Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5816/22.4T8GMR.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: DEMARCAÇÃO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O caso julgado assume uma vertente negativa de exceção e uma vertente positiva de autoridade.
A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância.
A autoridade de caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida
II - É no campo da ação de demarcação seguida à reivindicação insucedida que a vertente da autoridade do caso julgado se revela exponencialmente. Visa-se, muitas vezes, por esta via alcançar a dominialidade antes não conseguida, sendo o remédio jurídico que obsta à pretensão (já antes apreciada e decidida), precisamente, a autoridade de caso julgado.
III – Tendo em anterior ação judicial sido decidido que determinada parcela de terreno não pertence ao autor e que a vedação posta pelo réu é de manter, não pode a mesma parte em ação de demarcação querer demarcar o prédio, onde enviesadamente inclui a parcela - por esta não lhe pertencer e estar demarcada (vedada)-, por violação do caso julgado.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I- RELATÓRIO
EMP01..., S.A., intentou a presente ação contra EMP02..., LDA. Pedindo a condenação da Ré a concorrer para a demarcação das estremas dos prédios que identifica e a remover a vedação na parte em que esta abrange o prédio da Autora.

A Ré contestou arguindo a exceção de caso julgado, por já ter sido discutida em ação anterior a propriedade do terreno com a forma de polígono cuja estrema a Autora pretende demarcar e cuja vedação pretende remover.
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Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador sentença que julgou verificado o caso julgado (material), por referência à causa e decisão proferida no Proc. n.º 3322/20.... do Juízo Cível do TJ ... -J... e, por via disso, absolveu a Ré EMP02... Lda da instância quanto aos pedidos formulados na presente ação.
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Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1- O presente recurso de apelação tem por objeto a douta Sentença proferida em 06.06.2023, a qual, julgando verificado caso julgado (material), por referência à causa e decisão proferida no processo n.º 3322/20.... do Juízo Cível do Tribunal Judicial ... – J..., decidiu absolver a Ré da instância quanto aos pedidos formulados na presente ação.
2- Com o devido respeito, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento ao julgar verificada a autoridade de caso julgado, supostamente resultante da decisão proferida no mencionado processo n.º 3322/20...., pois essa força de caso julgado não abrange o objeto do presente litígio.
3- No âmbito da ação de reivindicação que correu termos sob o n.º 3322/20.... do Juízo Cível do Tribunal Judicial ... – J..., não houve qualquer diligência instrutória no sentido do conhecimento e estabelecimento das reais confrontações existentes do prédio da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...).
4- Nem houve, consequentemente, qualquer apreciação ou decisão acerca das reais confrontações existentes do prédio da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...).
5- Aliás, os pedidos formulados na ação de reivindicação que correu termos sob o n.º 3322/20.... do Juízo Cível do Tribunal Judicial ... – J..., não implicavam qualquer necessidade de julgamento e decisão acerca das confrontações do prédio da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...).
6- Não faz, pois, sentido se afirmar que o prédio da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...), tem as confrontações já definidas (e decididas) no âmbito da ação de reivindicação,
7- Quando, inclusive, tão pouco nessa ação de reivindicação ficou provada a sua real área ou dimensão, porquanto a mesma é de 4.094 m2 e não de 5.600 m2, esta última apenas resultante da informação constante do registo predial e matriz.
8- Acresce que, a parte decisória da sentença proferida no âmbito da ação de reivindicação não faz qualquer menção à composição, localização e limites do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...) – prédio da Autora, ora Recorrente.
9- De igual modo, a parte decisória da sentença proferida no âmbito da ação de reivindicação não faz qualquer menção à composição, localização e limites do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23, da freguesia ... (...) – prédio da Ré, ora Recorrida.
10- Não há, pois, na parte decisória da sentença proferida no âmbito da ação de reivindicação qualquer julgamento ou decisão quanto à composição, localização e limites dos prédios cuja demarcação se pretende concretizar com a presente ação de demarcação.
