Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
77/21.5PAVNF.G1
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: CRIME DE COACÇÃO
NÃO PUNIBILIDADE
CO-AUTORIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - O crime de coação, previsto e punível pelo artigo 154º do Código Penal, protege a liberdade de decisão e de ação, consubstanciando-se no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim, sendo que constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação de outrem.
2 - Constituem requisitos objetivos do tipo em causa: que o agente constranja por meio de violência ou de ameaça com mal importante; outra pessoa a adotar um determinado comportamento; à prática de uma ação; à omissão de uma ação; a suportar uma atividade.
3 - O n.º 3 do artigo 154º do Código Penal consagra uma cláusula de não punibilidade. Trata-se de uma causa especial de exclusão da ilicitude da coação ou causa de justificação exclusivamente referida aos tipos legais de crime de coação, assente na relação meio/fim, tendo em perspetiva que o fim justifica o meio coativo, quer este consista em violência ou em ameaça de um mal importante.
4 - Concretamente, no caso previsto na al. b), 2.ª parte, a justificação da ação de constrangimento, mesmo que com recurso à violência, para impedir a prática de um facto ilícito típico, pressupõe a proporcionalidade entre o meio utilizado (a ação de coação) e o bem jurídico cuja lesão se pretende impedir.
5 - Comete o crime como coautor, e não como cúmplice, o arguido que assumiu uma postura ativa, concertada com a coarguida e com pleno domínio funcional do facto – ambos se dirigiram a casa da assistente e, atuando em conjugação de esforços e de vontades, ambos deram o seu contributo para a intimidarem, agindo sempre com esse propósito comum de a amedrontarem sob a ameaça de atentarem contra a sua integridade física e, desta forma, obrigá-la a desistir da queixa criminal que havia apresentado contra o filho de ambos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. - No processo comum n.º 77/21...., do Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, com intervenção de tribunal singular, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:
«1. Condeno o arguido AA pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de coacção, p. e p. pelos arts. 154º, n.ºs 1 e 2, 22º, 23º, e 73, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
2. Ao abrigo do disposto no art. 50º do Código Penal, suspendo a execução da pena de prisão de 4 (quatro) meses aplicada ao arguido AA pelo período de 1 (um) ano, acompanhada de regime de prova, assente em plano social de recuperação, a elaborar pela DGRSP, o qual deverá incidir na consciencialização do arguido para as consequências gravosas do seu comportamento anti-jurídico; devendo o arguido, ainda e pelo menos (e nos termos dos arts. 54º e 52º, do Código Penal), cumprir a) a obrigação de apresentação mensal ao técnico de reinserção social, que para o efeito for nomeado pela DGRSP, com vista à realização e cumprimento de tal regime; b) exercer actividade profissional durante tal período ou manter-se inscrito no centro de emprego, com vista a se empregar, caso esteja desempregado – devendo os serviços sociais de reinserção social apoiarem e fiscalizarem o arguido no cumprimento de tais obrigações (cfr. arts. 52º, n.º 4 e 51º, n.º 4, do Código Penal) – e em conformidade, serão remetidos a este processo relatórios pela DGRSP, de três em três meses.
3. Condeno a arguida BB pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de coacção, p. e p. pelos arts. 154º, n.ºs 1 e 2, 22º, 23º, e 73, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 6,00 (seis) euros, no montante global de € 600,00 (seiscentos euros).
4. Condeno os demandados civis AA e BB no pagamento, solidário, à demandante civil, CC, da quantia de € 1.000 (mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data desta decisão e até efectivo e integral pagamento; e absolvo-os do demais peticionado no pedido de indemnização civil;
(…)».

2. - Não se conformando com tal decisão, veio o arguido AA interpor recurso da decisão condenatória, formulando, no termo da motivação, as seguintes conclusões:
«1) Foi o Recorrente condenado pela prática, em co-autoria, e na forma tentada, de um crime de coação, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º, 23.º e 73.º, n.º 1 Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, acompanhado de regime de prova e, em consequência, foi condenado a pagar à Assistente, solidariamente com a co-Arguida BB, a quantia de € 1.000 (mil euros) (tudo conforme decisão proferida em 04/10/2023 para qual se remete).
2) Os pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto dada como provada, foram incorretamente julgados, por resultar das declarações da co-Arguida BB, da Assistente e dos depoimentos das testemunhas, conjugados com as regras da experiência comum, que os mesmos factos deveriam ter sido dados como não provados em relação ao Recorrente.
3) A sentença dá como provado que o Recorrente ao proferir a expressão “não vai a bem, vai a mal”, agiu em co-autoria com a Arguida BB, de forma voluntária, concertada entre si, com o propósito de amedrontar a Assistente/Ofendida sob a ameaça de atentarem contra a sua integridade física e desta forma obrigá-la a desistir da queixa criminal que havia apresentado contra o filho dos Arguidos, o que só não conseguiram por razões alheias à sua vontade.
4) No entanto, a sentença não dá como provado o facto de o Recorrente ter evitado a prática de um crime de ofensa à integridade física por parte da co-Arguida BB contra a Assistente/Ofendida.
5) Tendo sido as declarações prestadas pela Assistente/Ofendida que decisivamente convenceram o Tribunal, dada a congruência dos factos que relatou, sem recorrer, a qualquer exagero que se mostrasse eventualmente não consentâneo com as regras da experiência comum, não podia o Tribunal deixar de valorar o facto de a Assistente/Ofendida ter afirmado em audiência que o Recorrente, com a sua atitude, evitou que a co-Arguida BB a agredisse e que apenas falou uma única vez.
6) Dos factos relatados pela co-Arguida BB, pela Assistente e pelas testemunhas, apenas se retira que o Recorrente terá proferido a expressão “não vai a bem, vai a mal” e que o Arguido terá impedido a co-Arguida de agredir a Assistente.
7) A expressão proferida pelo Recorrente “não vai a bem, vai a mal” foi interpretada pela Assistente e pelas testemunhas como sendo uma ameaça. Contudo, não deixa de ser contraditório porquanto a própria Assistente admite que o Recorrente impediu que a co-Arguida BB a agredisse.
8) Conjugando estas duas atitudes do Recorrente, parece resultar que a sua intenção fosse por um ponto final à discussão e evitar que a co-Arguida ali permanecesse.
9) E se tal não se considerar, sempre se concluirá, que resulta dessa mesma prova, que no mínimo existem dúvidas de qual o sentido e o alcance que o Recorrente pretendeu ao proferir tal expressão.
10) Analisando a prova produzida em sede de audiência, parece resultar que os factos apenas ocorreram entre a co-Arguida BB e a Assistente.
11) A própria Assistente, quando perguntado se ainda se sentia intimidada pelos Arguidos, respondeu principalmente em relação à co-Arguida BB.
12) Tal declaração “não vai a bem, vai a mal”, não poderá ser valorada porque a interpretação da mesma é extremamente subjetiva, o que suscita dúvidas.
13) Impunha-se no presente caso que se atentasse no “princípio in dubio pro reo”, devendo a dúvida favorecer o Recorrente.
14) O Juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afetada pela dúvida” de forma que “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório”, Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de Inimputáveis”, pág. 54.
15) Por outro lado, forçoso é de concluir que deverá ser valorado o facto de o Recorrente ter evitado a prática de um crime de ofensa à integridade física por parte da co-Arguida BB contra a Assistente/Ofendida.
16) Do texto da decisão recorrida por si só e conjugada com as regras da experiência comum, resulta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e erro notório na apreciação da prova. Artigo 410º nº 2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.
17) Ocorreu o vício de erro notório na apreciação da prova, sendo que atentos os dados probatórios recolhidos, o tribunal de recurso poderá, diferentemente, decidir da causa. Artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP.
18) Toda a prova produzida e relevante constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, impõem decisão diversa da recorrida.
19) Os pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto dada como provada deve ser julgada não provada em relação ao Recorrente.
20) A matéria de facto dada como provada é insuficiente para concluir que o Recorrente praticou tal crime, de que vinha acusado, pelo que ocorreu o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Artigo nº 410º, nº 2, alínea a) do C.P.P.
SEM PRESCINDIR,
21) Se por mera hipótese se vier a considerar que o Recorrente praticou, o crime de que foi condenado pelo Tribunal a quo, sempre se dirá que a pena aplicada ao mesmo é exagerada.
22) De acordo com o artigo 154.º, n.º 1 do C.P., “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar atividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
23) Contudo, o facto não é punível se o agente evitar a prática de facto ilícito típico (artigo 154.º, n.º 3, alínea b) C.P.).
24) Se atentarmos à prova produzida em sede de audiência, com especial destaque para as declarações prestadas pela Assistente/Ofendida, dúvidas não há quanto ao facto de o Recorrente ter evitado que a co-Arguida BB agredisse a Assistente.
25) Também dúvidas não há que a intervenção do Recorrente foi apenas proferir uma expressão, susceptível de interpretação dúbia, e evitar um mal maior. Quanto ao mais, pouco ou nada se disse em relação ao Recorrente.
26) A expressão proferida pelo Recorrente e a atitude de ter evitado uma agressão, não podem ser interpretados de forma desassociada. E ainda que assim não se entenda, a dúvida impõem-se.
27) Razão pela qual, e por tudo o que aqui foi exposto, os factos praticados pelo Recorrente não são puníveis.

SEM PRESCINDIR,
28) Atenta toda a prova produzida em sede de audiência, ainda que se entenda que o Recorrente deva ser condenado, o que não se concebe face ao supra exposto, o Recorrente deveria ser condenado enquanto cúmplice e não como co-autor na medida em que a sua intervenção no dia dos factos cingiu-se à prestação de auxílio moral à sua esposa BB. Devendo, nestes termos, ser aplicada a mesma pena fixada para a co-Autora BB, especialmente atenuada.
29) Nesse sentido, tendo sido aplicada à co-Arguida BB uma pena de 100 (cem) dias multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 600,00 (seiscentos euros), a mesma pena, especialmente atenuada, deverá ser aplicada ao Recorrente.
AINDA SEM PRESCINDIR,
30) A aplicação ao Recorrente de uma pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita ao regime de prova, parece-nos excessiva se atendermos ao grau de comparticipação do Recorrente em relação à co-Arguida BB.
31) A dosimetria concreta da pena deve respeitar os limites estabelecidos na lei, sendo feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerando-se a finalidade das penas indicada no artigo 40º do Código Penal, havendo ainda de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a favor ou contra o arguido, nomeadamente, as exemplificadamente indicadas no artigo 71º nº 2 do Código Penal.
32) Com efeito, toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta, significando este princípio não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena, ou seja, a culpa não constitui apenas pressuposto-fundamento da validade da pena, mas afirma-se como limite máximo da mesma.
33) A pena, além de dever ser uma retribuição justa do mal praticado, deve contribuir para a reinserção social do agente, de modo a não prejudicar a sua situação senão naquilo que é necessário e deve dar satisfação ao sentimento de justiça e servir de elemento dissuasor relativamente aos elementos da comunidade – neste sentido Acórdão do STJ, de 24/11/93, in C. P. Anotado, Leal Henriques/Simas Santos, Vol. I, pág. 567.
34) A pena será sempre adequada à culpa ontológica do arguido e com base no princípio da culpa, cujas forças ao nível da medida concreta da pena não devem ser excedidas pela carga própria da prevenção geral e especial.
35) A condenação do Arguido, ora Recorrente, não realiza, salvo o devido respeito, no caso concreto, nenhum dos fins das penas, como também não é adequada à culpa do agente pelas razões supra expostas. Conforme salienta o Prof. Eduardo Correia, in Direito Criminal, vol. II, pág. 329 “O conteúdo da ilicitude e a sua maior ou menor gravidade variam em função do número de interesses ofendidos ou das consequências que lhe estão ligadas”.
36) Destarte, em nome da justiça e da equidade impõe-se tendo em conta o caso concreto, a aplicação de pena de multa fixada quanto ao número de dias e quantitativo diário, muito próximo do mínimo legal.
37) A douta sentença violou as normas legais citadas, pelo que deve ser revogada.

