Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1561/05.3TBEPS-I.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: EXECUÇÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
PARTILHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Seja a partilha efectuada através dos procedimentos referidos nos art.ºs 210º F e 210º H, do CRCivil, através de escritura pública ou inventário, a mesma só pode ser demonstrada validamente através de, respectivamente, certidão emitida pelo Conservador, pelo Notário ou pelo tribunal em que correu termos o inventário
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

A 08/01/2020, por apenso ao processo de Incumprimento de responsabilidades parentais com o n.º 1561/05...., BB intentou, contra AA, execução especial por alimentos

A 16/01/2020 o Sr. Agente de execução juntou aos autos carta de notificação, mediante registo e AR, endereçada a CC, com o seguinte teor:
“Fica V. Exa. formalmente notificada, na qualidade de cabeça de casal / herdeira, da herança aberta por óbito de DD, falecido em .../.../2019, de que foi penhorado o direito e acção/quinhão, da mesma, pertencente ao executado AA, nif ..., para garantia do pagamento da quantia de 30.250,92 euros, acrescida de juros, custas e demais despesas, advertindo-se que o direito do executado fica à ordem do Agente de Execução, não podendo ser objecto de cessão, oneração ou alienação, salvo mediante venda judicial ou extrajudicial no âmbito dos autos de execução supra referidos.
Fica ainda notificado de que pode, no prazo de 10 dias, fazer as declarações que entender quanto ao direito penhorado e ao modo de o tornar efectivo.”

 A 23/01/2020 foi junto aos autos, o AR assinado a 20/01/2020, pela destinatária, CC.

A 05/02/2020 foi junto aos autos “Auto de Penhora“, “do direito e acção / quinhão, na herança aberta por óbito de DD, falecido em .../.../2019, em que é cabeça de casal EE.”

A 05/02/2020 o Sr. Agente de Execução juntou aos autos carta de notificação, mediante registo e AR, do executado, com o seguinte teor (parcial):
“Nos termos do disposto nos artigos 626º e 856º do Código Processo Civil (CPC), fica pela presente citado para os termos do presente processo executivo, tendo o prazo de 20 (vinte dias) para:
a) Pagar a quantia em dívida, juros e custas; ou querendo,
b) Deduzir oposição à execução através de embargos de executado; e/ou
c) Deduzir oposição à penhora;
(…)”

A 19/02/2020 foi junto aos autos, o AR assinado pelo executado.
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O executado deduziu embargos de executado (apenso E)), indeferidos liminarmente por decisão de 15/06/2020.

O executado interpôs recurso, mas as alegações não foram admitidas.
*

A 13/07/2020 o Sr. Agente de Execução juntou aos autos notificação endereçada ao executado, mediante registo, com o seguinte teor:

“Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 812º do C.P.C., fica V. Exa. notificado na qualidade de executado, para no prazo de DEZ DIAS, se pronunciar quanto à modalidade da venda, bem como qual o valor que atribui ao bem penhorado.
Caso não se pronuncie, no prazo supra indicado, desde já também fica notificado que a venda será feita por leilão eletrónico, nos termos do disposto no artº 837º do C.P.C., sendo o valor atribuído o correspondente a 85% da parte do executado na referida herança, do V.P.T. dos imóveis e do valor atribuído aos móveis.”

A 29/10/2020, o Sr. Agente de Execução juntou aos autos notificações endereçadas às partes, respectivos mandatários e à cabeça de casal, CC, informando que “foi dado início ao leilão online LO692392020, conforme informação da plataforma que se anexa.”

A 11/11/2020 o executado requereu a “declaração de nulidade de todo o processado, em momento anteriormente à penhora e a imediata suspensão da venda que está a decorrer em leilão electrónico, com a referência ....”

Com este requerimento juntou cópia de “Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos – Habilitação de herdeiros n.º .../2019”, sendo “Autor da herança: DD”.

A 30/11/2020 a cabeça de casal EE veio dizer que “é legítima titular do quinhão hereditário a que tinha direito o Executado, AA na herança ilíquida e indivisa por óbito de DD, pai do executado, conforme se comprova da certidão de escritura pública de dação em Pagamento outorgada em 17-11-2020, documento que se junta sob o nº 1 e que se reproduz para todos os efeitos legais.” e requerer “seja lavrado termo de protesto, nos termos do nº 1, do artigo 840º do Código de Processo Civil, que incide sobre o quinhão hereditário do executado, AA, na herança ilíquida e indivisa por óbito de DD; consignando-se que a Requerente irá intentar no prazo de 30 dias acção de reivindicação contra o executado e exequente.”

