Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | RICARDO SILVA | ||
Descritores: | DESOBEDIÊNCIA DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/14/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - No presente recurso o recorrente impugna a sua condenação pelo crime de desobediência simples pelo qual o Mº Pº formulou acusação, por não ter cumprido uma ordem da entidade policial para apresentação de documentos da viatura em juízo, que lhe foi transmitida com cominação de desobediência qualificada do nº 2, do artigo 16° do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, sendo certo que não era o proprietário do veículo em questão. II – A alínea b) do nº 1 do artigo 348.° do C. Penal que prevê a prática do crime de desobediência quando “na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”, existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente, só então se justificando que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal – Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 354 – sendo assim previstas, afinal, desobediências não tipificadas, a ficarem dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples mas imprescindível cominação funcional da punição por desobediência. III – Na verdade, faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito, sendo que a dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição Ilegal que comine, no caso, a sua punição, como desobediência, radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem. IV – Analisada a notificação efectuada ao recorrente, com o teor que se deu como provada na sentença, verifica-se que ele foi notificado, para, no prazo de (10) dez dias, apresentar em Juízo os (…) documentos [do veículo apreendido], sob a cominação de não o fazendo, incorrer no crime de desobediência qualificada, nos termos do nº 2 do art. 16º do Dec.-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro. V – Assim sendo, não há dúvida de que o arguido foi notificado sob a cominação do nº 2 do artº 348.° do CP, ou seja no pressuposto de que sendo a ordem e legítima, emanada da autoridade competente e estando a ser regularmente comunicada, o não cumprimento da mesma cabia na previsão do nº 2, do art. 16º do Dec.-L.ei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, ou seja ficava ele sob a sanção cominada para o crime de desobediência qualificada; por força de uma disposição legal. VI – Ora, nesta perspectiva, só havia uma hipótese de o MP validamente acusar o arguido pela autoria de um crime de desobediência simples e esta era a de em vez de o incumprimento estar cominado não na disposição legal referida mas, noutra que previsse para o mesmo a punição com a sanção da desobediência simples. VII – Isto porque, claramente nos movemos no âmbito de um tipo incriminatório de que faz parte o elemento consistente na existência de uma disposição legal que comina a punição da desobediência, ou seja, os das previsões das alíneas a) do nº 1 e do nº 2 do artº 348.° do CP., VIII – Porém, não se passa já o mesmo quando falte tal norma cominatória. IX - Na verdade, os agentes da autoridade que procederam à apreensão e à notificação em causa, agiram no cumprimento de um mandado judicial, como meros executores, não tendo dado ao arguido qualquer ordem de sua iniciativa que, por legítima e na ausência de uma disposição legal cujo desacatamento cominasse com a punição da desobediência, tivessem eles de reforçar com a correspondente cominação. X – São como se vê situações distintas, distintos tipos legais de crime, ainda que assimilados na mesma designação e no mesmo artigo do diploma legal que os prevê e pune. XI - Assim, para concluir, no caso presente, não pode haver punição pelo crime de desobediência simples porque, nem essa punição está expressamente prevista para a conduta do arguido – al. a) do nº 1, nem foi feita a cominação funcional pelos agentes da autoridade que procederam à apreensão, o que, de resto, não teriam que fazer, já que, a ordem comunicada de apresentação dos documentos, não emanava deles. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães, I. 1. Por sentença proferida no processo comum n.º 28/05.4TACBT, do Tribunal Judicial de Celorico de Basto, em 2007/06/21, foi condenado Artur V..., com os demais sinais dos autos, como autor material de um crime de desobediência, simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 1ª parte, 14.º, n.º 1, 26º, 1ª proposição, e 348º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal, além do mais ora sem interesse, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 3,50 (três euros e cinquenta cêntimos), no montante global de € 350,00 (trezentos cinquenta euros); 2. Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido condenado. Terminou a motivação de recurso que apresentou com a formulação das seguintes conclusões: « 1. A notificação que foi efectuada e entregue ao arguido/recorrente continha, como cominação pela não apresentação dos documentos da viatura em juízo, o crime de desobediência qualificada, nos termos do n.º 2, do artigo 16º do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro; 4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto (Pga) foi de parecer de que o recurso merece provimento. 5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP)., o recorrente não respondeu. 6. Em exame preliminar foi determinado processar e julgar o recurso em obediência às normas processuais vigentes antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em homenagem ao disposto no n.º 2 do art.º 5.º do Código de Processo Penal (CPP), na parte em que refere que a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resulta agravamento sensível da situação processual do arguido. Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso. II. 1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, o recurso é apenas de direito e as questões postas no recurso são as seguintes: – A da ilegalidade da previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 348.º do Código Penal (CP), por conflituar com o princípio da tipicidade ao criar uma fonte de incriminação «a partir de uma decisão discriminatória de uma agente da autoridade»; – A de inexistir, no caso, a concreta e específica ordem da prática ou abstenção de um acto sob cominação de incursão no crime de desobediência (simples) p. e p. pelo artigo 348, n° 1, alínea b), e, em consequência, não se encontrar preenchido o tipo legal. – A de a penhora que determinou a apreensão ser ilegal, por o bem penhorado pertencer a um terceiro, o que determinaria a ilegalidade da ordem de apreensão, logo, a falta de um elemento objectivo do crime de desobediência. – A de a pena ser excessiva e dever ser substancialmente reduzida. * * * Vejamos: São os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida. « 3. Vejamos (() Neste ponto seguimos de perto a exposição do Acórdão da Relação do Porto de 24 de Novembro de 2004, proferido no recurso n.º 4024, da 2.ª secção. ) Dispõe o artigo 348.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na versão revista aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março: Artigo 348.º (Desobediência) 1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. 2 – A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada. Na comissão de revisão do Código Penal foi ponderada a necessidade de se manter o tipo, por servir a múltiplas incriminações extravagantes, restringindo-se, contudo, o âmbito de aplicação da norma àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Porém, sendo considerada a «Administração Pública que temos» e para não desarmar a Administração Pública, à exigência de norma legal prévia acrescentou-se a possibilidade de a autoridade ou o funcionário fazerem a correspondente cominação (() Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pp. 407-408.). A actual redacção pretende afastar o arbítrio neste domínio e clarificar o alcance da norma para o aplicador (() Ibidem, p. 408.). Ficou, agora, claro que o legislador apenas passou a conferir relevância criminal às desobediências que tenham desrespeitado uma cominação prévia: legal ou expressa pelo emitente. Assim, são elementos objectivos do tipo a ordem ou mandado, a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão e a regularidade da sua transmissão ao destinatário (() Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 2.ª Edição, Volume II, p. 1089 e ss., que continuaremos a seguir.) A ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, ou seja, têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente. Por outro lado, exige-se a legalidade formal que se traduz na exigência de as ordens ou mandados serem emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão. Requer-se, ainda, que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições. Por fim, os destinatários têm que ter conhecimento da ordem a que ficam sujeitos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido. Na ausência de disposição legal que comine, no caso, a punição da desobediência, o preenchimento do tipo só pode verificar-se se houver uma «cominação funcional». A alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal (() Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 354. ). São, afinal, desobediências não tipificadas, a ficarem dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples cominação funcional. O que não se pode é prescindir da cominação da punição por desobediência. Faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição, como desobediência, radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem. Analisada a notificação efectuada ao recorrente, com o teor que se deu como provada na sentença, verifica-se que ele foi notificado, para, no prazo de (10) dez dias, apresentar em Juízo os (…) documentos [do veículo apreendido], sob a cominação de não o fazendo, incorrer no crime de desobediência qualificada, nos termos do n.º 2 do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro. Assim sendo, não há dúvida de que o arguido foi notificado sob a cominação do n.º 2 do art.º 348.º do CP, ou seja no pressuposto de que sendo a ordem legítima, emanada da autoridade competente e estando a ser regularmente comunicada, o não cumprimento da mesma cabia na previsão do n.º 2, do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ou seja ficava ele sob a sanção cominada para o crime de desobediência qualificada, por força de uma disposição legal. Ora, atentos os termos desta notificação e tendo presentes as considerações acima consignadas, temos que só havia uma hipótese de o MP validamente acusar o arguido pela autoria de um crime de desobediência simples e esta era a de em vez de o incumprimento estar cominado não na disposição legal referida mas noutra que previsse para o mesmo a punição com a sanção da desobediência simples. Isto porque, claramente nos movemos no âmbito de um tipo incriminatório de que faz parte o elemento consistente na existência de uma disposição legal que comine a punição da desobediência, ou seja, os das previsões das alíneas a) do n.º 1 e do n.º 2 do art.º 348.º do CP. Porém, já não se passa o mesmo quando falte tal norma cominatória. Isto porque os agentes da autoridade que procederam à apreensão e à notificação em causa, agiram no cumprimento de um mandado judicial, como meros executores. Não deram ao arguido qualquer ordem de sua iniciativa que, por legítima e na ausência de uma disposição legal cujo desacatamento cominasse com a punição da desobediência, tivessem eles de reforçar com a correspondente cominação. São como se vê situações distintas, distintos tipos legais de crime, ainda que assimilados na mesma designação e no mesmo artigo do diploma legal que os prevê e pune. Assim, para concluir, no caso presente, não pode haver punição pelo crime de desobediência simples porque, nem essa punição está expressamente prevista para a conduta dos arguidos – al. a) do n.º 1 –, nem foi feita a cominação funcional pelos agentes da autoridade que procederam à apreensão, o que, de resto, não teriam que fazer, já que a ordem comunicada, de apresentação dos documentos, não emanava deles. Por isso, no caso, a condenação do recorrente por crime de desobediência viola frontalmente o princípio da legalidade. Não se mostrando preenchidos os elementos objectivos do tipo, porque a conduta do recorrente, ao não apresentar os documentos, não tem dignidade penal, mostra-se prejudicada qualquer discussão sobre o elemento subjectivo do tipo. Com efeito, o preenchimento do tipo doloso (a desobediência negligente não é punível) não pode sequer ser colocado quando não chega a haver uma conduta objectivamente típica. Com isto fica prejudicado o conhecimento das restantes questões enunciadas no local próprio. Devendo o recurso proceder. III. Termos em que. Acordamos em dar provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, absolvendo o arguido Artur V... da imputação de autoria de um crime de desobediência simples. Não é devida tributação. Guimarães, 14 de Janeiro de 2008 |