/denunciante não ter legitimidade para apresentar queixa pelo crime de dano.
3. Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 113º do CP, é titular do direito de queixa o “… ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
4. O STJ (acórdão 7/2011, publicado no DR, 1ª série, de 31/05/2011), fixou a seguinte jurisprudência: “No crime de dano, previsto e punido no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por titulo legitimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso ou fruição”.
5. Mais, o acórdão do TRP, Desembargador Emídio Teixeira, de 24/02/1993, processo 9310463 – dgsi, foi afirmado que tem legitimidade para se constituir assistente em processo criminal por crime de dano causado em obra ainda não entregue e de que tem guarda o empreiteiro, é este e não o dono da obra, já que é o empreiteiro a pessoa direta e imediatamente ofendida e titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação”.
6. A posição do Juiz de Instrução Criminal contraria o regime legal da empreitada de obras públicas e das suas especificidades relativamente á relação entre o dono de obra e o empreiteiro, o qual diverge em muito do previsto no Código Civil, tendo inclusivamente legislação específica para o regular, nomeadamente o DL nº 18/2008, de 29 de Janeiro, que estabelece o Código dos Contratos Públicos, doravante designado por CCP.
7. De acordo com o CCP, a obra só passa para a tutela jurídica da dona da obra através da receção provisoria e definitiva da obra a qual depende da realização de uma vistoria, que tem por objectivo verificar se todas as obrigações contratuais e legais do empreiteiro estão cumpridas de forma integral e perfeita, conforme previsto no artigo 394º, do referido diploma legal.
8. Caso sejam verificadas desconformidades ou defeitos entre o que estava previsto e o que se encontra executado, tal implica a não receção da obra, no todo ou em parte, em virtude desses defeitos e a notificação do empreiteiro para a correção dos mesmos.
9. Ou seja, enquanto não ocorrer a receção da obra por parte do dono de obra é o empreiteiro que tem o gozo e fruição da obra, bem como todas as responsabilidades daí advenientes, nomeadamente perante o dono da obra de todos os danos que ocorram na mesma.
10. Ora, se é a recorrente que tem de reparar o muro para o entregar em perfeitas condições ao dono da obra, consequentemente é ela que sofre diretamente o prejuízo pelo dano causado pela arguida.
11. Sendo por isso a recorrente, a ofendida deste crime pois é a titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
12. Aliás, enquanto a dona da obra não procedesse à receção da obra, a mesma estava na posse/titularidade da recorrente.
13. Repare-se que o Juiz de Instrução Criminal considerou que a legitimidade para o exercício do direito de queixa cabia à Junta de Freguesia, apesar de o muro não ser edificado em terrenos públicos, e posteriormente à correta conclusão dos trabalhos passaria a pertencer aos proprietários do terreno onde foram edificados.
14. A posição da recorrente é semelhante à da Junta de Freguesia pois são os meros detentores da coisa, sendo que os interesses dos detentores também merecem tutela penal à luz das necessidades de direito criminal, na medida em que o mesmo coincide com o interesse especialmente protegido pela norma.
15. As conceções dominantes, quer na doutrina quer na jurisprudência, apontam para a identificação do “interesse especialmente protegido” nos casos de crime de dano com a utilidade funcional, especifica e efetiva da coisa por determinado sujeito, e concretamente afetada por uma das modalidades de ação do crime e do consequente resultado.
16. Ou seja, as relações de facto sobre a coisa têm de estar enquadradas por um modo relevante para o direito, ou seja, por uma relação jurídica precisa na definição dos direitos e consequentes deveres.
17. Não podemos esquecer que através do contrato de empreitada de obras publicas a recorrente/assistente assumiu uma série de obrigações contratuais que a vinculam a cuidar da coisa, bem como a proceder à entrega de determinada coisa, neste caso uma muro de vedação, executado de acordo com as regras estabelecidas no caderno de encargos, bem como em total respeito pelas regras da boa construção.
18. Nunca a recorrente poderia proceder à entrega da obra com um muro danificado ou defeituoso sob pena de a dona da obra não a aceitar ou, em ultima instância, a resolver o contrato com justa causa, imputando todos os prejuízos à ora recorrente.
19. Tal obrigação contratual obrigou a ora recorrente/assistente a ter que suportar todos os prejuízos causados pela conduta da arguida, reparando o muro de forma a que o mesmo estivesse de acordo com o que havia sido contratualizado.
20. Assim, e porque o crime de dano previsto no artigo 212º, nº 1, do CP visou proteger não apenas o titular do direito de propriedade, mas também todos aqueles que legitimamente gozam, usam e fruem do bem, e consequentemente, também estes são titulares de interesses diretos e imediatos na preservação e conservação da coisa.
21. Significando isso que tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano, o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o titular de qualquer direito real de gozo sobre a coisa e todo aquele que tenha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades da coisa.
22. Consequentemente, a ora recorrente/assistente tem legitimidade para exercer o direito de queixa relativamente ao crime de dano, pois enquanto empreiteira contratada pela União de Freguesia ... e ... encontra-se vinculada contratualmente à execução de determinado serviço e consequentemente até à entrega da coisa ao dono de obra detém direitos de atribuição sobre a coisa.
23. Assim, esteve mal o Juiz de Instrução Criminal ao ordenar o arquivamento do processo por falta de legitimidade do M.P. para promover o processo penal pelo crime de dano, pois como resulta do supra exposto a recorrente/assistente tinha legitimidade para apresentar queixa contra a arguida uma vez que preenchia os pressupostos estabelecidos no artigo 113º, nº 1, do CP, para ser considerada como ofendida.  
24. Pelo que o despacho recorrido padece de ilegalidade, a qual expressamente se invoca com todas as legais consequências delas decorrentes.