Nestes termos e nos demais que vossas Exas. mui doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão (sentença) recorrida em relação ao Recorrente, na medida do acima assinalado, com todas as demais consequências legais.
Como sempre. Vossas Exas. farão,
JUSTIÇA!»
           
3.1 - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, rebatendo a argumentação recursiva.

3.1 - Também a assistente, CC, apresentou resposta ao recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. “O arguido AA foi condenado, pela prática, em co-autoria, e na forma tentada, de um crime de coaçção, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, acompanhado de regime de prova e, em consequência, foi condenado a pagar à Assistente, solidariamente com a co-arguia BB, a quantia de € 1.000 (mil euros) ”.
2. A convicção da Mma Juiz foi devidamente fundamentada, dando, assim, adequado e cuidadoso cumprimento ao dever de fundamentação.
3. Os factos que o Recorrente impugna, vertidos nos pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto provada, estão suportados pela prova produzida em audiência, que o tribunal apreciou, como é livre de fazer, de acordo com o disposto no art.º 127º do Código de Processo Penal, não existindo razões objetivas para que o tribunal modifique essa prova no sentido pretendido pelo Recorrente.
4. O tribunal não cometeu o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão da matéria de facto provada, nem resulta da análise da decisão a existência de qualquer vício, bem como que tenha havido violação de qualquer princípio ou norma processual penal na apreciação da prova produzida, que se encontra documentada.
5. A decisão recorrida contém a menção de todos os factos provados e não provados que se consideram revelantes para a decisão, encontrando-se fundamentada de facto com a indicação dos meios de prova e respetivo exame crítico, através dos quais, imediatamente se conclui, pela existência de todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de coacção, na forma tentada, pelo qual o arguido AA foi condenado.
6. A pretensa violação do princípio in dúbio pro reo alegada pelo Recorrente não se verifica no presente caso.
7. Afigura-se-nos claro e inequívoco que o arguido AA pretendia constranger a Assistente a uma ação - obrigar a Assistente a desistir de queixa-crime que havia apresentado, contra o filho dele e da co-arguida BB - que entendia que esta deveria fazer, dizendo-lhe “se não vai a bem, vai a mal”.
8. A                         expressão        utilizada          pelo        Recorrente consubstancia objetivamente uma ameaça dirigida à Assistente, já que nas circunstâncias que ficaram provadas, tinha o propósito de amedrontar a Assistente sob a ameaça de tentar contra a sua integridade física e desta forma obrigá-la a desistir de queixa que havia apresentado contra o seu filho e da co-arguida.
9. Ficaram provados todos os elementos objetivos e subjetivos exigidos pelo ilícito criminal - coacção, na forma tentada - a que o arguido AA foi condenado.
10.Não prescindindo do entendimento supra vertido de que a prova foi corretamente valorada e que resultaram provados os factos integrantes do crime de coacção, na forma tentada, a douta sentença recorrida respeitou a globalidade dos parâmetros que reputamos legalmente exigidos (cfr. art.º 71º nºs 1 e 2 do Código Penal), afigurando-se-nos que a medida concreta da pena fixada é adequada e proporcional à factualidade apurada e considerando a igualdade na aplicação da lei.
Em face do exposto, julgando improcedente o recurso interposto pelo Recorrente, farão V. As Exas, como sempre,
JUSTIÇA.

4. - Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentando parecer, concluindo que «relativamente às questões colocadas pelo recorrente, nenhum reparo nos merece a douta sentença recorrida, razão pela qual somos de parecer que o recurso do arguido AA não deverá obter provimento.»

5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a assistente veio dizer que «mantém o teor das suas alegações apresentadas na resposta ao recurso».

6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
1. - Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.

O tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[3].
Da conjugação do disposto nos artigos 368º, 369º e 424º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal e 608º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este aplicável ex vi do estatuído no artigo 4º do primeiro, resulta que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto de recurso não perdendo de vista a ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, pela seguinte sequência:
Em primeiro lugar, as que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, as questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação ampla, se deduzida, nos termos do artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal – por ser passível de correção, nos termos previstos no artigo 431º, al. b) –, a que se segue a denominada revista alargada, atinente aos vícios enumerados no artigo 410º, n.º 2 – uma vez que estes, não sendo possível saná-los, implicam o reenvio do processo à 1ª instância, em consonância com o estabelecido no artigo 426º, n.º 1, todos do mesmo código.
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.

2. - No caso vertente, considerando as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir residem em saber se:

2.1 - O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto aos pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto provada;
2.2 - Se verificam os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova;
2.3 - Os factos praticados pelo arguido não são puníveis, nos termos do artigo 154.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal;
2.4 - A ser condenado, deveria ser enquanto cúmplice, e não como coautor;
2.5 - A pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova é excessiva, impondo-se, antes, a aplicação de uma pena de multa próxima do mínimo legal, quer quanto ao número de dias, quer quanto à taxa diária.

2. – DECISÃO RECORRIDA

A sentença recorrida tem o seguinte teor [transcrição parcial]:

«II – Fundamentação.
1. De facto.
1.1. Factos provados.

Com relevo para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 4/1/2021 a ofendida CC apresentou queixa criminal contra DD, filho dos aqui arguidos, imputando-lhe a prática de um crime de dano ocorrido nesse mesmo dia, queixa essa que veio a dar origem ao Inquérito n.º 7/21....;
2. Os arguidos tiveram conhecimento dessa queixa e, no dia 13/2/2021, pelas 14:15h, deslocaram-se à residência da ofendida CC, sita na Av. ..., em ..., com o intuito de chegarem a acordo com esta para que apresentasse a desistência de queixa contra o seu filho no identificado inquérito;
3. A ofendida comunicou aos arguidos que apresentaria desistência de queixa se lhe fosse entregue a quantia de € 1.000,00 para a indemnizar dos prejuízos sofridos, o que estes não aceitaram, só estando na disposição de pagar € 300,00;
4. Como a ofendida se mostrou inflexível os arguidos exaltaram-se, tendo o arguido AA afirmado “se não vai a bem, vai a mal”, enquanto a arguida BB gesticulava de punhos cerrados, evidenciando a vontade de atingir fisicamente a ofendida;
5. A ofendida fechou a porta da sua residência;
6. E pediu a uma amiga, EE, que estava na casa da ofendida para telefonar à polícia;
7. Sendo que nesse entretanto a arguida no exterior continuou a gesticular com as mãos, dando a entender à ofendida que a iria agredir;
8. Cerca de 5 minutos volvidos, um grupo composto por 5 pessoas surgiu junto da residência da ofendida e começaram a tocar à campainha e a bater nos vidros e porta de forma violenta (aos murros e pontapés) enquanto diziam: “Ó vizinha, abra a porta”, “vamos arrombar a porta”, “Anda cá fora que isto resolve-se já”, o que causou grande inquietação na ofendida que solicitou outra vez a comparência ao local de agentes da PSP;
9. Os arguidos agiram de forma voluntária, concertada entre si, com o propósito de amedrontar a ofendida sob a ameaça de atentarem contra a sua integridade física e desta forma obrigá-la a desistir da queixa criminal que havia apresentado contra o filho dos arguidos, o que só não conseguiram por razões alheias à sua vontade;
10. Os arguidos agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
– Do pedido de indemnização civil
11.  Em consequência directa e necessária da conduta dos arguidos a ofendida/demandante civil sentiu, à data dos factos e ainda hoje, receio, intimidação, nervosismo, ansiedade, tristeza;
12. E mercê do receio que sentiu e sente dos arguidos alterou o seu ritmo de vida e hábitos diários;
13. Tendo, ainda, ficado triste e envergonhada pois os factos praticados pelos arguidos e referidos nos números 4 e 7 foram do conhecimento da mãe da ofendida, de uma amiga da ofendida, e de muitos vizinhos da mesma.
- Mais se provou
14. A arguida não tem antecedentes criminais.
15. O arguido sofreu as seguintes condenações:
a) No processo n.º 444/08.... foi condenado por decisão transitada em julgado, aos 20.7.2009, pela prática, aos 10.5.2008, de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º e 184º do Código Penal e de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º do Código Penal, na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 5 euros – pena, esta, declarada extinta por decisão datada de 13.10.2010;
b) No processo n.º 47/08.... foi condenado por decisão transitada em julgado, aos 28.3.2011, pela prática, aos 10.1.2008, de um crime de coacção tentada, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1, 155º, n.º 1, al. a), 22º e 23º do Código Penal e pela prática, aos 9.1.2008 de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º do Código Penal, na pena única de 6 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, acompanhada de regime de prova e condição e 100 dias de multa à taxa diária de 5 euros;
c) No processo n.º 30/12.... foi condenado por decisão transitada em julgado, aos 12.1.2015, pela prática, aos 9.1.2012, de um crime de receptação, p. e p. pelo art. 231º do Código Penal, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 6 euros.
16. O percurso de vida da arguida ocorreu no contexto das regras e tradições da etnia cigana, sendo a mais velha de cinco irmãos;
17. Aos 14 anos de idade encetou uma união de facto, com o arguido, e foi residir com a família do companheiro, da qual se autonomizou cerca de dois anos depois;
18. Integrou o sistema de ensino em idade própria, que abandonou com 14 anos de idade, com o 5º ano de escolaridade, quando encetou a união de facto;
19. A arguida auxiliou o companheiro enquanto este trabalhou como feirante, ocupando-se das tarefas domésticas há aproximadamente 3/4 anos, situação devida ao facto de padecer de depressão, e ter surgido após o falecimento da mãe do companheiro, há cerca de 9 anos.
20. À data dos factos, os arguidos residiam juntos e com os três filhos do casal, contexto familiar que se mantém com exceção do filho de 19 anos de idade que está detido;
21. O agregado reside numa casa de tipologia 3, adquirida com recurso a empréstimo bancário, com boas condições de habitabilidade;
22. Os arguidos e respetivo agregado familiar subsiste da atribuição do Rendimento Social de Inserção, no valor de 729€ mensais, acrescido de 100€ relativo ao abono de família atribuído aos filhos e, em média, 50€ por dia resultante da atividade exercida pelo arguido, de compra e venda de sucata;
23.  As despesas fixas mensais são no montante aproximado de 400€, sendo a mais significativa a relativa ao crédito bancário, 290€;
24. A arguida está bem integrada no meio social de inserção e refere ter como ocupação preferida arrumar e cuidar da casa e estar em família;
25. A presente situação jurídico-penal não teve repercussões na imagem que a arguida tem na comunidade de inserção, e não se constituiu como constrangimento a nível familiar pois mantém o apoio da família de origem e alargada;
26. A arguida reconhece em abstrato a ilicitude do comportamento criminal em análise, bem como a existência de eventuais vitimas.
27. O percurso de vida do arguido ocorreu no contexto das regras e tradições da etnia cigana, num agregado numeroso, sendo o nono de dez irmãos;
28. Aos 17 anos de idade encetou uma união de facto, com a arguida, e autonomizou-se do agregado de origem cerca de dois anos depois;
29. O casal tem 3 filhos com idades compreendidas entre os 23 anos e 6 anos de idade;
30. O arguido integrou o sistema de ensino aproximadamente aos 9 anos de idade, que abandonou com 14/15 anos de idade, com o 3º ano de escolaridade; No ano transato concluiu o 6º ano de escolaridade, no âmbito do Programa Qualifica;
31.  O arguido após abandonar o sistema de ensino auxiliava os pais, feirantes, atividade que manteve quando se autonomizou e até há cerca de 3/4 anos, passando a fazer compra e venda de sucata;
32. O arguido foi consumidor de estupefacientes durante um período aproximado de três anos, prática que abandonou, segundo o próprio, há cerca de 5 / 6 anos;
33. O arguido está bem integrado no meio social de inserção e refere ter como hobby ver futebol;
34. A presente situação jurídico-penal não teve repercussões na imagem que AA tem na comunidade de inserção, nem se refletiu a nível laboral e não se constituiu como constrangimento a nível familiar pois mantém o apoio da família de origem e alargada.
35. O arguido reconhece em abstrato a ilicitude do comportamento criminal em análise, bem como a existência de eventuais vítimas.
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1.2. Factos não provados.

