Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
152/21.6GCBRG.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
SANEAMENTO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA DO RELATOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Recebida a acusação e designado dia para a realização do julgamento, dentro dos atos introdutórios dessa audiência não são todas as matérias que podem ser objeto de apreciação no momento processual a que alude o artº 338º, nº 1, do CPP.
II – Do que aí se trata é de apreciar questões prévias ou incidentais (ou seja: as previstas no nº 1 do artº 311º do CPP), e não de tecer considerações acerca do mérito da acusação (questão prevista no nº 2 do artº 311º do mesmo diploma), como acabou por acontecer na decisão impugnada.
III – Quanto a esse mérito, ou a acusação já foi anteriormente rejeitada, ou a apreciação terá que ser feita em sede de sentença, aí se apreciando o mérito da causa.
IV – A eventual falta de factos consubstanciadores dos elementos típicos, objetivo e subjetivo do crime não pode ser apreciada no momento processual previsto no artº 338º, nº 1, do CPP, uma vez que não se trata de qualquer questão prévia ou incidental que obste ao conhecimento do mérito da causa.
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 152/21.6GCBRG.G1

Decisão Sumária

Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães
I - Relatório:

- No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Braga, Juiz ..., no processo n.º 152/21...., em que é arguido AA, acusado da prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360, nº 1 e 3, do CP, foi proferido um Despacho, datado de 20/11/2023, que ao abrigo do disposto nos artigos 283º, nº 3 e 122º, do Código de Processo Penal, rejeitou a acusação deduzida por ser nula, e manifestamente infundada.
*
- Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
«Conclusões
1. No dia 29 de Maio de 2023, o Ministério Público deduziu acusação pública para julgamento em processo comum perante Tribunal Singular contra o arguido AA imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
2. E remeteu os autos à distribuição, para julgamento perante Tribunal Singular.
3. Por despacho proferido no dia 13 de Julho de 2023, o Tribunal a quo recebeu a aludida acusação pública e, posteriormente, foi designado o dia 20 de Novembro de 2023 para realização da respectiva audiência de discussão e julgamento.
4. Sucede que, nesse dia, a Mma. Juiz a quo entendeu que a dita acusação pública não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento objetivo do ilícito.
5. Por esse motivo, considerou que a acusação pública é nula, por descrever uma conduta atípica.
6. E, nessa sequência, absolveu o arguido dos factos de que vinha acusado, não realizando a audiência de discussão e julgamento por reputar a mesma um acto inútil.
7. Todavia, no caso em apreço, a acusação pública deduzida possui todos os factos necessários à subsunção ao crime de falsidade de testemunho imputado ao arguido, encontrando-se todos os elementos do tipo objectivo deste ilícito penal suficientemente narrados.
8. De facto, resulta do libelo acusatório em questão que “1. No dia ../../2021, AA recebeu na sua residência sita na Avenida ..., ... ..., ..., um auto de contraordenação por excesso de velocidade, perpetrada no dia 28.04.2020, pelas 17h22 na EN...4, Km 36.6, ..., com o veículo automóvel de matrícula ..-..-HE.”.
9. E ainda que, no dia 15 de Fevereiro de 2022, o arguido declarou perante funcionário judicial que o inquiriu, após ter sido advertido de que deveria responder com verdade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade penal, que “nunca se deslocou para o seu trabalho sem ser na sua viatura de marca ...(…) nunca ninguém lhe pediu os dados de identificação a fim de preencher o documento de fls. 36 (…) não preencheu o documento de fls. 36 e desconhece quem possa ter sido.”
10. Resultando ainda do libelo acusatório que “no dia 28.04.2020, o arguido conduziu o referido veículo de matrícula ..-..-HE.”.
11. Ou seja, resulta do libelo acusatório que o arguido prestou falso depoimento quando disse que não conduziu o automóvel com a matrícula ..-..-HE.
12. O que vale por dizer que resulta da acusação pública deduzida os elementos objectivos do crime de falsidade de testemunho que lhe foi imputado.
13. Ademais, sempre se dirá que o arguido ao ser confrontado com o teor do libelo acusatório em questão percebe perfeitamente o que lhe está a ser imputado e do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
14. Pois o arguido prestou as referidas declarações após ter sido confrontado com a factualidade em apreço, denunciada pelo próprio e que dizia respeito à não utilização da viatura com a matrícula ..-..-HE no dia 28 de Abril de 2020.
15. Nesta senda, urge concluir que a decisão recorrida não se afigura correcta, tanto mais que o julgador apenas deve rejeitar a acusação quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento, o que não é, claramente, o caso dos autos, pois a mesma contém a narração dos factos imputados.
16. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11 de Julho de 2017, proferido no âmbito do Processo nº 649/16.0T9BRG.G1 (disponível in www.dgs.pt), no qual ficou exarado que “ainda que a matéria alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objectivos e subjecivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado”.
17. Nesta senda, urge concluir que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 26º e 360º, ambos do Código Penal e nos artigos 122º, 283º, nº 3, alínea b) e 358º, todos do Código de Processo Penal.
Motivo pelo qual deve a decisão recorrida ser revogada, e, concludentemente, ser substituída por outra que considere descritos na acusação pública factos que integram, em abstracto, a prática de um crime falsidade de testemunho e determine, em consequência, a realização da respectiva audiência de discussão e julgamento a fim de apurar a matéria de facto dada como provada e não provada, e aplicar, se for o caso, a respectiva sanção.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.»
*
- Notificado do requerimento de interposição de recurso o arguido AA respondeu, pugnando pela improcedência do mesmo e confirmação da decisão recorrida.
*
- Neste Tribunal da Relação, após cumprimento do disposto no artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de (transcrição):
           
