Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7917/19.7T8VNF.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
OBRIGAÇÃO CARTULAR
PRESCRIÇÃO
RELAÇÃO SUBJACENTE
AVALISTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Prescrita a obrigação cartular constante de um título de crédito, pode ele continuar a valer como título executivo, enquanto escrito particular consubstanciando obrigação subjacente, invocada no requerimento executivo – entendimento prevalecente (ainda que não unânime) na vigência do CPC de 1961, agora expressamente consagrado no art. 703º, nº 1, c) do CPC/2013
II- Nos casos em que a letra não saiu das mãos do inicial portador (o seu sacador) – ou voltou às suas mãos –, não existindo a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros de boa fé, tal qual o avalista do aceitante pode invocar perante o sacador/portador, prevalecendo-se delas, excepções de direito material, também este sacador poderá invocar relação extra-cartular havida aquando da subscrição do título, ou seja, invocar a verdadeira situação, fazendo-a prevalecer sobre a que consta do título.
III- Extinta a obrigação cartular resultante do aval (por efeito da prescrição), terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo.
IV- O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval - a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária, nos termos da lei aplicável.
V- Alegando o apelante/exequente que os apelados/executados subscreveram o aval tendo efectivamente pretendido obrigar-se ao pagamento da quantia em questão, tendo-lhe pessoalmente assegurado esse pagamento, tem de concluir-se estar alegada a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

Apelante: J. C. (exequente)
Apelados: A. P., D. S., M. L. e J. J. (executados)

Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão (lugar de provimento de Juiz 2) - T. J. Comarca de Braga.
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Intentou o exequente/apelante contra os executados/apelados execução comum para pagamento de quantia certa (sob a forma ordinária) pretendendo haver coercivamente a quantia de 284.212,31€, alegando:

1- O Exequente é legítimo portador da letra de câmbio no valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) o que corresponde a € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), emitida em 23/03/1999 e vencida no dia 31/12/1999, que se junta como doc. n.º 1 e se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos efeitos legais.
2- A referida letra, no montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), foi sacada pelo Exequente e aceite pela Sociedade de Construções A. V., Lda., Número de Identificação de Pessoa Coletiva …….
3- Tendo sido aposta como data de vencimento o dia 31 de dezembro de 1999.
4- Foi avalizada pelos Executados, através da aposição, no verso da mesma da seguinte declaração “dou o meu aval à subscritora aceitante”, vinculando-se estes solidariamente com a Sociedade de Construções A. V., Lda. no pagamento do referido valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) correspondente a € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos).
5- Ora, a referida letra foi emitida na sequência da celebração de uma transação comercial entre o Exequente e a Sociedade de Construções A. V., Lda., no valor de 30.000.000 $00 (trinta milhões de escudos).
6- Tendo sido prestado o aval pelos Executados de forma de garantir o cumprimento da obrigação de pagamento do montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), querendo-se os Executados efetivamente obrigar solidariamente no pagamento da referida obrigação, emergente da transação comercial celebrada entre a Sociedade de Construções A. V., Lda. e o Exequente.
7- Assim, os Executados, asseguraram ao Exequente que, na referida data de vencimento da letra, o valor em causa seria pago.
8- Sucede que, apresentada a letra a pagamento na data do seu vencimento perante a devedora, esta não a liquidou, nem tanto a liquidaram os Executados.
9- Sendo certo que, até ao presente, nenhum dos Executados procedeu ao pagamento do valor da livrança apesar de instados para o efeito, tendo o Exequente, por via disso, o direito de exigir o seu pagamento.
10- Ora, a letra cambiária é pagável à vista, isto é, com a sua apresentação perante o devedor, conforme o disposto nos artigos 33.º e 34.º da Lei Uniforme relativa ás Letras e Livranças.
11- Sendo certo que, a letra cambiária dada à execução é título executivo nos termos do disposto na alínea c) do artigo 703.º do Código de Processo Civil, sendo a dívida dela constante certa, líquida e exigível.
12- Neste sentido doutrina o Supremo Tribunal de Justiça que: “II – Encontrando-se prescrita, a letra perde a natureza cambiária e deixa, por conseguinte, de ser título constitutivo da relação cambiária, para passar a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente”, (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 268/12. 0TBMGD-A.P1.S1, em: www.dgsi.pt).
13- Assim, os Executados devem ao Exequente a quantia de € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal até efetivo e integral pagamento, que na presente data se cifram no montante de € 134.572,94 (cento e trinta e quatro mil, quinhentos e setenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), (cfr, artigo 703.º n.º 2 do Código de Processo Civil).»
14- Pelo que, os Executados devem ao Exequente, na presente data, a quantia global de € 284.212,31 (duzentos, oitenta e quatro mil euros, duzentos e doze euros e trinta e um cêntimos, acrescida dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, e ainda das custas judiciais.»