Com relevo para a decisão da causa resultaram “não provados” os seguintes factos:

1. Que após a ofendida ter fechado a porta de sua casa o arguido, no exterior, gesticulou com as mãos e braços dando a entender à ofendida que a ia agredir;
2. Que após os arguidos saírem do local contactaram um grupo de indivíduos, de identidade desconhecida, ordenando aos mesmos que continuassem a intimidar a ofendida;
3. Que os arguidos tivessem agido de forma concertada com o referido grupo de 5 indivíduos.
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1.3. Motivação.

Determina o art. 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa (e, acrescentamos nós, os que estejam descritos no pedido de indemnização civil).
Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adoptar sobre este ponto  aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação” .
Cumpre, ainda, referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova, vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objectivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º do Cód. de Proc. Penal.
Não se duvidando, pois, da tendencial impossibilidade de, em razão da conhecida subjectividade inerente à individual percepção de acontecimentos, alcançar um conhecimento directo e esgotante da realidade fenomenológica passada com apoio em testemunhos presenciais (quando os há) convergentes ou compatíveis, impõe-se um particular esforço de racionalidade na correlativa e dialéctica apreciação da prova produzida, subordinado aos princípios da lógica e condicionado pela credibilidade que seja de reconhecer a cada uma das fontes de conhecimento em presença.
Posto isto, vejamos o percurso da motivação do Tribunal.
O arguido, no uso do direito processual que lhe assiste, não prestou declarações quanto aos factos que nos autos lhe são imputados.
A arguida reconheceu e assumiu os factos dados como assentes nos números 1 e 2 (dos Factos provados) – apenas referindo, quanto a este último, que o montante exigido pela ofendida para desistir da queixa que tinha apresentado contra o filho dela (arguida) e do arguido era de 2.000,00 euros.
No mais, disse que na ocasião (e quando a ofendida se mostrou inflexível em desistir da aludida queixa mediante a entrega por eles, arguidos, de 300,00 euros) não gesticulou com os punhos cerrados dando a entender à ofendida que a iria agredir, mas, disse que fala com gestos e poderá a ofendida ter assim interpretado.
E questionada se na ocasião o arguido proferiu a expressão “se não vai a bem vai a mal” referiu, a arguida, que foi a ofendida quem primeiramente proferiu tal expressão e que só após tal facto é que o arguido também proferiu a referida frase e que pensou (a arguida) que o que o arguido queria dizer com tal expressão era que iam para Tribunal.
Reportou, ainda, desconhecer se após ela e o marido se terem deslocado à casa da ofendida ali compareceu um grupo de indivíduos.
Por sua vez, a ofendida/assistente CC reportou, e de forma que se evidenciou absolutamente espontânea, sincera, genuína, pormenorizada, objectiva, isenta e, por isso, credível, os factos tal como se deram como provados nos números 1 a 8 e mais relatou os danos morais por si sentidos em consequência das condutas dos arguidos, o que, também, fez de modo que se mostrou genuíno, sincero, espontâneo, detalhado, objectivo, isento e, por isso, crível.
Igualmente, cumpre dizer, no relato dos factos feito pela ofendida/assistente não se denotou qualquer pretensão vingativa e/ou retaliação em relação aos arguidos, antes mesmo pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de simplicidade e humildade, não procurando ampliar os factos sobre que depôs.
Destarte, a sua postura não se revelou de maneira alguma hostil, evidenciando-se comedida e contribuiu, por tudo isso, decisivamente, para que o Tribunal se convencesse da veracidade das suas declarações.
E foram as declarações, assim, prestadas pela ofendida/assistente que decisivamente convenceram, dada a congruência dos factos que relatou, sem recorrer, como já mencionado, a qualquer exagero que se mostrasse eventualmente não consentâneo com as regras da experiência comum, e tanto mais que corroboradas pelos testemunhos prestados por FF (mãe da ofendida), EE (amiga da ofendida) e GG (vizinha da mesma).
Com efeito, as testemunhas FF (mãe da ofendida), EE (amiga da ofendida) reportaram – e sempre de modo que se mostrou espontâneo, genuíno, sincero, objectivo, isento, pormenorizado e, por isso, crível - que à data dos factos em causa na acusação estavam na casa da ofendida/assistente e, por isso, presenciaram os mesmos, descrevendo-os como o Tribunal os deu por assentes.
No mais, as mencionadas testemunhas deram ainda conta dos padecimentos, sofrimento, vergonha, tristeza, humilhação, ansiedade e medo -, vivenciados pela ofendida mercê da conduta dos arguidos.
E a testemunha GG (vizinha da ofendida) corroborou os relatos dos factos feitos pela ofendida e pelas acima mencionadas testemunhas.
Com efeito, relatou – e sempre de modo que se mostrou espontâneo, sincero, objectivo, isento e, por isso, credível – que na ocasião dos factos em apreço nos autos viu a arguida a falar com a ofendida e com um tom de voz agitado e a dizer “tens que perdoar” e que após a testemunha ouviu o arguido a dizer à ofendida “se não vai a bem, vai a mal”  e que passados cerca de 5 minutos dos arguidos dali se terem retirado a testemunha viu cerca de cinco pessoas a subirem as escadas do prédio em que ela e ofendida residem e, por isso, foi a mesma referir à ofendida para não sair de casa mercê do comparecimento de tais indivíduos.
Mais disse que ela própria teve medo na ocasião e trancou-se em casa.
Por fim, a testemunha referiu, ainda, o medo vivenciado pela ofendida mercê da conduta dos arguidos.
O Tribunal atendeu, ainda, ao teor do Auto de denúncia de fls. 4 e 5, do Auto de notícia de fls. 6; dos elementos processuais do Inquérito n.º 7/21...., mormente o Auto de denúncia junto a fls. 60 e 61, o despacho do Ministério Público de suspensão provisória do processo (SPP) e junto a fls. 62 a 68, o despacho judicial de concordância com a SPP constante de fls. 69.
No mais, na ausência de confissão (como sucede in casu), a prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos (e já acima elencados e apreciados criticamente) e das regras de experiência comum.
Desta perspectiva, pode concluir-se que, os arguidos agiram de forma voluntária, concertada entre si, com o propósito de amedrontar a ofendida sob a ameaça de atentarem contra a sua integridade física e desta forma obrigá-la a desistir da queixa criminal que havia apresentado contra o filho dos arguidos, o que só não conseguiram por razões alheias à sua vontade e que os arguidos agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
Por fim, relativamente à ausência de antecedentes criminais da arguida o Tribunal atendeu ao CRC junto aos autos a fls. 168 e quanto aos antecedentes criminais do arguido considerou o teor do CRC junto a fls. 190 a 195; e no que concerne às condições familiares, académicas, laborais e económicas dos arguidos o Tribunal atendeu ao teor dos Relatório Sociais junto aos autos.
Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.
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2. De Direito.
2.1. Enquadramento jurídico-penal.    
Encontram-se os arguidos acusados da prática, na forma tentada, de um crime de coacção, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 154º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Segundo resulta da previsão típica em presença, “quem, por meio de violência ou de ameaça com um mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. – cfr. n.º 1 do referido artigo.
E “A tentativa é punível” - cfr. n.º 2 do mencionado artigo.
Através da incriminação da descrita conduta, pretendeu o legislador reprimir jurídico-penalmente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, na sua vertente de liberdade de acção e decisão, acolhendo-a como bem jurídico intrassocial e tutelando-a enquanto interesse jurídico individual e próprio de cada indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, bem como à possibilidade de, nas múltiplas formas de interacção social, tranquilamente se conformar e dispor de si próprio, dentro dos limites traçados pela lei.
Dispondo-se o tipo legal convocado à tutela da liberdade de acção em geral, a conduta coagida (acção, omissão ou tolerância) pode ser toda e qualquer uma, tenha ou não relevância jurídica e/ou social.
Posto é que haja sido conseguida mediante o emprego de violência ou ameaça de um mal imposta, já que, do ponto de vista da execução, o delito se inscreve na categoria dos crimes de processo típico.
Sendo o conceito de ameaça aquele que directamente interessará ao caso em apreço, nele concentraremos doravante a nossa atenção.
A ameaça, enquanto meio do crime de coacção, tem que ter por objecto um mal importante, que em si mesmo considerado, tanto pode ser ilícito como não ilícito.
E, para o crime em apreço, mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado, e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas (idade, pobreza, dependência económica do coagido face ao ameaçante, sensibilidade individual e social do ameaçado, etc) do ameaçado, é vista pelo homem comum como susceptível de coagir o ameaçado.
Ora, regressando ao caso dos autos, e à luz da análise que vimos de fazer do tipo legal de crime em apreço, crê-se que o anúncio “se não vai a bem, vai a mal” directamente dirigido (pelo arguido em concertação de esforços com a arguida) à ofendida/assistente, porquanto a mesma se mostrou inflexível em desistir da queixa que tinha apresentado contra o filho deles  mediante a entrega pelos mesmos de 300,00 euros, acompanhado da circunstância da arguida (em conjugação de esforços com o arguido) gesticular de punhos cerrados, e evidenciando (os arguidos) a vontade de atingir fisicamente a ofendida, constitui uma inequívoca forma de ameaça e pressão moral, com aptidão e idoneidade suficientes para, naquela específica relação existencial, intimidar com relevo a visada.
E, cumpre referir, ainda que fosse lícita a primeira pretensão que motivou e orientou os arguidos a dirigirem-se à casa da ofendida – o intuito de chegarem a um acordo com a mesma para que apresentasse desistência de queixa no inquérito referido na acusação - o certo é que comportamento dos arguidos, a ilicitude do meio escolhido, no sentido que se deixou já exposto, será condição suficiente para afirmar a prática, pelos mesmos, do crime em consideração.
Aqui chegados, cumpre referir que o crime em presença é, do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico protegido, um crime comissivo ou de resultado.
Significa isto que, para a consumação do crime, é necessário que, mercê da actuação do coactor, a pessoa objecto da coacção tenha sido, efectivamente, constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do primeiro e contra a sua própria vontade.
A consumação do crime basta-se, no entanto, com o simples início da execução da conduta coagida: se o objecto da coacção for a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar a execução desta; se o objecto da coacção for a omissão ou tolerância a uma determinada acção, a cocção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência, impedido de agir ou reagir .
Todavia, in casu, ficou provado, como aliás constava da acusação, que os arguidos só não conseguiram que a assistente desistisse da queixa que apresentara contra o filho dos mesmos, como pretendiam, por circunstâncias alheias à vontade deles.
Assim, praticaram os arguidos o crime de coacção na forma tentada.
Com efeito, e uma vez aqui chegados, resta perspectivar a conduta que se aprecia do ponto de vista do tipo subjectivo de ilícito.
E porque a afirmação do dolo que se exige se basta com a demonstração de que o agente, sejam quais forem as suas motivações, teve consciência de que a violência ou a ameaça empregue era susceptível de constranger a pessoa do coagido e com tal se conformou, dúvidas não subsistem na subjectiva imputação da acção produzida, já que, conforme se provou, os arguidos sabiam que, com o seu comportamento, constrangiam a assistente e, bem assim, que não lhes era lícita tal conduta, resultado este que previram e quiseram.
Destarte, os arguidos cometeram, em co-autoria e na forma tentada, um crime de coacção, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º e 154º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
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2. 2. Determinação das penas.
2.2.1. Moldura penal e escolha da natureza das penas.

