Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
415/19.0T8VLN.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO DA PRIVAÇÃO DO USO
LOCATÁRIO
CRITÉRIO DE FIXAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A privação temporária do uso da coisa locada, por facto causado por terceiro alheio à relação locativa, pode ser liquidada, enquanto dano in re ipsa, no valor dos alugueres que, enquanto ela durou, o locatário lesado continuou obrigado a pagar ao locador.
Decisão Texto Integral:
I.
1). EMP01..., SA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02..., SA, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 11 818,21, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que: é locatária do veículo automóvel pesado de mercadorias com a matrícula ..-VQ-.. (VQ), que utiliza, juntamente com o semirreboque com a matrícula GD-...., no exercício da sua atividade de transporte rodoviário de mercadorias (CAE 49410); na referida qualidade de locatária, cabe-lhe providenciar pela manutenção do veículo e, uma vez findo o contrato, proceder à entrega deste à locadora em regular estado de funcionamento; no dia 26 de julho de 2019, o VQ era conduzido pela A3, sentido ..., quando foi embatido pelo veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-FI-.. (FI); esse embate foi provocado pela condução descuidada e infratora de regras estradais do condutor do FI; em virtude dele, o VQ sofreu danos; a Ré, para quem estava transferida, por contrato de seguro, a responsabilidade civil decorrente da circulação do FI, procedeu à peritagem do VQ, no dia 14 de agosto de 2019, concluindo que a reparação deste importaria em € 7 000,00; não obstante, declinou a sua responsabilidade; na sequência, a Autora procedeu à reparação a expensas suas; essa reparação ficou concluída cinco dias após a peritagem, pelo que o VQ esteve imobilizado um total de 19 dias; durante esse período, a Autora teve de continuar a suportar o pagamento da retribuição devida ao seu motorista; o dano decorrente da paralisação do VQ deve ser calculado nos termos do acordo celebrado entre a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários (ANTRAM) e a Associação Portuguesa de Seguradoras, que fixa o respetivo quantitativo diário em € 253,59; assim, tem direito a obter da Ré uma indemnização total de € 11 818,21, correspondente ao custo da reparação do VQ (€ 7 000,00), acrescido do prejuízo com a paralisação do veículo (€ 4 819,21).
Citada, a Ré contestou, aceitando ter assumido a responsabilidade civil decorrente da circulação do FI, mas impugnando os demais factos alegados pela Autora.
Na audiência prévia foi proferido despacho a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixar, em € 11 818,21, o valor processual; dispensar a delimitação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova; admitir os meios de prova apresentados pelas partes; agendar a audiência final.
Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença a julgar a ação totalmente procedente e a condenar a Ré no pedido formulado pela Autora.
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2). Inconformada com a sentença, a Ré (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

A) A quantia arbitrada à Autora a título de privação do uso parte de premissas que não encontram alicerce nos factos provados.
B) Não resultou demonstrado que a Autora fosse, ou seja, associada da ANTRAM, pelo que não existe fundamento para que a Recorrente tenha sido condenada nos valores constantes das tabelas de paralisação acordadas.
C) Tão-pouco ficou demonstrado que o veículo sinistrado efetuasse transportes internacionais, pelo que sentido algum faz que o quantum indemnizatório diário se situe no valor tabelado para transportes internacionais.
D) Por outro lado, foi relatado pela testemunha AA que tanto ele como o outro condutor que, na altura do acidente, seguia no veículo da Autora, passaram a conduzir outros veículos, isto é, nenhum deles tendo ficado parado na sequência da paralisação do veículo em causa.
E) Consequentemente, a Autora, embora tratando-se de uma sociedade comercial obrigada a apertadas regras de registos e contabilidade, não trouxe um único elemento do qual se pudesse concluir ter sofrido algum prejuízo decorrente da paralisação do seu veículo.
F) Assim, deve a redação do facto provado nº 16 ser alterada para “16-Durante esses 19 dias, a Autora não utilizou a viatura na sua atividade comercial”.
G) Atenta a falta de demonstração de prejuízos, a compensação diária arbitrada a título de privação do uso deve ser alterada para € 50,00, alcançando-se, assim, o valor total de € 900,00.
H) Deve assim ser revogada a parte da Sentença que condena a Ré a pagar à Autora a quantia de € 4.818,21, a título de privação do uso, e substituída por decisão que condene a aqui Recorrente a pagar, a esse título, o valor total de € 900,00.
I) Na Sentença recorrido é feita uma incorreta apreciação da prova produzida e uma menos acertada aplicação das normas legais, nomeadamente dos artigos 483º, 562º e 566º do Código Civil, devendo ser alterada nos termos das Conclusões supra, assim se fazendo inteira Justiça.
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3). A Autora (daqui em diante, Recorrente) não apresentou resposta.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª Erro na decisão quanto ao segundo segmento do enunciado do ponto 16. do rol dos factos provados (“teve de pagar a retribuição ao motorista”), que deve ser considerado como não provado;
2.ª Erro de direito, mais concretamente por não aplicação da norma do n.º 3 do art. 566 do Código Civil, conjugada com as dos arts. 483/1 e 562 do mesmo diploma, por se ter quantificado o dano da paralisação do veículo no valor diário de € 253,59 “conforme tabela resultante de acordo celebrado pela ANTRAM e APS”, em lugar de o fazer com recurso à equidade.