Foi o requerimento executivo liminarmente indeferido, por ineptidão, por se entender, em resumo, que configurando a letra de câmbio junta com o requerimento executivo mero quirógrafo, não exige o exequente obrigação cambiária ou cartular (no caso, o aval), caracterizada pela literalidade e abstracção, mas antes obrigação causal, fundamental ou subjacente, relação causal que o exequente não alegou em relação aos executados (que na letra se assumiram como avalistas) – a única relação subjacente ou fundamental invocada é respeitante à sociedade aceitante (uma transacção comercial entre ambos), nada sendo referido além do aval quanto aos executados, o que significa que o requerimento executivo é omisso quanto à causa de pedir, por a única causa alegada ser estranha aos executados, ferindo-o de nulidade geradora de ineptidão.

Inconformado, apela o exequente, defendendo a substituição da decisão por outra que admita o requerimento executivo e ordene o prosseguimento dos autos ou, assim não se entendendo, fixe prazo ao exequente para que apresente, querendo, novo requerimento executivo, suprindo as insuficiências e imprecisões, ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 2, alínea b) e nº 4 do CPC, terminando as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

I- Por sentença proferida pelo Tribunal recorrido foi decidido: ‘Indefere-se liminarmente o requerimento executivo, por inexistência de causa de pedir, o que gera a ineptidão do mesmo requerimento, absolvendo-se os Executado(a)(s) instância.’
II- Com o devido respeito, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a sentença proferida, considerando, salvo melhor opinião que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
III- Senão vejamos, o título executivo que deu origem aos presentes autos é uma livrança, já que é um documento particular, assinado pelos devedores, que evidencia o reconhecimento unilateral de uma dívida.
IV- Conforme o artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC a execução pode ter por base ‘os títulos de créditos, ainda que meros quirógrafos’. A ratio da admissibilidade do título de crédito prescrito como título executivo enquanto mero quirógrafo consiste no facto de o documento constituir um reconhecimento de dívida, assinado pelo devedor/executado o que efetivamente aconteceu no presente caso.
V- Por outro lado, refira-se que nas palavras de Lebre de Freitas, A Ação Executiva, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª edição, Coimbra Editora, pág. 43, o título executivo ‘constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da ação executiva, isto é, o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade, ativa e passiva’.
VI- Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 07B683, relatado pelo conselheiro Salvador da Costa, em: www.dgsi.pt, se afirmou: ‘A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva. O fundamento substantivo da ação executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração. Ele constitui, para fins executivos, condição da ação executiva.’
VII- A livrança/documento particular encontra-se assinada pelos Executados (com letra legível), conforme se comprova pela leitura do mesmo, constando do mesmo que estes lá declararam (com letra legível) ‘dou o meu aval à subscritora aceitante’, tendo-se efetivamente reconhecido devedores da quantia exequente mediante a aposição da sua assinatura após a referida declaração efetuada pelo seu punho.
VIII- Face a uma declaração de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento da dívida, resulta do n.º 1 do artigo 458.º, n.º 1 do Código Civil o seguinte: “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”. Daí resulta a presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial – à qual se aplica a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, conforme decorre do artigo 344.º do Código Civil.
XI- Refira-se ainda que, por via da subscrição da letra de câmbio e, mais, por terem garantido pessoalmente ao Exequente o recebimento da quantia, os Executados vincularam-se ao pagamento ao Exequente do valor em dívida, constituindo a relação subjacente ao aval efetivamente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos Executados de se obrigarem como fiadores, o que se verificou in casu, estendendo-se a obrigação destes à obrigação extracartular.