Conforme resulta do tipo legal convocado – cfr. art. 154º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal – e nos arts. 23º, n.º 2 e 73º, n.º 1, do mesmo diploma, o crime em presença é punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Admitindo, portanto, a disposição convocada a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, cumpre proceder, desde já, à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada a cada arguido, atendendo, para o efeito, ao sentido e ao alcance do princípio geral que resulta da combinação dos arts. 40º e 70º do Código Penal.
Nos casos, pois, em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma reacção detentiva e de uma pena não privativa da liberdade, deverá o Tribunal dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E como aplicação de penas tem por objectivo a protecção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial a decidir da possibilidade de preferir, no caso concreto, uma medida não detentiva a uma pena de prisão (cfr. Anabela Rodrigues, em anotação ao Ac. do STJ de 21/05/90, RPCC, 2, 1991, pg.243).
Neste sentido, o Tribunal só deverá recusar a aplicação da pena alternativa quando tal opção seja de modo a comprometer a preservação da paz jurídica comunitária, ou quando se revele desde logo inconveniente para a viabilidade e sucesso de um projecto de ressocialização.
Pois bem.
Considerando, desde logo, que o arguido antes da prática do crime em apreço nestes nossos autos sofreu já três condenações e pela prática de sete crimes, sendo um deles precisamente um crime de coacção, ou seja, de igual natureza axiológico normativa ao crime ora em causa, cremos que o mesmo revela uma dificuldade de interiorização da especial valência axiológica dos bens tutelados através do comando penal desatendido e em causa.
Por isso, relativamente ao arguido a escolha que nos ocupa deve incidir sob a pena de prisão, cuja aplicação sempre seria, e de resto, reivindicada pelas considerações mais gerais da prevenção.
Com efeito, a opção pela pena de multa, seria aqui entendida como uma injustificada indulgência e fraqueza contra o crime, comprometendo desse modo a defesa do ordenamento jurídico e as exigências da exteriorização física da reprovação.
Já relativamente à arguida considerando que o comportamento ora apreciado tenderá razoavelmente a ser entendido como um momento de episódico descomedimento, dúvidas não subsistem de que a reafirmação das expectativas comunitárias não suporá a aplicação à mesma de uma pena de prisão, sendo essa a conclusão para que, na ausência de passado criminal relevante, indubitavelmente apontam as exigências de ressocialização.
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2.2.2. Determinação concreta da medida das penas.

Considerando o princípio geral estipulado pelos arts. 40º e 71º do Código Penal, e a enumeração exemplificativa vertida no art. 73º, do Código Penal, deverá a pena ser concretamente determinada dentro da moldura legal fornecida, funcionando a culpa como limite inultrapassável e as exigências da prevenção geral e especial como vectores determinantes da medida a aplicar - cfr. Figueiredo Dias Consequências Jurídicas do Crime, p. 114 e ss..
E, na determinação da medida concreta da pena deverão, ainda, ser consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das exigências concretas de culpa e de prevenção – cfr. art.71º, n.º 2, do Código Penal.
No caso em apreço é de considerar, logo ao nível do tipo-de-ilícito, a circunstância do efeito de constrangimento se reconduzir a um único episódio, o que denuncia uma mediana afectação do bem jurídico protegido.
Relativamente às exigências de prevenção geral, as mesmas são de situar na mediania atenta a frequência de crimes como o ora em consideração.
Milita contra os arguidos o facto de terem actuado com dolo directo, isto é, na modalidade mais gravosa.
E no que diz respeito às exigências da prevenção especial milita a favor da arguida não ter antecedentes criminais.
Relativamente ao arguido – e neste segmento que se ora se aprecia – depõe contra o mesmo a circunstância de ter antecedents criminais.
Com efeito, o arguido antes da prática do crime em apreço nestes nossos autos já tinha sofrido três condenações e pela prática de sete crimes, sendo um deles precisamente um crime de coacção, ou seja, de igual natureza axiológico normativa ao crime ora em causa.
Acresce, ainda, militando contra os arguidos, e ainda neste segmento que se aprecia – das exigências de prevenção especial – que os mesmos não revelaram, em juízo, terem já interiorizado a censura e reprovação das suas condutas, assim como não revelaram arrependimento pela aludida prática.
A favor dos arguidos, e como decorre dos respectivos Relatórios Sociais, há a ponderar que os mesmos se encontram familiarmente inseridos e que o arguido encontra-se, ainda, profissionalmente inserido.
Em face de tudo o exposto, julga-se adequada, necessária, proporcional e suficiente a aplicação à arguida de uma pena de 100 dias de multa, fixando-se o quantitativo diário a aplicar, em face do que demonstrado resultou quanto às actuais condições de vida da mesma, em € 6 euros.
E julga-se adequada, necessária, proporcional e suficiente a aplicação ao arguido de uma pena de 4 (quatro) meses de prisão.
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2.2.3. - Da substituição da pena de prisão.

Nos termos do art. 45º, n.º 1 do Código Penal: “A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa (…) excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”.
Nos termos do art. 58º, n.º 1, do Código Penal: “Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
E, nos termos do art. 50º, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tendo presentes os efeitos que normalmente se encontram associados à execução de penas de prisão de curta duração, designadamente a desinserção familiar e profissional do condenado e a inevitável exposição do mesmo ao contágio prisional, o legislador manifestou clara preferência pelas penas não detentivas da liberdade, impondo, no domínio da pequena e média criminalidade, a opção pela pena não privativa da liberdade sempre que através da mesma se revele possível a realização adequada das finalidades da punição.
E, porque as finalidades da punição são exclusivamente preventivas, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial que decidirão da possibilidade de preferir, em concreto, uma reacção não detentiva à aplicação de uma pena de prisão.
Por isso, o Tribunal só pode recusar a aplicação das aludidas penas (de multa, de trabalho e de suspensão da execução da pena de prisão) se através delas não for possível realizar a desejável e necessária ressocialização ou, sendo embora possível, resulte de todo o modo comprometida a confiança da comunidade na validade do Direito e na vigência das instituições.
Ora, considerando a ressonância que na sociedade provoca o cometimento de crime como o ora em causa aliada à circunstância de o arguido ter antecedentes criminais – antes dos factos em apreço nos autos já sofreu três condenações e pela prática de sete crimes, um deles, precisamente, de coacção tentada - entendemos não ser de substituir a pena de prisão aplicada ao arguido pela pena de multa e por prestação de trabalho, uma vez que estas não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade – cfr. art. 40º do Código Penal. 
Mas já entendemos que pode o arguido beneficiar da substituição da aludida pena por pena suspensa na sua execução nos termos do art. 50º do Código Penal, não se vislumbrando que a opção pela suspensão da execução da pena possa comprometer a defesa do ordenamento jurídico e exigências da exteriorização física da reprovação.
Analisando a questão do ponto de vista da prevenção geral, perguntar-se-á se à suspensão da execução da pena de prisão se opõem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, isto é “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.”.
Por outras palavras, o sentimento jurídico da comunidade impõe que o arguido cumpram em clausura a pena de prisão que lhe foi aplicada, por só assim se cumprirem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico?
Ora, sem dúvida que os factos, por que o arguido foi julgado e pelos quais lhe foi aplicada a referida pena de prisão, são já de mediana gravidade.
Todavia, acresce que a Lei n.º 59/2007 de 04.09 veio introduzir alterações profundas ao regime da suspensão da execução da pena, alargando o âmbito do pressuposto formal desta pena de substituição (“prisão aplicada em medida não superior a 5 anos”, quando anteriormente esse limite era de 3 anos) e alterando o prazo de duração da suspensão, que passou a ter duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano; sendo que recentemente a lei foi alterada no que tange ao período de suspensão da execução da pena.
Assim, no que concerne à prevenção geral positiva, com a atitude da própria comunidade demonstrada através da via legislativa, quando com a referida lei veio permitir a suspensão da execução da pena de prisão à pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, já se denota que essa comunidade se conforma e aceita que a suspensão da execução à referida pena de prisão aplicada até 5 anos, o que demanda estarem em causa crimes já considerados graves, é por si suficiente para reafirmar a norma jurídica violada.
Aqui chegados, e atento o facto de o arguido ter antecedentes criminais, convém, também, trazer à colação, e como referido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 10.5.2010 (disponível in dgsi), que “entre nós, há muito que se assinalou que a restrição do benefício da suspensão aos delinquentes primários não tem fundamento (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal vol. II, págs. 396-405)”.
Destarte, entendemos ser de suspender a execução da pena aplicada ao mencionado arguido e pelo prazo de 1 ano.
Sucede, ainda, que nos termos do art. 50º, n.º 2 do Código Penal “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.”.
E nos termos do n.º 3 do referido preceito legal: “Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.”.
De acordo com o art. 51º do Código Penal “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;”.
E de harmonia com o art. 52º do mesmo diploma legal: “1 - O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade (…)”.
Nos termos do art. 53º, n.º 1, do Código Penal “O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado na sociedade”.
E nos termos do n.º 2, do citado normativo “o regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de suspensão, dos serviços de reinserção social”.
Assim sendo, o Tribunal determina que a mencionada suspensão seja acompanhada de regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pela DGRSP, o qual deverá incidir na consciencialização do mencionado arguido para as consequências gravosas do seu comportamento anti-jurídico; devendo o arguido, ainda e pelo menos (e nos termos dos arts. 54º e 52º, do Código Penal), cumprir a) a obrigação de apresentação mensal ao técnico de reinserção social, que para o efeito for nomeado pela DGRSP, com vista à realização e cumprimento de tal regime; b) exercer actividade profissional durante tal período ou manter-se inscrito no centro de emprego, com vista a se empregar, caso esteja desempregado – devendo os serviços sociais de reinserção social apoiarem e fiscalizarem o arguido no cumprimento de tais obrigações (cfr. arts. 52º, n.º 4 e 51º, n.º 4, do Código Penal).
Em conformidade, serão remetidos a este processo relatórios pela DGRSP, de três em três meses.
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III. Do pedido de indemnização civil.

