Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ESPINHEIRA BALTAR | ||
| Descritores: | REGISTO TERCEIROS REGISTO DA ACÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 06/04/2013 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1. O artigo 17 n.º 2 do CRP aplica-se a situações de nulidade do registo, em que esteja em causa a sua nulidade. 2. O artigo 291 do C.Civil abrange as situações de invalidade das relações jurídicas inscritas no registo, podendo a acção impugnativa ser proposta e registada num prazo de três anos após a conclusão do negócio jurídico inválido, para neutralizar a eficácia do respectivo registo. 3.A falta de prova do registo leva à improcedência da acção. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães S…, S.A., com sede na Rua …, Lisboa, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra: C…, Ldª, com sede na Travessa…, concelho de Barcelos; J…, residente na Travessa…, concelho de Barcelos; E…, residente na Travessa…, Torres Vedras; e J…, Ldª, com sede na Encosta…, Torres Vedras. Peticiona a Autora que: a) os Réus sejam condenados no reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o veículo marca “Fiat”, modelo “Scudo Diesel”, versão “Scudo 2.0 M-Jet Longo”, com a matrícula …; b) seja declarado nulo o negócio alegadamente celebrado entre a Autora e a 1ª Ré, bem como os negócios celebrados entre a 1ª Ré e a 3ª Ré e, por sua vez, entre esta e a 4ª Ré; c) ordenado o cancelamento dos registos sobre o veículo de matrícula …, efectuados com base na alegada compra e venda celebrada entre a Autora e a 1ª Ré e das compras e vendas celebradas entre a 1ª Ré e a 3ª Ré, entre esta e a 4ª Ré e ainda os que eventualmente sejam efectuados na pendência dos presentes autos; d) ordenado o registo de propriedade sobre o veículo de matrícula … a favor da Autora. Alega, para o efeito e em síntese, que em 31-07-2008 adquiriu uma viatura da marca FIAT, modelo SCUDO DIESEL, versão SCUDO 2.0 M-JET LONGO, com a matrícula …, junto da M…, S.A., com o propósito de dar em locação o mesmo veículo à 1ª R., através do contrato de locação financeira celebrado entre a Autora e a 1ª R. em 07-08-2008. Sucede que o mencionado contrato de locação foi incumprido e resolvido por falta de pagamento das prestações que a 1ª R. havia assumido. Em consequência, ficou a 1ª R. obrigada ao pagamento das quantias em dívidas e a restituir o veículo à S…, S.A., esta última legítima proprietária do mesmo. Todavia, após consulta de certidão do registo automóvel …, e para surpresa da Autora, esta constatou que a propriedade da mencionada viatura se encontrava registada a favor da 1ª R., registo este que apenas pode ter sido conseguido mediante a falsificação da assinatura de um suposto legal representante da Autora. Posteriormente, foi a viatura vendida pela 1ª R. à 3ª R. e por esta à 4ª R., constando esta como actual proprietária da viatura em causa, no registo automóvel. A Autora nunca emitiu qualquer documento destinado à compra e venda do referido veículo, nem teve sequer a intenção de o fazer. Pelo que, a propriedade sobre o veículo … nunca se chegou a transferir para a esfera jurídica da 1ª R., mantendo-se antes na esfera jurídica da Autora. Os Réus “C…, Ldª” e J… foram citados editalmente, tendo sido, de seguida, dado cumprimento ao disposto no artigo 15º, do Código de Processo Civil, não tendo o Ministério Público deduzido contestação. Os demais Réus, devidamente citados, deduziram contestação, impugnando grande parte da factualidade alegada em sede de petição inicial. Além disso, alegou a Ré “J…, Ldª” que adquiriu o veículo de matrícula … à sociedade “A…, Ldª”, tendo pago o respectivo preço, que desconhece os demais negócios referentes a tal viatura e que é um terceiro de boa fé. Requereu, ainda, a Ré “J…, Ldª” a intervenção provocada da sociedade “A…, Ldª”. Já a Ré E… sustentou que adquiriu, a título oneroso, o veículo em questão nos autos à 1ª Ré, tendo registado essa aquisição a seu favor, sendo que, no momento da aquisição, ignorava completamente, e sem culpa, se o registo da viatura a favor do vendedor, padecia de algum vício. A Autora respondeu às contestações apresentadas nos autos, sustentando que os alegados direitos dos Réus sobre a viatura em questão não podem ser reconhecidos, porque a presente acção foi registada antes de decorrido o prazo previsto no nº 2, do artigo 291º, do Código Civil. Por despacho exarado a fls. 287, foi admitida a intervenção principal provocada da sociedade “A…, Ldª”. Citada a chamada, esta não deduziu contestação. Procedeu-se ao julgamento com as legais formalidades, como melhor resulta da respectiva acta. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos formulados. Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação formulando conclusões. Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido, opondo-se à junção dum documento referente à apresentação do registo da acção. Damos como assente a matéria de facto consignada na decisão recorrida, que passamos a transcrever: 1 - No âmbito da sua actividade, a Autora celebrou com a 1ª Ré em representação desta, no dia 07-08-2009, o contrato de locação financeira nº 634799. 2 - Pelo referido contrato, a Autora deu em locação à 1ª Ré uma viatura de marca FIAT, modelo Scudo Diesel, versão Scudo 2.0 M-Jet Longo, com a matrícula … 3 - Para a celebração do mencionado contrato, a Autora adquiriu o equipamento ao fornecedor M…, S.A., escolhido e indicado pela 1ª Ré, pelo preço total de 24.594,38€ - IVA incluído. 4 - Em conformidade, a S… registou a viatura a seu favor. 5 – A Autora cedeu à 1ª Ré o gozo e fruição do equipamento, o qual foi recebido pelo 2º Réu em representação da 1ª Ré. 6 – Por força do referido contrato de locação, e como contrapartida do gozo e fruição do veículo, obrigou-se a locatária a pagar à Autora, as rendas contratadas, no montante de 1.065,73€ a primeira, e no montante de 270,56€ cada uma das restantes 83, às quais acresce IVA à taxa legal em vigor, num total de 84 rendas (Cfr. Cláusula 4ª das Condições Particulares do Contrato). 7 - A locatária, ora 1ª Ré, não efectuou o pagamento das seguintes rendas: N.º da renda Data de vencimento Valor em dívida 2 08-09-2008 324,67€ 3 08-10-2008 324,67€ 4 08-11-2008 324,67€ 8 - Nem pagou as seguintes despesas com as transferências bancárias: Refª Data de vencimento Valor em dívida DPO1 08-09-2008 1,50€ DPO2 08-10-2008 1,50€ DPO3 08-11-2008 1,50€. 9 - Em face do atraso no pagamento das rendas, a Autora enviou cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 10-12-2008, nas quais instou a 1ª e 2º Réus a pagarem os montantes em dívida e informou que caso não o fizessem no prazo fixado o contrato considerar-se-ia resolvido e deveriam entregar a viatura à Autora. 10 - Cartas essas que vieram devolvidas, apesar de enviadas para a morada contratualmente fixada da 1ª Ré, e para a morada actualizada do 2º Réu. 11 - O veículo da marca FIAT, modelo SCUDO DIESEL, versão SCUDO 2.0 MJET LONGO, com a matrícula… foi registado em nome da 1.ª Ré C…, Lda, registo esse requerido online, em 04-12-2008, no site www.automovelonline.mj.pt por alguém que não a Autora. 12 - Consta do documento apresentado para concretização do registo de propriedade do veículo de matrícula … em nome da 1ª Ré que a Autora foi representada nesse acto por um procurador de nome L… e a assinatura deste reconhecida pelo Dr. F…. 13 - L…, que a Autora desconhece quem seja, nunca foi procurador desta ou por qualquer outra forma seu representante. 14 - O Dr. F… é colaborador da Autora, prestando a esta diversos serviços, incluindo os de reconhecimento de assinaturas. 15 - Todavia, não realizou o reconhecimento patente no Modelo 2 junto à Conservatória de Registo Automóveis que possibilitou o registo da propriedade do veículo em nome da 1ª Ré. 16 - Em 12-01-2009, foi requerido, online, o registo de propriedade da viatura objecto dos presentes autos a favor da 3ª Ré E…, com fundamento num alegado contrato de compra e venda da referida viatura, celebrado com a 1ª Ré, em 16-12-2008. 17 - Em 30-01-2009, foi requerido, online, novo registo de propriedade da viatura em causa, desta feita a favor da 4ª Ré J…, Ldª, com base num outro alegado contrato de compra e venda celebrado entre esta e a 3ª Ré, em 05-01-2009. 