X- Do requerimento executivo resulta que o Exequente indicou a causa da obrigação exequenda, referindo inclusive que a livrança foi emitida para garantia do pagamento de uma transação comercial, na qual os Executados se constituíram como garantes, mais tendo alegado que estes efetivamente se pretenderam obrigar solidariamente no pagamento da obrigação em causa e, inclusive, que estes, pessoalmente, asseguraram ao Exequente que o valor seria pago
XI- Através da aposição da sua assinatura no título executivo e do facto dos Executados terem garantido ao Exequente que o valor seria pago os Executados confessaram-se devedores da dívida pessoalmente ao Exequente.
XII- A simples menção ao facto da letra ter sido emitida na sequência da celebração de uma transação comercial, cujo valor da dívida foi avalizado pelos Executados, os quais assinaram a letra, se vincularam solidariamente ao pagamento da mesma, efetivamente se pretendiam obrigar no pagamento da quantia em causa e os próprios asseguraram ao Exequente que o valor em divida seria pago, é suficiente para concluir que o Exequente alegou os factos constitutivos da relação subjacente no seu requerimento executivo, porque da mesma alegação decorre a obrigação dos Executados procederem ao pagamento do montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) o que corresponde a € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos).
XIII- Conforme ensina Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 58, o título executivo constitui “documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo”. E para Eurico Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, pág. 23, na ação executiva o título vale como causa de pedir.
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 07B683, relatado pelo conselheiro Salvador da Costa, em www.dgsi.pt, se sumariou: ‘2. O fundamento substantivo da acção executiva - causa de pedir - é a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração’.
XIV- Desta forma, salvo melhor opinião, entende-se que não existe qualquer ineptidão da petição inicial porque, conforme disposto no artigo 186.º, do Código de Processo Civil, a alínea a) do n.º 2 do referido artigo: “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
XV- Meramente à cautela, caso assim não se entendesse, ainda se diria que, o Exequente, ora Recorrente nunca foi convidado a proceder ao suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, insuficiências ou imprecisões da matéria de facto alegada, nos termos do artigo 6.º, n.º 2 artigo 590.º n.º 3 e n.º 4 do Código de Processo Civil.
XVI- Isto é caso se entendesse que os autos executivos padecem de ineptidão da petição inicial, ainda se diria que, atento o teor do requerimento executivo e título executivo, estaríamos sempre um caso de insuficiência ou imprecisão da causa de pedir relativamente ao pedido formulado, mas não de absoluta falta de alegação e concretização dos factos essenciais.
XVII- Concluindo-se, nos termos expostos, pela aplicabilidade no caso sub judice da previsibilidade do artigo 590, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do Código de Processo Civil, consequentemente, impondo-se ao Tribunal a prolação de despacho-convite nos termos e para os efeitos do artigo 590, n.º 2 e n.º 4 do Código de Processo Civil, com vista a obter a sanação do vício.
Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), a questão a decidir consiste em apurar (indiscutido que o título de crédito dado à execução constitui mero quirógrafo) se se mostram alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente (e bem assim, se não estando alegados, deve o exequente embargado ser convidado a suprir tal imprecisão ou insuficiência na alegação).
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

A matéria de facto a considerar é a que resulta exposta no relatório precedente – avultando o alegado no requerimento executivo (cujos exactos temos acima se reproduziram).

