Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MANSO RAÍNHO | ||
Descritores: | ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA PRESCRIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/22/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I. A prescrição estabelecida no art. 482º do CC (prescrição do direito à restituição fundada em enriquecimento sem causa) só é atendível a partir do momento em que o empobrecido viu judicialmente frustradas as suas tentativas de ser patrimonialmente reintegrado ao abrigo de outro meio legal. II. Tal conclusão é imposta pela circunstância da obrigação fundada no enriquecimento sem causa ter natureza subsidiária. III. Por outro lado, tendo o empobrecido recorrido anteriormente à reintegração fundada em responsabilidade civil, a citação do devedor na correspondente ação sempre implicará a interrupção da prescrição. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: N…, S.A. intentou, em 27 de maio de 2013, a presente ação declarativa contra … Seguros, S.A., pretendendo desta o pagamento da quantia de €61.675,00 e juros de mora. Alegou para o efeito, muito em síntese, que em anterior ação judicial (processo nº 710/06.9TCGMR, distribuído à 1ª vara de Competência Mista de Guimarães e onde veio a recair decisão final do Supremo Tribunal de Justiça, transitada em julgado em 10 de outubro de 2011) fora considerado que a Autora teria direito a haver da Ré a quantia de €247.500,00. Todavia, a Ré só veio a ser condenada no pagamento da quantia de €185.825,00 (e juros), uma vez que, tendo procedido o pedido subsidiário da Autora, este estava limitado a tal preciso valor, de modo que o tribunal entendera que o artº 661º nº 1 do CPC o impedia de condenar em quantia superior. Entretanto, nessa ação nº 710/06.9TCGMR havia a Autora alegado como causa de pedir um contrato de seguro que celebrara com a Ré, ao abrigo do qual esta se vinculara a segurar os riscos de perda, perecimento, deterioração e danos de certos bens afetos à atividade da Autora. Sucede que no dia 11 de Abril de 2006 deflagrou incêndio nas instalações da Autora, que atingiu os bens objeto do seguro. Com fundamento nas obrigações que para a Ré derivavam do dito contrato de seguro, peticionou então a Autora a condenação da Ré no pagamento da quantia de €883.500,00 (acrescendo juros de mora), isto por via principal; por via subsidiária pediu a condenação da Ré no pagamento da referida quantia de €185.825,00 (acrescendo juros). Mais alegou que, com vista a receber da Ré o diferencial entre o que o tribunal considerara ser o crédito da Autora (€247.500,00) e a quantia que fora objeto da condenação (€185.825,00) - ou seja a quantia de €61.675,00 mais juros – a Autora, ainda com fundamento nas obrigações contratuais da Ré, veio a propor nova ação contra esta (processo nº 404/11.3TCGMR, 2ª Vara Mista de Guimarães). Porém, o tribunal (1ª instância e, em recurso, a Relação de Guimarães, esta por acórdão de 20 de setembro de 2012, passado em julgado) decidiu que a tal pretensão se opunha a exceção do caso julgado formado naquela ação nº 710/06.9TCGMR, razão pela qual não foi atendida. Isto posto: Invocando agora o enriquecimento sem causa da Ré relativamente à dita quantia de €61.675,00 (acrescendo juros), intentou então a Autora a presente ação, pedindo que a Ré lhe restitua tal quantia. A Ré contestou e, além do mais, invocou a prescrição do direito à restituição, nos termos do art. 482º do CCivil, por isso que, alegou, entre o conhecimento que a Autora teve do direito que lhe compete e da pessoa do responsável (ou seja, conhecimento do sinistro, ocorrido em 11 de abril de 2006), e o acionamento da Ré passaram mais de três anos. Replicou a Autora, sustentando que não se verificava a apontada prescrição. No despacho saneador, o tribunal julgou improcedente a exceção da prescrição. Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré. O recurso começou por não ser admitido na 1ª instância, mas nesta Relação, tendo a Ré reclamado contra tal não admissão, decidiu-se o contrário. Em consequência, subiu o recurso imediatamente e em separado. Entretanto, tendo o processo principal seguido seus termos na 1ª instância, veio ali a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação. O assim decidido não transitou, porém, em julgado. Atento o caráter sempre prejudicial da prescrição sobre a decisão final da ação, interessa pois dar seguimento ao presente recurso. São as seguintes as conclusões que a Apelante …. Seguros, S.A. extrai da sua alegação: I. Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica do Meritíssimo Juiz a quo, afigura-se à Recorrente que o douto despacho saneador que decidiu sobre a inexistência da prescrição do direito da Recorrida é manifestamente infundado. II. Nos presentes autos, a Recorrida invoca enriquecimento sem causa da ora Recorrente, e em conformidade com o disposto no artº. 482º do Código Civil, o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento. III. O sinistro reportado nestes autos e que consubstancia a causa de pedir da presente acção ocorreu em 2006.04.11. IV. A Recorrida exige da Recorrente o ressarcimento dos danos emergentes do sinistro, independentemente do título a que o faz, desde a data do sinistro, pelo que desde então se arroga o direito de ser paga da quantia peticionada nestes autos. V. Acresce que o conhecimento do direito a que se reporta o artº. 482º. do Código Civil não é o conhecimento do enquadramento jurídico que o mandatário resolveu dar a determinados factos, mas o conhecimento pelo lesado de que a obrigação por si cumprida não existia era alheia ou de que o efeito em função do qual o foi não se verificou. VI. Nesta conformidade, verifica-se que desde a data do sinistro que a Recorrida tem perfeito conhecimento de todos os direitos que invoca, nomeadamente o de ser indemnizada pelos danos dele emergentes. VII. Nota essencial do instituto do enriquecimento sem causa é o seu carácter subsidiário, isto é, não é permitido o exercício da acção quando o interessado tenha ao seu dispor outro meio para conseguir ser indemnizado pelo prejuízo sofrido, razão pela qual o início do prazo de prescrição não se poderá contar desde a data do trânsito em julgado das anteriores ações interpostas pela Recorrida na tentativa de obter a indemnização que agora – e mais uma vez – peticiona. VIII. É que, incumbia à Recorrida alegar que este instituto era o único meio ao seu alcance para ser ressarcida – o que não fez e, aliás, é negado à evidência pela circunstância de a própria ter já interposto outras duas acções antes para ser ressarcida dos mesmíssimos danos aqui invocados. IX. Não sendo a subsidiariedade verificada pelo facto de as tentativas anteriores terem falhado: é preciso que não haja outro meio de todo e não apenas que já não haja outro. X. Na esteira deste raciocínio diremos, então, que o prazo de prescrição não poderá iniciar-se apenas com o trânsito em julgado da última decisão que consubstancia na última tentativa por parte da Recorrida em obter o pagamento do seu alegado direito, mas antes do momento em que se verificou o sinistro objeto do contrato de seguro; XI. Porquanto é o alegado sinistro que determina o direito da Recorrida a uma indemnização. XII. O prazo de prescrição de enriquecimento sem causa deverá, assim contar-se a partir do momento do conhecimento do direito e não da roupagem jurídica desse mesmo direito. XIII. Caso contrário, apenas se estaria a premiar a incúria de quem de forma totalmente displicente interpõe ação atrás de ação na tentativa de acertar com a construção jurídica que melhor se adapta às suas necessidades, o que inevitavelmente poria em causa a certeza e a segurança jurídica. XIV. Quando o legislador se refere no mencionado art. 482.º ao "conhecimento do direito" reporta-se, obviamente, ao conhecimento dos elementos constitutivos do seu direito; conhecimento fáctico e não conhecimento jurídico. XV. O mesmo será dizer que o conhecimento por parte da Recorrida do direito à indemnização que lhe assistia se deu com o sinistro e não com a prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado em 2011.10.10. XVI. Não se pode valer a Recorrida no entendimento – que não defendemos – de que o direito à restituição por enriquecimento sem causa, não abarca o período em que se utilizou, sem êxito, outro meio de ser indemnizado ou restituído; e isto porque XVII. Para esse efeito, era necessário que aquando da interposição da primeira acção – a acção n.º 404/11.3TCGMR – a Recorrida ainda pudesse valer-se no direito à restituição por enriquecimento sem causa, o que não sucedeu porquanto o seu direito já nessa data se encontrava prescrito. XVIII. A errada roupagem jurídica apenas poderá ter a virtualidade de interromper o prazo de prescrição se nesse momento o direito ainda existisse na esfera da Recorrida, o que não se verifica no caso em apreço. XIX. Em face do exposto, dúvidas não restam de que o direito que a Recorrida aqui invoca há muito que se encontra prescrito, pelo andou mal o tribunal a quo ao julgar improcedente a invocada exceção. XX. O douto despacho, na parte recorrida, violou o disposto no artº. 482.º do Código Civil. Termina dizendo que deve ser revogado o despacho recorrido, absolvendo-se a Ré do pedido formulado. + A parte contrária não contra-alegou. + Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas: - O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas; - Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. + É questão única a conhecer a de saber se se verifica a apontada prescrição. + Plano Fatual: Damos aqui por reproduzidas as incidências fático-processuais acima elencadas. Plano Jurídico-conclusivo: O despacho recorrido fundamentou da seguinte forma o indeferimento da exceção da prescrição: «O direito à restituição por enriquecimento prescreve nos três anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo contar do enriquecimento – cfr. art.º 482.º do C.Civil. O prazo de três anos previsto conta-se a partir do momento em que o empobrecido teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável. Decisivo é o momento do conhecimento, não um qualquer conhecimento, mas o conhecimento do direito à restituição por enriquecimento sem causa, o direito à restituição de um crédito nascido sem causa que o justifique. Em concreto e atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa – cfr. art.º 474.º do C.Civil - só se poderá falar em termo inicial ou a quo do prazo prescricional quando o empobrecido viu goradas as hipóteses de ver satisfeita a sua pretensão com base num outro qualquer instituto, in casu, o da responsabilidade civil – cfr. v.g. o Ac. do STJ de 2.12.2004, proferido no processo n.º 04B3828, relatado por Oliveira Barros e disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, lapidarmente, MENEZES CORDEIRO afirma que a obrigação de restituir no enriquecimento não prescreve (ou melhor, diremos nós, que o prazo de prescrição não se inicia) enquanto o empobrecido tiver outro meio de ser restituído ou outra forma de ser indemnizado pelo seu prejuízo – in Direito das Obrigações, 2º, 1986, reimpressão, pp. 69. Volvendo ao caso em apreço verifica-se que as acções em que A. e R. discutiram anteriormente o que deveria ser pago – processos n.º710/06.9TCGMR e n.º 404/11.3TCGMR – apenas vieram a transitar em julgado a 10.10.2011 e 4.10.2012, respectivamente. Ora, tendo por referência a data mais antiga de trânsito em julgado, só em Outubro de 2014 é que se poderia equacionar uma eventual prescrição, atento o prazo de três anos previsto no art.º 482.º do C.Civil. Assim, conclui-se que não está prescrito o direito da A. sociedade». Concordamos com esta abordagem jurídica ao tema. Pois que o art. 482º do CC tem que ser interpretado, não isoladamente, mas em sintonia com o demais ordenamento jurídico. Ora, a restituição com fundamento no enriquecimento sem causa é encarada pela lei como tendo natureza subsidiária, não podendo o credor reclamar tal restituição do enriquecido se acaso tiver ao seu dispor outro meio para ser reintegrado (art. 474º do CC). Sucede que a ora Autora tinha ao seu dispor outro meio para ser reintegrada patrimonialmente, e esse meio fundava-se na responsabilidade civil contratual da Ré. E tanto tinha esse direito decorrente da responsabilidade civil, que até obteve parcial ganho de causa no seu exercício. Deste modo, terá que se concluir que a suposta obrigação da ora Apelante de restituir o enriquecimento não pôde ter estado sujeita a prescrição enquanto a Autora litigou, obrigatória e legitimamente, de forma a poder ser indemnizada pelo seu prejuízo. Diz a Apelante que a Autora desde sempre (ou seja, desde o sinistro) que teve conhecimento do direito à reintegração do seu património, não tendo sido as decisões finais proferidas nos supra citados processos que criaram tal conhecimento. É verdade. Mas o que está em causa não é tal potencial conhecimento, mas sim a irrelevância do mesmo, desde que, como é o caso, a Autora tinha ao seu dispor outro meio de se ver reintegrada. Consequentemente, tendo o direito da Autora à indemnização fundada na responsabilidade civil contratual ficado definitivamente arredado apenas em outubro de 2011 (altura em que passou em julgado a decisão final proferida na ação nº 710/06.9TCGMR), foi a partir daí que se lhe abriu a possibilidade legal de invocar o pretenso enriquecimento sem causa. Donde, quando a presente ação foi proposta e a Ré a ela chamada, o que tudo aconteceu em 2013, não havia transcorrido o prazo de prescrição de três anos em causa. De outro lado, interessa observar que o instituto da prescrição é justificado (a par da necessidade social de segurança e certeza de direitos) pela inércia ou inação do titular do direito. Ora, com a referida ação (e o mesmo se poderia dizer da segunda ação) que propôs contra a Ré, a Autora deu um sinal de que não se verificava da sua parte qualquer inação ou desinteresse em ser reintegrada no direito de crédito que agora invoca (embora a outro título). Deste modo, é de concluir que a citação da Ré naquele processo nº 710/06.9TCGMR sempre teria implicado a interrupção da prescrição (v. nº 1 do art. 323º do CC). Prescrição que começaria a correr por inteiro (v. art. 326º do CC) apenas a partir da data do trânsito em julgado da decisão proferida no dito processo (v. no sentido da bondade desta interpretação, o Ac da RE de 22 de janeiro de 1998, Col. Jur., 1998, I, p. 260). Pelo exposto, julgamos que o despacho recorrido não merece censura. Improcede a apelação. ++ Decisão: Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido. Regime de custas: A Apelante é condenada nas custas da apelação. + Guimarães, 22 de maio de 2014 José Rainho Carlos Guerra Conceição Bucho |