“(…)
«3.1
Cuidando de ser concisos e sempre com a salvaguarda de melhor e mais avisado saber, entendemos, em primeiro lugar, que o despacho acima indicado é ilegal, estando ferido de nulidade. Estamos, assim, com o recurso interposto.
E para o demonstrar, devemos atentar no momento processual em que o mesmo ocorre.
Considerando o fluir processual, o despacho recorrido surge depois de findar a fase de inquérito, já após ter sido proferido despacho judicial a receber a acusação deduzida contra o arguido e ter sido designada data para a audiência – “Recebo a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida (art.º 311-A.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal).”. E nesse despacho, do mesmo passo, decidiu-se que “Inexistem questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.”.
O despacho recorrido foi proferido no início da audiência de julgamento, depois de, afinal, ter sido proferido o dito despacho de saneamento do processo – art.º 311 do CPPenal, ou seja, e como se prevê no art.º 312 do mesmo CPenal, após terem sido “Resolvidas as questões referidas no artigo anterior”.
E uma das questões resolvidas referidas no mencionado art.º 311 é, nada mais, nada menos, do que a verificação do fundamento da acusação deduzida, acusação que deverá ser rejeitada se, afinal, for “manifestamente infundada”, mormente, “se os factos não constituírem crime” – al d) do n.º3.
O julgador, a 13/07/2023, considerou que os factos vertidos na acusação constituíam crime não a tendo rejeitado, e agora, a 20/11/2023, entendeu o contrário. O mesmo é dizer, que o julgador, melhor dizendo, o mesmo julgador, reconhecidamente, viu agora o que, afinal, não tinha visto no passado, cuidando então, de refazer, em seu juízo, o que havia realizado.
Então, o despacho recorrido viola frontalmente o disposto nos n.ºs 2 e 3 do dito art.º 311, por confrontar o caso julgado formal que se estabeleceu.
Todavia, com a singularidade de não haver uma literal revogação do anterior despacho que havia recebido a acusação, mas sim uma declarada “absolvição” pressupondo a efectivação de um julgamento o que, afinal, não aconteceu. Nenhuma prova foi produzida, nenhuma audiência se realizou. E não poderia advir uma qualquer “absolvição” pois que esta só poderia ocorrer após uma deliberação e votação sobre os factos e as provas em sentença, como decorre do disposto nos artigos 372 e 374, ambos do CPPenal, prevendo expressamente o n.º3, al. b) do dito art.º 374, que a sentença termina com a indicação de estarmos perante uma “decisão condenatória ou absolutória”.
Então, o julgador ao proferir o despacho colocado em apreciação neste TRG, colocando-se em confronto com um seu anterior despacho recaindo sobre o mesmo objecto, já não possuía jurisdição para tal neste processo.
Ao proceder à reanálise de um seu anterior despacho implicitamente o revogando, o julgador agiu, afinal, sem possuir poderes para tal, violando, de igual modo, as regras de competência do tribunal.
O mesmo é dizer, em conclusão, que se verifica até uma nulidade insanável tendo em conta o previsto na al. e) do art.º 119 do CPPenal.
Veja-se, com total pertinência, o que foi decidido no acórdão deste TRG, de 19/09/2023, proc. 37/18.3EABRG.G1, com a relatora a desembargadora Florbela Santos Silva, com o 1.º Adjunto, o desembargador Júlio Pinto, com similar temática à que agora nos preocupa, até por as decisões recorridas terem a mesma autoria.
3.2
E um outro argumento deverá ser considerado.
No caso, e repondo o tema, o julgador com o despacho recorrido qualificou juridicamente os factos diversamente do que consta da acusação.
Recordemos, então, o que se escreveu no acórdão do STJ, de 12/06/2013, proc. n.º 788/10.0gebrg.g1 -A.S1 - 3.ª:
“Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz -se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo -se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade.
Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.
Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.
Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete.
E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.”.
O que se expôs tem plena aplicação ao caso em apreciação pois que o julgador, sem que houvesse a realização do julgamento com produção de prova, procedeu a uma qualificação jurídico-penal diversa da vertida na acusação que havia sido previamente recebida.
Esta conduta processual é inaceitável pois que, e em conformidade com o citado acórdão, e que, realce-se, uniformizou jurisprudência – acórdão 11/2013, “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP”.
3.3

