Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3081/21.0T8BCL-A.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTA BANCÁRIA
NORMAS COMUNITÁRIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Em processo de inventário, subsequente a divórcio, que em Portugal corre termos, atento o princípio da universalidade e da unidade, segundo os quais todos os bens objecto de comunhão deverão ser partilhados no mesmo inventário, deve a conta bancária de banco estrangeiro ser incluída na relação de bens.
Decisão Texto Integral:
ACORDÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

PROCESSO 3081/21.0T8BCL-A.G1
Relatora: Raquel Rego
1º Adjunto: Sandra Melo
2º Adjunto: Fernanda Proença Fernandes

I – RELATÓRIO

Após a interessada AA apresentar reclamação quanto à relação de bens, alegando a omissão de bens que fazem parte do acervo a dividir, veio o cabeça de casal arguir a incompetência internacional do Tribunal para conhecer da titularidade e do reconhecimento como bem comum do casal.
Fundamenta-se na circunstância de a conta bancária indicada na reclamação corresponder a um banco situado em França, denominado “S...”, bem como no estatuído no artº 62º do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser objecto de uma partilha num tribunal português.
A esta excepção respondeu a interessada mulher, ora recorrida, pugnando pela competência internacional dos tribunais portugueses, com os fundamentos que se colhem da sua douta resposta e que aqui se dão por reproduzidos e integrados.

O Tribunal a quo proferiu sobre a matéria a decisão recorrida, do seguinte teor:

«O processo de inventário destina-se a distribuir equitativamente todo o património de uma herança ou de um património comum em consequência, como é o caso, de divórcio (arts. 1788º e 1689º do Código Civil).
Tem por escopo pôr termo a uma comunhão que engloba todos os bens que dela fazem parte, independentemente do local onde se situem.
Devem ser partilhados todos os bens existentes no casal ao tempo em que a sentença transitada tenha posto termo ao casamento.
Verificando-se a competência dos tribunais portugueses de acordo com as regras processuais, devem ser relacionados e partilhados, independentemente da sua situação, todos os bens objecto de comunhão. [vide Lopes Cardoso, nas “Partilhas Judiciais”, vol. I, 3ª edição, pág. 435 e segs, particularmente pág. 446, e Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. III, 2012 - 2ª ed. Refundida, págs. 283/284.].
Conforme dispõe o art.º 62.º do Código de Processo Civil (CPC) “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Ora, in casu, segundo os elementos de conexão referidos a possibilidade de instauração da acção nos tribunais portugueses pode encontrar fundamento no princípio da coincidência (al. a) do nº 1), ou seja, quando a acção também possa ser proposta em território português “segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”.
O presente inventário para partilha de bens é decorrente do processo de divórcio que correu em Portugal logo verifica-se a competência dos Tribunais Portugueses.
Decisão:
Pelo exposto, improcede a invocada exceção de incompetência internacional».

Com ela não se conformando, interpôs recurso o cabeça de casal, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. No despacho recorrido foi decidido “improcede a invocada exceção de incompetência internacional” e, consequentemente, foi ordenado “Após, oficie à instituição bancária solicitando a referida informação”;
2. Para fundamentar a improcedência da excepção arguida, é dito no douto despacho recorrido que “segundo os elementos de conexão referidos a possibilidade de instauração da acção nos tribunais portugueses pode encontrar fundamento no princípio da coincidência (al. a) do nº 1), ou seja, quando a acção também possa ser proposta em território português “segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”.
O presente inventário para partilha de bens é decorrente do processo de divórcio que correu em Portugal logo verifica-se a competência dos tribunais Portugueses”;
3. Discordamos do douto despacho recorrido porque entendemos que deveria ter sido julgada procedente a excepção da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses;
4. Importa referir que, contrariamente ao indicado no douto despacho recorrido, o alegado “processo de divórcio” não correu em Portugal mas sim, em França;
5. Conforme é dito no requerimento inicial pela recorrida, “o casamento foi dissolvido por divórcio declarado por decisão de 06 de Fevereiro de 2019, e transitada em julgado em 06 de Março de 2019, proferida pelo BB, Notário no âmbito do Processo de Divórcio”;
6. No assento de nascimento da recorrida foi averbado em .../.../2019 que “O casamento averbado sob o nº 1 foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 06 de fevereiro de 2019, transitada em 06 de março de 2019, proferida pelo BB, Notário, República ...”;
7. O recorrente juntou aos autos, o acordo que ficou depositado no Cartório do Notário ... em ... em França o qual passou a produzir efeitos com força executiva;
8. À luz do princípio da causalidade prevista na alínea b) do artigo 62 do Cód. Proc. Civil, o facto que serve de causa de pedir ao processo de inventário é o divórcio por mútuo consentimento que ocorreu em território francês e não, em Portugal conforme foi, erroneamente, declarado no douto despacho recorrido;
9. Não obstante ter indicado no requerimento inicial, morada em Portugal, a recorrida tem nacionalidade francesa e reside, com carácter permanente, em França à semelhança do recorrente embora este tenha nacionalidade portuguesa;
10. Como se pode verificar pelo certificado de divórcio que foi junto aos autos, devidamente traduzido, recorrente e recorrida residiam em França aquando da decretação do divórcio por mútuo consentimento tal como ainda, hoje, residem;
11. Pelo despacho recorrido, constatamos que a Meritíssima Juíza “a quo” atendeu ao principio da causalidade todavia não teve em conta que o divórcio por mútuo consentimento foi decretado em França;
12. O acordo de divórcio por mútuo consentimento foi depositado no dia 7 de março de 2019, no Cartório do Notário ... em ... em França passando a produzir efeitos como se de uma escritura se tratasse («Em application des dispositions des articles 229, 229-1 et 229-3 du Code Civil, les époux déclarent expressément qu’ils ont consenti mutuellement à leur divorce, et qu’ils se sont entendus sur la rupture de leur mariage et de ses effets dans les termes de la présente convention prenant forme d’un acte sous signature privée contresigné par avocats et déposé au rang des minutes d’un notaire»);
13. Nesse acordo, recorrente e recorrida declararam serem titulares apenas e somente em França, de uma conta bancária em comum, em vias de encerramento («les époux disposent d’un compte commun en cours de désolidarisation»);
14. Quanto aos efeitos patrimoniais do casamento, recorrente e recorrida declararam não haver pagamento de tornas tendo ambos, expressamente, renunciado a toda e qualquer reclamação a esse título atribuíndo força executiva, ao referido documento («les époux déclarent n’y avoir lieu à liquidation de leur regime matrimonial, et donc n’y avoir lieu à aucun partage. Ils déclarent avoir parfaitement compris qu’une liquidation est le chiffrage de sommes qu’ils pourraient se devoir du fait de la vie commune (récompenses, créances entre époux, comptes d’administrations).
Cependant, par la présente, cette information ayant été donnée par les avocats et bien comprises par les époux, ces derniers persistent et déclarent qu’il n’y a lieu à aucune liquidation, renonçant ainsi expressément à toute réclamation à ce titre une fois que la présente convention sera dotée de la force exécutoire, tel que rappele ci-dessus »);
15. Para além da conta bancária conjunta, cada um dos interessados tinha uma conta bancária em nome de cada um tendo ambos decidido não as relacionar;
16. Entendemos que os tribunais portugueses não são competentes para a partilha do imóvel situado em Portugal nem para a partilha de quaisquer outros bens designadamente contas bancárias francesas uma vez que foi decretado o divórcio em França;
17. No que concerne às contas bancárias francesas, ao renunciar no acordo celebrado em França aquando da decretação do divórcio por mútuo consentimento, a qualquer reclamação bem como ao pagamento de tornas, não pode agora a recorrida ver integrada na relação de bens, a conta bancária pertencente exclusivamente ao aqui cabeça-de-casal;
18. O despacho recorrido violou as seguintes disposições legais do Cód. Proc. Civil: - artigos 62 b), 96, 97 nº 1 e 99 nº 1.

Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.

II – FUNDAMENTAÇÃO

O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).
Nos recursos apreciam-se questões e não razões.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório supra, acrescida da seguinte:
Requerente e Requerido foram casados entre si segundo o regime da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio declarado por decisão de 06 de Fevereiro de 2019, transitada em julgado em 06 de Março de 2019, proferida pelo BB, Notário no âmbito do Processo de Divórcio.
Tal divórcio foi averbado no respectivo assento de casamento.
O cabeça de casal, ora recorrente, apresentou relação de bens, com verba única, do seguinte teor:
«Prédio rústico denominado Leira de ... composto por lavradio situado no lugar de ..., União das Freguesias ..., concelho ... inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...55 (artigo ...66 da extinta freguesia ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...72/...».

De posse deste quadro assim delineado, importa começar por ter em mente que «O direito português segue o modelo de revisão ou reponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este» - Manual dos Recursos em Processo Civil, Amâncio Ferreira, 7ª ed., pag.155.
«Nesta linha, vem a nossa jurisprudência repetidamente afirmando que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre» - idem.
Também assim o consignou, entre muitos, o acordão do STJ de 07.07.2016, Procº 156/12.0TTCSC.L1.S1, ao dizer que «é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do S.T.J. de 1.12.1998, in BMJ n.º 482/150; 12.12.1995, CJSTJ, Tomo III, pág 156; e os acórdãos de 24/2/2015, processo nº 1866/11.4TTPRT.P1.S1, e de 14/5/2015, 2428/09.1TTLSB.L1.S1.
Ou, já no acórdão desta Relação de Guimarães, de 09.11.2018, proferido no processo 212/16.5T8PTL.G1: «Quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova.
Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
O objecto e o conteúdo da sentença recorrida constituem, por isso, os limites do objecto de recurso e, por consequência, o âmbito dos poderes de cognição do tribunal superior.
Ora, de posse destes considerandos, resulta dos autos que, em sede de audiência prévia, perante a acusação da falta de relacionação de bens, o cabeça de casal arguiu a incompetência internacional do Tribunal para conhecer da titularidade e do reconhecimento como bem comum do casal por se tratar de conta bancária de um banco situado em França, denominado “S...”, bem como no estatuído no artº 62º do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser objecto de uma partilha num tribunal português.
Foi a esta excepção assim delimitada que respondeu a interessada mulher, ora recorrida e foi também com esses limites que o tribunal a quo emitiu decisão, como decorre linearmente da respectiva fundamentação.
Trazer questões em sede de alegações que não foram invocadas na primeira instância, nem aí foram apreciadas, traduzir-se-ía na supressão de um grau de jurisdição.
Importa, então, que o Tribunal da Relação aprecie da bondade do decidido, ou seja, in casu, se, correndo termos em tribunal português inventário para separação de meações, não se pode incluir no acervo a partilhar uma conta bancária existente num banco francês.
 Trata-se de matéria que tem sido sobejamente abordada pela jurisprudência portuguesa, predominantemente em sede de inventário por morte, mas cujos traços orientadores e fundamentos têm, em geral, plena aplicação no inventário decorrente de divórcio.
Em denominador largamente comum que subscrevemos, tem-se entendido que «o princípio da unidade e universalidade da herança (ou, no caso, do património comum do casal) impõe que, no processo de inventário, sejam relacionados e partilhados todos os bens que integram a universalidade sobre a qual irá incidir a partilha, estejam eles situados em território nacional ou no estrangeiro», de que dá conta o acórdão desta Relação datado de 24.04.2012,  tirado no processo 82-B/19..., enunciando outros em igual sentido.
Esta visão encontra arrimo doutrinário em autores como Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, vol. I, 3ª edição, pág. 435 e segs) e Luís Lima Pinheiro (Direito Internacional Privado, vol. III, 2012 - 2ª ed. Refundida, págs. 283/284), aliás já citados pela Srª Juiz a quo.
Tem-se presente que no ordenamento jurídico português vigoram dois regimes de competência internacional, correspondentes ao regime comunitário e ao regime interno, sendo certo, todavia, que quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, este prevalece sobre o regime interno por ser de fonte de lei hierarquicamente superior e pelo primado do direito europeu.
Daí que as regras de competência internacional dos tribunais portugueses não se esgotem na previsão dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil.
Pode, então, afirmar-se que apenas em face de normas comunitárias que vedem a jurisdição aos tribunais nacionais – no caso, o português – se concluirá pela incompetência internacional destes; em concreto importa averiguar de existe regulamento comunitário que impeça a competência dos tribunais nacionais para partilha de conta bancária em país estrangeiro.
Ora, tal como invoca a recorrida:
- o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, exclui do seu âmbito de aplicação o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões, não impondo, por isso, qualquer norma de competência relativamente às partilhas a efectuar na sequência de divórcio;
- o Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, apenas é aplicável à dissolução do vínculo matrimonial (por divórcio, separação ou anulação do casamento), não abrangendo as questões referentes às causas do divórcio, aos efeitos patrimoniais do casamento e outras eventuais medidas acessórias (cfr. considerando (8) do Regulamento).
- Finalmente, também o Regulamento 650/2012, de 4 de julho de 2012, é aplicável apenas às sucessões por morte, nos termos do seu artº 1º, aí se excluindo as questões relacionadas com regimes matrimoniais e regimes patrimoniais no âmbito de relações que a lei aplicável considera produzirem efeitos comparáveis ao casamento.
Não havendo, como se constata, norma comunitária que obste à inclusão no processo de inventário de conta bancária existente em país estrangeiro, atento o princípio da universalidade e da unidade, segundo os quais todos os bens objecto de comunhão deverão ser partilhados no mesmo inventário, deve a conta bancária de banco estrangeiro ser incluída na relação de bens.
Questão diversa e fora do âmbito do recurso, é a de saber se os valores aí depositados são, ou não, bem comum dos interessados na partilha.
Assim, concluímos como no acórdão do nosso mais elevado Tribunal, datado de 16.10.2012, procº 991/10.3TBTVD-B.L1.S1, nos termos do qual, a propósito de prédios situados no estrangeiro, consignou que « I - O princípio da unidade e universidade da partilha impõe que, em processo de inventário, todos os bens devam ser considerados na partilha, sejam situados em território nacional ou sejam situados no estrangeiro.
II - Não basta a alegação abstracta e não fundamentada da possibilidade da existência de conflito de jurisdições ou de falta de reconhecimento no estrangeiro da sentença que vier a ser proferida para determinar que num inventário realizado em Portugal, para partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, devam ser excluídos da relacionação bens situados no estrangeiro.
III - Na valoração do legislador, o problema do reconhecimento da sentença no Estado da situação dos bens não justifica qualquer desvio às soluções consagradas pelo direito de conflitos português, e muito menos justificará a incompetência dos tribunais portugueses».
Nada há a censurar à decisão recorrida.

III – DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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