Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2710/19.0T8GMR-H.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
DISPONIBILIZAÇÃO PELA SECRETARIA
FALTA OU DEFICIÊNCIA DO REGISTO
PRECLUSÃO DO DIREITO DE INVOCAR A FALTA OU DEFICIÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
CASO JULGADO MATERIAL
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Por disponibilização da gravação, nos termos e para os efeitos do artº 155º do CPC, não se deve entender qualquer iniciativa, qualquer ação mecânica da secretaria, tendente à entrega efetiva, mas antes a facilitação do acesso à gravação, competindo às partes a proatividade necessária à respetiva obtenção.
2. A impugnação da matéria de facto apenas deverá ser conhecida se não for patente a manifesta irrelevância dos factos pretendidos aditar para a decisão do recurso.
Decisão Texto Integral:
 Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório (transcrevendo o da sentença):

A Massa insolvente de “EMP01..., LDA.” deduziu incidente de liquidação contra os réus:

1) AA, com o NIF ...59..., residente na Praça ... - ..., ... ...;
2) BB, com o NIF ...07..., residente na ..., ... ...;
3) CC, com o NIF ...04..., residente na ..., ... ...;

No sentido de ser liquidada a dívida e serem condenados a pagar à Requerente o montante de €511.255,57 (Quinhentos e onze mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos).
Recebido o incidente, foram citados os Réus para contestarem, tendo apenas a Ré AA apresentado contestação.
Foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente liquidação procedente e, em consequência, liquido o montante a pagar pelos réus à autora na importância de €512.397,19 (Quinhentos e doze mil, trezentos e noventa e sete euros e dezanove cêntimos).
Fixo o valor do incidente na referida quantia – artº 307º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Custas pelos réus. (…)”.

Inconformada com a decisão, AA apelou, formulando as seguintes conclusões:
1.
Como questão prévia, argui-se desde logo a nulidade resultante da inexistência, ou não disponibilização, das gravações referentes às declarações de parte da Oponente, AA.
2.
Tais gravações não foram disponibilizadas, pelo que a Oponente requereu que o fossem, o que não sucedeu até à presente data, impedindo a Recorrente de as utilizar em sede de recurso da decisão de facto, desconhecendo se as mesmas efetivamente existem e em que estado se encontram.
3.
A arguição de nulidade da gravação, de acordo com o disposto no artigo 155º nº 4 do Código de Processo Civil, deveria ter sido feita perante o tribunal a quo, no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes da gravação. Como até à presente data ainda não foram disponibilizadas tais gravações, ou inclusive informada a Recorrente da sua eventual inexistência, por perda ou não gravação, está esta em tempo para arguir a nulidade, o que faz no âmbito do presente recurso, nos termos do disposto nos artigos 155.º, nº 4 do Código de Processo Civil, conjugado com o disposto nos artigos 640.º e 195.º do mesmo Diploma Legal.
4.
Sem prescindir, destinam-se os presentes autos de liquidação a determinar o concreto montante da obrigação da responsabilidade da aqui Recorrente, que o Tribunal fixou no montante dos créditos não satisfeitos.
5.
Antes da reforma de 2022 do CIRE já uma parte da doutrina e da jurisprudência sustentava que na fixação do montante indemnizatório teria de se atender ao grau de ilicitude e da culpa do comportamento do afetado e à medida em que a sua ação ou omissão contribuiu para a insolvência, tal como assim foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
6.
A jurisprudência vinha, assim, entendendo que a aplicação conjugada dos artigos 186º e 189º nºs 2 alíneas a) e) e nº 4, do CIRE vincula a uma interpretação que salvaguarde o princípio da proporcionalidade, pelo que, na fixação do montante indemnizatório, deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa ou deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
7.