Fundamentação de direito

Pela acção executiva pretende o credor obter a realização coactiva de prestação não cumprida.
A finalidade da acção executiva consiste na satisfação do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida (art. 10º, nº 4 do CPC), sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação – nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à causa debendi e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva (os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação) (1).
A faculdade de exigir a prestação, correlativa do poder de aquisição dessa prestação, designa-se por pretensão e apenas uma pretensão exequível pode constituir objecto de uma acção executiva – exequibilidade intrínseca, respeitante à inexistência de vícios materiais ou excepções peremptórias que impeçam a realização coactiva da prestação, e exequibilidade extrínseca, traduzida na incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (art. 10º, nº 5º do CPC) (2).
A acção executiva pressupõe, assim, um direito de execução do património do devedor, ou seja, ‘um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor’ (3). Dito de outra forma: a acção executiva pressupõe, logicamente, a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo, constituindo a declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, o ponto de partida na acção executiva (4) – a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica de que ela é objecto, contendo o título executivo esse acertamento, radicando aí a afirmação de que ele constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto (5).
Do título executivo – que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta (art. 10º, nº 5 do CPC) – resulta a exequibilidade da pretensão executanda, pois incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito (6).
Apenas podem servir de base à execução os títulos indicados na lei – art. 703º do CPC. Títulos executivos são tão só e apenas os indicados na lei – trata-se de enumeração taxativa, sujeita à regra da legalidade/tipicidade (7), não ‘sendo válidas as convenções negociais pelas quais as partes conferem força executiva a outros documentos’, não se considerando porém ‘excluída a validade das cláusulas pelas quais os particulares privam de força executiva os títulos negociais constantes da enumeração legal’ (8).
A falta de título executivo (que traduz a inexequibilidade extrínseca da pretensão), além de constituir fundamento de oposição à execução (art. 729º, nº 1, a), 730º e 731º do CPC), é fundamento de indeferimento liminar do requerimento executivo (art. 726º, nº 2, a) do CPC), bem como de rejeição oficiosa da execução (art. 734º d CPC)
Na situação trazida em recurso é dado à execução título de crédito enquanto mero quirógrafo – asserção não questionada, antes corroborada, pelo apelante.
A obrigação cartular que a letra dada à execução comportava mostra-se extinta (por prescrição – letra emitida em Março de 1999, com vencimento em Dezembro de 1999), servindo porém de título, considerada como documento particular, assinado pelos devedores, que importa a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.
Questão é apurar se se verificam ou não os necessários pressupostos/requisitos para tanto.
Requisitos de exequibilidade do título (do título cambiário que documente obrigação cartular extinta e que seja utilizado como mero quirógrafo) que coincidem (são idênticos), quer se tome por referência de tal apuramento a data da entrada da acção executiva em juízo, quer se entenda como momento a atender para tal aferição o da emissão do título (em atenção à tutela do princípio constitucional da protecção da confiança, ínsito ao Estado de direito democrático - art. 2º da CRP (9)).
Tal como actualmente (à luz da redacção da alínea c) do nº 1 do art. 703º do CPC), também à data da emissão da letra que, como quirógrafo, é dada à execução, o art. 46º, nº 1, c) do CPC (desde a redacção emergente do DL 329-A/95, de 12/12) dotava de força executiva os títulos cambiários considerados como documentos particulares (designadamente nos casos de extinção da relação cartular, v. g. por prescrição), assinados pelo devedor, desde que i) o negócio subjacente não tivesse natureza formal, ii) fosse invocada no requerimento executivo a relação subjacente, e iii) a assinatura do título possa valer, nos termos do art. 458º do CPC, como acto de reconhecimento da dívida (10).
A causa de pedir não é o documento que corporiza o título executivo, mas antes a relação substantiva que está na base da sua emissão, sendo tal autonomia do título executivo relativamente à obrigação exequenda (e consideração do regime de reconhecimento de dívida – art. 458º do CPC) que leva a admitir que os títulos cambiários prescritos, enquanto quirógafos da obrigação causal ou subjacente, possam valer como título executivo, desde que alegados no requerimento inicial os factos constitutivos da relação subjacente à sua emissão (11).
Assim que prescrita a obrigação cartular constante de um título de crédito, poderá (e podia) ele continuar a valer como título executivo, enquanto escrito particular consubstanciando obrigação subjacente, invocada no requerimento executivo – entendimento prevalecente (ainda que não unânime) na vigência do CPC de 1961, agora expressamente consagrado no art. 703º, nº 1, c) do CPC/2013 (12).
Posição que temos por correcta, seguida pela decisão recorrida e que o apelante não questiona – a questão a decidir consiste tão só em apurar se a relação subjacente foi pelo apelante/exequente invocada no requerimento executivo.
Importante ponderar, por tal ser relevante na situação da presente apelação, que a possibilidade de usar o título cambiário como mero quirógrafo (ou seja, executar a obrigação subjacente usando aquele documento, enquanto simples reconhecimento particular de dívida, nos termos do art. 458º do CC) tem, entre outros requisitos, um ‘pressuposto material subjectivo’, pois que o ‘valor de reconhecimento de dívida só pode valer nas relações imediatas, no caso dos títulos de crédito, já que o putativo reconhecimento teria sido entre sacador e beneficiário’ (13).