11- Os antecedentes lógicos que constituem a fundamentação e que conduziram á decisão no âmbito da ação de reivindicação, nomeadamente os elementos probatórios que orientaram a fixação da matéria provada (in casu, as certidões predial e matricial), permitem concluir que o objeto da ação de reivindicação não se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto da presente ação de demarcação.
12- Afigura-se, assim, não haver qualquer possibilidade de vir a existir contradição entre a decisão proferida no processo de reivindicação e a decisão a proferir quanto aos pedidos feitos na presente ação de demarcação.
13- A presente ação de demarcação tem todo o cabimento e utilidade, porquanto apesar de definida a titularidade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43, da freguesia ... (...), não se encontra apurada a sua composição, localização e limites.
14- Face ao exposto, o Tribunal a quo errou na apreensão do que se mostra alegado e pedido na presente ação, enfermando a Sentença recorrida de erro de julgamento e violação, por errada interpretação e aplicação, dos artigos 577º, alínea i) e 621º do CPC, relativamente à verificação da exceção de autoridade de caso julgado.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso com a revogação da decisão recorrida.
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A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos Recorrentes, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).
No caso vertente, a única questão a decidir é a de saber se não se verificam os requisitos da autoridade de caso julgado.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. A Autora dirigiu a presente ação contra a Ré a 02.11.2022.
2. Por esta, a Autora peticionou a condenação da Ré «a concorrer para a demarcação das estremas dos prédios id. em 1 e 14 da presente peça e a remover a vedação na parte em que esta abrange o prédio da Autora (…)»
3. Na presente ação e para a procedência de tais pedidos, a Autora apresentou a seguinte causa de pedir:
« 1.º O A. é proprietário e legítimo possuidor do prédio rústico sito no Lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...29, da freguesia ... (...), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...35.º. (…)
2.º Por o ter adquirido por compra a “EMP03..., Ld.ª”, por escritura pública outorgada a 28.12.2018 (…)
3.º (…)
4.º O prédio do A. confronta, nos registos predial e matricial, a norte e poente com estrada, a sul com estrada e AA e a nascente com AA, sendo que na verdade a secção mais a norte da estrema nascente confronta, como se verá infra, com a R.
5.º Por sentença de 7.7.2021, foi julgada parcialmente procedente a ação que, sob o n.º 3322/20.... correu termos por este Insigne Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., e a R. “EMP02...” condenada a reconhecer que a A. “EMP01...” é a proprietária do prédio identificado no artigo ....º da presente peça (…)
6.º Embora tal ação tenha dirimido o direito de propriedade sobre o prédio, não se pronunciou, conquanto não foi objeto do pedido, quanto à sua localização, composição ou às suas estremas.
7. º Na douta contestação oportunamente apresentada naqueles autos, a R. alegou ser proprietária de uma série de prédios, rústicos e urbanos, localizados na mesma freguesia ... (...) (…)
8. º Alegou a R. ser proprietária dos seguintes: a) o prédio rústico composto de terreno a mato, com a área de 4.591m2, situado no lugar ..., da União de Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição número ...23 da freguesia ... (...), inscrito na matriz predial rústica da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...05, o qual teve a sua origem no artigo ....º da matriz predial rústica da extinta freguesia ... (...); (…)
9.º Mais negou a R. estar a ocupar o terreno identificado no artigo ....º da presente peça e asseverou que os terrenos por si vedados e ocupados são os referidos no artigo que antecede.
10.º Contudo, o certo é que o R. vedou o terreno para além da estrema que separa os seus terrenos do da A., invadindo este.
11.º Terminada a ação, e como já supra se adiantou, ficou definida a titularidade do direito de propriedade do A. sobre o seu prédio, mas não a composição, localização e estremas deste face aos prédios da R.
12.º Neste enquadramento, promoveu a A. pela realização de um levantamento topográfico, com o fim de determinar a concreta localização e limites do terreno da A.