Assim e em conclusão:
Tendo sido proferido despacho de recebimento da acusação procedendo ao saneamento do processo nos termos do art.º 311 do CPPenal e tendo sido designado dia para a audiência de julgamento, o despacho judicial que no início da audiência de julgamento procedeu a um reexame da acusação anteriormente recebida considerando-a agora manifestamente infundada, no entendimento, então, de que os factos nela descritos não constituírem o crime de falsidade de testemunho, viola o regime previsto no citado artigo 311 e o caso julgado formal já estabelecido, carecendo o autor do despacho recorrido de jurisdição para tal pronunciação, como viola, ainda, o regime estabelecido no acórdão de uniformização da jurisprudência n.º 11/2013 pois que realizou uma requalificação jurídica dos factos vertidos na acusação sem que tenha havido qualquer produção de prova. Daí a procedência do recurso interposto.».
*
- Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou resposta.
*
- Cumpre apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação:

Nos termos o artigo 417º, n.º 6 do CPP, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que:

a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;
b) O recurso dever ser rejeitado;
c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou
d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado.

Afigura-se-nos que a questão suscitada pelo Ministério Público no recurso, a insustentabilidade legal do despacho decisório impugnado, já tem sido jurisprudencialmente apreciada e poderá ser imediatamente conhecida, enquadrando-se na al. d) do nº 6, do artº 417º do CPP, uma vez que se trata de questão amplamente apreciada nos tribunais portugueses, e que não suscita controvérsia.
Pelo que, vamos proferir:
Decisão sumária
*
- Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer da seguinte questão, se ocorre motivo para rejeição do requerimento acusatório do Ministério Público, por padecer de nulidade e se mostrar  manifestamente infundado, com consequente não realização de julgamento, por inútil.
*
O Despacho recorrido:

É o seguinte o teor do despacho impugnado:
«DESPACHO
Mais bem analisados os autos, verifica-se existir uma nulidade da acusação que torna inútil a realização da audiência de julgamento.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjetivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas
relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação pública não contém a descrição de factos que integrem, desde logo, o elemento objetivo do ilícito, revelando-se a conduta descrita inócua criminalmente.
Com efeito, das declarações prestadas pelo arguido e vertidas no facto 3., da acusação, que sustentavam a existência de declarações falsas, porque contrariavam a factualidade descrita em 4., em lado algum se constata que o arguido, depois de ser advertido do dever de ser fiel à verdade, tenha negado que conduziu a viatura mencionada em 1., nas circunstâncias aí descritas, apenas declarando o mesmo que nunca se deslocou para o seu trabalho sem ser na viatura de marca ... e, presumindo-se não se tratar o veículo descrito em 1. de um ..., também não se alegou, na acusação, que a prática da contraordenação descrita em 1. ocorreu quando o arguido se deslocava para o trabalho, para se inferir pela mentira relativamente ao facto 4., da acusação; por outro lado, a circunstância de o arguido ter dito o que disse quanto ao documento de fls. 36 não implica a negação de que conduziu o veículo descrito em 4.
Verifica-se, ainda, que, na acusação, o único momento de onde resulta terem sido prestadas declarações que contradizem o descrito em 4. foi aquando das declarações vertidas no facto 2.; porém, essas não integram a factualidade típica objetiva.
Conclui-se, assim, não integrarem os factos descritos o tipo do artigo 360.º, nºs 1 e 3, do C.P.
Tal falta também não poderá ser, neste momento, suprida pelo tribunal, acrescentando o facto em falta, como salienta, a título de exemplo, o ac. do T.R.P., pr. n.º 134/13.1GASPJ.C1.P1, de 08/04/2015, e onde se pode ler:
“Neste contexto, temos de concluir que a acusação é omissa quanto a um dos elementos objetivos do crime imputado ao arguido, concretamente, a legalidade substancial da ordem que lhe foi dada.
Como tal, a descrita conduta do arguido não integra um comportamento tipificado pela lei como crime de desobediência, sendo, inclusive, absolutamente inócua em termos jurídico-penais.
De onde decorre a nulidade da acusação, porque proferida em desrespeito ao disposto no artigo no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, que impõe que ela contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”.
Pelo que, tendo o processo seguido para julgamento, sem ter havido instrução, deveria a acusação ter sido rejeitada, não só por ser nula, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
Só que tal não aconteceu e, nestas circunstâncias, em audiência, o Tribunal a quo tentou resolver o problema, integrando em julgamento factos novos, que davam conta de que, à altura, o arguido conduzia um veículo motorizado na via pública, o que conferia legitimidade substancial à ordem da GNR, para que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado. E, assim, juntamente com os factos descritos na peça acusatória, seria já possível considerar a conduta do arguido como típica.
Só que esta “solução” não se pode considerar a coberto do mecanismo da alteração não substancial dos factos, como entendeu o tribunal a quo.
É que, nos termos da definição legal do artigo 1º, al. f) do Código de Processo Penal, alteração substancial dos factos é “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções a p l i c á v e i s ” .
E, in casu, foram acrescentados elementos constitutivos do próprio tipo objetivo, com potencialidade para transformar uma conduta jurídico-penalmente inócua numa conduta típica, o que configura uma alteração substancial dos factos.”.
Assim, também não será de recorrer à figura jurídica da alteração substancial dos factos após realização de julgamento, acrescentando factualidade de onde resultasse que o arguido, no dia aludido em 3., tinha negado conduzir o veículo descrito em 1., nas circunstâncias aí descritas, na medida em que a integração dos factos novos não implica a imputação de crime diverso, implica é que uma conduta atípica, sem relevância jurídico criminal, se transforme em conduta típica, ou seja, numa conduta criminosa.
E, como resulta diretamente do disposto nos artigos 1º, alínea f), 358º e 359º do Código de Processo Penal, o mecanismo legal da alteração substancial e não substancial dos factos situa-se num outro plano, tendo sempre como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontram devidamente descritos factos integradores de um tipo de crime.
Não se pode assim, em total desvirtuação dos objetivos do instituto da alteração substancial dos factos, usá-lo para justificar uma introdução de factos novos em julgamento, como forma de suprir a nulidade de uma acusação, que foi indevidamente recebida pelo juiz.
Assim, chegados à fase da audiência com uma acusação onde é descrita uma conduta atípica, não há mecanismo legal que permita reparar essa verdadeira anomalia do processo.
Neste sentido, quanto à falta, na acusação, de factos integradores do elemento subjetivo, foi inclusive já proferida pelo STJ decisão uniformizadora de jurisprudência, através do acórdão datado de 20.11.2014, proferido no processo 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, publicado no DR, I série, nº 18, 27 de janeiro de 2015, p. 582 – 597 (disponível, também, em www.dgsi.pt), com o seguinte sumário:
“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”
De tudo assim decorrendo que, in casu, não poderá o arguido ser condenado pela prática do crime por que vinha acusado, dada a falta de preenchimento dos elementos objetivos do tipo, o que leva à nulidade da acusação e à impossibilidade de se concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo que a nulidade da acusação terá como efeitos os previstos no artigo 122.º, do C.P.P. e, não podendo ser suprida, importa na absolvição do arguido, revelando-se um ato inútil a realização da audiência de julgamento, razão pela qual se decide, desde já, pela absolvição do arguido relativamente ao crime de falsidade de testemunho.
Sem custas criminais – art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.
Notifique e desconvoque.
*
           