TERMOS EM QUE, e nos demais de direito que V. Exªs. doutamente suprirão, requer-se que seja julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, revogado o despacho que arquivou o presente processo, substituindo-o por outro que pronuncie a arguida pela pratica , em autoria material, de um crime de dano, p.ep. pelos artigos 212º, nº 1, do Código Penal, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.
*
3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela recorrente, pugnando pela sua improcedência e confirmação da decisão recorrida, concluindo que:

I. O empreiteiro não tem, em relação à obra, um modo de actuação que corresponda ao exercício do direito de propriedade, não tem a faculdade de se servir dessa obra, não tem gozo da obra nem esta lhe é entregue para que se sirva dela.
II. Não pertence ao empreiteiro a legitimidade para o exercício do direito de queixa pelo crime de dano.
III. Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.
*
4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente, “perfilhando o teor da bem elaborada argumentação do recorrente”.
*
5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
*
Cumpre apreciar e decidir.
*
B) Fundamentação:

1. Âmbito do recurso e questões a decidir:

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do mesmo diploma legal). O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28/12/1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2019, in www.dgsi.pt; de 25/06/1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03/02/1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28/04/1999, in Coletânea de Jurisprudência, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
Acresce que da conjugação das normas constantes dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artigo 412.º, do mesmo diploma.
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
*
2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pela recorrente, a única questão a decidir é a de saber se a assistente, não sendo proprietária da coisa danificada, tinha, ainda assim, legitimidade para apresentar queixa contra a arguida, conferindo, consequentemente, legitimidade ao Ministério Público para promover o processo penal pelo crime de dano imputado na acusação à arguida AA.
*
3. O Despacho recorrido:

Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor do despacho impugnado:

DECISÃO INSTRUTÓRIA
1. Relatório.
1.1. Despacho de acusação do MP.
Deduziu o MP acusação (fls. 141 e ss), para julgamento em processo comum com intervenção de TRIBUNAL SINGULAR, contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de factos que no seu entendimento consubstanciam o cometimento por esta de um crime de dano (artigo 212.º/1 do CP).
1.2. O requerimento de abertura da instrução.
Veio apenas a arguida requerer a abertura da instrução (fls. 187 e ss), em síntese dizendo:
Não está claro nos autos a quem pertencia o muro em construção, resultando inclusive que o dono da obra seria a Junta de Freguesia ... que havia contratado a sociedade EMP01..., Lda.
Realizou embrago da obra que não foi respeitado.
O muro em construção, nos termos do acordo com a Junta de freguesia, pertencia à arguida
1.3. Actos de instrução e debate instrutório.
Por despacho de fls. 205-A foi declarada aberta a instrução.
Ouvida a arguida, realizou-se o debate instrutório, com observância do legal formalismo, tudo como da acta consta.
2. Saneamento.
O Tribunal é competente.
2.1. Da (i)legitimidade para apresentar queixa.
Como resulta da queixa o muro em construção (sobre o qual incidiu a imputada acção da arguida) tem subjacente um contrato de empreitada celebrado entre a sociedade EMP01..., Lda e a Junta de Freguesia ....
Cabe assim perguntar se, para efeitos do disposto no artigo 113.º/1 do Código Penal, a sociedade EMP01..., Lda (empreiteira) é “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” ou se essa titularidade radicaria na Junta de Freguesia ... (dona da obra) – pois que ao caso claramente que as pessoas singulares não o são.
O STJ (acórdão 7/2011, publicado no DR, 1.ª série, de 31/05/2011) fixou a seguinte jurisprudência:
«No crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa ‘destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada’, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.».
Mesmo que – como afirma Manuel Costa Andrade (Comentário Conimbricense, 2.ª ed., Vol. I, Tomo II, p. 249 – pelo referido acórdão tenham sido trazidos para a área de tutela outros bens jurídicos que não apenas a propriedade, no caso não vemos sequer na afirmada “resposta aberta” dada pelo STJ tanta abertura ao ponto de também afirmar protecção ao empreiteiro que vê a coisa em construção sofrer algum tipo de acção tal como descritas no âmbito do artigo 212.º do CP.
Na verdade, com todo o respeito por diversa posição, não importa trazer para este domínio o regime do contrato de empreitada (é uma questão claramente obrigacional: entre as partes).
No caso concreto, o que importa saber é, no âmbito penal, se os interesses que a lei quis proteger com a incriminação (dano) abrange os interesses do empreiteiro quando está em causa algum tipo de acção típica sobre um muro em construção pelo mesmo.
Sabendo que o que importa para o crime de dano é o bem destruído, uma vez que o terreno onde o bem (no caso o muro) se encontra a ser implantado é uma questão secundária (no caso: terreno que foi cedido pela herança, representada pela cabeça de casal, de que é herdeira a arguida, à junta de freguesia com a obrigação desta nele construir um muro com determinadas características – cfr. o acordo de fls. 217/verso e ss). Pois pese embora um muro tenha uma ligação material com terreno com carácter de permanência, podendo considerar-se dele parte integrante (artigo 204.º/-e) e 3 do Código Civil), não obstante isso não deixa de ser susceptível de existir enquanto coisa autónoma ou autonomizável, sendo aquela ligação ao terreno apenas funcional. No fundo, não perde a sua identidade jurídica de coisa, na noção apontada, como “bem” de carácter estático (cfr. acórdão do TRC, Desembargador Luís Teixeira, de 21/03/2012, processo 471/09.9PBTMR- A.C1 – dgsi).
Dito isto, não se ignora ainda que, nos termos do acórdão do TRP, Desembargador Emídio Teixeira, e 24/02/1993, processo 9310463 – dgsi, foi afirmado que tem legitimidade para se constituir assistente em processo criminal por crime de dano causado em obra ainda não entregue e de que tem a guarda o empreiteiro, é este e não o dono da obra, já que é o empreiteiro a pessoa directa e imediatamente ofendida e titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
Mas com o devido respeito temos de discordar de tal jurisprudência (tirada aliás antes do referido acórdão do STJ) por conferir demasiada amplitude de tutela. Pois sendo o bem jurídico protegido a propriedade (ou na posição mais ampla do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ citado os titulares de outros diretos que conferem algum tipo de faculdade de detenção/fruição/uso da coisa considerando o fim), o certo é que nos termos da acusação a arguida “destruiu parte do muro edificado…”. E se assim é não vemos como afirmar (sem ampliar em demasia o âmbito subjectivo de protecção) que o empreiteiro (EMP01..., Lda) seja o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Do que decorre – uma vez que a lei não o quis especialmente proteger – que carecia de legitimidade para apresentar queixa, o que nem o disposto no artigo 1212.º do Código Cível altera – pois tal direito (para apresentar queixa) cabia à União de Freguesia ... e ... – representada pelo respetivo presidente – porquanto o terreno onde o muro estava a ser implantado lhe havia sido cedido (em princípio, pois o acordo de cedência não está assinado pelo cedente, só vindo a ser assinado em 09/12/2022) e era a dona da obra.
Aliás, conforme se pode ver do acordo (agora definitivo de cedência do terreno) celebrado em ../../2022 (portanto em data posterior à apresentação da queixa pelo empreiteiro - EMP01..., Lda. - as características do muro a construir vieram a ser alteradas.
O facto de ter sido admitida (genericamente) na qualidade de assistente não contende com o ora decidido, considerando que a decisão de admissão do assistente tem o valor de caso julgado formal subordinado à cláusula “rebus sic stantibus” Veja-se que o MP entendeu notificar (fls. 141 verso e 143) a assistente EMP01..., Lda para esta querendo deduzir acusação particular pelo crime de ofensa a pessoa colectiva – o que esta não fez, daí o despacho de arquivamento (fls. 169).
Como tal, carecendo a denunciante EMP01..., Lda. de legitimidade para apresentar queixa (pelo crime de dano) também o MP carecia de legitimidade para promover o correspondente procedimento criminal (artigos 48.º, 49.º/ e 3 do CPP).
3. Decisão:
Assim, tendo em conta o acima exposto e atento o disposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal, decido:
3.1. Da falta de legitimidade do MP.
Por a queixa ter sido apresentada por quem carecia de legitimidade, o MP não tinha legitimidade para promover o processo penal pelo crime de dano, o que decido e, em consequência, ordeno nesta parte o arquivamento dos autos.
*
4. Apreciação do recurso:

Para apreciar a questão acima enunciada e que constituiu o objecto do recurso, é necessário, antes de mais, atentar na matéria de facto que era imputada à arguida na acusação do Ministério Público, cujo teor, na parte que aqui releva, é o seguinte:
“O Ministério Público acusa, nos termos do artigo 283.° do Código de Processo Penal, para julgamento em Processo Comum e perante Tribunal Singular:  
 AA, filha de BB e de CC, nascida em ../../1957, natural de ..., ..., solteira, residente na Rua ..., ..., ..., titular do C.C. nº ...46,
 porquanto indiciam suficientemente os autos que, 
 No dia 09.03.2022, pelas 17h00, na Rua ..., ..., ..., a arguida aproximou-se do muro que ali se encontrava a ser construído pela sociedade EMP01..., Lda, e onde se encontravam os seus representantes EMP01... e DD e, por se encontrar em desacordo relativamente à sua construção, retirou as escoras, os taipais, as pedras e a argamassa destruindo parte do muro edificado, causando um prejuízo de valor não concretamente apurado, mas seguramente inferior a € 5.100,00.
A arguida actuou do modo descrito com o propósito concretizado de retirar os materiais componentes do muro, bem sabendo que o aludido muro pertencia aos ofendidos e que com tal acção destruía ainda que parcialmente o mesmo.
Agiu livre, deliberada e conscientemente, apesar de ciente de que toda a sua atrás descrita conduta era proibida e punida por lei.
***
Incorreu pelo exposto, em autoria material, na prática de um crime de dano, p. e p. pelos artigos 212.º, n.º 1, do Código Penal (…).
Comete o crime de dano previsto e punido pelo 212.º, n.º 1, do Código Penal, «quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios”, tendo legitimidade para apresentar queixa o proprietário da coisa e quem, estando por título legítimo no gozo da mesma, for afetado no seu direito de uso e fruição. Por sua vez, estipula o artigo 113.º, n.º 1 do Código Penal, sob a epigrafe “Titulares do Direito de Queixa” que: «quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação». O conceito de ofendido está também previsto no artigo 68.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal, considerando-se aí como ofendidos, «os titulares que a lei especialmente quis proteger com incriminação, desde que maiores de 16 anos». Como escreve Fernando Gama Lobo (in Código de Processo Penal anotado, Fevereiro de 2015, Almedina), estamos perante uma definição, “demasiado genérica, tendo vindo a jurisprudência a moldar a definição no sentido de que, tem de haver entre o crime e o ofendido, uma relação a repercutir directa e causalmente na esfera jurídica deste …. tal relação afere-se em função do bem jurídico ofendido e dos prejuízos (em sentido genérico), causados no titular desse bem”. Como ensina Beleza dos Santos (in Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal – RLJ, ano 57), os ofendidos são “os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formula a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio; o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia … os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente de proteger quando previu e puniu e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas ou directamente ofendidas a infracção e que por isso se podem constituir acusadores”. Quanto à definição do bem jurídico protegido, escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal - Universidade Católica, 5.ª edição actualizada, Lisboa 2022), que no crime de dano, “o bem jurídico protegido pela incriminação é a propriedade”: porém, como salienta este autor, “o conceito penal de «propriedade», incluiu o poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma. Portanto, “ofendido no crime de dano, é a pessoa proprietária, possuidora ou detentora legitima da coisa”.