Nos termos do art. 71º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.
Tomou, deste modo, o legislador em consideração a “natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções”, bem como o interesse social subjacente à reparação dos prejuízos eventualmente verificados pelo agente da infracção que lhes deu causa (Prof. Eduardo Correia, processo criminal, pg.541).
Ora, é sabido que incorre na obrigação de indemnizar o lesado, em consequência de responsabilidade por factos ilícitos, aquele que, com dolo ou negligência, violar ilicitamente um direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios e assim lhe causar danos (cfr. art. 483º do Código Civil).
Da análise do preceito convocado - e pese embora a divergência doutrinária na enunciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - decorre claramente, na linha, aliás, do que é apontado pela terminologia técnica corrente, que são elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (como regra, em virtude do disposto no n.º 2 do art. 483º do Cód. Civil), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Na génese, pois, da responsabilidade emergente de factos ilícitos está uma conduta voluntária do agente lesante, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade, embora não necessariamente precedido de uma representação ou prefiguração mental dos efeitos desencadeados pela actuação em causa.
Porém, para que, pelos efeitos prejudiciais ou danosos do facto voluntariamente praticado, ao lesante seja imputada a correspondente responsabilidade, necessário se torna que a conduta assumida se traduza numa actuação desconforme com o ordenamento jurídico e, neste sentido, reprovada pelo Direito.
Receoso, contudo, das dificuldades que, ao nível da certeza e segurança da aplicação da lei, sempre seriam suscitadas por uma definição menos precisa do conceito de ilicitude, optou o legislador português por explicitá-lo nos seus termos e conteúdo possível, através da descrição das duas variantes por meio das quais se pode revelar, em concreto, o carácter antijurídico do facto praticado: a violação dos direitos subjectivos de outrem e de disposições de protecção destinadas a proteger interesses alheios.
Considerando a primeira das modalidades previstas, dir-se-á que, através da previsão contida neste segmento de norma, se procede à sindicância das actuações ofensivas de direitos subjectivos absolutos, entre os quais impressivamente se incluem os chamados direitos de personalidade, directamente abrangidos pela previsão do art. 70º do Cód. Civil.
Com efeito, através da cláusula geral de protecção consagrada no art. 70º do Código Civil, o legislador, reconhecendo na personalidade humana uma complexa unidade físico-psico-ambiental, optou por tutelá-la tout court, estendendo aprioristicamente a apetência protectora do sistema a todos os bens, forças ou potencialidades, presentes ou futuras, conhecidas ou desconhecidas, que integrem tal ideia .
E, seja qual for a abrangência com que, do vasto âmbito da matriz do direito geral de personalidade, vêm sendo deduzidos os referidos direitos especiais de personalidade, não se duvida de que o art. 70º do Código Civil, nomeadamente ao explicitar a defesa da personalidade moral, abrange directamente na sua tutela a liberdade humana, individualizada na sua íntima e exclusiva ligação ao respectivo titular, impondo às demais pessoas, “não fundamentalmente específicos deveres de acção, mas um dever geral de respeito e de abstenção (...), sob a cominação das sanções previstas nos arts. 70º, n.º 2 e 483º do Cód. Civil” . 
E foi justamente esse direito de liberdade que, através da actuação já analisada, concretamente violaram os arguidos.
Tal comportamento é, assim, civilmente ilícito, conforme, de resto, sem mais decorria já afirmação da respectiva relevância criminal, atento o sentido unilateral em que consensualmente é entendido o princípio da unidade da ordem jurídica.
Para além de ilícita, a conduta dos arguidos é culposa, uma vez que sobre a mesma pode legitimamente incidir um juízo de censura e de reprovação, na perspectiva de que o comportamento é ilícito sendo que, em face das concretas circunstâncias, os arguidos podiam e deviam ter agido de outro modo.
E para que, pela via da responsabilidade civil por factos ilícitos, sobre o lesante venha a impender a obrigação de indemnizar é necessário que, na sequência da actuação por si desenvolvida, alguém tenha sido concretamente prejudicado.
Em sentido jurídico-civil, o dano surge como a supressão de vantagens tuteladas pelo Direito, traduzida na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, de natureza patrimonial e não patrimonial, consoante haja ou não possibilidade de uma correspondente avaliação pecuniária.
Apenas estes últimos interessarão no caso presente, atentos os termos em que o pedido foi admitido.
Ora, os danos não patrimoniais, por atingirem bens que não integram o património da lesado, são insusceptíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual a obrigação de os ressarcir terá mais uma natureza compensatória do que indemnizatória.
A ressarciabilidade dos danos não patrimoniais encontra-se, porém, circunscrita, nos termos do art. 496º do Cód. Civil, àqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito.
Trata-se, aqui, de excluir a reparação de “prejuízos insignificantes ou de significado diminuto, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarciabilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez intensa e interactiva vida social hodierna” (Capelo de Sousa, op. cit., pg. 555).
Nesta perspectiva, evidenciando a evolução num sentido mais liberal, a jurisprudência apenas tem questionado a reparabilidade do dano não patrimonial ocasionado por diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, naturalmente indissociáveis do quotidiano das sociedades contemporâneas.
A gravidade do dano sofrido há-de, de qualquer modo, ser aferida através de um critério objectivo ou de normalidade e não em função da particular sensibilidade da pessoa lesada.
O montante da compensação a atribuir por danos não patrimoniais deverá ser fixado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e demais circunstâncias que no caso se justifiquem (cfr. arts. 496º, n.º3 e 494º, ambos do Cód. Civil). E deverá ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida . De qualquer modo, e segundo o entendimento que vem sendo jurisprudencialmente firmado, a indemnização por danos não patrimoniais, para corresponder actualizadamente ao comando do art. 496º do Cód. Civil e constituir efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa (cfr. Ac. do STJ de 11.10.94, CJSTJ, T.III, pg.89), embora, reconhecido é também, não deva servir, em si mesma, de estímulo a uma desmedida propensão para litigar.
Considerando tudo o já exposto, e atendendo aos danos morais que resultaram provados, ao grau de culpabilidade dos arguidos, à situação económica dos mesmos, entende-se ser de condenar os mesmos, por equitativo, a pagarem, solidariamente, à demandante a quantia de € 1.000 a título de compensação pela relevante perturbação que para a demandante resultou do constrangimento a que foi submetida.
Na determinação do referido montante foram levados em conta, quer as condições pessoais dos arguidos, quer o tempo decorrido desde a prática dos factos, quer a depreciação monetária ocorrida desde a data do evento, quer ainda o nível do salário mínimo e das reformas vigente em Portugal, actualmente e à data da prática dos factos (art. 566º n.º 2 do Cód. Civil).
No respectivo pedido, pede ainda a demandante juros legais sobre esta quantia.
Ora, quando no cálculo do valor dos danos morais se leva em consideração a desvalorização monetária entre o momento da citação e o da decisão, tal valor já compreende o prejuízo que os juros moratórios visam reparar relativamente a esse período. A incidência de juros moratórios sobre esse valor já actualizado em função de taxas de inflação proporcionaria ao lesado-credor uma vantagem alheia ao fim económico da atribuição do direito àqueles juros.
Nessa circunstância, dever-se-á considerar ilegítima a procedência do pedido de tais juros relativamente desde a notificação do pedido de indemnização – cfr. art. 334º do Cód. Civil.
Mas já não se justifica que se omita tal condenação com referência ao tempo posterior à data da decisão e até efectivo pagamento da indemnização - Cfr. Ac. da Rel. de Coimbra, 21.01.86, CJ, 86, 1º, pág.; Ac. Rel. de Lisboa, 15.06.89, CJ, 89, 3º, pg. 123; Ac. do S.T.J. de 28.10.92. C.J., 1992 T.4, pág. 29 (que mantêm actualidade).
Ora, quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais, o juiz no momento da fixação da indemnização, “dentro das demais circunstâncias do caso” - cfr. art. 494º “ex vi” art. 496º n.º 3, ambos do Cód. Civil -, já teve em conta este factor, ou seja, a desvalorização da moeda, justificando-se, todavia, a condenação em juros com referência ao tempo posterior à data da decisão e até efectivo pagamento da indemnização.»

3. – APRECIAÇÃO DO RECURSO, seguindo a ordem preclusiva das supra elencadas questões:

3.1 - O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto aos pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto provada?

O recorrente impugna expressamente os pontos 4, 9 e 10 dos factos provados, que entende que «foram incorretamente julgados, por resultar das declarações da coarguida BB, da assistente e dos depoimentos das testemunhas, conjugados com as regras da experiência comum, que os mesmos factos deveriam ter sido dados como não provados em relação ao Recorrente» [cfr. conclusão 2].
O recorrente discorda, assim, da valoração que o tribunal a quo fez dos meios de prova e da convicção que alcançou, pelas razões que desenvolve na motivação e sintetiza nas conclusões que formulou, nomeadamente, sob os números 3 a 8.
 Convoca, por conseguinte, o erro de julgamento, o qual ocorre, em essência, quando a prova produzida, analisada e valorada pelo tribunal a quo não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi, porquanto foi considerado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido dado como não provado ou, inversamente, quando foi tido como não provado um facto e a prova é clara e inequívoca no sentido da sua comprovação.
O mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento em sede de recurso é a denominada impugnação ampla da decisão da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, visando a (re)apreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da (re)avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem reiteradamente assinalando a doutrina[4] e a jurisprudência[5], nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, tendo em perspetiva os concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exatamente por isso que se impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação em conformidade com o estabelecido no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.