13. º Levantamento que confirmou a localização do terreno a confrontar a sul e poente com estrada, a nascente parte com AA e parte com o que será um dos prédios da R..
14.º Designadamente, o prédio identificado supra na alínea a), prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 (…)
15.º Tanto no registo predial como na matriz predial, a área indicada para o prédio é de 5.600 m2.
16.º Do levantamento topográfico resultou que á área medida do prédio é de 4.094 m2.
17. º A estrema nascente do prédio da A. confronta, na sua parte mais a sul, com AA, e na sua parte mais a norte, com o prédio da R.
18.º E, por sua vez, a estrema poente do prédio da R. confronta com o prédio da A.
19.º O R. vedou o prédio para além da linha divisória entre este e o da A., tendo “invadido” o prédio identificado no artigo ....º da presente peça.
20. º Resultando ostensivamente controvertida a localização da linha divisória entre os dois prédios, identificados nos artigos 1.º e 14.º supra.»
4. Por sua vez, no Proc. n.º n.º 3322/20...., a Autora, nessa mesma qualidade, deduziu o seguinte pedido, contra a aqui Ré, também Ré nessa acção: «deve ser a R. condenada: Reconhecer o direito de propriedade da A. nos moldes em que vem descrita na Conservatória do Registo Predial n.º ... (inscrito a 29/01/2002) e no artigo matricial ...35º (inscrito em 2001), com a área total de 5.600 m2 a confrontar a norte, sul e poente com estrada e a nascente com AA ( o único confrontante) na Conservatória do Registo Predial e a nascente e sul na Caderneta Predial Urbana; Proceder à restituição do imóvel propriedade da A., que indevidamente vedou e confundiu com o seu imóvel descrito na Conservatória do Registo predial sob o n.º ...23 (inscrito a 16/07/2004), com o artigo matricial ...37º, abstendo-se da prática de qualquer acto que lhe provoque danos ou diminua o valor, tudo nos termos e com as legais consequências.»
5. Nesse Proc. n.º 3322/20...., foi proferida sentença que julgou «a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e consequentemente declara ser a A. a proprietária do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...29 da freguesia ... (...) e inscrito na matriz sob o art. ...35.º, absolvendo a R. do mais peticionado.»
6. Por Acórdão proferido nesse Proc. n.º3322/20...., foi fundamentada a matéria de facto provada e não provada, no que importa, do seguinte modo: «Da audição total e conjugada dos depoimentos das duas referidas testemunhas não resulta de forma minimamente segura e consistente que o imóvel da autora corresponde ao polígono irregular que se encontra vedado. Pelo contrário, (…).»
7. No Proc. n.º 3322/20.... foram dados como provados a seguinte factualidade:
« a) Encontra-se registado a favor da A., (…)por compra a EMP03... Lda., o direito de propriedade incidente sobre o prédio rústico (…) composto por terreno a mato e com a área registada de 5.600 m2, a confrontar (…) do nascente com AA, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...29 da freguesia ... (...) (…).
b) Por escritura pública outorgada aos 28.12.2018 a Autora declarou comprar à EMP03... Lda., que declarou vender (…)o prédio identificado em a);
c) No ano de 2015 a R. procedeu à vedação de uma área na qual se inclui um trato de terreno com um formato de um polígono irregular, melhor identificado no requerimento remetido aos autos pela A. em18.01.2021, que confronta do norte, do sul e do poente com caminhos públicos e do Nascente com AA e a própria R.;
d) No ano de 2018 a A. procedeu à limpeza do trato de terreno com o formato de um polígono irregular mencionado em c).»
8. E como matéria dada como não provada, no que importa: « b) Que o prédio descrito em 1.1.a) corresponda ao trato de terreno com o formato de um polígono irregular mencionado em 1.1.c).»