Apreciação do recurso:

Incidências Processuais com interesse.
Com data de 29/05/2023, no Departamento de Investigação e Ação Penal – 3ª secção de ..., foi  proferida contra o arguido a seguinte acusação, com a ref: ...62:
           
«O Ministério Público acusa, em processo comum e tribunal singular:
AA, filho de BB e de CC, nascido a ../../1966, titular do cartão de cidadão nº ...35, residente na Avenida ..., ... ..., ....
Porquanto:
1. No dia ../../2021, AA recebeu na sua residência sita na Avenida ..., ... ..., ..., um auto de contraordenação por excesso de velocidade, perpetrada no dia 28.04.2020, pelas 17h22 na EN...4, Km 36.6, ..., com o veículo automóvel de matrícula ..-..-HE.
2. No mesmo dia referido supra, pelas 10h, AA dirigiu-se ao posto da GNR ..., onde relatou que tal veículo pertencia à sua entidade empregadora, “EMP01...- Unipessoal, Lda.,” e que nunca conduziu tal veículo, tendo os seus dados sido providenciados sem a sua autorização, o que deu origem aos presentes autos.
3. No dia 15.02.2022, ouvido enquanto testemunha pelo funcionário judicial e advertido de que era obrigado a responder com verdade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade penal, disse que “nunca se deslocou para o seu trabalho sem ser na sua viatura de marca ...(…) nunca ninguém lhe pediu os dados de identificação a fim de preencher o documento de fls. 36 (…) não preencheu o documento de fls. 36 e desconhece quem possa ter sido.”
4. Acontece que no dia 28.04.2020, o arguido conduziu o referido veículo de matrícula ..-..-HE.
5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de depor falsamente, em sede de inquérito, sobre factos relativamente aos quais devia depor com verdade, depois de ter sido advertido, pela entidade competente, de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo ficado ciente de tais advertências, o que representou, quis e conseguiu.
6. Não obstante o mencionado em 5., o arguido em sede de inquérito prestou depoimento falso, tendo perfeita consciência da falsidade do que declarava quanto ao que lhe foi perguntado.
7. Mais sabia o arguido que, ao atuar da forma supra descrita, prejudicava a boa administração da Justiça, faltando conscientemente à verdade dos factos, bem sabendo das qualidades de testemunha que possuía no processo, estando obrigado a falar com verdade, e que o respetivo depoimento constituía meio de prova.
8. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Pelo exposto, cometeu o arguido um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelos artigos 14.º, nº1, 26.º e 360º, nº1 e 3, do Código Penal

Remetidos os autos à distribuição, sobre este requerimento acusatório recaiu, no dia 13/07/2023, despacho de recebimento da acusação, com a ref: ...97, do seguinte teor:

«Inexistem questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à
apreciação do mérito da causa.
*
Autue como processo comum com julgamento por Tribunal Singular.
*
Recebo a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida (art.º 311-A.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal).
*
O arguido aguardará os ulteriores termos do processo mediante T.I.R., já prestado nos autos.
*
Notifique, com cópia da acusação, nos termos e para os efeitos dos artigos 311º-A, nºs 1, 3, 4, e 311º-B, Código de Processo Penal.»