Depois da reforma de 2022, foi aquele o entendimento que vingou, sendo que a indemnização devida pelo afetado pela qualificação não resultará automaticamente da sentença que qualificou a insolvência como culposa e declarou afetados os Réus. O Tribunal é obrigado a apurar, em função do grau de culpa de cada um dos afetados e tendo em conta o principio da proporcionalidade, o limite da sua responsabilidade pessoal pelos créditos da insolvência insatisfeitos.
8.
Aliás, na sentença de qualificação da insolvência reconheceu-se a existência de um grau de culpa manifestamente diferenciado entre a atuação da Recorrente, mera gerente de direito, e a atuação dos demais afetados, efetivos gerentes de facto, traduzido no período de inibição que foi fixado, 2 anos para aquela e 10 anos para estes.
9.
Porém, tal não sucedeu no Tribunal recorrido que, para o efeito, deveria ter conhecido factos essenciais para apurar o grau da culpa da Oponente, tivessem sido ou não alegados pelas partes, tendo em vista o principio do inquisitório constante do artigo 11º do CIRE, e, deste modo, estar apto a fixar o valor indemnizatório, tendo em conta o principio da proporcionalidade e a efetiva atuação ou culpa da Recorrente na verificação da insolvência e, principalmente, na produção das dividas da Insolvente.
10.
E o certo é que a Recorrente alegou, em sede de Oposição, além do mais, que: «21º: (…) a aqui Oponente não tem qualquer património»; «26º: (…) a Requerida não praticou qualquer ato que determinasse a insolvência, o agravamento da situação dos credores ou qualquer outro que determine a sua obrigação em efetuar o pagamento da globalidade dos créditos não satisfeitos»; «28º: (…) a Requerida foi apenas gerente de direito, assim se traduzindo o seu comportamento».
11.
O Tribunal recorrido não se pronunciou acerca da factualidade alegada, nem cuidou de apurar o grau de ilicitude e de culpa do comportamento da Recorrente e em que medida a sua ação ou omissão contribuiu para a insolvência, pelo que a sentença recorrida está ferida de nulidade, tal como resulta do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que expressamente se argui.
12.
Sem prescindir, para o caso, aliás, não esperado de se entender não verificada a invocada nulidade, sempre a sentença recorrida violou o disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do CIRE, sendo manifesta a desproporcionalidade entre a conduta da Recorrente, apenas tendo figurado como simples gerente de direito e sem qualquer facto provado do qual tenha resultado a prática de qualquer ato da qual resultasse a insolvência, a ocorrência de qualquer das dividas, ou o agravamento da situação dos credores ou qualquer outro que determinasse a sua obrigação em efetuar o pagamento da globalidade dos créditos não satisfeitos.
13.
Aliás, sempre se diga que no presente incidente de liquidação o valor em que foi a Ré condenada excedeu o valor da condenação determinada na sentença, o que não é possível, por violar a sentença anteriormente proferida e transitada em julgado.
14.
Ainda e sem prescindir, não obstante a arguida nulidade por ausência das gravações das declarações prestadas pela Recorrente, impugna a decisão de facto, na medida em que, sem prejuízo do supra exposto, foi produzida prova que permitiria o Tribunal dar como provados factos essenciais para a decisão da causa, o que não fez.
15.
Assim, considera a Recorrente que resultou provado, pelo que deveria ter sido aditado aos factos provados, a seguinte factualidade:
11.
A Oponente não tem qualquer património;
12.
A Oponente não praticou qualquer ato de gerência da sociedade Insolvente;
13.
A Oponente foi gerente de direito da EMP01..., lda, entre ../../2016 e a data em que foi declarada a insolvência, ou seja, 30 de setembro de 2019;
14.
A Oponente foi, entre setembro de 2015 e julho de 2018, estudante de Negócios Internacionais na Universidade ..., ..., curso que frequentou presencialmente;
15.
Nos meses de julho de 2018 e agosto de 2018, a Oponente foi Voluntária, através do Projeto Sementes, na ...;
16.