18 - A inscrição da propriedade sobre o veículo de matrícula … a favor da Ré J…, Ldª” data de 2 de Fevereiro de 2009. 19 - A viatura de matrícula … foi adquirida pela Ré “J…, Ldª” à E…, através da sociedade “A…, Ldª”, em 5 de Janeiro de 2009. 20 - Neste mesmo negócio, a Ré “J…, ldª” pagou € 14.000(catorze mil euros), tendo entregue como pagamento uma viatura de sua propriedade, OPEL VIVARO, com a matricula …, com o valor global - IVA incluído - de 3.000,00 (três mil euros) e tendo entregue para pagamento do remanescente 10 (dez) cheques, todos no valor unitário de 1.100,00 (mil e cem euros) e com vencimentos em 5/01/09, 5/02/09, 5/03/09, 5/04/09, 5/05/09, 5/06/09, 5/07/09, 5/08/09, 5/09/09 e 5/10/09. 21 - Todos estes pagamentos foram pontualmente cumpridos e tendo em conta o relacionamento existente com a empresa A…, Lda., a respectiva gerência emitiu declaração de venda e circulação da referida viatura. 22 – A Ré E…, quando adquiriu o veículo de matrícula…, ignorava os factos descritos nos quesitos nºs 14º, 15º, 16º e 19º. 23 - A Ré E… adquiriu o veículo de matrícula … à entidade que, à data, figurava no registo automóvel como sendo a respectiva titular. 24 – O sócio gerente da sociedade “A…, Ldª”, V…, é marido da Ré E…. 25 - O veículo em causa foi vendido pela 3ª ré E… à 4ª ré J…, tendo esta efectuado o respectivo pagamento à A…, isto é, ao marido da 3ª ré, que, para tanto emitiu a competente factura/recibo. Das conclusões do recurso e das contra-alegações ressaltam as seguintes questões, a saber: 1.Se é de admitir a junção do documento com as alegações por parte da apelante. 2. Qual o âmbito e finalidade do registo e sua aplicação ao caso em apreço. Vamos conhecer das questões enunciadas. 1 . A apelante juntou, com as suas alegações e conclusões um documento comprovativo de que apresentou requerimento do registo da acção a 10 de Fevereiro de 2010, com vista a colmatar o documento apresentado e junto a fls. 65, e que relata o registo de uma acção em que consta como sujeito activo J… e passivo J…, La, referente ao veículo de matrícula …, Marca Fiat. A ré apelada opôs-se à junção do documento porque foi intempestiva e não pode suprir o que consta do documento referente ao registo da acção, que menciona como sujeito passivo pessoa diferente da autora. O documento agora junto com as alegações já existia desde a sua emissão, 10 de Fevereiro de 2010. Podia ter sido junto aos autos até à audiência de discussão e julgamento nos termos do artigo 523 n.º 1 do CPC. E assim, não poderá ser apresentado com as alegações do recurso porque não se verifica a superveniência objectiva ou subjectiva, prevista no artigo 524 do CPC. Daí não ser atendida a sua junção, sendo irrelevante para a discussão do recurso. 2 – O tribunal recorrido apoiou-se no disposto no artigo 17 n.º 2 do Código do Registo Predial, conjugado com o artigo 29 do Registo Automóvel, para concluir que as transmissões efectuadas para a terceira e quarta rés estão protegidas pela eficácia do registo, porque foram feitas com base em factos registados anteriormente, estando de boa fé aquando das transmissões, que são onerosas e foram registadas anteriormente à propositura da acção. Em face disto, os factos alegados pela autora não registados não podem afectar os registados nos termos do normativo invocado. E afastou a aplicação do artigo 291 do C.Civil por entender que este normativo se aplica apenas às invalidades substantivas, enquanto o artigo 17 n.º 2 do CRP abarca tanto às invalidades substantivas como registais (nulidade do registo), sendo a dos autos uma nulidade substantiva, seguindo a doutrina da Dra. Isabel Pereira Mendes. Está em causa uma aquisição pelo registo, pelo que nunca seria de aplicar a norma do artigo 291 do C.Civil, porque o seu campo de acção está circunscrito a situações em que a transmissão não é precedida de registo. A autora apelante insurge-se contra o decidido, defendendo posição contrária, no sentido de que o 17 n.