Entretanto, no dia 12/08/2023, foi proferido despacho a designar dia para a realização do julgamento, do seguinte teor, ref. ...72:

«Admito a junção aos autos da contestação e do rol de testemunhas que antecedem – cfr. art.º 311.º-B, do C.P.P.
Notifique.
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Sem prejuízo do disposto no art.º 151.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (aplicável por força do disposto no art.º 312.º, n.º 4 do Código de Processo Penal), para julgamento designo o dia 20 de novembro de 2023, pelas 14h00, neste Tribunal (e não antes, por indisponibilidade de agenda).
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Em caso de adiamento, designo, desde já, o dia 27 de novembro de 2023, pelas 14h (artigos 312.º, n.º 2 e 333.º, n.º3 do Código de Processo Penal).
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Cumpra o disposto nos artigos 313.º, n.º 1 e 317.º, ambos do Código de Processo Penal.»

Na primeira das datas designadas, na ata do respetivo julgamento, foi proferido o despacho impugnado.

Vejamos.

Estabelece o artigo 311.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) (…)».

Nos termos do disposto no n.º 3 do mesmo artigo, a acusação considera-se manifestamente infundada:
«a) (…);
b) (…);
c) (…); ou
d) Se os factos não constituírem crime.
Como refere Pinto de Albuquerque na anotação ao artigo 311.º do Código de Processo Penal (in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2.ª edição actualizada), “o fundamento da inexistência de factos que constituam crime só pode ser aferido pelo texto do requerimento e tal só ocorre quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal”. A propósito escreve ainda Fernando Gama Lobo (in Código de Processo Penal anotado, 2015, página 610), que “salvo raríssimas exceções, em que os factos inequivocamente não são subsumíveis a qualquer norma penal, a decisão de requalificação jurídica dos factos, só deverá ser tomada no final do julgamento” devendo o juiz “evitar precipitações nesta matéria”.
Como consabido, o ato de julgar contém-se no âmbito e dentro dos limites que são colocados por uma acusação fundamentada. Trata-se manifestamente de um caso seguro de vinculação temática.
Isto porque é pela acusação que se define e fixa o objeto do processo, o objeto do julgamento, e, portanto passível de condenação será tão só o arguido pelos factos constantes da acusação.
Sem a descrição dos factos, inexiste objeto idóneo à atividade do Tribunal e da mesma forma, fica o arguido impossibilitado de se defender.
De resto, encerrada a discussão na audiência de julgamento, aquando da reunião de deliberação subsequente, na apreciação do mérito, será pela questão de saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, que se inicia esta fase de elaboração da decisão final, cfr. artigo 368º, nº 2 alínea a), do CPP.
Resulta, assim, cremos suficientemente evidenciada a importância da referência na acusação, a todos os factos integradores dos elementos constitutivos do tipo legal.
Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são, naturalmente, os que integram, enquanto elementos constitutivos, os diferentes tipos das várias incriminações previstas na lei penal.
Como também consabido é, elementos constitutivos dos diversos tipos legais de crime são, por um lado, o objetivo, que se traduz na descrição objetiva da ação ou omissão proibida – e, por outro lado, o subjetivo, relativo à atitude (aos conhecimentos) que o agente deve apresentar em relação à realização do tipo penal.
Sem a sua verificação cumulativa, não se pode afirmar o preenchimento do tipo.
E, no caso concreto, o juiz de julgamento manifestou o entendimento de que faltam na acusação pública proferida os elementos típicos objetivos enformadores do crime de falsidade de testemunho imputado ao arguido, pelo que essa acusação contraria o disposto no n.º 3 do artigo 283º, do CPP.
Mas, a apontada omissão deveria ter conduzido – se nisso se tivesse, então, atentado, e assim fosse entendido – à prolação de despacho de não recebimento da acusação, nos termos do artigo 311.º, nº 3 alínea d) do CPP, quando da distribuição do processo para marcação de julgamento.
Mas assim não sucedeu.
Portanto, o que verdadeiramente está em causa no presente recurso, e que constitui uma questão prévia de que cumpre tomar conhecimento, é o seguinte:
Poderia ter sido conhecido no início da audiência a eventual falta de factos constantes na acusação, como se decidiu no despacho impugnado.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito por entendimento diverso, que não poderia ter sido conhecido no início da audiência a eventual falta de factos na acusação entretanto recebida, independentemente de se averiguar se há, ou não, qualquer falta de factos.