A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
Por seu turno, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[6].
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do mesmo diploma).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que assim regem:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” [n.º 4];
“O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” [n.º 6].
De acordo com o decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012[7], «[v]isando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».
É, assim, possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, atualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º.
Significa isto, em termos práticos, que havendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis, depoimentos de testemunhas e esclarecimentos de peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem de individualizar, no conjunto das declarações e depoimentos prestados, quais as particulares passagens nas quais ficaram gravadas as frases que, por si só ou conjugadas com outros meios de prova, impunham decisão diversa quanto ao facto impugnado.
E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é a [única] correta.
Nesse caso, concluindo-se que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado, nos termos previstos no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal.
No entanto, se a convicção do julgador for objetivável face ao princípio da livre apreciação da prova e aos critérios de apreciação da validade e do valor probatórios dos meios de prova produzidos e se a versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível deverá manter-se a opção do julgador em 1.ª instância, por força da plenitude dos princípios da oralidade e da imediação da prova de que este beneficia.
Com efeito, importa ter presente que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar, o princípio norteador da formação da convicção do tribunal da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, assim como a sua íntima conexão com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se analisar a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal ou por declarações [do arguido, do assistente, das partes civis].
O princípio da livre apreciação da prova não é, porém, absoluto, comportando limites e reservas, uns atinentes aos meios de prova e outros à decisão.
 Assim, em sede probatória, a livre apreciação apenas pode recair sobre as provas que tiverem sido produzidas e/ou examinadas em audiência, sem prejuízo das constituídas no processo – como os documentos e os meios de obtenção de prova – no exercício do princípio do contraditório (artigo 355º do Código de Processo Penal), com exclusão dos meios de prova, e da respetiva obtenção, proibidos (artigos 125º e 126º) e observando o valor probatório específico atribuído à prova pericial (163º), aos documentos autênticos e autenticados (artigo 169º) e à [válida] confissão integral e sem reservas (artigo 344º).
Em sede decisória, a livre apreciação da prova tem que ser, como vimos, objetivável e motivável, de modo a evidenciar o processo lógico racional de forma apreensível pelos seus destinatários diretos e pelos cidadãos em geral.
Esse exercício é particularmente difícil no que tange à explicitação da credibilidade que inspiram alguns meios de prova oral, em cuja apreciação intervêm, a par com a atividade cognitiva, os tais elementos não racionalmente explicáveis e, mesmo, puramente emocionais, mas que, ainda assim, têm que resultar suficientemente explicados.
É por demais consabido que, em particular nos casos de prova por declarações, depoimentos e esclarecimentos, em regra produzidos oralmente, a credibilidade dos mesmos está intimamente conexionada com o respetivo conteúdo, mas, também, com a forma como foram prestados, sendo, por isso, a imediação fundamental.
Atribuir, ou não, crédito ao que diz, ou não diz, uma pessoa convocada a prestar declarações ou depoimento é uma questão de convicção pessoal, condicionada por diversas circunstâncias.
Assim, importa, desde logo, ter em consideração que a declaração e o depoimento, quando realizados de boa fé, se traduzem no relato ao Tribunal da representação da realidade percecionada, interpretada e memorizada pelo declarante e pelo depoente, respetivamente, segundo as suas idiossincrasias. Quando o declarante e o depoente estão de má fé farão um relato adulterado do que percecionaram, interpretaram e memorizaram, em função do que é favorável aos interesses e objetivos que os movem.
Daí que, mais do que o declarante e o depoente dizem ou não dizem, importa o modo como o fazem, nomeadamente a postura corporal, os gestos e expressões fisionómicas, as hesitações nas respostas às questões que lhes são colocadas, o tom da voz, os olhares de cumplicidade trocados com um ou outro interveniente processual ou o desviar do olhar do interlocutor, enfim numa multiplicidade de pormenores que, a maioria das vezes, apenas a oralidade e a imediação permitem percecionar.
Como tal, tem de aceitar-se que existe uma impressão causada no julgador, um conhecimento de base subliminar, que só a imediação em primeira instância possibilita ao nível mais elevado e que, por isso, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto, em função de fatores que intervêm na apreciação da credibilidade de depoimentos que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência[8].
Nessa “margem de insindicabilidade” entram os elementos racionalmente não explicáveis e, até, de cariz emocional inerentes ao ser humano que constituem parte importante do processo de formação da convicção, como antes sinalizámos.
Porém, se é certo que há elementos do juízo de credibilidade das declarações e depoimentos que escapam à 2.ª instância – como são os pertencentes à linguagem não-verbal, que só a 1.ª instância está em condições de percecionar pela imediação –, outros há que podem ser retidos na gravação áudio da linguagem verbal e percecionados naquela instância de recurso – como é o caso do juízo sobre a razão de ciência, a espontaneidade, a fluência, a segurança, a verosimilhança e a plausibilidade da narrativa efetuada pelo declarante/depoente –, igualmente importantes para determinar a sua credibilidade, que não dependem da imediação, mas antes do raciocínio lógico que o julgador deve efetuar e espelhar na fundamentação da sua convicção.
Assim, se na motivação da decisão de facto o tribunal de 1.ª instância explicitou, como lhe compete, as razões pelas quais deu credibilidade a um depoimento ou a uma declaração, a margem de “insindicabilidade” desse juízo pela Relação restringe-se àqueles elementos que estejam exclusivamente dependentes da imediação, e já não àqueles que não o estejam, sob pena de esvaziamento da via de impugnação ampla da matéria de facto.
Importa, ainda, ter presente que, mesmo que não haja prova direta de determinados factos, o tribunal não está impedido de formular a sua convicção acerca dos factos em discussão, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos, o que nos remete para o âmbito da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, ou seja, a que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permite, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Por tudo isso, se perante determinada situação as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o tribunal a quo – que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade –, fundamentada e justificadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso – que está limitado na apreciação que pode fazer nos sobreditos moldes –, que opte por ela. E se a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência comum[9], nos termos antes sinalizados.
Delimitado o quadro normativo, doutrinário e jurisprudencial em que nos movemos para a apreciação da impugnação ampla da matéria de facto, importa atentar no caso em apreço.
Ressalta logo à vista que o recorrente não deu cabal cumprimento ao ónus de especificação nos moldes supra explicitados.
É certo que indica os concretos pontos de facto – 4, 9 e 10 dos factos provados – que considera incorretamente julgados, alegando que deveriam ter sido dados como não provados em relação a si.
Ora, tais factos contemplam a atuação do recorrente e da coarguida BB e o primeiro até admite que proferiu a expressão “se não vai a bem, vai mal” constante do ponto 4, baseando-se a sua argumentação recursiva, em boa medida, na interpretação a dar a esta expressão, que assume ter proferido, e na intencionalidade subjacente.
O próprio recorrente alega que «dos factos relatados pela co-Arguida BB, pela Assistente e pelas testemunhas, apenas se retira que o Recorrente terá proferido a expressão “não vai a bem, vai a mal” [conclusão 6] e que o Arguido terá impedido a co-Arguida de agredir a Assistente.» e que «A expressão proferida pelo Recorrente “não vai a bem, vai a mal” foi interpretada pela Assistente e pelas testemunhas como sendo uma ameaça. Contudo, não deixa de ser contraditório porquanto a própria Assistente admite que o Recorrente impediu que a co-Arguida BB a agredisse» [conclusão 7].
Afigura-se, assim, insofismável que decorre da própria tese recursiva que não poderia ser dado como não provado que o recorrente proferiu tais palavras, pelo que se impunha que indicasse os concretos aspetos factuais dos pontos impugnados que, do seu ponto de vista, deveriam ser considerados não provados e em que moldes.
Ademais, o recorrente também não indica nas conclusões quais as concretas provas que impunham decisão diversa, limitando-se a aludir ao relato dos factos efetuados pela coarguida, pela assistente e pelas testemunhas [cfr. a transcrita conclusão 6], sem identificar quais destas últimas. Ora, na motivação, o recorrente apenas transcreve, de forma cirúrgica, pequenos excertos das declarações da coarguida BB e da assistente CC e do depoimento de apenas uma testemunha, FF, mãe da segunda.
Tais transcrições correspondem, porém, a uma ínfima parte das declarações e do depoimento em causa e foram selecionadas tendo em vista demonstrar a tese que o recorrente pretende fazer valer, omitindo outros excertos, sobretudo das declarações da assistente, que as contextualizam e explicitam o real sentido das mesmas.
É certo que decorre das declarações da assistente e do depoimento da mãe desta, a referida FF, mas sobretudo das primeiras, que no momento em que a arguida BB, que estava com os punhos cerrados, esticou um dos braços para a agredir a assistente, o recorrente agarrou no braço da arguida e quando a assistente estava a fechar a porta aquele proferiu a expressão “se não vai a bem, vai mal”.
Admite-se que o recorrente, ao agarrar o braço da coarguida, tenha tido a intenção de evitar que esta agredisse naquele momento a assistente, pois estavam na residência desta última e na presença da mãe da mesma que testemunharia tal agressão, sendo certo que a HH se encontrava no interior da habitação e a GG estava no prédio.
Mas o facto de o recorrente ter evitado a escalada da violência naquele momento não exclui que tivesse agido de forma a intimidar a assistente, ameaçando-a com mal futuro, tendo proferido as palavras “se não vai a bem, vai mal” precisamente com essa intenção. Se apenas quisesse por um ponto final à discussão e evitar que a coarguida ali permanecesse, como alega [cfr. conclusão 8], seguramente, não teria dirigido aquela expressão à assistente.
Aliás, o contexto em que ocorre a atuação concertada dos arguidos, que formam um casal, aponta claramente no sentido de que quiseram intimidar a assistente, visando constrangê-la a desistir da queixa criminal que apresentara contra o filho de ambos.
Com efeito, decorre da globalidade das declarações da assistente e do depoimento das identificadas testemunhas – que reproduzimos na íntegra, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal – o contexto em que os arguidos se dirigiram à residência pessoal da primeira para tratar de assunto que envolvia a desistência da queixa por danos praticados pelo filho deles na loja daquela e os comportamentos que um e outro adotaram visando intimidá-la. Note-se que, como a assistente explicou, os arguidos descobriram onde residia e aparentavam saber tudo sobre si, pelo que a circunstância de se deslocarem à sua residência pessoal, per se, já se mostra intimidatória e reveladora da intenção de condicionarem aquela na sua liberdade de autodeterminação. A assistente explicou, ademais, de forma lógica e plausível, a razão pela qual ficou com receio em face da expressão proferida pelo recorrente, que interpretou como querendo dizer que viriam a concretizar o mal que não conseguiram infligir-lhe naquela ocasião, descrevendo muito objetivamente de que forma se manifestou o medo e o pânico que sentiu, nessa ocasião e durante largo período, o que foi corroborado pelas ditas testemunhas. A assistente e as testemunhas referiram, ainda, que, mesmo depois de os arguidos saírem do prédio, a arguida continuou a gesticular, querendo significar que ia agredir a primeira.
De tudo ressuma que se o recorrente apenas quisesse evitar que a arguida BB agredisse naquele momento a assistente, não tinha dirigido a esta aquelas palavras; quis, na verdade, reforçar a manifestação da arguida de que recorreriam à violência caso a assistente não aceitasse desistir da queixa que fizera contra o filho de ambos, intencionalidade essa reiterada mesmo depois de a arguida estar já estar no exterior, querendo, com as palavras que proferiu, expressar que a assistente seria alvo de atuações futuras, nomeadamente agressão física, que lhe causariam mal.
Isto é o que é possível extrair da reprodução da gravação oral, sendo que os gestos exemplificativamente reproduzidos, quer pela assistente, quer pelas sobreditas testemunhas –, nomeadamente quanto à forma como a arguida BB gesticulava, a distância a que se encontravam –, bem como as expressões fisionómicas e a postura corporal, enfim, a linguagem não verbal adotada pela assistente e pelas mencionadas testemunhas não são apreensíveis por este tribunal ad quem na reprodução da gravação áudio, tendo extrema relevância para aferir da credibilidade que inspiraram ao tribunal a quo.
Ante o exposto, não vislumbramos que a prova produzida – e não apenas os excertos de declarações e depoimentos transcritos pelo recorrente – imponha decisão distinta quanto aos pontos da matéria de facto impugnados. A tese do recorrente corresponde a uma leitura tendenciosa de determinados segmentos da prova oral, que ignora a atuação concertada de ambos os arguidos, o contexto em que se desenvolveu e o objetivo comum que os movia ao dirigirem-se a casa da assistente e, por isso, não se mostra lógica, verosímil ou compaginável com as regras do normal acontecer.
Ao invés, a convicção do tribunal a quo quanto a tais factos encontra-se respaldada, sobretudo, nas declarações da assistente e nos depoimentos das testemunhas que referimos e mostra-se racional, lógica e plausível em face das regras da experiência comum.
O recorrente apela, ainda, ao princípio in dubio pro reo, mas fá-lo em termos algo dúbios, pois, na verdade, não afirma que o tribunal a quo se deparou com dúvidas e que não as resolveu em seu benefício e, por isso, nas conclusões [cfr. 9 a 14] não invoca propriamente a violação daquele princípio, embora refira na conclusão 13 que se impunha no presente caso que se atentasse no mesmo, devendo a dúvida favorecê-lo. Ou seja, se bem compreendemos a alegação recursiva, no fundo, o que o recorrente sustenta, é que, em face da prova produzida e da interpretação subjetiva que a declaração “se não vai a bem, vai mal” suscita, o tribunal a quo deveria ter ficado em estado de dúvida e favorecê-lo [dando como não provados os factos que a si dizem respeito].
Convém, desde já, clarificar que tal princípio opera exclusivamente em matéria de facto. Com efeito, o princípio in dubio pro reo, como decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
Nas palavras de Figueiredo Dias[10], “[à] luz do princípio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”.
Significa isto que, conexionando-se com a matéria de facto, este princípio atua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objetivo e tipo subjetivo –, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais atualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena[11].
Ou seja, o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência de julgamento, tiver dúvidas sobre qualquer facto relevante para a decisão a proferir.
Porém, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. A dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos atos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja motivos de dúvida[12].
Ademais, apenas está em causa a dúvida que se suscite ao julgador, e não aos sujeitos processuais, condicionados na sua análise valorativa da prova pelos respetivos interesses em jogo, dos quais não se conseguem distanciar e que, naturalmente, lhes retiram objetividade e isenção.
Como vem sendo entendimento jurisprudencial pacificamente aceite, o tribunal de recurso apenas pode concluir pela violação do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência se do texto da decisão recorrida resultar notoriamente – em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, no âmbito da revista alargada – que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido, ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, concluir que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria ter-se suscitado no espírito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
Atentando no caso dos autos, não se verifica nem uma situação nem outra.
Por um lado, do texto da sentença recorrida, maxime da motivação da decisão sobre a matéria de facto, não ressuma que o tribunal a quo se tivesse deparado com qualquer dúvida a respeito dos contornos da atuação do arguido e da sua intencionalidade, em conjugação de esforços e de intentos com a coarguida BB.
Por outro lado, da apreciação da impugnação ampla da matéria de facto também não decorre que alguma dúvida, séria, fundada e intransponível devesse ter-se suscitado ao tribunal a quo, tal como não se suscita a este tribunal ad quem, pelas razões que antes explanámos.
Conclui-se, assim, que inexiste qualquer fundamento para fazer operar, in casu, o princípio in dubio pro reo.
Improcede, pois, completamente a impugnação da matéria de facto promovida pelo recorrente.

3.2 - Verificam-se os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova?
O recorrente invoca que do texto da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, resulta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal [cfr. conclusão 16].
Para o efeito, alega o seguinte: «(…) forçoso é de concluir que deverá ser valorado o facto de o Recorrente ter evitado a prática de um crime de ofensa à integridade física por parte da co-Arguida BB contra a Assistente/Ofendida» [conclusão 15]; «Ocorreu o vício de erro notório na apreciação da prova, sendo que atentos os dados probatórios recolhidos, o tribunal de recurso poderá, diferentemente, decidir da causa. Artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP» [conclusão 17]; «Toda a prova produzida e relevante constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, impõem decisão diversa da recorrida» [conclusão 18]; «Os pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto dada como provada deve ser julgada não provada em relação ao Recorrente» [conclusão 19]; «A matéria de facto dada como provada é insuficiente para concluir que o Recorrente praticou tal crime, de que vinha acusado, pelo que ocorreu o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Artigo nº 410º, nº 2, alínea a) do C.P.P.» [conclusão 20].
Dispõe o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que «[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Tais vícios têm, porém, que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, mais concretamente do respetivo texto, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam externos, para os fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento[13].
Constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo.
No âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não a aprecia – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina o processo para novo julgamento, conforme prevê o artigo 426º.
Ainda que não sejam invocados, os assinalados vícios da decisão são de conhecimento oficioso – acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95[14].
Com relevo para o caso dos autos, tendo em perspetiva a invocação do recorrente, atentemos nos vícios previstos nas als. a) e c) do n.º 2 do artigo 410º:
Verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a decisão de direito alcançada dentro do quadro das soluções plausíveis da causa e quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado. Note-se que, atento o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 124º, n.º 1, 368º, n.º 2, e 374º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, a matéria objeto da decisão é integrada por “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” e, ainda, se houver pedido de indemnização civil “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”, sendo tais factos, por conseguinte, essenciais.
Tal vício emerge, assim, quando ocorre a omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. Tal lacuna de factos deve resultar da própria decisão recorrida, mediante a aferição interna que apenas atende ao que nela consta, e não se confunde, pois, com a eventual falta de provas que pudessem sustentar a demonstração da factualidade que ali foi dada como apurada[15].
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva[16], «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada».
Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão – que a matéria de facto se apresente como insuficiente, por se verificar lacuna no respetivo apuramento, para a decisão a proferir segundo as diversas soluções jurídicas possíveis.
Este vício reporta-se, assim, exclusivamente à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
Por conseguinte, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que são coisas distintas e, como tal, não podem ser confundidas, embora o sejam muitas vezes na prática recursiva.
Ocorre erro notório na apreciação da prova quando a decisão ostenta um erro de apreciação dos meios probatórios observável por um homem de formação média, que, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou, até, contraditórios, e quando se violam as regras sobre a prova vinculada – como é o caso, designadamente, da prova pericial [artigo 163º] e da prova documental autêntica [169º] – e/ou das legis artis.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[17] ou dar-se como não provado o que não pode deixar de ter acontecido.
Em suma, o vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de, no primeiro caso, não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente[18] e, muito menos, ao juiz “normal”, dotado de cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar.
     
Ora, no caso vertente, o recorrente não explicita como se consubstanciam tais vícios na decisão recorrida.
No que concerne ao erro notório, limita-se a afirmar que «toda a prova produzida e relevante constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, impõem decisão da recorrida», reiterando que os pontos 4, 9 e 10 da matéria de facto dada como provada devem ser julgados não provados em relação a si, pelo que ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova, «sendo que, atentos os dados probatórios recolhidos, o tribunal de recurso poderá, diferentemente, decidir da causa».
Ou seja, contrariamente ao que começou por sustentar, não apela ao texto da decisão recorrida, mas antes aos dados probatórios recolhidos, pretendendo que este tribunal ad quem proceda à reapreciação da prova, exercício que se inscreve na impugnação ampla da decisão da matéria de facto, em consonância com o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, a que supra procedemos, e não no vício decisório previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma.
 No que respeita à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, limita-se a afirmar que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para concluir que praticou o crime de que vinha acusado, não explicitando minimamente as razões de tal afirmação.
Estamos, assim, perante a ausência de substanciação recursiva dos invocados vícios decisórios.
Não obstante, uma vez que são de conhecimento oficioso, sempre se dirá que, analisado o texto da sentença recorrida, por si só e/ou conjugado com os imperativos da lógica e os ditames da experiência comum, não se vislumbra que padeça dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. Decorre da sentença que os factos nela considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão de direito a que se chegou e nela não se deteta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos ou a violação de prova vinculada.
           
3.3 - Os factos praticados pelo arguido não são puníveis, nos termos do artigo 154.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal?
Sustenta o recorrente que os factos por si praticados não são puníveis, alegando, para o efeito, o seguinte:
«(…) o facto não é punível se o agente evitar a prática de facto ilícito típico (artigo 154.º, n.º 3, alínea b) C.P.)» [conclusão 23]; «Se atentarmos à prova produzida em sede de audiência, com especial destaque para as declarações prestadas pela Assistente/Ofendida, dúvidas não há quanto ao facto de o Recorrente ter evitado que a co-Arguida BB agredisse a Assistente» [conclusão 24]; «Também dúvidas não há que a intervenção do Recorrente foi apenas proferir uma expressão, susceptível de interpretação dúbia, e evitar um mal maior. Quanto ao mais, pouco ou nada se disse em relação ao Recorrente» [conclusão 25]; «A expressão proferida pelo Recorrente e a atitude de ter evitado uma agressão, não podem ser interpretados de forma desassociada. E ainda que assim não se entenda, a dúvida impõe-se» [conclusão 26]; «Razão pela qual, e por tudo o que aqui foi exposto, os factos praticados pelo Recorrente não são puníveis» [conclusão 27]
.
Estatui o artigo 154º do Código Penal:
“1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
4 - Se o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adotantes e adotados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, o procedimento criminal depende de queixa”.

O bem jurídico protegido pelo crime de coação é a liberdade de decisão e de ação, podendo o sujeito passivo ser qualquer pessoa.
Em essência, consubstancia-se no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim, sendo que constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.
São, assim, requisitos objetivos do crime de coação: que o agente constranja por meio de violência ou de ameaça com mal importante; outra pessoa a adotar um determinado comportamento; à prática de uma ação; à omissão de uma ação; a suportar uma atividade.
A violência pode ser definida, objetivamente, como o ato de força, físico ou psíquico, que leva alguém a atuar de determinada maneira.
Já o conceito indeterminado “ameaça com mal importante”, cuja densificação a doutrina e a jurisprudência têm levado a cabo, tem-se norteado por ideias que assim se sintetizam: tanto pode ser ilícito como não ilícito, podendo integrar mal importante a ameaça de procedimento jurídico ou de queixa-crime, censurável; a ameaça tem de ser adequada a constranger o ameaçado.
Refere Taipa de Carvalho[19] que «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objetivo individual: objetivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (...) do ameaçado (...)».
A coação é um crime de resultado, pois a perfetibilização consumada do crime não se basta com a mera atividade do agente, mas demanda ainda a produção de um evento como consequência daquela[20].
A consumação do crime de coação basta-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objeto da coação for a prática de uma ação, a coação consuma-se quando o coagido iniciar esta ação. Se o objeto da coação for a omissão ou a tolerância de uma determinada ação, a coação consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir[21].
Além disso, defende o referido autor que «para haver consumação, não basta a adequação da ação (isto é, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante) e a adoção, por parte do destinatário da coação, do comportamento conforme à imposição do coator, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela ação de coação haja uma relação de efetiva causalidade. Se a conduta (ação, omissão ou tolerância de uma determinada ação) do sujeito passivo, isto é, do destinatário da coação – apesar de coincidente com a que o coator impunha – foi livremente decidida ou devida a apelo de terceiros (p. ex., forças policiais, familiares ou amigos) e, não consequência ou resultado direto da ação de coação, isto é, do medo da concretização da ameaça (o que se verifica, quando o sujeito passivo estava decidido a não ceder às exigências comportamentais do coator), não há consumação, mas apenas tentativa».
E, concretizando, «[h]averá tentativa punível quando o destinatário da adequada ação de coação adota um comportamento que objetivamente está conforme a imposição do coator, mas não por medo da coação, mas exclusivamente porque tal corresponde à sua vontade, quer esta vontade já se tenha decidido antes da ação de constrangimento (antes de receber a ameaça coativa) ou só se tenha formado posteriormente. O comportamento do sujeito passivo ou destinatário da coação não é, neste caso, efeito direto da ação de constrangimento e, portanto, apesar da adequação desta, não há consumação, mas apenas tentativa».  
Do ponto de vista do elemento subjetivo, o crime de coação exige o dolo, bastando a modalidade eventual. Assim, não é necessário que a ação do agente vise, especificamente, intimidar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que, sejam quais forem as motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é suscetível de constranger e com tal se conforme.

Feita esta breve caraterização do tipo de ilícito em causa, importa atentar no disposto no n.º 3 do enunciado preceito – que consagra uma cláusula de não punibilidade –, com relevo para a apreciação da específica questão recursiva que ora nos ocupa.
Trata-se de uma causa especial de exclusão da ilicitude da coação ou causa de justificação exclusivamente referida aos tipos legais de crime de coação, assente na relação meio/fim, tendo em perspetiva que o fim justifica o meio coativo, quer este consista em violência ou em ameaça de um mal importante.
Concretamente, a justificação da ação de constrangimento, mesmo que com recurso à violência, para impedir a prática de um facto ilícito típico [al. b)], pressupõe a proporcionalidade entre o meio utilizado (a ação de coação) e o bem jurídico cuja lesão se pretende impedir[22].
Sucede, porém, que, no caso vertente, nada consta dos factos provados que possa integrar a referida causa de exclusão da ilicitude ou causa de justificação.
Na verdade, o recorrente, socorrendo-se, de forma reiterada e persistente, da mesma argumentação que usou para colocar em causa a matéria de facto, parte da premissa de que atuou por forma a evitar que a arguida BB agredisse a assistente, sendo essa a sua única intenção. Todavia, tal não resultou provado, pelas razões antes escalpelizadas.

Assim sendo, improcede esta questão recursiva.

3.4 - A ser condenado, deveria ser enquanto cúmplice, e não como coautor?

Prevenindo a eventual manutenção da condenação pela prática do crime de coação, o recorrente sustenta que, então, o deveria ser na qualidade de cúmplice, e não de coautor, alegando, para tanto, o seguinte:

«Atenta toda a prova produzida em sede de audiência, ainda que se entenda que o Recorrente deva ser condenado, o que não se concebe face ao supra exposto, (…) deveria ser condenado enquanto cúmplice e não como co-autor na medida em que a sua intervenção no dia dos factos cingiu-se à prestação de auxílio moral à sua esposa BB. Devendo, nestes termos, ser aplicada a mesma pena fixada para a co-Autora BB, especialmente atenuada» [conclusão 28]; «Nesse sentido, tendo sido aplicada à co-Arguida BB uma pena de 100 (cem) dias multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 600,00 (seiscentos euros), a mesma pena, especialmente atenuada, deverá ser aplicada ao Recorrente» [conclusão 29].
Vejamos.
Dispõe o artigo 26º do Código Penal que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
De acordo com o enunciado preceito é autor de um crime quem executar o facto, por si mesmo (autoria imediata) ou por intermédio de outrem (autoria mediata), ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros (coautoria).
Assim, a noção de autoria, para além das modalidades de imediata e mediata, abrange também os casos de comparticipação com pluralidade de agentes (coautoria), na qual são essenciais dois requisitos: a) - uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado (acordo prévio); b) - uma execução igualmente conjunta (participação direta, mediata ou imediata na execução do facto).
Faria e Costa[23] defende que “desde que se verifique uma decisão conjunta (“por acordo ou juntamente com outro ou outros“) e uma execução também conjunta estaremos caídos na figura jurídica da coautoria (“toma parte direta na sua execução“). Todavia, para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime (“juntamente com outro ou outros“). É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objetiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada coautor é responsável como se fosse autor singular da respetiva realização típica.

Por seu turno, para Germano Marques da Silva[24] é coautor material quem, em caso de comparticipação, “toma parte direta na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros“. Esta cooperação na execução do crime pode resultar de acordo ou não, mas neste caso importa ainda que os comparticipantes tenham consciência de cooperarem na ação comum.
A coautoria exige, ainda, o domínio funcional do facto, em que cada coautor assume uma função parcial de caráter essencial que o faz aparecer como coportador da responsabilidade da execução em conjunto do facto. A contribuição de cada coautor deve ser tal que a tarefa por si executada surja como uma peça essencial da realização do facto. O domínio funcional do facto, próprio da autoria, significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida.

São, assim, elementos da comparticipação criminosa sob a forma de coautoria:
- A intervenção na fase de execução do crime (execução conjunta do facto);
- O acordo para a realização conjunta do facto, o qual não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto, não tem se ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, e não tem se ser prévio ao início da prestação do contributo do respetivo coautor;
- O domínio funcional do facto, no sentido de deter e exercer o domínio positivo do facto típico, ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do facto típico na forma planeada.
A contribuição de cada coautor deve revelar uma determinada medida e significado funcional, de modo que a realização por cada um do papel que lhe corresponde se apresente como uma peça essencial da realização do facto. O coautor tem que deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e cuja execução se dispôs a levar a cabo. O domínio funcional do facto, próprio da autoria, significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida. Daí que só possa ser coautor quem, segundo a importância da sua contribuição objetiva, comparta o domínio do curso do facto. Cada comparticipante deverá adicionar objetivamente uma contribuição para o facto que, pela sua importância, é mais do que uma mera ação preparatória, embora não tenha necessariamente de entrar no arco da ação típica, bastando que se trate de uma parte necessária da execução do ano global.
 Em síntese, a coautoria requer, no aspeto subjetivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito e prévio ou não à execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como cotitular da responsabilidade pela execução de todo o processo. Por seu lado, no plano objetivo, a contribuição de cada coautor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).
Por seu turno, o artigo 27º do Código Penal contempla a cumplicidade, dispondo o seu n.º 1 que “é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”.
A cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, destinada a favorecer um facto alheio, portanto, de menor gravidade objetiva, mas, embora sem ser determinante na vontade do autor e sem participação na execução do crime, traduz-se em auxílio à prática do crime e, nessa medida, contribui para a sua prática, configurando-se como uma concausa do crime[25].
A cumplicidade está dependente da existência de um facto que tem outrem como autor, estando a sua punibilidade dependente da “existência de um facto principal (doloso) cometido pelo autor (“facto do autor”), dependência a que se dá o nome de acessoriedade da participação[26].
A cumplicidade diferencia-se da coautoria essencialmente pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através do auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor. A cumplicidade traduz-se num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores, nem participa na execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e nessa medida contribui para a prática do crime[27].
Revertendo ao caso dos autos, atenta a factualidade que resultou provada, é evidente que o recorrente não se limitou a prestar auxílio moral à sua esposa, a coarguida BB, como alega. Na verdade, o recorrente assumiu uma postura ativa, concertada com a coarguida e com pleno domínio funcional do facto – ambos se dirigiram a casa da assistente e, atuando em conjugação de esforços e de vontades, ambos deram o seu contributo para a intimidarem, agindo sempre com esse propósito comum de a amedrontarem sob a ameaça de atentarem contra a sua integridade física e, desta forma, obrigá-la a desistir da queixa criminal que havia apresentado contra o filho de ambos.
Estamos, pois, claramente perante a modalidade de coautoria, e não de cumplicidade.

Improcede, igualmente, esta questão recursiva.

3.5 - A pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova é excessiva, impondo-se, antes, a aplicação de uma pena de multa próxima do mínimo legal, quer quanto ao número de dias, quer quanto à taxa diária?

Por fim, o recorrente alega que a aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova é excessiva, «se atendermos ao grau de comparticipação (..) em relação à coarguida BB» [conclusão 30], «não realiza (…) nenhum dos fins das penas, como também não é adequada à culpa do agente (…)» [conclusão 35], impondo-se, antes, tendo em conta o caso concreto, «a aplicação de pena de multa fixada, quanto ao número de dias e quantitativo diário, muito próximo do mínimo legal» [conclusão 36].
Se bem compreendemos, o recorrente pugna, essencialmente pela aplicação de pena de multa, em detrimento de pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução.

Vejamos.
O crime de coação, sob a forma tentada, cometido pelo arguido é punido com pena de prisão de 1 (um) mês a 2 (dois) anos ou pena de multa de 10 (dez) a 240 (duzentos e quarenta dias) – artigos 41º, n.º 1, 47º, n.º 1, e 73º, n.º 1, als. a), b) e c), e 154º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal.
Tratando-se de um crime punível, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, importa, efetivamente, desde logo, proceder à escolha da sanção a aplicar, em obediência ao disposto no artigo 70.º do Código Penal, nos termos do qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
De acordo com o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
As finalidades da aplicação de uma pena residem, assim, primordialmente na tutela de bens jurídicos e na reinserção do agente na comunidade, prevenindo-se a prática de futuros crimes.
A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu regresso à comunidade lesada pela sua atuação, se reporta à denominada prevenção especial.
No âmbito dos fins das penas predomina, segundo Figueiredo Dias, «a ideia de que só finalidades relativas de prevenção geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida»[28].
São, assim, as necessidades de prevenção – geral positiva [tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada] e especial de socialização – que relevam para a decisão de optar pela pena não privativa da liberdade – pena alternativa ou pena de substituição – como resulta dos critérios estabelecidos nos artigos 40º, n.º 1, e 70º do Código Penal, não se divisando qualquer finalidade de compensação da culpa, uma vez que esta, constituindo o limite da pena (cfr. artigo 40º, n.º 2, do Código Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta.
Nessa senda, o tribunal a quo afastou a aplicação da pena de multa – e bem, refira-se –pelas seguintes razões:
«Considerando, desde logo, que o arguido antes da prática do crime em apreço nestes nossos autos sofreu já três condenações e pela prática de sete crimes, sendo um deles precisamente um crime de coacção, ou seja, de igual natureza axiológico normativa ao crime ora em causa, cremos que o mesmo revela uma dificuldade de interiorização da especial valência axiológica dos bens tutelados através do comando penal desatendido e em causa.
Por isso, relativamente ao arguido a escolha que nos ocupa deve incidir sob a pena de prisão, cuja aplicação sempre seria, e de resto, reivindicada pelas considerações mais gerais da prevenção.
Com efeito, a opção pela pena de multa, seria aqui entendida como uma injustificada indulgência e fraqueza contra o crime, comprometendo desse modo a defesa do ordenamento jurídico e as exigências da exteriorização física da reprovação».
E, após, o tribunal a quo procedeu à determinação da medida concreta da pena de prisão, observando os critérios legais pertinentes [em consonância com o estabelecido nos artigos 40º e 71º do Código Penal] e analisando, de forma assertiva, todos os fatores relevantes para o efeito que emergiam da factualidade provada, concluindo como adequada, necessária, proporcional e suficiente a fixação da pena de prisão em 4 (quatro) meses, ponderação que merece a nossa concordância.
De seguida, o tribunal a quo justificou, de forma acertada, a não substituição da referida pena de prisão por multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade nos seguintes termos: «(…) considerando a ressonância que na sociedade provoca o cometimento de crime como o ora em causa aliada à circunstância de o arguido ter antecedentes criminais – antes dos factos em apreço nos autos já sofreu três condenações e pela prática de sete crimes, um deles, precisamente, de coacção tentada - entendemos não ser de substituir a pena de prisão aplicada ao arguido pela pena de multa e por prestação de trabalho, uma vez que estas não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade – cfr. art. 40º do Código Penal».
E, finalmente, explicou amplamente as razões pelas quais entendia que era de suspender a execução da pena de prisão, mediante, além do mais, a imposição de regime de prova, fazendo referência aos dispositivos legais aplicáveis que relevam neste âmbito e sopesando as concretas circunstâncias do caso, num exercício reflexivo isento de reparos.

Improcede, pois, esta última questão recursiva.
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III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar julgar improcedente o recurso interposto nos autos pelo arguido AA, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta (artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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Notifique [artigo 425º, n.º 4, do Código de Processo Penal].
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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 23 de abril de 2024

Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Paulo Correia Serafim [1.º Adjunto]
Madalena Caldeira[2.ª Adjunta]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] Cfr., entre outros, Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37; Paulo Saragoça da Matta, A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença - Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais -  pág. 253.
[5] Vide, neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 e de 09-03-2006, acessíveis em www.dgsi.pt
[6] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[7] In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[8] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.02.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[9] Vide acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017 e de 09.01.2012 e do Tribunal da Relação de Évora de 21.04.2015, disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, reimpressão, Coimbra, 1984, páginas 203 a 205.
[11] Cfr. Figueiredo Dias, “Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal?”, Revista de Legislação e de Jurisprudência 105 (1972-73), págs. 140 e 141.
[12] Vide Cristina Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra Editora, 1997, pág. 28.
[13] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[14] Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[15] Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2018 e 12.06.2019, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[16] In “Curso de Processo Penal”, Vol. III, págs. 339/340
[17] Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 74.
[18] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 341.
[19] In Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.358
[20] Figueiredo Dias, in Direito Penal - Parte Geral – Questões Fundamentais – A Doutrina Geral do Crime, t. I, Coimbra Editora, 2004, pg. 289
[21] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 354 a 359
[22] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 360 e sgs.
[23] In “Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, pág. 170
[24] In “Direito Penal Português, Parte Geral, vol. II, ed. Verbo, págs. 282-283
[25] Cfr. Germano Marques da Silva, ob. e local citados.
[26] Vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.03.2018, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[27] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.03.2014, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[28] Direito penal II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 72/3.