Entre os meses de outubro de 2018 e dezembro de 2018, trabalhou como vendedora na empresa EMP02...;
17.
Entre os meses de janeiro de 2019 e março de 2019, trabalhou como Avaliadora no Projeto IPIC do Polo de Governação Eletrónica da Universidade das Nações Unidas;
18.
Entre os meses de março de 2019 e julho de 2019, esteve na ..., como voluntária na organização ...;
19.
Entre os meses de agosto 2019 e dezembro de 2019, trabalhou como babysitter em ...;
16.
A prova de tais factos resulta da conjugação dos documentos juntos com o depoimento da única testemunha inquirida, a qual revelou conhecimento direto e preciso de tais factos, confirmando o percurso da Requerente no período em que figurava como «gerente de direito» da sociedade Insolvente, demonstrando inclusive a impossibilidade física da mesma estar sequer presente para praticar qualquer ato em nome da sociedade.
17.
Relativamente à prova documental, tratam-se dos documentos juntos por requerimento de 28/10/2024, com a referência ...80, que atestam e certificam a presença e participação da Recorrente em tais atividades e locais, bem como os períodos em que tal ocorreu, e que foram confirmados pela testemunha, cujo depoimento foi claro e natural, conforme se constatou da transcrição do seu depoimento, anteriormente efetuado e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
18.
Acrescentando-se a referida factualidade ao elenco dos factos provados, tal como deverá ocorrer, o Tribunal deveria ter concluído, em sede de direito, de que a Recorrente, apenas figurou como gerente de direito da sociedade insolvente e de que não praticou qualquer ato de gerência ou qualquer outro do qual tivesse resultado a insolvência, a ocorrência de quaisquer das dividas reconhecidas ou o agravamento da situação dos credores.
19.
Assim, tendo em consideração o disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do CIRE, o princípio da proporcionalidade, o Tribunal deverá liquidar o valor dada indemnização da responsabilidade da Recorrente em montante de valor manifestamente diminuto e nunca superior a 1.000,00 €.
Termos em que deverá o presente recurso ser recebido e julgado procedente, tudo com as legais consequências, designadamente resultantes das elencadas conclusões, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim, apurar da existência de nulidade por alegada falta de disponibilização da gravação da audiência final; da (ir)relevância processual da impugnação da matéria de facto para a decisão do presente recurso; da existência de condenação além do pedido.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

1. Por sentença proferida no Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz ..., sob o Processo nº 4124/20...., transitada em julgado, a Oponente foi declarada insolvente.
2. Foi proferido despacho inicial no incidente de exoneração do passivo restante da Oponente.
3. A Autora não reclamou créditos nem instaurou a ação de verificação ulterior de créditos para ver reconhecido o crédito de que se arroga sobre a Oponente e objeto da pretensa liquidação.
4. Nos autos de incidente de qualificação de insolvência foi proferida sentença no sentido de:
a) Qualificar como culposa a insolvência de EMP01..., Lda;
b) Determinar que sejam abrangidos pela qualificação como culposa os gerentes de facto CC, BB e a gerente de direito AA;
c) Declarar o gerente CC inibido para o exercício do comércio durante 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Declarar o gerente BB inibida para o exercício do comércio durante 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
e) Declarar a gerente AA inibido para o exercício do comércio durante 2 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
f) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente detidos pelos gerentes, bem como determinar que sejam restituídos à massa quaisquer bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos;
g) Condenar os gerentes de facto e direito CC, BB e AA a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a liquidar em execução de sentença, por não ser possível neste momento calcular o montante dos prejuízos, devendo como critério para a sua quantificação, atender-se ao montante dos créditos reclamados, aos quais deverá ser subtraída a quantia que em rateio final (se existindo) vier a ser apurada, para distribuição, após pagamento das custas processuais.