Vejamos.
É pacífico o entendimento de que o processo penal português tem uma estrutura acusatória que implica, além do mais, o controlo judicial da acusação, e a proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não pode fazer a audiência de discussão e julgamento e vice-versa (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada,”, volume I, p. 522, da 4ª edição, da Coimbra Editora). O fundamento desta clara repartição de funções entre as diversas entidades que intervém no processo assegura, por um lado, as garantias de defesa do arguido e, por outro, a liberdade de convicção, a imparcialidade e a objetividade da decisão proferida pelo órgão chamado a decidir em cada face processual, permitindo-se ao arguido exercer um controlo jurisdicional das decisões que lhe sejam desfavoráveis.
A lei reconhece ao arguido o direito de uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, fase processual facultativa e que visa a comprovação, pelo juiz de instrução, da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento (artigo 286.º, do Código de Processo Penal). O controlo judicial da decisão de acusação alcança-se, pois, através da abertura da instrução, matéria em que o arguido é soberano quanto à decisão de a requerer ou não, consoante a estratégia processual que considere mais adequada para defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
Quando o juiz de instrução profere despacho de pronúncia, decidindo que o processo está em condições de ser submetido a julgamento, delimitando o seu objeto e ordenando a prossecução do processo para uma nova fase, o processo é remetido a um outro juiz que realizará o julgamento.
Mas, não tendo sido requerida a instrução, o processo é logo distribuído para a fase de julgamento, iniciando-se pela fase de saneamento prevista no acima citado artigo 311.º, do CPP, que no seu n.º 1, prevê:
“Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.”
E, marcado o julgamento, dentro dos atos introdutórios da audiência de julgamento, o artigo 338.º, do Código de Processo Penal, ainda permite que “o tribunal conheça e decida das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.”
Embora não o diga, foi com base neste preceito, que o Tribunal recorrido que procedia ao julgamento, imediatamente após a abertura da audiência, tomou a deliberação impugnada.
Acontece, porém, que não são todas as matérias que podem ser objeto de apreciação no momento processual a que alude o artº 338º, nº 1, do CPP.
Do que aí se trata é de apreciar questões prévias ou incidentais (ou seja: as previstas no nº 1 do artº 311º do CPP), e não de tecer considerações acerca do mérito da acusação (questão prevista no nº 2 do artº 311º do mesmo diploma), como acabou por acontecer na decisão impugnada.
Quanto a esse mérito, ou a acusação já foi anteriormente rejeitada, ou a apreciação terá que ser feita em sede de sentença, aí se apreciando o mérito da causa.
Como bem se refere no Ac. da RL, de 29/3/07, em www.dgsi.pt:
“O artº 338º, nº 1, do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa – que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade, etc.) acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.
É manifesto que esse conhecimento de questões prévias ou incidentais não passa pelo conhecimento do mérito da causa.”
Ou por outras palavras: “Não pode é o juiz no início do julgamento ao abrigo deste dispositivo passar a sindicar o mérito da acusação …” – Ac. da Rel. do Porto de 19/9/07, também em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido ainda o Ac. do S.T.J. de 20/11/07, B.M.J. 471, 156:
“Depois de recebida a acusação ou proferido despacho de pronúncia, com a prolação do despacho respectivo a designar dia para a audiência e antes de ser proferida sentença, actividade a levar a cabo só após ter sido realizada a audiência de discussão e julgamento, não se pode conhecer do mérito da acção. Somente é permitido o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa”.
Temos, portanto, que a eventual falta de factos consubstanciadores dos elementos típicos, objetivo e subjetivo do crime não pode ser apreciada no momento processual previsto no artº 338º, nº 1, do CPP, uma vez que não se trata de qualquer questão prévia ou incidental que obste ao conhecimento do mérito da causa.