No caso dos autos, insurge-se o recorrente contra o facto de o juiz do Tribunal a quo ter decidido que o Ministério Publico não tinha legitimidade para deduzir acusação quanto ao crime de dano, alicerçando essa sua decisão no facto de não ter existido denúncia por parte da titular do direito de queixa, no caso a União de Freguesias ... e .... O assistente, alegando ter o “gozo e fruição da obra, bem como todas as responsabilidades daí advenientes, nomeadamente perante o dono da obra, de todos os danos que ocorram na mesma”, entende que tinha legitimidade para apresentar queixa contra a arguida, tendo o Ministério Público, consequentemente, legitimidade por deduzir acusação pelo crime de dano, nos termos que constam do processo.
Resulta da queixa apresentada pela ora recorrente que o muro em construção (sobre o qual incidiu a imputada acção da arguida), tem subjacente um contrato de empreitada celebrado entre a sociedade EMP01..., Lda e a União de Freguesias ... e .... A recorrente invoca no recurso, o artigo 394.º do Código dos Contratos Públicos, para fundamentar a sua legitimidade, consubstanciada na circunstância de a “tutela jurídica” da obra só passar para a autarquia, após a recepção provisória. Alega a recorrente que “a posição do Juiz de Instrução Criminal contraria o regime legal da empreitada de obras públicas e das suas especificidades relativamente á relação entre o dono de obra e o empreiteiro, o qual diverge em muito do previsto no Código Civil”.
Pela nossa parte, sem querermos entrar por seara alheia, não acompanhamos esta posição, sendo certo que não nos parece, salvo o devido respeito por opinião contrária, que não seja aplicável o regime previsto no Código Civil.
Antes de mais, há dizer que não ignoramos uma concepção “mais abrangente do bem jurídico protegido pela incriminação do artigo 212.º do Código Penal”, defendida no  acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2011 (publicado no Diário da República, Iª série, de 31 de maio de 2011)[1], no sentido de integrar, além da relação jurídica formal de propriedade, “outros direitos e interesses legítimos de uso, de gozo e de fruição da coisa - um poder de facto sobre a coisa, assente numa «representação jurídica”.
No entanto, entendemos que não obstante aquela interpretação extensiva, a situação em causa nos autos não cai na previsão daquele acórdão. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça teve em vista uma “pluralidade de situações, assumidas e enquadradas por soluções jurídicas, em que o titular do direito de propriedade, ainda que de modo tendencialmente temporário, não exerce efectivamente as faculdades de gozo, de fruição ou de uso de uma coisa móvel ou imóvel, sejam tais situações decorrentes ou constituídas por força de contrato ou por outros modos previstos na lei”: estão em causa os “direitos reais de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão predial, ou os direitos obrigacionais decorrentes dos contratos de comodato, de algumas espécies comuns da compra e venda, de locação financeira ou de simples locação”, em que o utilizador actua e se comporta “numa relação de utilidade efectiva sobre a coisa”. São situações em que “as qualidades de proprietário e fruidor do gozo (posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa”, não coincidem, mas em que a “relação de gozo pode, pois, ser considerada como uma inequívoca realidade susceptível de protecção penal no âmbito de crime «contra a propriedade», ao lado ou concomitantemente com a relação típica ou jurídica formal de propriedade”; citando o professor Faria Costa, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que existe “muitas vezes, distinção jurídica formal entre quem é proprietário da coisa e quem frui ou goza as respectivas utilidades, e em tais casos a violação da relação de fruição é tão carecida e merecedora de tutela penal como é a violação da relação de propriedade”.
Ou seja, em síntese, naquele acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça teve em vista “o valor de uso (mais relevante no domínio das coisas móveis, onde existe uma proliferação acentuada de tipos contratuais), de forma que, existindo um dano, quem sente o sacrifício da privação da coisa é quem dela podia retirar utilidades”.
Ora, no caso dos autos, a recorrente além de não poder ser considerada como proprietária do muro que estava a construir no terreno da Autarquia[2] porque dele não pode dispor, vendendo-o a terceiros, por exemplo, não tem também o gozo da coisa, não beneficiando da sua fruição, porque à medida que o muro vai sendo implantado no terreno da autarquia, é apenas esta que dele vai retirando, progressivamente, mais utilidade com o decorrer da obra. Por exemplo, se o muro quando estiver terminado, dever ter 2 metros de altura, não deixa de ter utilidade para a autarquia, ainda que parcialmente, quando estiver construído apenas pela metade, porque, já vai cumprindo parte da sua função.
A recorrente alega que o regime legal da empreitada de obras públicas diverge em muito do previsto no Código Civil, relativamente à relação entre o dono de obra e o empreiteiro: invoca em particular, o artigo 394.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, diploma que “estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo”, mas que não tem, salvo o devido respeito, qualquer relevância ao caso dos autos: não tem razão a recorrente porque a solução jurídica não pode deixar de ser a mesma, independentemente da natureza jurídica do contrato celebrado entre as partes.