5. Mais foi proferido acórdão em que foi decidido:
a) revogar o segmento do dispositivo que declarou CC e BB inibidos para o exercício do comércio durante um período de dez anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, e em sua substituição declaram os identificados CC e BB inibidos para o exercício do comércio por um período de sete anos, bem como para ocuparem qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
b) no mais, confirmar a sentença recorrida.
6. O montante dos créditos reclamados e reconhecidos, nomeadamente a listagem prevista no Art.129º do Cire referente a este processo e que deu origem ao apenso C, aponta para o valor total de €511.255,57 (Quinhentos e onze mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos).
7. Em sede de liquidação, até ao momento apenas foi granjeada a quantia de 62,38 € (Sessenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).
8. Não se perspetiva que seja possível qualquer recebimento no âmbito das ações de cobrança de créditos ainda ativas, dado que, os devedores estão também insolventes.
9. Valor que não será suficiente sequer para as custas processuais, quanto mais para fazer qualquer rateio.
10. A conta bancária da Massa Insolvente aberta junto do Banco 1...  ...23 apresenta o saldo de 62,38 € (Sessenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).
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B. Fundamentos de direito. 

Desde logo, nos termos e para os efeitos do artº 617º, nº 5, do CPC, não julgamos indispensável a baixa do processo para o tribunal recorrido se pronunciar sobre as alegadas nulidades.
A recorrente começou por arguir nulidade, fundamentando-a da seguinte forma: “de acordo com o disposto no artigo 155º nº 4 do Código de Processo Civil, deveria ter sido feita perante o tribunal a quo, no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes da gravação. Como até à presente data ainda não foram disponibilizadas tais gravações, ou inclusive informada a Recorrente da sua eventual inexistência, por perda ou não gravação, está esta em tempo para arguir a nulidade, o que faz no âmbito do presente recurso, nos termos do disposto nos artigos 155.º, nº 4 do Código de Processo Civil, conjugado com o disposto nos artigos 640.º e 195.º do mesmo Diploma Legal.” – sic.

Dispõe o artº 155º, nº 3, do CPC, que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
E, de acordo com o nº 4 do mesmo preceito, a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

No Ac.RP de 24/9/2020, proc. nº. 4704/12.7TBMTS.P1, fizeram-se as seguintes considerações:
 “I- A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC. Disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
II- Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias possa arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
III- Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.
Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso”.

Decorre do referido artº 155º do CPC que o legislador, ao remeter a arguição da falta ou deficiência da gravação para o regime das nulidades (secundárias), regulado nos artigos 195º e ss do CPC, impôs que a referida nulidade devesse ser arguida logo no ato, se a parte de tal se apercebesse ou, não o tendo feito, a partir do momento em que tomou conhecimento do vício ou dele pudesse conhecer com a devida diligência.

Cotejando as referidas disposições legais com o caso concreto verificamos que:
- Conforme resulta dos autos, a audiência final ocorreu em 2 de dezembro de 2024.
- A sentença foi proferida em 12 de janeiro de 2025 e foi remetida notificação às partes no dia seguinte.
- Em 28 de janeiro, a ora recorrente fez requerimento aos autos, nos termos do qual “Vem requerer a V. Ex.ª se digne ordenar a disponibilização na plataforma Citius da gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, destinando-se a instruir recurso da sentença proferida.
- Em 7 de fevereiro a recorrente apresentou nos autos o presente recurso.

Na interpretação que reputamos correta do regime legal, e como já anteriormente decidimos (cfr. AcRG de 29/05/2024, processo nº 1778/22.6T8VCT.G1), face ao disposto no artº 155º, nº3 e 4, do CPC, tendo os depoimentos sido prestados em 2 de dezembro de 2024, a secretaria deveria ter disponibilizado a gravação em 2 dias, e a ora recorrente tinha 10 dias para ouvir a gravação e arguir hipotética nulidade.