º 2 do CRP tem aplicação apenas a situações de nulidade de registo, quando o que está em causa é o vício da relação jurídica coberto pelo título transmissivo. E, além disso, deve ser interpretado de acordo com a concepção de terceiros para efeitos do registo, consagrada no artigo 5 .º 4 do CRP. Daí advogar a aplicação ao caso do artigo 291 do C.Civil, porque está em causa uma invalidade substantiva e as transmissões não emergiram de um autor comum. O registo tem natureza declarativa e não constitutiva. Garante e conserva direitos existentes. Visa, essencialmente, dar publicidade aos direitos inscritos, criando a aparência de que pertencem a quem consta da inscrição, e que estão na sua esfera jurídica. Isto gera a segurança nas relações jurídicas, facilitando o comércio jurídico imobiliário. A natureza declarativa assenta, essencialmente, no disposto no artigo 7º do CRP. que refere que o registo presume que o direito existe nos termos em que se encontra inscrito, sujeito a prova do contrário. Excepcionalmente, revela-se com características constitutivas nos artigos 5º, 17 n.º 2, ambos do CRP. e 291 do C.Civil. O primeiro declara que são inoponíveis a terceiros “ ..os factos sujeitos a registo que não se encontrem registados.”. E só produzem efeitos a partir do registo. Neste caso, o registo, em si, prevalece sobre um facto jurídico não registado e que devesse ser objecto de registo. Isto pressupõe saber qual o âmbito do terceiro para efeitos do registo. No nosso sistema jurídico registal, antes das alterações ao CRP. instituído pelo decreto-lei 224/84 de 6 de Julho, através do decreto-lei 533/99 de 11/12, era a doutrina que delimitava o conceito de terceiro para efeitos de registo. E era dominante a defendida por Manuel de Andrade, na Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pag. 19, em que definia terceiros como “.. aqueles que adquiriam do mesmo transmitente direitos incompatíveis sobre a mesma coisa...” Esta doutrina dominou na jurisprudência do STJ. até que foi publicado o acórdão uniformizador 15/97, de 20 de Maio de 1997, no DR. I Série A, de 4/7/97, que assentou na doutrina defendida por Oliveira Ascensão, em “Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa”. Este acórdão fixou a seguinte jurisprudência sobre o conceito de terceiros: “ Terceiros, para efeitos do registo predial, são todos os que, tendo obtido registo dum direito sobre um determinado prédio, veriam esse direito arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”. Este conceito de terceiros é mais amplo, abrangendo as situações de dupla transmissão, pelo mesmo transmitente, como outras transmissões emergentes de outros adquirentes. Não se exigia que houvesse um transmitente comum. Houve uma reacção do STJ. a este acórdão uniformizador, cerca de dois anos após a sua vigência, que, através do acórdão 3/99 de 18 de Maio, publicado no DR. I Série A, de 10 de Julho de 1999, fixou nova jurisprudência uniformizadora, revendo o anterior acórdão nos seguintes termos: “ Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do CRP. são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”. Este acórdão assentou na doutrina tradicional, temperando-a com a exigência da boa-fé dos adquirentes. O certo é que esta jurisprudência foi inserida, em termos gerais, nas alterações ao CRP, pelo decreto-lei 533/99 de 11 de Dezembro. Foi aditado o n.º 4 ao artigo 5º do CRP., com a seguinte redacção: “ Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Esta alteração legislativa consagra a concepção restrita de terceiros para efeitos de registo, adoptada por Manuel de Andrade, ao não incluir a boa fé dos adquirentes, constante no acórdão do STJ. 3/99 de 18/5. O artigo 17 n.