Vejamos:
A norma em causa tem o seguinte teor:
Artigo 394.º
Vistoria
1 - A receção provisória da obra depende da realização de vistoria, que deve ser efetuada logo que a obra esteja concluída no todo ou em parte, mediante solicitação do empreiteiro ou por iniciativa do dono da obra, tendo em conta o termo final do prazo total ou dos prazos parciais de execução da obra.
2 - A vistoria é feita pelo dono da obra, com a colaboração do empreiteiro, e tem como finalidade, em relação à obra a receber, designadamente:
a) Verificar se todas as obrigações contratuais e legais do empreiteiro estão cumpridas de forma integral e perfeita;
b) Atestar a correta execução do plano de prevenção e gestão de resíduos de construção e demolição, nos termos da legislação aplicável.
3 - O dono da obra convoca, por escrito, o empreiteiro para a vistoria com a antecedência mínima de cinco dias e, no caso de este não comparecer nem justificar a falta, a vistoria tem lugar com a intervenção de duas testemunhas, que também assinam o respetivo auto.
4 - No caso a que se refere o número anterior, o auto é imediatamente notificado ao empreiteiro para os efeitos previstos nos artigos seguintes.
5 - Quando a vistoria for solicitada pelo empreiteiro, o dono da obra deve realizá-la no prazo de 30 dias contados da data da receção da referida solicitação, convocando o empreiteiro nos termos do n.º 3.
6 - O não agendamento ou realização atempada e sem motivo justificado da vistoria por facto imputável ao dono da obra tem os efeitos previstos no direito civil para a mora do credor.
7 - No caso previsto no número anterior, a obra considera-se tacitamente recebida se o dono da obra não agendar ou não proceder à vistoria no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo previsto no n.º 5, sem prejuízo das sanções a que haja lugar, nos termos da legislação aplicável, designadamente quando o empreiteiro não executou corretamente o plano de prevenção e gestão de resíduos de construção e demolição.