Todavia, a recorrente só pediu a gravação em 28 de janeiro de 2025, e já depois de prolatada a sentença, sendo certo que nada consta dos autos que permita, sequer, considerar que a gravação é inaudível, parecendo antes que a recorrente se insurge quanto à alegada falta de disponibilização da gravação.
Desde logo, nada nos autos permite concluir pela falta de disponibilização da gravação, mesmo abstraindo das considerações que previamente fizemos. Nos autos consta o requerimento a pedir a gravação e a entrega do recurso, 10 dias depois. Nada resulta praticado nos autos em tal hiato, nada foi requerido, nenhuma pretensa nulidade arguida foi arguida perante o tribunal recorrido, nem sequer depois.
Por disponibilização não se deve entender qualquer iniciativa, qualquer ação mecânica, da secretaria, tendente à entrega efetiva, mas antes a facilitação do acesso à gravação, competindo às partes a proatividade necessária à respetiva obtenção.
No referido sentido, são várias as decisões dos tribunais superiores:
A disponibilização pela secretaria judicial, nos termos do artº 155º, nº3, do CPC, da gravação da audiência final, não precisa de ser requerida. É oficiosa. Consiste, não na entrega, remessa, sequer notificação ou qualquer outra ação equiparada, mas tão só na colocação ao alcance das partes e para uso destas do suporte destinado às mesmas a fim de o procurarem, examinarem, utilizarem.” – cfr. AcRG de 30/11/2017, processo nº 229/17.2T8VVD.G1;
Esta disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, antes sobre as mesmas recaindo um dever de diligência pela rápida obtenção das gravações a contar do ato, com vista a aquilatar de eventuais vícios das gravações e sendo o caso, arguir a pertinente nulidade.
Sendo imprescindível à reapreciação da decisão de facto em sede de recurso a audibilidade da gravação da prova produzida em audiência, a exigência imposta sobre as partes de controlar a sua qualidade no prazo previsto no artigo 155º nº 4 do CPC – e nada mais é exigido nesta altura, nos termos acima assinalados - nada tem de excessivo ou desproporcional, sequer prejudica o direito das partes ao recurso, sobre o qual legitimamente decidirão após o conhecimento da decisão.
A exigência imposta à recorrente pelo legislador de acordo com a interpretação do artigo seguida pelo tribunal a quo e por nós secundada, não configura uma medida excessiva ou desproporcionada, nem afeta o princípio constitucional da proteção da confiança e da segurança jurídicas. – cfr. AcRP de 5/06/2023, processo nº 634/17.4T8FLG-C.P1.
Disponibilização é diferente de entrega, já que esta pressupõe uma atuação do interessado que promove a entrega e aquela respeita a um ato da secretaria que coloca a gravação disponível à parte que na mesma esteja interessada para lha entregar se esta o requerer.
A disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e se assim não ocorrer deve a parte suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade.
Não o fazendo, violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
Pedida pelos recorrentes a reapreciação da matéria da prova gravada e sendo impercetível ou inaudível um ou mais dos depoimentos prestados em julgamento, tal reapreciação não poderá ocorrer, uma vez que a mesma tem de ser feita com recurso a toda prova disponível e, nomeadamente, a todos os depoimentos em que foram abordados factos abrangidos na matéria impugnada e não apenas aos depoimentos indicados pelo recorrente.