º 2 do CRP. aplica-se a transmissões sucessivas que não advenham dum mesmo transmitente, em que esteja em causa o vício formal do registo, que gera a nulidade do mesmo, através duma acção de nulidade. O artigo 291 do C.Civil aplica-se aos casos de vícios substanciais da relação jurídica, que geram a nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, que fundamenta o respectivo registo. Impõe-se em ambos os normativos o registo anterior, a boa fé do adquirente e a onerosidade da aquisição. O registo, nestes casos, impõe-se por si, na medida em que visa tutelar a segurança nas relações jurídicas, promovendo a confiança no comércio jurídico imobiliário. São salvaguardados os efeitos jurídicos emergentes dos factos registados, cujo registo venha a ser julgado nulo, desde que o registo seja anterior (artigo 17 n.º2 do CRP) e que não seja proposta acção de nulidade ou anulação registada no prazo de 3 anos após a conclusão do negócio (artigo 291 n.º 1 do C.Civil). A questão que se coloca nos autos é saber qual o regime aplicável, se o do artigo 17 n.º 2 do CRP se o do artigo 291 do C.Civil, e se ambos são incompatíveis, ou pelo contrário, são conciliáveis. A decisão recorrida seguiu a doutrina que defende que o artigo 17 n.º 2 do CRP é aplicável, de forma genérica, a todas as situações em que esteja em causa uma transmissão que foi registada e lhe precedeu um registo que é nulo, em si, por violação das regras do registo ou a relação jurídica que o fundamenta está ferida de alguma invalidade. Parte do pressuposto que este normativo é o cerne da fé pública registal assente nos princípios da especialização, legitimação, precedência do registo, e confiança do adquirente no registo do transmitente, estruturantes do sistema registal, plasmado no CRP. O certo é que o artigo 17 n.º2 do CRP se insere no sistema registal e visa sanar a situação dum registo nulo por violação das normas que presidiram à sua constituição. O que está em causa é a nulidade dum registo em si, cujas normas aplicáveis são taxativas e visam expurgar uma situação de desconformidade, tendo em conta o disposto no artigo 16 do mesmo Código. Este normativo enumera as situações que geram a nulidade do registo, em que se destacam situações de falsidade do registo, do título que esteve na base da sua constituição, na insuficiência ou inexactidões do título e ainda na competência funcional e a violação do trato sucessivo. E é essencialmente nas situações de falsidade ou de insuficiência dos títulos, que podem gerar invalidades das relações jurídicas subjacentes aos títulos, que se infere o princípio geral da fé pública registal, de molde a fundamentar todo o sistema registal neste princípio, que tem como consequência a generalização da sua aplicação a qualquer situação de desconformidade do registo com a realidade substantiva, mesmo quando não esteja em causa a falsidade do título, mas apenas a invalidade da relação jurídica subjacente. E assim afasta do sistema registal ou dos efeitos do registo o disposto no artigo 291 do C.Civil. Porém, a norma do artigo 17 n.º 2 do CRP é excepcional e está inserida na parte referente à nulidade do registo e suas consequências, e não pode ter a aplicação genérica que se pretende dar. Além disso, é uma norma muito próxima do artigo 291 do C.Civil, cujas diferenças apenas incidem num ponto – o artigo 17 n.º 2 exige que a transmissão tenha sido precedida de um registo e o artigo 291 no seu número 2 permite ao titular do direito impugnar a invalidade do negócio durante três anos a partir da conclusão do mesmo. E é em face desta quase identidade, que leva a que alguma doutrina defenda a conciliação do regime de cada norma de molde a ser aplicada a regra dos três anos para a impugnação das situações de falsificação de títulos, que geram a nulidade das relações substantivas. E isto, porque está em causa a protecção do titular do direito, cuja oportunidade de defesa deverá ser alargada nos mesmos termos que é conferida no artigo 291 n.º2 do C.Civil, porque a falsificação se apresenta como um vício mais grave, devendo ter, pelo menos, o mesmo tratamento que a invalidade dos negócios. Daí a posição actual de Oliveira Ascensão em que permite, através duma interpretação analógica a aplicação do prazo de três anos a situações de nulidade de registo com base em falsificação de títulos, como se pode depreender da leitura da sua obra Direito Civil Reais, 5.ª edição, Coimbra Editora, fls. 370 a 378. Em que defende que cada norma deve ter o âmbito de aplicação que lhe é definida pelo seu fim (artigo 17 n.º 2 do CRP nulidade do registo e artigo 291 do C.Civil invalidades substantivas dos negócios), ou, nas situações mais idênticas, a que for mais favorável ao titular do direito. No mesmo sentido vai alguma jurisprudência do STJ. como seja o Ac. de 27 de Abril de2005, C.J. (STJ), 2005, Tomo II, pag. 74 a 78, que defende a conciliação entre o artigo 291 do C.Civil e 17 n.º 2 do CRP. Versando sobre o caso em apreço, temos três transmissões sucessivas, a primeira da autora para a primeira ré, a segunda desta para a terceira ré e a terceira desta para a quarta ré. Cada uma destas transmissões foi objecto de inscrição no registo. O certo é que a primeira transmissão está ferida de invalidade, uma vez que a declaração de venda, por parte da autora à primeira ré, foi efectuada por alguém que não tinha poderes para o acto. Alguém que se intitulou procurador da autora mas que não foi investido por si para declarar a venda do veículo. E foi com base neste título que a primeira ré inscreveu o facto jurídico de compra e venda no registo e, a partir daí, se concretizaram, futuramente, as outras transmissões, que foram registadas, oportunamente. A autora, com esta acção, impugnou a validade da venda à primeira ré, pedindo a sua nulidade, extensiva às outras duas transmissões e o cancelamento dos respectivos registos, fundados nos respectivos títulos. Estamos perante uma impugnação da validade do negócio e não do registo, em si, apesar deste ser afectado, de forma indirecta, com a declaração de invalidade. Daí que o normativo aplicável seja o do artigo 291 do C.Civil e não do artigo 17 n.º 2 do CRP. Pois, não está em causa, de forma directa, como pedido formulado expressamente pela autora, a nulidade do registo da primeira transmissão, entre a autora e a primeira ré. E que julgamos que é indispensável ter acontecido para a aplicação do disposto no artigo 17 n.º 2 do CRP, em obediência ao princípio do dispositivo. Incumbe às partes definirem o objecto da acção, através da causa de pedir e do pedido. Neste caso a autora identificou o objecto da acção como sendo a invalidade da relação jurídica subjacente ao título, com o cancelamento do registo, para poder impugnar os factos registados, ao abrigo do disposto no artigo 8 do CRP. Mas para que a autora pudesse, eficazmente, impugnar a relação jurídica subjacente ao título que fundamentou a sua inscrição no registo a favor da primeira ré, teria de provar que registou a presente acção e que o fez no prazo de três anos a partir da conclusão do negócio (artigo 291 n.º 1 e 2 do C.Civil). Da matéria de facto assente não resulta a prova do registo da acção, nem o documento junto a fls. 65, que é um documento autêntico, com força probatória plena, pode relevar para o efeito, porque o registo a que se refere não diz respeito à acção movida pela autora contra os réus, mas a outra pessoa. E mesmo o documento apresentado com as alegações, que não foi admitido, não iria alterar a situação, porque apenas provaria que a autora requereu o registo da acção e nada mais. E aqui impunha-se que o registo fosse aceite e concretizado pelo conservador competente. Assim, a acção teria de improceder, mesmo aplicando-se-lhe o disposto no artigo 291 n.º 1 e 2 do C.Civil, por falta de um requisito fundamental, o registo da acção no prazo de três anos após a conclusão do negócio inválido. Concluindo: 1. O artigo 17 n.º 2 do CRP aplica-se a situações de nulidade do registo, em que esteja em causa a sua nulidade. 2. O artigo 291 do C.Civil abrange as situações de invalidade das relações jurídicas inscritas no registo, podendo a acção impugnativa ser proposta e registada num prazo de três anos após a conclusão do negócio jurídico inválido, para neutralizar a eficácia do respectivo registo. 3.A falta de prova do registo leva à improcedência da acção. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam, com outros fundamentos, a decisão recorrida. Custas a carga da apelante Guimarães, 04/06/2013 Espinheira Baltar Henrique Andrade Eva Almeida |