Ora, o que resulta da norma em causa, diz respeito apenas às relações internas entre as partes contraentes, fazendo depender a receção da obra, ainda que de forma provisória, do cumprimento das obrigações “contratuais e legais do empreiteiro”, como refere a recorrente; como esta acrescenta, “caso sejam verificadas desconformidades ou defeitos entre o que estava previsto e o que se encontra executado, tal implica a não recepção da obra, no todo ou em parte, em virtude desses defeitos e a notificação do empreiteiro para a correção dos mesmos”. Mas deste regime legal não resulta que o empreiteiro deva responder perante a autarquia em causa, por quaisquer eventos que sejam imputáveis a terceiros, como é o caso dos autos. Está em causa o risco contratual que não pode deixar de correr por conta do dono da obra e não por conta do empreiteiro, sendo certo que no atual Código dos Contratos Públicos, a este respeito, não se encontra norma idêntica à que existia nos anteriores diplomas que regulavam a empreitada de obras públicas, devendo a lacuna ser integrada segundo o regime geral das empreitadas previsto no Código Civil, nos termos do qual o risco corre, em princípio, por conta do dono da obra – cf. o artigo 1207.º e os seguintes do Código Civil[3]. Acresce a esta interpretação, o recurso ao elemento histórico consubstanciado nos dois anteriores diplomas ao CCP, que a seguir se transcrevem e que apontam no sentido por nós defendido quanto ao risco:

Decreto-Lei nº 405/93 de 10-12-1993:

TÍTULO III - Da execução da empreitada

CAPÍTULO VIII - Do não cumprimento e da revisão do contrato

Artigo 176.º - Caso de força maior e outros factos não imputáveis ao empreiteiro
1 - Cessa a responsabilidade do empreiteiro por falta ou deficiência ou atraso na execução do contrato quando o incumprimento resulte de facto que lhe não seja imputável.
2 - Os danos causados nos trabalhos de uma empreitada por caso de força maior ou qualquer outro facto não imputável ao empreiteiro serão suportados pelo dono da obra quando não correspondam a riscos que devam ser seguros pelo empreiteiro nos termos do contrato.
3 - Considera-se caso de força maior o facto de terceiro por que o empreiteiro não seja responsável e para o qual não haja contribuído e, bem assim, qualquer outro facto natural ou situação, imprevisível, ou inevitável, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais do empreiteiro, tais como actos de guerra ou subversão, epidemias, ciclones, tremores de terra, fogo, raio, inundações, greves gerais ou sectoriais e quaisquer outros eventos que afectem os trabalhos da empreitada.

Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março:

CAPÍTULO VIII
Não cumprimento e revisão do contrato
Artigo 195.º
Caso de força maior e outros factos não imputáveis ao empreiteiro
1 - Cessa a responsabilidade do empreiteiro por falta ou deficiência ou atraso na execução do contrato quando o incumprimento resulte de facto que lhe não seja imputável, nos termos previstos no presente diploma.
2 - Os danos causados nos trabalhos de uma empreitada por caso de força maior ou qualquer outro facto não imputável ao empreiteiro, nos termos do presente diploma, serão suportados pelo dono da obra quando não correspondam a riscos que devam ser assumidos pelo empreiteiro nos termos do contrato.
3 - Considera-se caso de força maior o facto de terceiro ou facto natural ou situação, imprevisível e inevitável, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais do empreiteiro, tais como actos de guerra ou subversão, epidemias, ciclones, tremores de terra, fogo, raio, inundações, greves gerais ou sectoriais e quaisquer outros eventos da mesma natureza que impeçam o cumprimento do contrato.