O regime de disponibilização, verificação e reclamação do estado das gravações, concebido e implementado pelo legislador, é o que melhor se coaduna com os princípios da economia processual e da concentração e continuidade dos julgamentos, pretendendo que os vícios de gravação sejam cedo detetados e corrigidos, se possível ainda no decurso da audiência quando ela se prolonga por várias sessões, ou, em prazo muito próximo do seu termos, evitando a anulação e repetição de julgamentos por vícios de gravação tardiamente detetados e reclamados, com todos os prejuízos que isso implica, nomeadamente para a genuinidade do depoimento.” – cfr. AcRG de 30/11/2023, processo nº 313/19.8T8PVL.G1;
1- Face à atual redação do art. 155º do CPC, comportando a audiência final várias sessões de julgamento, a secção deve facultar/disponibilizar espontaneamente às partes, no prazo de dois dias, a contar de cada uma dessas sessões, a gravação da prova produzida em cada uma dessas sessões, e estas dispõem do prazo de dez dias, a contar da efetiva disponibilização dessa gravação (simples colocação, pela Secção, da gravação à disposição das partes) para arguirem a nulidade processual decorrente da falta de gravação ou do vício da impercetibilidade/inaudibilidade da gravação efetuada, acrescentando-se ao referido prazo de dez dias o período de tempo de atraso em que incorreu a secção na disponibilização dessa gravação, isto é, o período de tempo que excede os dois dias legalmente fixados para a Secção disponibilizar espontaneamente a gravação às partes.
2- Decorrido o prazo referido em 1) para as partes arguirem a nulidade processual decorrente da falta de gravação ou do vício da impercetibilidade da gravação efetuada, sem que essa nulidade tenha sido suscitada, a nulidade processual em causa fica sanada, não podendo ser invocada posteriormente pelas partes, nomeadamente, nas alegações de recurso que venham a interpor da sentença final, ainda que neste impugnem o julgamento da matéria de facto.” – cfr. AcRG de 17 de fevereiro de 2022, processo nº 5962/16.3T8GMR.G1.
Verifica-se assim que, a montante da circunstância de nenhuma nulidade ter sido arguida perante o tribunal recorrido, nem sequer resultou provada qualquer falta de disponibilização da gravação.
Improcede, assim, esta pretensão da recorrente.

A recorrente impugnou depois a matéria de facto. Insurgindo-se contra a falta de consideração como provado de alguns factos que reputa essenciais para a decisão da causa, e que deveriam ser aditados, a saber:
A Oponente não tem qualquer património;
B) A Oponente não praticou qualquer ato de gerência da sociedade Insolvente;
C) A Oponente foi gerente de direito da EMP01..., lda, entre ../../2016 e a data em que foi declarada a insolvência, ou seja, 30 de setembro de 2019;
D) A Oponente foi, entre setembro de 2015 e Julho de 2018, estudante de Negócios Internacionais na Universidade ..., ..., curso que frequentou presencialmente;
E) Nos meses de julho de 2018 e agosto de 2018, a Oponente foi Voluntária, através do Projeto Sementes, na ...;
F) Entre os meses de outubro de 2018 e dezembro de 2018, trabalhou como vendedora na empresa EMP02...;
G) Entre os meses de janeiro de 2019 e março de 2019, trabalhou como Avaliadora no Projeto IPIC do Polo de Governação Eletrónica da Universidade das Nações Unidas;
H) Entre os meses de março de 2019 e julho de 2019, esteve na ..., como voluntária na organização ...;
I) Entre os meses de agosto 2019 e dezembro de 2019, trabalhou como babysitter em ...;

Todavia, tais factos são absolutamente irrelevantes para a decisão da causa, não estando aqui em causa uma nova discussão do já decidido em sede declarativa, transitado em julgado, mas tão somente o incidente de liquidação, destinado a concretizar o montante dos danos.
Vejamos.
Dispõe o artº 609º, nº 2, do CPC, que se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida.
O diferimento da liquidação da condenação genérica para momento posterior pressupõe a existência de danos de valor ainda suscetível de quantificação. Mas a liquidação da sentença só visa concretizar o objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado decorrente da ação declarativa, ou seja, a determinação do objeto da causa, isto é, da existência do dano, não é relegável para o referido incidente – cfr. Salvador da Costa in “Os Incidentes da Instância”, 10ª edição, pág. 237-238.
A liquidação é um incidente da instância com estreita ligação à ação que reconheceu a existência de um crédito, que não foi quantificado, quer por não ter sido possível, quer por o autor ter formulado um pedido ilíquido ou genérico.