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3.2. O Direito
3.2.1. Da autoridade de caso julgado
Antes da presente ação, a Recorrente instaurou contra a Recorrida uma outra ação judicial na qual pedia o reconhecimento da propriedade do prédio descrito na CRP sob n.º ...43, e o reconhecimento que nele se integrava a parcela em forma de polígono que fora vedada pela Ré. Mais pedia que a Ré fosse condenada a retirar a vedação que colocou na parcela com formato poligonal.
Nessa ação (Proc. n.º 3322/20....) foi expressamente discutida a propriedade sobre a parcela de terreno vedada pela Recorrida, que afirmava pertencer-lhe por fazer parte do seu prédio descrito sob o n.º ...23.
A final foi reconhecido o direito de propriedade da Recorrente sobre o prédio descrito na CRP ...43, mas não que a parcela em discussão o integrava e, consequentemente, não foi a Recorrida condenada a retirar a vedação.
Esta decisão transitou em julgado.
Nesta ação, peticionando a demarcação do seu prédio descrito na CRP n.º ..., com o prédio pertença da Recorrida descrito na CRP n.º 623, pretende a Recorrente que a Recorrida concorra para a definição das estremas dos prédios e remova a vedação na parte em que esta abrange o seu prédio.
Tendo em conta que na ação n.º 3322/20.... já se discutiu a propriedade do prédio, mais concretamente da parcela que a Autora nesta ação volta a dizer pertencer-lhe (e que pretende demarcar com o dos Réus), ali se tendo decidido, por decisão transitada em julgado, que tal parcela não é da Recorrente, a questão que se coloca é a de saber se tal é prejudicial à pretensão de demarcação da Autora, se haverá caso julgado, na sua forma de autoridade de caso julgado.
Transitada em julgado uma sentença ou despacho saneador que decida do mérito de uma causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (artigo 619º, do Código de Processo Civil).
Trata-se do efeito de caso julgado material: a definição dada à relação controvertida não pode ser alterada em qualquer nova ação pois o caso fica julgado e torna-se incontestável.
Esse efeito é ditado por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu.[i]
O caso julgado assume uma vertente negativa de exceção e uma vertente positiva de autoridade.
A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância.
A autoridade de caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida[ii].
Enquanto na exceção do caso julgado o caso julgado material garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente, mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica[iii], tendo por fim obstar que o órgão jurisdicional da ação subsequente seja colocado perante a situação de contradizer ou de repetir a decisão transitada’, representando para o tribunal comando imperativo de não proferir decisão idêntica ou diversa da decisão transitada, na autoridade do caso julgado o instituto representa ‘o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente[iv]’.
A exceção implica a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. A autoridade não. Como se escreveu no acórdão do STJ, de 26/02/2019 "exigir essa tríplice identidade equivaleria a matar esta figura; a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva[v].
Em suma, e detendo-nos na vertente da autoridade, o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir. Neste caso, será apreciada e definida a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão[vi].
Revertendo ao caso em apreço, a pretensão da Recorrente à demarcação, parte do pressuposto de que é proprietária da parcela com formato poligonal, que afirma integrar o seu prédio descrito sob o nº ...43, e no qual a Recorrida colocou uma vedação que aquela quer que seja retirada.
O exercício do direito de demarcação pressupõe a titularidade do direito de propriedade da Recorrente sobre a parcela do prédio a demarcar.
Porém, como muito bem se evidencia na decisão recorrida, na anterior ação instaurada, já se decidira não se reconhecer o direito de propriedade da Recorrente sobre tal parcela. É, pois, a eficácia dessa decisão que a Recorrente está a tentar evitar, contornando a realidade jurídica emergente da reivindicação, com uma nova configuração predial através da demarcação.
Sucede que, por força da autoridade de caso julgado formado na primeira ação, não pode voltar a discutir-se a quem pertence a parcela de terreno e em que extensão, tendo tal questão ficado definitivamente decidida naquele processo e impondo-se à Recorrente.