Delimitando pela negativa, diremos que, como se constata, a Recorrente não coloca em causa a decisão do Tribunal de 1.ª instância no que tange: à verificação dos pressupostos genéticos da obrigação de indemnizar por factos ilícitos; à sua condenação a pagar à Recorrida o montante pecuniário equivalente à reparação dos danos por esta sofridos; à identificação de tais danos como a reparação do veículo VQ e a privação do uso deste veículo nos 19 dias subsequente ao facto ilícito; ao quantitativo (€ 7 000,00) em que foi fixado o equivalente pecuniário daquele primeiro dano; ao termo a quo da obrigação de juros decorrente da mora no pagamento do quantum indemnizatório. Todas estas questões encontram-se, portanto, definitivamente decididas e afastadas do objeto do recurso.
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III.
1). Começamos por respigar a fundamentação de facto da sentença recorrida.
Assim, foram ali considerados como provados os seguintes enunciados (transcrição):

“ 1. A autora dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias (CAE 49410) e é utilizadora nessa atividade da viatura adiante indicada, por contrato de aluguer celebrado com a sua proprietária ‘EMP03..., Unipessoal, Lda.’, com sede em Avenida ..., ... ....
2. De acordo com o contrato celebrado com a proprietária da viatura, é a autora responsável pela sua manutenção e pela sua entrega em regular estado de funcionamento, findo o contrato.
3. A ré é uma seguradora com sede em Lisboa, também conhecida pela marca EMP04....
4. No dia 26 de Julho de 2019, na autoestrada A3, no sentido ..., seguia na sua mão de trânsito a viatura pesada de mercadorias utilizada pela autora, de marca ... e com a matrícula ..-VQ-.., viatura que a autora utiliza na sua atividade de transporte rodoviário de mercadorias.
5. Esta viatura trazia atrelado um semirreboque de marca ..., com a matrícula GD-.....
6. O conjunto tinha um peso superior a cerca de 25 toneladas.
7. No mesmo local e no mesmo sentido de trânsito, seguia a viatura pesada de mercadorias de marca ..., modelo ...3, com a matrícula ..-FI-.., com a responsabilidade civil por danos causados a terceiros transferida para a ré por intermédio da apólice ...65, conduzida por BB.
8. Esta última viatura, ao quilómetro 110 dessa autoestrada (coordenadas: Latitude ..., N / Longitude ... W), próximo de ..., ..., procedeu à ultrapassagem da viatura da autora mas, ao retomar a sua faixa, na via mais à direita da autoestrada, embateu com a sua lateral direita traseira no lado esquerdo da cabine do condutor da viatura da autora, projetando esta contra o rail de proteção do lado direito da autoestrada, não só pela força do embate mas também porque o condutor perdeu o controlo da viatura.
9. O condutor da viatura ..-FI-.. não deu sinal de se ter apercebido do embate e seguiu viagem, deixando a viatura da autora imobilizada na berma.
10. Do embate resultaram danos para a viatura da autora, com riscos e amolgadelas na cabine, do lado esquerdo e do lado direito, e no reboque, do lado direito.
11. Ficaram também danificados os raios de proteção da autoestrada, no local embatido pela viatura da autora, tendo ficado danificados sete guardas, sete prumos e sete amortecedores.
12. A responsabilidade pelo acidente é do condutor da viatura com a matrícula ..-FI-.., que não se assegurou de que podia retomar em segurança, após a ultrapassagem, a via mais à direita da autoestrada.
13. O sinistro foi comunicado à ré, mas esta declinou a responsabilidade.
14. Por ordem da ré, foi efetuada perícia sobre a viatura da autora, sendo reconhecido um dano global na viatura da autora de €7.000,00.
15. A reparação demoraria cinco dias após a peritagem, pelo que a viatura da autora ficou imobilizada durante 19 dias úteis entre a data do acidente e o quinto dia posterior à peritagem (em 14 de Agosto de 2019).
16. A autora sofreu o prejuízo decorrente da imobilização da viatura durante esses 19 dias, em que teve de pagar a retribuição ao motorista e não utilizou a viatura na sua atividade comercial.”
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2). Depois de ter sido considerado como “não provado” que “[a] viatura ..-FI-.. ficou também com danos do lado direito, na parte em que embateu com a viatura da autora, com restos de tinta desta” (único enunciado em relação ao qual o Tribunal a quo especificou não ter formulado uma convicção positiva), motivou-se a decisão tomada quanto à matéria de facto do seguinte modo (transcrição)

“O Tribunal formou a sua convicção em relação aos factos provados e não provados através do exame crítico da prova documental junta aos presentes autos, designadamente contrato de aluguer de veiculo pesado de mercadorias sem condutor de fls. 6 e ss., declaração amigável de acidente automóvel de fls. 8 e ss., participação de acidente de viação de fls. 10 e ss., comunicação da R à A de fls. 13, ata de avaliação de prejuízos de fls. 14 e ss., apólice de fls. 27, fotografias de fls. 33 e ss., bem como a inquirição das testemunhas indicadas pela Autora, CC, motorista de pesados, na data da prática dos factos trabalhava para a A. e é filho do representante legal da A., AA, na data da prática dos factos trabalhava para a A. e é sobrinho do representante legal da A., BB, na data da prática dos factos era motorista do grupo ..., ..., encarregado numa empresa sita em ... e na data da prática dos factos trabalhava como encarregado para ... em ..., das testemunhas indicadas pela Ré, DD, perito avaliador e trabalha para a R. desde 1996.

III. A. FACTOS PROVADOS

Quanto aos factos provados em 3., 13., estes estão assentes atento o teor do artigo 1 da contestação.
Quanto aos factos provados em 14, estes estão assentes quanto ao valor do orçamento, e atento o teor do artigo 1 da contestação e teor do documento junto a fls. 14.
Quanto aos factos provados 2., estes resultam do contrato junto a fls. 6 e ss..
A dinâmica do acidente de viação resultou da conjugação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, quer testemunhal, quer documental.
Neste jaez, as testemunhas CC e AA descreveram, de forma coerente e coincidente entre si, bem como com os danos verificados nos veículos e constantes das fotografias juntas aos autos, a dinâmica do acidente, tendo descrito o percurso de ambos os veículos envolvidos no acidente, bem como a condução praticada por ambos os condutores, a deslocação ao local do acidente do OPC e de responsável por parte da ....
Acresce que, a identificação do camião da ... e seu condutor resultou da conjugação da prova produzida, em destaque das declarações prestadas pelas testemunhas CC e AA com as declarações da testemunha ....
Assim, ... esclareceu sobre as funções que à data do acidente exercia para a ..., bem como descreveu a sua deslocação ao local do acidente no próprio dia do acidente, porquanto um veículo da ... tinha tido intervenção no mesmo, tendo nessa altura falado com o condutor do dito veiculo da ..., que identificou como sendo BB por forma a perceber o que tinha acontecido, bem como tirou, em data não concretamente apurada, fotografia ao dito veiculo da ....
Acresce que, do teor da participação feita pelo OPC chamado ao local do acidente e junto a fls. 10 e ss., consta a identificação do veiculo da ... e seu condutor, o que corrobora as declarações prestadas por ....
Por outro lado, BB referiu não se recordar de nada, negou ter tido intervenção em acidente de viação com veiculo da ..., negou ter falado com responsável da ..., ..., não se recordando das rotas que fazia para ..., pois as mesmas variavam.
Acresce que, o depoimento de BB não se revelou credível, pois foi, de forma frontal e clara, contrariado pelos depoimentos de ..., bem como de CC e AA, estes três coerentes, bem como coincidente entre si e com a prova documental, e regras da experiência comum.
Por outro lado, e mais uma vez, ao contrário da postura segura, calma e colaborante das testemunhas ..., bem como de CC e AA, BB apresentou-se em sede de julgamento com uma postura apreensiva, evasiva, muito indignado, irritado, pouco colaborante no esclarecimento dos factos, tendo, inclusive, sido confrontado pelo Tribunal por forma a permitir que a testemunha esclarecesse a referida postura desapropriada, sem, contudo, que o mesmo fosse capaz de fazer, ou mesmo que o quisesse fazer.
Por fim, importa ainda referir que DD esclareceu sobre a peritagem que fez para a R., e, em ..., esclareceu sobre o valor dos danos apurados, data da peritagem e data da reparação exigível dos veículos da A. por forma a que estes pudessem voltar a circular em segurança.
Em face do supra exposto, da prova produzida, e atento o supra exposto, formou o Tribunal, em suma, a convicção que o acidente se deveu por culpa exclusiva da conduta adotada pelo condutor do veiculo ..-FI-...
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III. B. FACTOS NÃO PROVADOS

Por último, entendeu este Tribunal que os factos não provados, mereceram resposta negativa, porquanto não foi feita prova da sua ocorrência, quer testemunhal, quer documental.”
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IV.
1). Vejamos a resposta às questões enunciadas.
Sobre a modificabilidade da decisão de facto pela Relação, discorre-se, no Acórdão desta Relação e Secção de 9.11.2023 (2984/22.9T8GMR.G1[1]), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Pinto de Matos, aqui 2.ª Adjunta, nos termos que, data venia, aqui respigamos:

“Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
(…)
Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a “Relação deve ainda, mesmo oficiosamente”: “Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (al. a); “Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova” (al. b)”.
“O atual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e da oralidade.
Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efetiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).
(…)
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto ”nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, “livre apreciação da prova” não corresponde a ”arbitrária apreciação da prova”. Deste modo, o Juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
“É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida “exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional” (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, “tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia”, não bastando nomeadamente para o efeito “reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a “censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não” possa “assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).
De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).

No sentido de que havendo dúvidas no controlo da matéria de facto pela Relação, deve valer o princípio in dubio pro iudicato, pode ver-se também RE 11.01.2024 (129/21.7T8SLV.E1), relatado por Tomé de Carvalho, com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa (“Jurisprudência 2024 (13): Matéria de facto; recurso; controlo pela Relação”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/), que adjetiva a orientação como pragmática e realista.
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2). Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo a Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator, ademais, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.
A este propósito, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Taruffo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.”
Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.
Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes.
Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.”
Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”
Este critério, salienta o autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.  Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”
O autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.”
Michele Taruffo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo.
O mesmo autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese.
Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet.
Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.”
Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).”
No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023].
Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.
Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”
Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."
Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”
Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)”
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3).1. Isto posto, não havendo obstáculo ao conhecimento, vejamos se a impugnação da decisão da matéria de facto feita pela Recorrente merece provimento.
Como escrevemos, está em causa a decisão quanto ao segmento do enunciado do ponto 16 do rol dos factos provados onde se diz que, durante o período de paralisação do veículo VQ, a Recorrida “teve de pagar a retribuição ao motorista.”
Não encontrámos, na motivação da decisão da matéria de facto, nenhuma referência especificada aos elementos de prova tidos em conta pelo Tribunal a quo no processo de formação da sua convicção positiva quanto a este segmento.
Esta aporia da motivação apenas pode ser suprida com recurso à referência genérica aos meios de prova produzidos e analisados e, dentre estes, aos depoimentos das duas testemunhas que, à data do acidente, trabalhavam para a Recorrida, a saber, CC e AA.
De acordo com a Recorrente, dos depoimentos prestados por estas testemunhas resulta, porém, a afirmação do facto contrário, qual seja a de que, durante o período de paralisação do veículo VQ, a Recorrida não “teve de pagar a retribuição ao motorista.”
Procedemos à audição integral do registo áudio dos dois testemunhos prestados na audiência final e, perante o que ouvimos, temos de concluir que só parcialmente assiste razão à Recorrente.
Com efeito, a primeira daquelas testemunhas (CC), depois de se ter identificado como motorista, que ao tempo trabalhava para a Recorrida, sendo, aliás, filho do sócio gerente desta, afirmou, na parte final do seu depoimento (17’05’’), que era ele o condutor habitual do VQ e que, durante o período de imobilização deste veículo, subsequente ao acidente, continuou a sua atividade laboral, utilizando para esse efeito outros veículos.
A segunda testemunha (AA), por seu turno, depois de ter dito que ao tempo do acidente trabalhava para a Autora, como ajudante do motorista do veículo VQ, acrescentou (17’12’’) que não interrompeu a sua atividade durante o período de imobilização. Continuou a acompanhar o motorista habitual do VQ que passou a utilizar outro veículo.
Não havendo qualquer razão para questionar a isonomia destas testemunhas – exuberantemente destacada pelo Tribunal a quo – e na falta de outros meios de prova que possam ser utilizados quanto a este concreto aspeto da realidade, o que podemos retirar é que o motorista do VQ não interrompeu a sua prestação laboral no período da privação do uso e não que, nesse período, a Recorrida não teve que lhe pagar – ou que não lhe pagou – a correspondente retribuição.
O que resta é, portanto, a associação do concreto segmento impugnado à paralisação do veículo, podendo, assim, transmitir a ideia – que à luz da prova produzida seria errada – de que houve aqui um concreto dano da Recorrida, consubstanciado na continuação do pagamento ao motorista do VQ sem o recebimento da correspondente prestação de trabalho. Não parece que tenha sido isto que a Recorrida alegou na petição inicial (tanto assim que focou a sua pretensão na estrita privação do uso do veículo), nem o que esteve na mente da Exma. Sra. Juíza de Direito quando redigiu a fundamentação de facto, o que explica a aporia que notamos na motivação – no mais, bem sustentada – e se compreende por também não ter considerado outro dano para além daquele que foi reclamado pela Recorrida.
Deste modo, em benefício da clarificação, estando-se perante um segmento que se apresenta como espúrio, procede a impugnação, com a eliminação, do ponto 16 do rol dos factos provados, do segmento impugnado. Em consequência, aproveitando também para eliminar expressões de teor conclusivo, como são as da 1.ª parte (“prejuízo decorrente da imobilização”), a redação do ponto 16 passa a ser a seguinte: “A autora, durante esses 19 dias, não utilizou a viatura na sua atividade comercial.”
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3).2. Antes de avançarmos para a segunda questão, impõe-se suprir uma omissão na fundamentação de facto da sentença recorrida, de modo a que esta reproduza toda a realidade adquirida na ação que é necessária ao correto enquadramento jurídico da causa, assim se observando o disposto no art. 607/4, ex vi do art. 666 do CPC.
Referimo-nos ao teor das cláusulas do contrato de aluguer do veículo VQ, cuja celebração foi dada como provada no ponto 1. do rol dos factos provados.
Assim, acrescenta-se a esse ponto que, no escrito em que ficaram plasmadas as declarações das partes que compõem esse contrato, consta: “Cláusula 2.ª – Prazo do contrato: Este contrato é celebrado pelo prazo de 41 meses, tendo o seu início em 19.11.2018 e termo a 27.04.2021. (…) / Cláusula 3.ª – Número, periodicidade e montante dos alugueres: Número de alugueres: 41 / Periodicidade: mensal / Valores dos alugueres: 41 x € 600,00 (…) Ao valor do aluguer acresce IVA à taxa normal em vigor”, tudo conforme documento 1 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
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2).1. Passamos para a segunda questão.
Está aqui em causa o montante do dano da privação do uso do veículo pesado de mercadorias VQ no período de 19 dias subsequente ao acidente dos autos, dano esse que, como escrevemos, a Recorrida tem direito a imputar na esfera jurídica da Recorrente com arrimo no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.
Está aqui em causa o denominado dano da privação do uso, acerca do qual se notam diferenças de entendimento, tanto na doutrina como na jurisprudência, do que é exemplo paradigmático STJ 17.11.2021 (6686/18.2T8GMR.G1.S1), António Barateiro Martins, onde, por maioria, se entendeu que a “ilícita privação do uso de um prédio rústico (um campo de cultura arvense e de regadio) configura, só por si, enquanto prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar tal bem, um dano autónomo. Dano este que é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante o período de privação.”
A controvérsia centra-se na questão de saber se a simples privação do uso de um bem integra um dano a se, como tal ressarcível, ainda que não origine uma verdadeira diferença patrimonial para o lesado.
Enquanto alguns arestos exigem do lesado a prova de uma repercussão negativa no acervo patrimonial, sem a qual a ação indemnizatória improcede – inter alia, STJ 12.07.2018 (875/10.6TBPVZ.P1.S1), Acácio das Neves, 04.07.2013 (5031/07.7TVLSB.L1.S1), Pereira da Silva, 12.07.2018 (2875/10.6TBPAZ.P1.S1), Acácio das Neves, 27.04.2017 (685/03.6TBPRG.G1.S1), Hélder Roque –, outros consideram que a privação do uso é, em si mesma, um dano passível de indemnização, dispensando o lesado do registo probatório do prejuízo concretamente sofrido – inter alia, STJ 12.01.2010 (314/07.6TBCSC.S1), Fernanda Isabel Pereira, 28.09.2011 (2511/07.8TACSC.L2.S1), Oliveira Mendes, 08.05.2013 (3036/04.9TBVLG.P1.S1), Maria dos Prazeres Beleza, 22.01.2013 (3313/09.2TBOER.L1.S1), Nuno Cameira, 20.01.2022 (6816/18.4T8GMR.G1.S1), Tibério Nunes da Silva, e, na jurisprudência desta Relação, o recente RG 25.02.2025 (1114/21.9T8PTL.G1), Pedro Maurício, aqui 1.º Adjunto.
Para os defensores do primeiro entendimento, sem prejuízo de, em último caso, o apuramento do quantum ressarcitório ser relegado para o esquema da equidade, sobre o lesado recai o ónus de provar o uso que fazia (e que de outro modo continuaria a fazer) do bem de cujo gozo foi privado por ato ilícito de terceiro – ou seja, o ónus de provar a “frustração de um propósito, real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante” (STJ 06.05.2008, 08A1389), Sebastião Póvoas. Na ausência dessa prova, a ação indemnizatória está condenada ao insucesso.
Existe ainda uma posição intermédia que, rejeitando embora um dano in re ipsa, assente na mera intervenção ilícita sobre a propriedade alheia, admite que o onus probandi do lesado possa ser aliviado mediante o recurso a presunções e a máximas da experiência e razoabilidade humana (RC 16.03.2016, 288/14.0T8LRA.C1, Carlos Moreira).
A mesma divergência ocorre na doutrina: autores como Mafalda Miranda Barbosa (Lições de Responsabilidade Civil, Cascais: Princípia, 2017, p. 337), Rodrigo da Guia Silva, (“Aspetos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso”, Revista de Direito do Consumidor, Ano 27, Vol. CXV, 2018, página 284), Paulo Mota Pinto (“Dano da Privação do Uso”, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 8, Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006/2007, p. 266-267), consideram que apenas a impossibilidade de satisfazer uma necessidade concreta é atendível para efeitos indemnizatórios; outros, como Júlio Gomes, “O dano da privação do uso”, Revista de Direito e Economia, separata (1986), pp. 169-239, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 15.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 333, e António Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Coimbra: Almedina, 2001, pp. 33 e 34, consideram que “o simples uso constitui uma vantagem suscetível avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”; Daniel Bessa de Melo (Do problema do dano no ilícito da privação do uso, Revista de Direito da Responsabilidade, ano IV, 2022, pp. 873-905), aderindo àquele primeiro entendimento, considera, todavia, que a prova do dano decorrente da privação do uso, cujo ónus recai sobre o lesado,  pode ser facilitada a partir de ilações probatórias relacionadas com a utilidade económica do concreto bem em causa.
No caso vertente, como frisámos em II., não há que tomar partido nesta vexata quaestio, uma vez que está já acertada a existência de um dano indemnizável, questionando-se apenas, nesta sede recursiva, o montante em que o mesmo foi fixado.
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2).2. Diz o art. 483/1 do Código Civil[2] que “[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Havendo obrigação de indemnizar, como se concluiu já, em termos definitivos, haver no caso de que nos ocupamos, o respetivo devedor fica obrigado a “reparar a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, conforme proclama o art. 562.
À primeira vista, parece haver uma contradictio in terminis: como reconstituir uma situação que, na verdade, nunca existiu, é meramente hipotética, e que, como tal, não pode ser reconstituída? Assim, o que nos parece que o legislador quer dizer é que, na responsabilidade civil, a reconstituição em espécie deve prevalecer sobre a restituição por equivalente, estabelecendo este como o princípio geral da indemnização. Neste sentido, Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, pp. 576-577). De modo diferente, Fernando Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, reimpressão, Coimbra: Almedina, 1995, pp. 407-408) entende que a norma “tem o alcance de definir o círculo máximo dos prejuízos reparáveis, que são todos aqueles para os quais o facto lesivo foi condição sine qua non, com a consequente exclusão dos danos que teriam ocorrido, ainda que o facto se não tivesse dado.”
O referido princípio geral da indemnização é reafirmado no n.º 1 do art. 566, que diz que “[a] indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.”
Como se constata, há casos em que a dita reconstituição natural, que tem como referência o dano real – isto é, a “expressão física da lesão verificada” (Henrique Sousa Antunes, “Art. 566.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2018, p. 566) –, cede, perante o seu equivalente pecuniário, em determinadas situações, tendo em conta o interesse do credor, como seja quando a sua realização se apresente como impossível, objetiva ou subjetivamente (arts. 790 e 791).
É o que sucede, pela própria natureza das coisas, quando esteja em causa a privação do uso de um objeto durante um determinado período de tempo, pois, como é evidente, o tempo passado não pode ser repetido.
O referido equivalente pecuniário é aferido segundo a teoria da diferença que, grosso modo, consiste na subtração da situação pecuniária em que se encontra o lesado e a situação em que ele estaria na ausência de danos, tomando como referência a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, que é a do encerramento da discussão (art. 611/1 do CPC). Faz sentido que assim seja: o encerramento da discussão é o limite a partir do qual as partes deixam de estar autorizadas a invocar no processo factos supervenientes que sejam constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito ou direitos exercidos na ação, cf. art. 588/1 do CPC.[3]
A referida operação aritmética pressupõe, todavia, uma tarefa prévia, que pode assumir grande complexidade, dependente como está de valorações acerca das diversas funções que o instituto da responsabilidade civil é chamado a desempenhar, como seja, por exemplo, a da relevância negativa da causa virtual, e, bem assim, a da dimensão finalística da indemnização em dinheiro e dos seus corolários, como a proibição do enriquecimento do lesado.
Essa complexidade pode ainda ser maior quando não seja possível averiguar o valor exato dos danos, hipótese em que o tribunal deve julgar “equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, como resulta do disposto no n.º 3 do art. 566.
Repare-se que se, por um lado, a norma acabada de citar admite que a indemnização seja fixada pelo tribunal de acordo com a equidade, por outro, estabelece que tal apenas deve ocorrer quando não seja possível averiguar o valor exato dos danos. Se este último pressuposto não estiver verificado, o tribunal terá de relegar para ulterior liquidação o montante da indemnização devida. Compreende-se, assim, que se escreva, em STJ 3.06.2014 (04B1447), Neves Ribeiro, que “não é configurável, nem necessário, o recurso à equidade, quando há elementos objetivos determináveis para averiguar o valor exato dos danos (…). A diferença patrimonial (…)  é suscetível de determinação exata, sem necessidade de recurso ao critério, mais aleatório e menos objetivo, do cálculo equitativo da indemnização devida ao lesado. (…) Não se pode dizer que houve um fracasso da prova da sua existência, obstando por isso a que ela (a prova) se reabra em futuro processo. O que se pode dizer é que, verificada a existência desses danos, podem surgir melhores elementos de prova relativamente à sua quantificação, não devendo ser fechada essa possibilidade.”
O que antecede assume importância quando se considere, como se considerou na sentença recorrida, que a privação do uso de um bem de que se é proprietário é indemnizável, ainda que não seja feita prova de um qualquer valor económico negativo associado a danos emergentes e a lucros cessantes. O que está em causa em tais situações é, portanto, (apenas) uma violação do conteúdo patrimonial do direito de propriedade – mais concretamente, na sua dimensão de jus utendi (cf. art. 1305). Não haverá, então, forma de liquidar o valor exato do dano, o que funciona como o “Abre-te Sésamo” para o julgamento segundo a equidade, em função das circunstâncias do caso concreto. É isto que recorrentemente é afirmado na jurisprudência, podendo ver-se, inter alia, RP 07.07.2008 (0852224), Anabela Luna de Carvalho, RP 4.11.2008 (0824890), Rodrigues Pires, RP 15.03.2010 (1070/04.8TBMDL.P1), Maria de Deus Correia, RP 8.06.2010 (3110/07.0TBVFR.P1), Vieira e Cunha, RP 6.07.2010 (356/08.7TBCNF.P1), RG 7.11.2019 (15/18.2T8AMR.G1), Rosália Cunha, RG 17.12.2020 (374/18.7T8PVL.G1), Maria Cristina Cerdeira, RC 9.11.2021 (1434/10.2T8CVL.C1), Mário Rodrigues da Silva, RC 8.05.2019 (43/18.8T8TBU.C1), Isaías Pádua, RL 27.02.2014 (889/11.8TBSSB.L1-6), Carlos de Melo Marinho, e RL 20.12.2017 (1817/16.0T8LSB.L1-2), Ondina Carmo Alves.  No mesmo sentido, Daniel Barbosa de Melo (loc. cit., pp. 891-892) escreve que “[a] assumindo-se, contrariamente ao que defendemos, que a privação do uso é em si um dano, a equidade é o único critério que permite encontrar o valor concreto dessa privação.”
Repare-se que, em todos estes arestos estiveram em apreciação situações em que o lesado era proprietário do bem de cujo uso foi privado, o que permitiu que toda a construção jurídica assentasse na violação do direito de propriedade na apontada dimensão.
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2).3. Isto dito, centremos agora a atenção na sentença recorrida, para destacar que, na fundamentação do segmento decisório colocado em causa no recurso, a 1.ª instância, depois de ter declarado a sua adesão ao entendimento “maioritário” de que a “simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação”, uma vez que “impede o seu dono [do bem] do exercício dos direitos inerentes à propriedade”, considerou-se que, no caso, tendo ficado privada “de utilizar o veículo ..-VQ-.. durante um período de 19 dias”, a Recorrida sofreu “um prejuízo diário de € 253,59, conforme tabela resultante de acordo celebrado entre a ANTRAM com a APS.” Acrescentou-se que, em qualquer caso, sempre ficou demonstrado que “a Autora teve de utilizar outros meios de transporte para continuar a laborar, bem como teve que manter o pagamento referente ao contrato junto como doc. 1 com a petição inicial (…)” e, mais à frente, que não tendo sido apurados “gastos alguns[,] mas apenas que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações”, a “medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade”. Concluiu-se que, “recorrendo aos critérios jurisprudenciais que têm vindo a ser seguidos em casos como o dos presentes autos”, “deve ser fixado o valor total de € 4 818,21 (ou seja, 19 dias x € 253,59).”
Há aqui, salvo o devido respeito, que é elevado, evidentes saltos lógicos, contradições e equívocos.
Em 1.º lugar, uma contradição in terminis: ao mesmo tempo que se afirmou que não há como quantificar o valor exato dos danos, com o consequente recurso à equidade, afirmou-se, também, que o prejuízo foi de € 4 818, 21, por estar assim quantificado na dita “tabela resultante de acordo celebrado entre a ANTRAM com a APS.”
Em 2.º lugar, aplicou-se esta tabela de uma forma automática, sem se questionar a sua natureza e a verificação dos respetivos pressupostos.
A este propósito, tudo indica – e recorremos a esta expressão pois aos autos apenas foi junta a tabela e não o “acordo” em que ela se insere – tratar-se da convenção celebrada entre as referidas associações que é descrita em RC 5.03.2024 (1492/22.2T8LRA.C1), Maria João Areias, nos seguintes termos: “Quanto ao “Acordo de paralisação Antram/APS, em vigor entre as partes, as respetivas cláusulas configuram regras válidas para a fixação de uma indemnização por acordo entre as partes – constituem meios de promover e agilizar a fixação amigável da indemnização, prescindindo do recurso aos tribunais, mediante o estabelecimento de critérios objetivos de cálculo, quer relativamente ao tempo de paralisação a considerar, quer ao montante diário da compensação.”
A ser assim, estaremos perante um instrumento de natureza convencional de liquidação antecipada do dano, desempenhando uma função semelhante à cláusula penal ressarcitória no domínio da responsabilidade civil contratual.
Não suscitando dúvida que a matéria está na disponibilidade das partes, afigura-se-nos, porém, que tal instrumento tem o seu âmbito de aplicação limitado à sede pré-contenciosa, quando haja acordo entre o lesado e a seguradora quanto à obrigação de indemnizar o dano da privação do uso, não sendo, por qualquer forma, vinculativo para o tribunal. Isto mesmo é afirmado no citado RC 5.03.2024, onde se degrada a relevância de tal acordo a mero fator de referência.
De qualquer modo, sempre seria caso para dizermos que esse acordo – não demonstrado nos autos, percute-se – não é fonte de obrigações para a Recorrente no confronto com a Recorrida, posto que nenhuma delas interveio nele. Não suscita qualquer dúvida que apenas quem figure num contrato como credor pode exigir do respetivo devedor a realização da prestação debitória e, bem assim, a indemnização decorrente do seu incumprimento. Em contrapartida, a obrigação só vincula o devedor. Só o devedor deve cumprir. Tudo isto decorre de um dos princípios basilares do direito das obrigações: o da relatividade dos contratos, entre nós consagrado no art. 406/2 do Código Civil.[4]
Ainda que fosse possível retirar do facto de o acordo ter sido celebrado entre associações representativas dos setores de atividade em questão (transporte rodoviário de mercadorias e seguros) uma forma indireta de vinculação das suas associadas, sempre teríamos de contrapor que não ficou demonstrado – nem sequer foi alegado – que a Recorrente é associada da APS e que a Recorrida é associada da Antram.
Em 3.º lugar, ao contrário do que parece ter sido considerado, não ocorreu qualquer lesão do direito do direito de propriedade da Recorrida sobre o VQ, pela simples razão de que tal direito não existia na esfera jurídica desta. Na verdade, como também foi afirmado, a Recorrida, enquanto locatária, era mera titular de um direito ao gozo do VQ. Foi esse direito que, na verdade, foi atingido pelo facto gerador da responsabilidade civil assacada à Recorrente.
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2).4. As considerações acabadas de fazer permitem-nos concluir, a um tempo, que o recurso à dita tabela para a quantificação do dano da privação do uso não tem qualquer suporte, constituindo um desvio relativamente ao critério legal a que o tribunal deve obediência, o que implica a conclusão de que a decisão recorrida enferma do erro de direito que lhe foi imputado, e, a outro, que, na verdade, a Recorrida sofreu um concreto dano emergente e que o valor exato deste pode ser apurado.
Com efeito, do facto de a Recorrida ser locatária do veículo pode retirar-se que estava obrigada a pagar à respetiva locadora uma quantia que era contrapartida pela cedência que esta lhe fez do respetivo uso – o denominado aluguer. Afinal, a locação, que se diz aluguer quando tenha como objeto mediato uma coisa móvel (art. 1023), é definida como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição” (art. 1022). Entre as duas obrigações – proporcionar o gozo de uma coisa e pagar a retribuição – existe o nexo de reciprocidade que é característico dos contratos sinalagmáticos, de tal modo que ficamos habilitados a dizer que o valor pecuniário do gozo da coisa locada é definido pelo valor pecuniário do aluguer convencionado.
Deste modo, se o locatário for temporariamente privado do gozo da coisa, por facto imputável a terceiro, e não proceder, com esse fundamento, à resolução do contrato, ut art. 1050, a), continuando, assim, obrigado a cumprir a sua obrigação perante o locador, então parece que podemos concluir que o seu prejuízo (dano emergente) corresponde ao valor do aluguer devido pela fração de tempo da privação do gozo.
A esse prejuízo – que é o da privação do gozo – podem acrescer outros, como, por exemplo, o lucro cessante decorrente da perda de fretes que, não fosse a lesão, teriam sido realizados, com o ganho da corresponde retribuição, ou o dano emergente da obrigação de pagar a remuneração devida ao motorista habitual do veículo na hipótese de este ter ficado impedido de prestar o seu trabalho durante o período da paralisação, designadamente por a lesada não dispor de outro veículo que pudesse ser utilizado para esse efeito.
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2).5. Como corolário do que antecede, impõe-se afirmar que o “valor exato” do único dano que, no caso, resultou provado – a privação temporária do uso do VQ – pode ser apurado, o que exclui a possibilidade de recurso à equidade.
Na verdade, sabendo que o aluguer do VQ estava fixado num montante pecuniário mensal de € 600,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, podemos concluir, através de uma regra de três simples, que o prejuízo foi, afinal, de € 467,40, inferior, portanto, ao montante indemnizatório por que a Recorrente pugnou nas conclusões (€ 900,00), que desempenham em sede de recurso função equivalente à do pedido na petição inicial.
Em decorrência do princípio do dispositivo “na vertente relativa à conformação objetiva da instância” (Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 737), este Tribunal ad quem apenas pode julgar procedente ou improcedente o pedido tal como este foi deduzido pela Recorrente, assim respeitando a sua vontade, mesmo que outros efeitos jurídicos equivalentes, porventura mais acertados, pudessem ser considerados e impostos à Recorrida. O âmbito da jurisdição que a lei lhe atribui está desta forma limitado. Resta, portanto, concluir pela procedência do recurso, com a fixação do montante da indemnização pelo dano da privação do uso em € 900,00.
Não estando também questionado o referente temporal da obrigação de indemnizar este dano, mantém-se o que, a esse propósito, foi definido pelo Tribunal a quo – ou seja, são devidos juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação da Recorrente e até efetivo e integral pagamento.
***
3). Vencida, a Recorrida deve suportar as custas do presente recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso procedente e, em consequência:
Revogam a sentença recorrida na parte impugnada;
Em substituição, condenam a Ré a pagar à Recorrente a quantia de € 900,00 (novecentos euros), a título de indemnização pelo dano da privação do uso do veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-VQ-.. no período discriminado no ponto 15 da fundamentação de facto da sentença recorrida, consignando que, em tudo o mais, mantém-se o que foi decidido na sentença recorrida;
Condenam a Recorrida no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
*
Guimarães, 20 de fevereiro de 2025

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães
Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
Maria João Marques Pinto de Matos


[1] Disponível, como os demais indicados, em www.dgsi.pt.
[2] Diploma ao qual pertencem as disposições legais citadas sem menção expressa da respetiva proveniência.
[3] Deste modo, apenas é lícito discutir se o momento do encerramento da discussão se refere apenas à primeira instância ou também à segunda. De facto, havendo recurso para a Relação, alguma doutrina tem entendido que o art. 611/1 é compatível com a consideração pelo tribunal ad quem de factos supervenientes, desde que verificados até ao encerramento da discussão em segunda instância, que corresponde ao termo do prazo para apresentação de alegações, respeitantes à matéria apreciada em recurso e suscetíveis de serem provados pelos meios de prova admissíveis nessa sede (cf. Isabel Alexandre, Modificação do Caso Julgado Material Civil por Alteração das Circunstâncias, reimpressão, Coimbra: Almedina, 2021, pp. 374 e ss. e 414-416).
[4] Reconhecem­‑se, todavia, pelo menos, cinco limites à relatividade das obrigações e contratos, que têm assento legal claro (como o próprio art. 406.º/2 ressalva): (i)) O contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e ss.); (ii)) os contratos com eficácia real[4]; (iii)) a impugnação pauliana e o regime da impugnação dos atos praticados pelo insolvente, antes da declaração da insolvência[4]; (iv)) o abuso do direito (art. 334.º); (v)) a proibição de concorrência desleal. Além desses cinco limites à relatividade de eficácia, que têm consagração legal evidente, alguma da doutrina clássica, em especial Antunes Varela (Das obrigações em Geral, I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, pp. 172 e 174-175), ainda defende a tutela do credor contra terceiros nos casos chamados de violação da titularidade do crédito.