Na liquidação não se trata de apurar novos elementos que ultrapassem a condenação genérica proferida, mas tão só de determinar os elementos ou valores já contidos naquela condenação que têm de ser especificados.” – cfr. Ac. STJ de 4/07/2019, processo nº 5071/12.4TBVNG.1.P1.S1, disponível, tal como os demais citados sem indicação diversa, em www.dgsi.pt.
A liquidação da sentença destina-se, tão somente, a ver concretizado o objeto da sua condenação (genérica), mas respeitando sempre (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, a liquidação tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença, não podendo contrariar esse julgado, nomeadamente, corrigindo-o.
O incidente de liquidação não pode culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Sendo que, neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respetivo.” – cfr. Ac. do STJ de 16/12/2021, processo nº 970/18.2T8PFR.P1.S1.
No incidente de liquidação (…) já não é possível voltar a discutir a existência do fundamento do mesmo crédito de que a requerente é reconhecidamente titular sobre a requerida, uma vez que tal matéria – factual e jurídica – foi decidida, em termos definitivos, na ação principal e sobre a mesma foi proferida decisão judicial, de cariz condenatório, que transitou em julgado.
No seu âmbito foram apurados determinados factos (com base na causa de pedir apresentada) com fundamento nos quais, por aplicação do pertinente enquadramento jurídico, foi reconhecida a existência de uma obrigação de pagamento que, a partir daí, deixou de ser questionável, não podendo voltar a ser objeto de apreciação (e muito menos de contradição), sob pena de direta, frontal e grosseira violação do caso julgado material (cfr. artº 619º, nº 1, do CPC)” – cfr. Ac. do STJ de 10/05/2021, processo nº 35505/12.1YIPRT.P1.S1.
Como já supra referimos, citando o acórdão do STJ que identificámos, a liquidação da sentença destina-se, tão somente, a ver concretizado o objeto da sua condenação (genérica), mas respeitando sempre (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, a liquidação tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença, não podendo contrariar esse julgado, nomeadamente, corrigindo-o.
No dispositivo da sentença transitada em julgado, confirmada nesta parte por esta Relação, foi decidido na alínea g) “Condenar os gerentes de facto e direito CC, BB e AA a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a liquidar em execução de sentença, por não ser possível neste momento calcular o montante dos prejuízos, devendo como critério para a sua quantificação, atender-se ao montante dos créditos reclamados, aos quais deverá ser subtraída a quantia que em rateio final (se existindo) vier a ser apurada, para distribuição, após pagamento das custas processuais”.
Ou seja, nenhuma diferença de responsabilidade foi decidida entre os gerentes, nenhum limite indemnizatório foi fixado quanto a qualquer deles, designadamente quanto à aqui recorrente, sendo os mesmos responsabilizados da mesma forma. E o momento processual para fixar qualquer diferença de responsabilidade quanto aos danos a indemnizar está já ultrapassada. Era naquela ação declarativa que tal podia ser feito. E não foi.
Nenhum dos factos ora alegados e que se pretende ver aditados constitui fundamento para uma hipotética alteração do decidido, sendo absolutamente irrelevantes para este incidente.
Remédio Marques admite que os fundamentos de facto adquirem o valor de caso julgado quando dizem respeito a relações sinalagmáticas e quando criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico. – in “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 2ª edição, pág. 663.
Nesta mesma linha de entendimento defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa que justifica-se atribuir efeitos definitivos entre as partes relativamente a fundamentos da decisão nos casos em que ocorrem relações de prejudicialidade e de sinalagmaticidade. – in Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição, 2020, páginas 122-123.
A eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior (…)” – cfr. Ac. do STJ de 12/04/2023, processo nº 979/21.9T8VFR.P1.S1.