No caso dos autos, os executados figuram no documento enquanto avalistas da aceitante (assinaram a letra no verso após aporem a declaração de que davam o seu aval à subscritora aceitante).
Porque o título não entrou em circulação (e a autonomia cambiária tem por propósito a protecção da segurança da circulação do título e a posição de terceiros de boa fé (14)), sempre se poderiam desconsiderar as características da abstracção, literalidade e autonomia (15) – a obrigação cambiária muda de natureza, nas relações imediatas ou equiparadas, deixando de ser literal e abstracta, facilmente se alcançando a razão prática de tal diversidade de regimes tendo ‘presente que a disciplina jurídica especial da letra é destinada a assegurar a sua fácil circulação, através da protecção da boa fé de terceiros’, sendo assim natural que ‘o regime cambiário normal não funcione enquanto o título não ultrapassar o círculo das relações imediatas’ (16).
Assim, nos casos em que a letra não saiu das mãos do inicial portador (o seu sacador) – ou voltou às suas mãos –, não existindo a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros de boa fé, tal qual o avalista do aceitante pode invocar perante o sacador/portador, prevalecendo-se delas, excepções de direito material, também este sacador poderá invocar relação extra-cartular havida aquando da subscrição do título, ou seja, invocar a verdadeira situação, fazendo-a prevalecer sobre a que consta do título (17).
Por isso, extinta a obrigação cartular resultante do aval (por efeito da prescrição), terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales – sendo certo que tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval (18)) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo.
Aqui reside a discordância do apelante com a decisão recorrida – nesta entendeu-se que o apelante não invocou, para lá da prestação do aval, qualquer relação subjacente na qual fizesse assentar o seu direito à prestação; já o apelante sustenta que a matéria invocada no requerimento executivo (ter sido a letra emitida na sequência da celebração de uma transacção comercial, avalizada pelos executados, os quais assinaram a letra e se vincularam solidariamente ao pagamento da mesma, tendo pretendido efectivamente obrigar-se no pagamento da quantia em causa, assegurando ao executado que o valor em questão seria pago) constitui a alegação dos factos constitutivos de relação subjacente relativamente aos executados.
O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente (19) e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se (como parece entender o apelante) da simples prestação do aval (a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária, nos termos da lei aplicável – atribuir-se ‘uma vontade negocial ao subscritor de reconhecer a dívida que deu causa ao ato, equivale de facto a ultrapassar os limites objectivos inerentes ao título de crédito’, nada no título permitindo a ‘afirmação expressa de uma vontade negocial de reconhecimento da obrigação subjacente’ (20)).
Certo, porém, que o apelante exequente alega que os executados subscreveram o aval, tendo efectivamente pretendido obrigar-se ao pagamento da quantia em questão (que o apelante podia exigir à aceitante do título em razão de transacção comercial), tendo-lhe pessoalmente assegurado esse pagamento.

Assim (e a qualificação jurídica dependerá de interpretação da concreta matéria que vier a ser efectivamente apurada, dado que a distinção entre as duas figuras é difícil) que se poderá concluir de tal matéria que os executados (ao assegurarem pessoalmente o pagamento ao credor exequente/apelante) ou assumiram como sua dívida de terceiro (caso em que a figura jurídica a operar será a da assunção de dívida – art. 595º do CC) ou antes se responsabilizaram acessória e subsidiariamente pelo seu cumprimento (caso em que a figura jurídica a operar será a da fiança – art. 627ºdo CC).

Seja qualificando-se (de acordo com as regras da hermenêutica negocial) tal factualidade como adjunção à dívida (operação pela qual um terceiro – assuntor – se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem, assumindo-a como dívida própria – o assuntor coloca-se ao lado do primitivo devedor, sem exonerar este, dando ao credor não o direito a uma dupla prestação, mas o direito de obter a prestação devida através de dois vínculos, à semelhança das obrigações com devedores solidários (21)) ou como fiança (pela fiança o terceiro garante a satisfação de dívida alheia) (22), certo é que se terá de reconhecer mostra-se alegada pelo exequente/apelante, quanto aos executados/apelados, a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação – naquela alegada declaração dos executados, distinta e autónoma da subscrição do aval, em que asseguraram ao exequente que o valor em questão lhe seria pago.