Quando o juiz de julgamento profere despacho de recebimento da acusação e designa dia para a realização da audiência, decidindo que o processo está em condições de ser submetido a julgamento, delimita o seu objeto e ordena a prossecução do processo para essa nova fase.
Ao tribunal a quo, tendo sido proferido despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, estava vedado, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar: “De tudo assim decorrendo que, in casu, não poderá o arguido ser condenado pela prática do crime por que vinha acusado, dada a falta de preenchimento dos elementos objetivos do tipo, o que leva à nulidade da acusação e à impossibilidade de se concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo que a nulidade da acusação terá como efeitos os previstos no artigo 122.º, do C.P.P. e, não podendo ser suprida, importa na absolvição do arguido, revelando-se um ato inútil a realização da audiência de julgamento, razão pela qual se decide, desde já, pela absolvição do arguido relativamente ao crime de falsidade de testemunho” nula a acusação, absolver o arguido e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados, sem proceder à realização do julgamento. Essa apreciação não está compreendida nas questões prévias que o juiz pudesse tomar conhecimento antes de realizar o julgamento e proferir a sentença, tendo a respetiva questão já sido objeto de decisão pelo despacho de recebimento da acusação.
A proibição contida na norma em questão não tem como alvo a decisão de não prosseguir com o julgamento, determinando-se desde logo a nulidade da acusação e concluindo pela absolvição arguido, mas sim o juízo ponderativo que a precede e fundamenta.
Não se proíbe que o juiz do julgamento assim proceda, não prosseguindo a audiência de julgamento, quando ainda em fase introdutória tenha ajuizado que os factos constantes da acusação não tem relevância criminal; o que se proíbe é que o juiz de julgamento, nessa fase, possa sequer efetuar uma tal avaliação, devendo apenas decidir pela condenação ou absolvição do arguido, após realizada a produção de prova e alegações, e fixados os factos que se provaram na audiência de julgamento.
Esta limitação dos poderes do juiz de julgamento tem como fundamento um reconhecimento da autoridade do caso julgado formal. Tendo já sido decidido, por decisão transitada em julgado proferida no processo, que o arguido deve ser submetido a julgamento pelos factos constantes da acusação, entende-se que o juiz do julgamento não pode reponderar a relevância criminal dos factos imputados a esse arguido, com a finalidade de emitir um segundo juízo sobre a necessidade de realização da audiência de julgamento.
A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo.
Como a jurisprudência dos Tribunais superiores tem repetidamente afirmado (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/7/2005, Proc. n.° 0541884 e o Acórdão da Relação de Évora de 26/2/2008, Proc. n.° 2736/07.1), proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la. Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença não pode o juiz conhecer do mérito da acusação, apenas lhe sendo permitido conhecer de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa (art.° 388.°, n.° 1, do CPP), que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc.) ou adjectiva (incompetência do Tribunal, desistência da queixa, ilegitimidade, etc.), (…).”
Também neste TRG, AC. de 22/10/2018, no proc. 1958/15.0T9BRG.G1, foi decidido:
“De acordo com o princípio da preclusão, uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).
Assim, recebida que foi uma determinada acusação será ela que fixa o objecto dos autos e com base na qual será realizada a audiência de julgamento. O poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado).
Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correcção de lapsos a que se refere o artº 380º do Código de Processo Penal.
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III Decisão:

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nesta Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, decide-se sumariamente:
- Julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe dia para julgamento e se proceda à realização do mesmo, dando seguimento aos termos do processo.
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Sem tributação, por não ser devida.
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Notifique.
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(A presente decisão foi elaborada e integralmente revista pelo seu signatário – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 9 de abril de 2024

Júlio Pinto