 Resulta do supra exposto a inutilidade da impugnação da matéria de facto deduzida, não se conhecendo, assim, da mesma, inexistindo, outrossim, qualquer nulidade nos termos e para os efeitos do artº 615º, nº 1, alínea d), do CPC.
Por último, a recorrente alegou (conclusão 13ª) que o valor em que foi condenada excedeu o valor da condenação determinada na sentença.
Também esta alegação se revela insubsistente. Na sentença foi proferida uma condenação genérica (daí a liquidação).
Na sentença proferida na liquidação refere-se expressamente que “Efetivamente, existe uma sentença que condena os requeridos e a oponente a indemnizar um dano e tal decisão não está posta em crise nos presentes autos, dado que se encontra transitada em julgado. Estando em causa o pagamento de uma indemnização, ou seja, de uma obrigação pecuniária, genérica, importa apenas determinar o concreto montante da obrigação a cumprir. Dúvidas não existem de que a oponente foi condenada a pagar aos credores da insolvente, pela sentença proferida e transitada em julgado. E dúvidas não existem de que a Autora se encontra entre esses credores, enquanto massa insolvente destes, sem que tal condição haja sido posta em causa.
Naquela sentença o tribunal definiu o critério a seguir para o concreto cálculo do montante da indemnização ao remeter para os “créditos reconhecidos na lista do art. 129º do CIRE”. Se a remissão para essa lista, enquanto critério de cálculo da indemnização, está certa ou errada (e se os montantes constantes dessa lista podiam ou não ser tidos em conta), é algo que não pode ser discutido no presente processo, pois foi definido numa decisão que se encontra transitada em julgado. Eram os afetados pela qualificação da insolvência que tinham o ónus de recorrer contra a condenação nessa indemnização, demonstrando a sua falta de fundamento de modo a obter ganho de causa. Mas tal resultado não se verificou, porquanto a Relação confirmou a sentença que qualificou a insolvência como culposa, com as inerentes consequências. Só há que determinar o montante a pagar, sendo o mesmo o valor dos créditos reclamados, constante da sentença proferida na reclamação de créditos, €511.255,57 (Quinhentos e onze mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescido do valor- €1204,00 reconhecido na sentença de verificação ulterior de créditos, aos quais deverá ser subtraída a quantia que em rateio final (se existindo) vier a ser apurada, para distribuição, após pagamento das custas processuais, descontado o saldo de 62,38 € (Sessenta e dois euros e trinta e oito cêntimos), num total de €512.397,19.”
Não houve assim qualquer violação do decidido na ação declarativa.
O que se poderia discutir (mas a recorrente não levantou a questão) era se a condenação ultrapassa o pedido formulado no requerimento de liquidação:
Requer-se a V. Exa. que se digne condenar os gerentes de facto e direito da Insolvente, CC, BB e AA a indemnizar os credores da insolvente EMP01..., Lda, no montante dos créditos não satisfeitos, que se contabilizam no montante de €511.255,57 (Quinhentos e onze mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos), até às forças do respetivo património.
Termos em que, e nos demais de Direito, deve o presente incidente ser julgado provado e procedente e, em consequência, devem os Requeridos ser condenados a pagar à Requerente o montante de €511.255,57 (Quinhentos e onze mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos).
Para tanto,
Requer-se a V.Exa que, por apenso, se digne ordenar a citação dos Requeridos, para, querendo, contestarem o presente incidente, no prazo e sob a cominação legal, seguindo-se os demais termos até final.
É patente a violação do disposto no artº 609º, nº 1, do CPC. Foi pedida a liquidação em €511.255,57 e foi fixado o valor de €512.397,19 o que consubstanciaria a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, alínea e), do CPC.
Todavia, a mesma não foi arguida e, por isso, dela não se pode conhecer.
Improcede, assim, o recurso interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente – artº 527º, nº 1 e 2 do CPC.
Notifique.
Guimarães, 24 de abril de 2025.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.
2ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes.