Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ FLORES | ||
Descritores: | LEGITIMIDADE ACTIVA CÔNJUGES ONERAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | - Assentando a acção na alegada existência de um crédito titulado pelo Réu, no qual a Autora e o marido figuram como devedores, garantido este por hipoteca que incide sobre bem imóvel que constitui a casa de morada da família, sendo que, no seu entender, esse direito de crédito se encontra extinto por prescrição ou deve ser considerado inoperante por abuso de direito por parte do Réu, pedindo-se, em consequência disso, que se cancele a referida hipoteca, a Autora é parte ilegítima para demandar sozinha, tendo em conta o disposto no art. 34º, nº.1, in fine, do Código de Processo Civil. - Essa discussão sobre a subsistência de um direito real de garantia consubstanciado na mencionada hipoteca e, indirectamente, do crédito que lhe dá corpo, constitui sem dúvida um risco de oneração da morada de família em apreço que se insere na letra e no espírito da norma contida no citado art. 34º, nº 1. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: I – Relatório Recorrente(s): AA; - Recorrido/a(s): BB. * A Recorrente propôs a presente acção declarativa, sob a forma comum, contra BB, pedindo a condenação do Réu a: 1) Ver declarado prescrito o direito à liquidação da indemnização atribuída por sentença referente ao processo nº...99; em alternativa 2) Ver considerado ilegítimo o direito à liquidação da indemnização referida no ponto anterior; 3) Ver reconhecido o direito de a Autora cancelar a hipoteca judicial que se encontra a onerar o seu prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...13 da freguesia ..., concelho .... Alegou, em síntese, que, juntamente com o seu marido, CC, foi condenada, por sentença de 20 de Outubro de 2001, proferida na acção que correu termos pelo ... Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da Comarca ..., a pagar ao Réu uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pela violação do direito de propriedade deste sobre um imóvel. Na sequência, para garantia de cumprimento, o Réu fez registar hipoteca judicial sobre o prédio urbano descrito na CRP ... sob o n.º ...21. De então para cá, o Réu não requereu a liquidação dessa indemnização e afirmou mesmo, perante a Autora, que prescindia dela. Assim sendo, tendo decorrido já vinte anos, prescreveu o direito de crédito do Réu. Em qualquer caso, deve entender-se que a exigência de tal crédito, depois de o Réu se ter mantido inactivo durante um largo período de tempo, afirmando mesmo não pretender exercer o seu direito, constituiria um abuso do direito, na modalidade da supressio. A consequência, em qualquer uma das alternativas, deve ser o levantamento da hipoteca judicial que onera a casa de morada da família da Autora. Na contestação, o Réu disse, para além do mais, que a Autora foi condenada juntamente com o seu marido, CC, sendo, assim, este também devedor. A hipoteca cuja extinção é pedida recai sobre a casa de morada da família do casal, pelo que o marido da Autora deveria figurar também do lado activo da acção, em litisconsórcio necessário com ela. A Autora respondeu dizendo que o que se pretende é a desoneração da casa de morada de família de uma hipoteca, pelo que, “não só não há possibilidade de perda ou oneração de bens, como, a ser procedente o presente processo [rectius, acção], não se coloca em causa que a decisão tenha efeito útil.” Por despacho de 15 de Dezembro de 2022, a Autora foi convidada a demonstrar o consentimento do seu cônjuge para a propositura da acção ou, em alternativa, requerer a sua supressão judicial. Na sequência veio apresentar requerimento em que, mantendo a posição na resposta que apresentou, pediu que o referido despacho seja dado sem efeito. Após, foi proferido despacho que conheceu da arguida excepção de ilegitimidade activa, julgou verificada essa excepção por violação de litisconsórcio necessário e absolveu o Réu da instância, com custas a cargo da Autora. Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes conclusões: 1) A A. propôs uma acção declarativa, sob a forma comum, pedindo a condenação do R. a: a) Ver declarado prescrito o direito à liquidação da indemnização atribuída por sentença referente ao processo nº...99, em alternativa; b) Ver considerado ilegítimo o direito à liquidação da indemnização referida no ponto anterior; c) Ver reconhecido o direito da A. cancelar a hipoteca judicial que se encontra a onerar o seu prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...13 da freguesia ..., concelho .... 2) O juiz a quo proferiu o despacho ora recorrido no sentido de julgar verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa por falta de consentimento ou prova da supressão do consentimento do cônjuge da A.; 3) O pedido principal da A. – declarar prescrição do direito à indemnização -, a ser deferido, traz-lhe efectivamente um benefício directo. 4) Mas ainda que assim não fosse, o valor a indemnizar sempre afectaria directamente a A., caso houvesse lugar ao pagamento da indemnização. 5) A preterição do litisconsórcio necessário tem origem na lei, no negócio jurídico ou da própria natureza da relação controvertida. 6) Entendeu o juiz a quo, quanto a nós indevidamente, porque não há disposição legal que sustente tal posição, que a questão se situava no âmbito do artigo 34º, nº1 do C.P.C. e do 1682º-A do Código Civil. 7) No entendimento da recorrente a sustentação do tribunal a quo não tem cabimento nas normas insertas nos artigos 34º, nº do C.P.C., e 1882º-A do Código Civil; 8) O espírito do legislador, nas disposições referidas, foi de conferir protecção à casa de morada de família; 9) Nenhuma disposição legal impõe a intervenção de ambos os cônjuges em acção para declarar prescrito o direito à indemnização atribuída por sentença; 10) As disposições legais sustentadas pelo tribunal a quo – arts. 34º, nº1 do C.P.C. e 1682º-A do C.Civ., na sua interpretação que há litisconsórcio necessário entre cônjuges para intentar acção para declarar prescrito o direito à indemnização por parte do R., desonerando, dessa forma, a casa de morada de família de uma hipoteca judicial, é inconstitucional, e como tal deve ser declarada. 11) Inconstitucionalidade essa por violação dos princípios da legalidade, da segurança e da protecção da confiança, insertos no artigo 2º da C.R.P.; 12) Não há na acção intentada pela A. qualquer alienação ou oneração de qualquer bem ou direito que implique a necessidade de litisconsórcio. 13) Aliás, e como sempre defendido e agora reiterado, o que está em causa é a desoneração da casa de morada de família do casal; 14) Violaram-se, desta forma, entre outras, as seguintes normas jurídicas: os artigos 34º, nº1 do Código de Processo Civil.; artigo 1682º-A do Código Civil. Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, e ordenando o prosseguimento dos autos, … O Recorrido não apresentou contra-alegações. II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar: Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[i] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[ii] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[iii] As questões enunciadas pela recorrente podem ser sintetizadas da seguinte forma: · O pedido principal da A. – declarar prescrição do direito à indemnização -, a ser deferido, traz-lhe efectivamente um benefício directo? · A sustentação do tribunal a quo não tem cabimento nas normas insertas nos artigos 34º, nº do C.P.C., e 1882º-A do Código Civil? · As disposições dos arts. 34º, nº1 do C.P.C. e 1682º-A do C. Civ., na interpretação do Tribunal a quo, são inconstitucionais? Colhidos os vistos, cumpre decidir. III – Fundamentos 1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil) São os que emergem do processo, nomeadamente do articulado inicial da Autora, acima reproduzido em súmula, onde se deve encontrar o sustento factual da causa que é aqui relevante. Além disso, considerou o Tribunal a quo assente o seguinte conjunto de factos e conclusões de direito, sic: 1.ª: A dívida que a Autora pretende que seja declarada extinta é uma dí-vida comum do casal; 2.ª: Para garantia de cumprimento do correspondente direito de crédito, o Réu fez registar hipoteca judicial sobre um prédio cuja aquisição foi inscrita pelo cônjuge da Autora, tendo como causa a sucessão hereditária; 3.ª: A Autora e o seu cônjuge são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos; 4.ª: É, assim, de presumir que o direito de propriedade sobre o prédio onerado com a hipoteca não se comunicou ao património comum do casal constituído entre o adquirente e a Autora, continuando, assim, o prédio a ser bem próprio daquele (art. 1722, b), do Código Civil). 5. Verificamos, assim, que a principal pretensão da Autora – a extinção da hipoteca – não é susceptível de lhe trazer qualquer benefício directo. 2. Direito Dispõe o fundamental art. 30º, do Código de Processo Civil que (1) o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Por sua vez, o invocado art. 34º, do C.P.C., na parte que aqui releva, estipula que: 1 - Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família. 2 - Na falta de acordo, o tribunal decide sobre o suprimento do consentimento, tendo em consideração o interesse da família, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 29.º. Está expresso naquela primeira norma que a demandante é considerada parte legítima quando, de acordo com relação controvertida, desenhada por si, tem interesse directo em demandar, exprimindo-se este pela utilidade derivada da procedência da acção. Não se deve confundir essa aferição da legitimidade adjectiva ou processual com a substantiva ou material que lhe dá corpo. Além disso, para completa aferição desse pressuposto processual haverá ainda que ter em conta o disposto no art. 33º, do mesmo Código, que dita o seguinte (1) Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. 2 É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 3 A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. De acordo com esta norma, além da aferição positiva da legitimidade, deveremos proceder a uma avaliação negativa, observando se a configuração subjectiva da lide deixou de fora alguém que, de acordo com a sua definição de litisconsórcio e para o que aqui releva, devia ter demandado conjuntamente com outra pessoa. Isto dito, lembramos que está em causa matéria de conhecimento oficioso (art. 578º, do C.P.C.), ainda que em sede de recurso e, por isso, não existe limitação ao conhecimento desse tema por parte deste Tribunal senão a decorrente da factualidade a considerar. No caso em apreço três questões são colocadas ao Tribunal na petição inicial da Autora: - Saber de o direito de crédito do Réu está prescrito; - Subsidiariamente, saber se a postura omissiva do Réu é ilegítima, à luz do disposto no art. 334º, do Código Civil; - Saber se, na procedência de alguma dessas pretensões, a hipoteca constituída deve ser cancelada. Na sua primeira abordagem ao tema, o Tribunal a quo afirma, tendo em mente o disposto no art. 30º, nº 1, do C.P.C., que a principal pretensão da Autora – a extinção da hipoteca – não é susceptível de lhe trazer qualquer benefício directo, dado que a única consequência do deferimento de tal pretensão será a extinção de um direito real de garantia que onera um bem próprio do respectivo cônjuge e, sendo esse bem a casa de morada da família, apenas por via indirecta uma decisão favorável se irá repercutir na esfera jurídica da Autora. Conclui, por isso, sic, que : O único titular de um interesse directo na extinção da hipoteca é, em rigor, o cônjuge da Autora que, no entanto, por não poder praticar actos de disposição sobre o prédio sem o consentimento desta, sempre teria de agir em juízo com ela ou, pelo menos, demonstrando o seu consentimento ou obtendo, previamente, o respectivo suprimento, por aplicação do disposto no art. 34/1 do CPC, conjugado com o art. 1682-A/1. Mais considera que esse resultado não se altera se se considerar que o bem em causa integra o património comum do casal, dado que até à respectiva divisão, sob a forma de partilha, os cônjuges são detentores de uma quota sobre uma universalidade em titularidade indivisa, uma quota ideal cujo conteúdo se concretiza depois da divisão, acabando por invocar o disposto no art. 34º, n 1, do C.P.C. para concluir que, na procedência ou improcedência da acção, sempre haverá de se considerar a aplicação do art. 34º, nº 1, ou mesmo sucedendo relativamente aos restantes pedidos relacionados com a extinção da dívida, tendo em conta o disposto no art. 1695º, do Código Civil, e a necessidade de garantir o efeito útil normal da acção. Analisando esta fundamentação, diremos, desde logo, que a sentença tende a confundir coisas distintas, esquecendo o fundamental ponto de partida que é sugerido pela norma do art. 30º, nº 2, do Código de Processo Civil: são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. No caso, a Autora assenta a acção na alegada existência de um crédito titulado pelo Réu, no qual ela e o marido figuram como devedores, garantido por hipoteca que incide sobre bem imóvel que constitui a casa de morada da família, sendo que, no seu entender, esse direito de crédito se encontra extinto por prescrição ou deve ser considerado inoperante por abuso de direito por parte do Réu, e, presume-se, pretende ainda que, em consequência disso, se cancele a referida hipoteca. Neste quadro factual, diversamente do que considerou a decisão recorrida, não temos dúvida em considerar que a Autora é titular de um interesse directo em demandar relativamente a todos os pedidos formulados. O que está em causa, de acordo com o figurino por si gizado na petição inicial, é a subsistência de um crédito em que a mesma é devedora e a manutenção de um ónus que incide sobre um imóvel que, independentemente de ser coisa comum do casal ou própria de alguma deles, será casa de morada da família em questão e, por isso, a mesma tem, em princípio, um interesse legítimo e directo em discutir tal matéria. No que contende com esta última questão, relacionada com a extinção da hipoteca, essa discussão só poderia estar em causa se se desconsiderasse o disposto no citado no art. 34º, nº 1, no qual o legislador inscreveu claramente, para além do conceito geral do citado art 33º, a existência de um interesse legítimo de qualquer um dos cônjuges em demandar nos casos em que esteja em causa a casa de morada de família afirmando que isso inclui todas as acções que a tenham por objecto, directa ou indirectamente. Portanto, se o que está em causa é a casa de morada de família e não o conceito de “património comum do casal”, relativamente a essa primeira matéria, a Autora não só tem interesse directo em discutir, paralelo e igual ao do seu cônjuge, como isso lhe é expressamente reconhecido pela previsão do art. 34º, nº 1. Questão complementar é, concretizando, saber se a presente acção se insere naquelas “acções de que possa resultar a perda ou a oneração” da casa de morada de família. Na verdade, não só se requer, por um lado, que normas de direito substantivo exijam a intervenção de ambos em negócios jurídicos de disposição, ou semelhantes, do direito a que a acção se reporta mas também, por outro, que considerado o objecto do processo, a eventual improcedência do pedido tenha (em virtude da formação de caso julgado) um resultado equivalente à perda ou oneração (ou a certas limitações) desse direito (no pressuposto de que existisse), se ele um direito real (perda ou oneração de bens) ou um direito de outra natureza (perda de direitos), incluindo as acções em que, qualquer que seja o regime de bens do casal, se discuta a constituição de direitos reais ou de direitos pessoais de gozo, dos cônjuges ou de terceiro, sobre a casa de morada de família (arts. 1682º.- A, nº 2[iv], e 1682º.-B, do Código Civil) [v]. Quanto este elemento relacionado com o índole da acção e o risco ou eventum litis que envolve, este há-de medir-se, em geral, através da possível improcedência do pedido formulado pelo autor.[vi] Descendo ao caso, em sintonia com o entendimento propugnado pela decisão em crise, entendemos que a discussão sobre a subsistência de um direito real de garantia consubstanciado na mencionada hipoteca constitui sem dúvida um risco de oneração da morada de família em apreço que se insere na letra e no espírito da norma contida no citado art. 34º, nº 1. Com efeito, ainda que, por algum sortilégio, se concluísse a presente acção somente com a Autora na sua demanda, a sua eventual improcedência não deixaria de consubstanciar a consolidação desse ónus, com caso julgado na pessoa da demandante mas também, reflexamente, no seu cônjuge, que veria assim definitivamente decidida a subsistência desse ónus relativamente ao mesmo imóvel e direito de morada. Neste conspecto, temos de subscrever a decisão da primeira instância quando considera que a Autora é parte ilegítima para, sozinha, formular esse pedido relacionado com a dita hipoteca. Mais se acrescenta, em concordância com o decidido, que o efeito da excepção assim reconhecida é aqui inevitável, dado que a Autora negligenciou a opção de fazer intervir o marido ou desencadear a acção própria para suprir a falta do consentimento, neste último caso por via o disposto no art. 34º, nº 2, do C.P.C.. No que contende com os pedidos que visam a extinção ou impedimento do direito de crédito do Réu, por prescrição ou abuso de direito, julgamos que a posição defendida pela sentença, salvo o devido respeito, não tem o devido sustento. Desde logo, não se encontram os factos nos quais a decisão assentou a conclusão de que a dívida em causa é uma dívida comum do casal, subsumível à previsão do art. 1695º, do Código Civil. É que, o que transparece dos autos, nomeadamente da certidão junta com a p.i. fls. 23 e ss., é que o crédito ilíquido declarado em juízo é indemnizatório e tem a sua génese na “violação do direito de propriedade” do Réu por parte da Autora e do seu marido. Ora, do art. 1692º, al. b), do Código Civil, resulta que são de exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam: a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, por cada um dos cônjuges sem o consentimento do outro, fora dos casos indicados nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo anterior; b) As dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges, salvo se esses factos, implicando responsabilidade meramente civil, estiverem abrangidos pelo disposto nos nº 1 ou 2 do artigo anterior; (…). Deste modo, pressupondo, de acordo com essa configuração feita pela Autora, que a condenação conjunta em apreço apenas envolve os dois membros do casal por via da solidariedade prevista no art. 497º, do Código Civil, e da co-autoria que os terá envolvido, não estamos, verdadeiramente, perante uma “dívida comum” ou de responsabilidade de ambos os cônjuges de acordo com o regime especial estabelecido nos arts. 1690º, e ss., do Código Civil, mas sim perante uma dívida conjunta destes supostos agentes da responsabilidade civil apurada naquele juízo que, aliás, é expressamente excluída daquele regime no citado art. 1692º, al. b), do C.C., e os responsabiliza individualmente. Nesse pressuposto, não encontramos razões para, na parte activa desta demanda, envolver discussões e argumentos que se prendem com a legitimidade passiva em acções relacionadas com as dívidas comuns dos cônjuges e a sua cobrança coerciva, que emerge do regime distinto previsto nos arts. 1690º e ss., do Código Civil, e das normas adjectivas que o reflectem. Sem prejuízo disso, julgamos que os pedidos em apreço não deixam de envolver, por via indirecta ou reflexa, a casa de morada de família em apreço, na medida em que o direito de crédito que se quer ver discutido é precisamente aquele que subjaz à hipoteca que onera o imóvel onde alegadamente está instalada essa morada. Neste conspecto, ainda por via do disposto no art. 34º, nº 1, do Código de Processo Civil, julgamos que também no que toca aos pedidos de declaração de prescrição ou de abuso de direito a Autora é parte ilegítima, pelas razões acima apontadas. E não se diga que a interpretação acima feita constitui violação dos princípios da legalidade, segurança e confiança jurídica, alegadamente insertos no art. 2º, da Constituição da República Portuguesa. O que estabelece esse art. 2º é que: A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. Ora, a conclusão da Apelante nessa matéria é lacónica, inconsistente com o que verdadeiramente expressa essa norma e abstém-se de discutir minimamente os princípios que invoca, em confronto com os argumentos considerados pela decisão recorrida, razão pela qual deve improceder. IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação. Condena-se nas custas da apelação, a Recorrente (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil). N. * Sumário[vii]:- Assentando a acção na alegada existência de um crédito titulado pelo Réu, no qual a Autora e o marido figuram como devedores, garantido este por hipoteca que incide sobre bem imóvel que constitui a casa de morada da família, sendo que, no seu entender, esse direito de crédito se encontra extinto por prescrição ou deve ser considerado inoperante por abuso de direito por parte do Réu, pedindo-se, em consequência disso, que se cancele a referida hipoteca, a Autora é parte ilegítima para demandar sozinha, tendo em conta o disposto no art. 34º, nº.1, in fine, do Código de Processo Civil. - Essa discussão sobre a subsistência de um direito real de garantia consubstanciado na mencionada hipoteca e, indirectamente, do crédito que lhe dá corpo, constitui sem dúvida um risco de oneração da morada de família em apreço que se insere na letra e no espírito da norma contida no citado art. 34º, nº 1. * Guimarães, 7/6/2023. Relator – Des. José Manuel Flores 1º - Adj. Des. Fernanda Proença Fernandes 2º - Adj. Des. Anizabel Sousa Pereira [i] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106. [ii] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13. [iii] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107. [iv] 1. Carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens: (…) 2. A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges. [v] Cf. Lebre de Freitas e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 1999, ps. 59/60 [vi] Antunes Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 2ª Ed., ps. 174/175 [vii] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil. |