Havendo uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os objetos das duas ações e uma vez proferida decisão transitada em julgado no processo n.º 3322/20...., ela impõe-se à presente ação, impedindo que nesta possa voltar a apreciar-se a mesma questão que já naquela se apreciou, impondo-se, o a esse respeito decidido naquele processo, por força da autoridade do caso julgado.
É no campo da demarcação seguida à reivindicação insucedida que a vertente da autoridade do caso julgado se revela exponencialmente.
Visa-se, muitas vezes, por esta via alcançar a dominialidade antes não conseguida, sendo o remédio jurídico que obsta à pretensão (já antes apreciada e decidida), precisamente, a autoridade de caso julgado.
Tem a jurisprudência se pronunciado abundantemente sobre esta questão e sempre em sentido uniforme, sendo paradigmático o acórdão desta Relação de Guimarães de 15/03/2011[vii], que decidiu que "tendo a parte decaído, em acção de reivindicação anterior, no direito a certa faixa de terreno, não pode depois vir propor uma acção de demarcação onde está implícito que tal faixa integra o seu prédio” e também o acórdão da Relação de Coimbra de 06/03/2012[viii], que decidiu que "Porque o direito de propriedade é pressuposto do direito de demarcação, não reconhecido aquele em acção de reivindicação de certa parcela de terreno por sentença transitada em julgado, a força e autoridade do caso julgado impede seja proposta nova acção, agora com a pretensa finalidade de demarcação da parcela”.
Dizer-se, como diz a Recorrente, que em parte alguma da anterior decisão foi dada como provada a extensão, localização e confrontações do prédio, é argumento que não colhe. Além de não corresponder integralmente à verdade, estamos numa e noutra ação a tratar sempre da mesma e única parcela independentemente da diferente incidência identificativa a que se recorra na identificação do prédio.
Na ação de demarcação, é pressuposto não haver dissídio quanto à propriedade, existindo discrepância apenas quanto à linha divisória dos prédios.
Ora, a parcela de terreno de que a Recorrente se intitula proprietária e quer demarcar do prédio da Recorrida, mais não é que a parcela já decidida não lhe pertencer. E tal encontra a sua estrema já perfeitamente demarcada, pois que se encontra vedada.
E assim sendo, como bem se decidiu, não se verificam os requisitos para a demarcação, visto que foi já decidido não pertencer à Recorrente a faixa de terreno que se quer demarcar.
Improcede, pois, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O caso julgado assume uma vertente negativa de exceção e uma vertente positiva de autoridade.
A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância.
A autoridade de caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida
II - É no campo da ação de demarcação seguida à reivindicação insucedida que a vertente da autoridade do caso julgado se revela exponencialmente. Visa-se, muitas vezes, por esta via alcançar a dominialidade antes não conseguida, sendo o remédio jurídico que obsta à pretensão (já antes apreciada e decidida), precisamente, a autoridade de caso julgado.
III – Tendo em anterior ação judicial sido decidido que determinada parcela de terreno não pertence ao autor e que a vedação posta pelo réu é de manter, não pode a mesma parte em ação de demarcação querer demarcar o prédio, onde enviesadamente inclui a parcela - por esta não lhe pertencer e estar demarcada (vedada)-, por violação do caso julgado.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães,

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Maria Amália Santos
2º Adj. - Des. Jorge Teixeira



[i] Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 26/02/2019, disponível em www.dgsi.pt.
[ii] Neste sentido, Lebre de Freitas in Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina p. 59.
[iii] Miguel Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), in BMJ, nº 325, p. 178.
[iv] Autor e obra citados, p. 176.
[v] Disponível em www.dgsi.pt.
[vi] Acórdão da Relação de Coimbra de 11/06/2019 disponível em www.dgsi.pt.
[vii] Disponível em www.dgsi.
[viii] Disponível em www.dgsi.