Assim, sendo aplicável o artigo 1228.º, n.º 2 do Código Civil, há que atender que “se, por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa parecer ou se deteriorar, o risco corre por conta do proprietário”, sendo certo que ao contrário do que é dito no despacho de acusação[4], «no caso de empreitada de construção de imóveis, sendo o solo ou a superfície pertença do dono da obra, a coisa é propriedade deste, ainda que seja o empreiteiro quem fornece os materiais; estes consideram-se adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados no solo» - cf. o artigo 1212.º, n.º 2 do Código Civil.

Assim, vistas as coisas nesta perspectiva, afigura-se-nos que como bem se refere no despacho recorrido, “não vemos como afirmar (sem ampliar em demasia o âmbito subjectivo de protecção) que o empreiteiro (EMP01..., Lda) seja o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, carecendo de legitimidade para apresentar queixa, “o que nem o disposto no artigo 1212.º do Código Cível altera – pois tal direito (para apresentar queixa) cabia à União de Freguesia ... e ... – representada pelo respetivo presidente – porquanto o terreno onde o muro estava a ser implantado lhe havia sido cedido” e era a “dona da obra”. Também não vislumbramos, “nem sequer na “resposta aberta” dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, tanta abertura ao ponto de também afirmar protecção ao empreiteiro que vê a coisa em construção sofrer algum tipo de acção tal como descritas no âmbito do artigo 212.º do Código Penal”.
A queixosa/denunciante não é visada directamente pela eventual actuação ilícita da arguida, dado não ser proprietária do muro que identificou na sua queixa, nem tendo sequer o respetivo uso ou fruição. Por isso, não lhe sendo imputável o estrago do muro, não se vê como tenha a obrigação de o reparar, “para o entregar em perfeitas condições ao dono da obra”: pelo contrário, em vez de prejuízo, a recorrente acabará por sair beneficiada porque será eventualmente chamada a reparar o muro, incorporando novos materiais e cobrando mais horas de trabalho que terão de lhe ser pagas pelo dono da obra. Consequentemente, não se pode afirmar, como faz a recorrente, que foi ela quem “sofreu diretamente o prejuízo pelo dano causado pela arguida”.

Por outras palavras, tendo em conta o ilícito criminal em análise, não se apresenta a queixosa sociedade EMP01..., Lda (empreiteira), e ora recorrente, como sendo titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, radicando essa titularidade na União de Freguesias ... e ... (dona da obra).
De tudo resulta que não asiste razão à recorrente, impondo-se a improcedência do recurso.
*
C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela assistente EMP01..., Construções Lda e, em consequência, decidem manter o Despacho recorrido.
*
Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513.º, n. º 1, do Código de Processo Penal, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.
*
Notifique.
*
Guimarães, 23 de Abril de 2024 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
*
Carlos da Cunha Coutinho (relator)
Ana Teixeira (1.ª Adjunta)
Armando da Rocha Azevedo (2.º Adjunto).


[1] Que fixou a seguinte jurisprudência: «no crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa ‘destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada’, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição».
[2] Cf. o artigo 1305.º do Código Civil  - (Conteúdo do direito de propriedade), com a seguinte redacção: «o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposições das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas».
[3] Cf. nomeadamente o artigo 1212.º, n.º 2 do Código Civil com a seguinte redacção: «no caso de empreitada de construção de imóveis, sendo o solo ou a superfície pertença do dono da obra, a coisa é propriedade deste, ainda que seja o empreiteiro quem fornece os materiais; estes consideram-se adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados no solo» e ainda, além de outros, o artigo 1228.º, n.º 1, com a seguinte redacção: «se, por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa parecer ou se deteriorar, o risco corrre por cota do proprietário».
[4]A arguida actuou do modo descrito com o propósito concretizado de retirar os materiais componentes do muro”.