Não pode, pois, acompanhar-se a decisão recorrida, já que o exequente apelante invoca no requerimento executivo a relação subjacente em que funda a execução (também quanto aos executados).
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível, em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, em determinar que a execução prossiga os seus normais termos.
A taxa de justiça da presente apelação é da responsabilidade do apelante (parte que dele tira proveito – dado não haver parte vencida), não havendo lugar a custas nas vertentes dos encargos e custas de parte.
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Guimarães, 4/06/2020
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Jorge Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral



1. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 606.
2. Autor e obra citados, pp. 606 a 610.
3. Autor e obra citados, p. 626.
4. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, p. 28.
5. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva (…), p. 45.
6. Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19 (1965), p. 317.
7. P. ex., o acórdão Relação de Coimbra de 3/12/2019 (Isaías Pádua), no sítio www.dgsi.pt, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pp. 65/66 e Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13ª edição, p. 24.
8. Fernando Amâncio Ferreira, Curso (…), p. 24 e Miguel Teixeira de Teixeira de Sousa, Acção Executiva (…), p. 67.
9. O acórdão do TC nº 408/2015, de 23/09/2015, publicado no DR, Iª série, de 14/10/2015 (na sequência dos anteriores acórdãos nº 847/14, de 3/12/2014 e nº 161/2015, de 4/03/2015), decretou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da ‘norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força o artigo 46º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil, de 1961, constante dos artigos 703º, do Código de Processo Civil, e 6º., nº. 3, da Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2º. da Constituição)’. Sobre a específica questão, o citado acórdão da Relação de Coimbra de 3/12/2019 (Isaías Pádua).
10. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, p. 69.
11. Acórdão do STJ de 12/09/2019 (Rosa Tching), no sítio www.dgsi.pt e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva (…), p. 77.
12. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva (…), pp. 75/76. Também Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, pp. 197 e ss. O citado acórdão da Relação de Coimbra de 3/12/2019 (Isaías Pádua) apresenta resenha da jurisprudência sobre o tema (também quanto à opinião que sustentava que o título cambiário que não reunisse condições para valer como título de crédito não podia ser constitutivo ou certificativo duma obrigação e, por isso, servir de título executivo).
13. Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, pp. 197/198. Expressamente referindo que a possibilidade de usar o título prescrito como quirógrafo fica circunscrita às relações imediatas, o citado acórdão do STJ de 12/09/2019 (Rosa Tching).
14. Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Vol. III, Títulos de Crédito, p. 168.
15. Literalidade (a existência, validade e persistência da obrigação não pode ser contestada com auxílio de elementos estranhos ao título e que, por contraponto, o conteúdo, extensão e modalidade da obrigação é a que a declaração define e revela), abstracção (que significa que o negócio subjacente à emissão do título está fora da obrigação cambiária, é exterior ao negócio cambiário e, por isso, que a obrigação cambiária é vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa) e autonomia do direito correlativo às obrigações cambiárias (que significa que as excepções decorrentes das convenções extra-cartulares em geral e as excepções causais, sendo oponíveis ao portador imediato – portador que foi parte nessas convenções –, são inoponíveis ao portador mediato, pois este tem um direito cartular autónomo: as obrigações cambiárias dos vários sujeitos obrigados são em face dele válidas e eficazes, são independentes de toda e qualquer excepção derivada de convenções extra-cartulares firmadas entre os anteriores portadores) - Prof. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, 1975, pp. 41 e ss., 46 e ss. e 67 e seguintes. 16. Autor e obra citados, pp. 92/93.
17. Citado acórdão do STJ de 12/09/2019 (Rosa Tching).
18. Oliveira Ascensão, obra citada, p. 175.
19. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 155.
20. Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, p. 200.
21. Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. II, 4ª edição, p. 350.
22. Na dúvida entre a aplicação entre uma e outra figura deverá considerar-se que a assunção de dívida só será de aceitar quando o terceiro tiver interesse real (objectivo) próprio na relação obrigacional, e não apenas um interesse pessoal em ajudar o devedor - Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. II, 4ª edição, p. 354.