Com este requerimento juntou certidão de escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., a 17/11/2020, denominada “Dação em pagamento”, em que intervieram como 1º outorgante AA e 2º outorgante EE e em que o primeiro declarou:
“Que é devedor à segunda outorgante, da quantia global de vinte e oito mil e trezentos euros, titulada por duas letras de câmbio (…) que não foram pagas nas datas dos respectivos vencimentos.
Que, na sequência do não pagamento das letras em causa, a aqui segunda outorgante, na qualidade de exequente, intentou contra o primeiro outorgante, na qualidade de executado, uma execução ordinária, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... (…)
Que, na pendência do referido processo executivo, os aqui primeiro e segunda outorgantes, e face à impossibilidade do primeiro outorgante em proceder ao pagamento daquele montante em dívida, apresentaram um termo de transação, por eles subscrito em cinco de fevereiro de dois mil e vinte, pelo qual o aqui primeiro outorgante acordou entregar à segunda outorgante, para pagamento daquela quantia em dívida (…), o quinhão hereditário a que o mesmo tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, DD.
Que, pela presente escritura, vem dar cumprimento ao acordado no referido termo de transação, pelo que, por este ato, dá à segunda outorgante, CC (…), em pagamento integral da referida quantia exequenda (…), o quinhão hereditário a que tem direito, na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, DD (…)
Que o quinhão ora cedido, equivale a um quarto da referida herança e corresponde à quota ideal de um oitavo do valor do património do falecido, que compreende bens imóveis e móveis, cujo valor patrimonial tributário correspondente àquele direito é de treze mil quatrocentos e oitenta e nove(a) euros e sessenta e quatro cêntimos (…)

E declarou a segunda outorgante:
“Que aceita a presente dação em cumprimento que o primeiro acaba de lhe fazer, nos precisos termos exarados e em consequência declara extinta a mencionada dívida”.

A 07/12/2020 foi proferido despacho que decidiu:
- quanto ao requerimento do executado: “Pelo exposto, determino o integral cumprimento do disposto no art.º 781º, n.º 1 do CPC, dando sem efeito os atos tendentes à venda do bem penhorado, os quais deverão ser repetidos uma vez suprida a irregularidade.”
- quanto ao requerimento da cabeça de casal CC:
“ (…)
Resumindo, uma vez que a transmissão do bem penhorado é inoponível à exequente, não deve ser lavrado termo de protesto.
Pelo exposto, decido indeferir o requerido.”
*

A 30/11/2020 EE, por apenso à execução em referência, deduziu embargos de terceiro contra os aqui exequente e executado, invocando que: era legítima titular do quinhão hereditário a que tinha direito o executado, na herança ilíquida e indivisa por óbito de DD, pai daquele; a outorga da escritura pública de dação em pagamento e consequente formalização extrajudicial da aquisição do quinhão hereditário por parte da Embargante resulta do termo de transação realizado no dia 05-02-2020 no processo que identifica, em que a Embargante é Exequente e o aqui executado, é também Executado.

A 07/12/2020 foi proferida decisão com o seguinte teor:
“Resumindo: seja porque foram deduzidos fora de tempo, seja porque são manifestamente improcedentes, os presentes embargos devem ser liminarmente indeferidos.
Pelo exposto, decido indeferir liminarmente os presentes embargos.”

Da referida decisão não foi interposto recurso
*

A 27/01/2021 o Sr. Agente de Execução veio solicitar fosse informado “se houve qualquer pronúncia por partes dos herdeiros FF e GG, quanto às notificações aos mesmos efectuadas.”

Na mesma data a Secretaria informou não ter havido qualquer pronúncia por parte daqueles.

A 07/05/2021 o Sr. Agente de Execução juntou aos autos notificação endereçada às partes, respectivos mandatários, cabeça de casal e herdeiros, “para no prazo de DEZ DIAS, se pronunciar quanto à modalidade da venda, bem como qual o valor que atribui aos bens penhorados (quinhão hereditário).
Caso não se pronuncie, no prazo supra indicado, desde já também fica notificado que a venda será feita por leilão eletrónico, nos termos do disposto no artº 837º do C.P.C., sendo o valor atribuído o constante do auto de penhora.”

A 12/07/2021 a exequente veio dizer que a 16 de janeiro de 2020, através de notificação à cabeça-de-casal, foi penhorado o quinhão hereditário a que o Executado tem direito por óbito de seu pai, DD; da referida herança fazem parte os imóveis que indica; o Executado, a cabeça-de-casal e os demais herdeiros tinham perfeito conhecimento da penhora do quinhão hereditário pertencente ao Executado; a Exequente teve conhecimento que aqueles imóveis foram adjudicados aos demais herdeiros, com exceção do Executado, por partilha que teve lugar a 19/11/2020; a verificada transmissão é ineficaz relativamente à Exequente, por força do disposto no artigo 819º do CC.

E requereu:
- (…) seja declarada nula a partilha efetuada por óbito de DD, em virtude de sobre os bens que compõem o acervo hereditário existir penhora efetivada nos presentes autos para garantia do pagamento da quantia exequenda;
- em alternativa, deverão os adquirentes dos bens assumir a posição do Executado e efetuar o pagamento da quantia exequenda, em virtude de terem adquirido os identificados bens com perfeito conhecimento da existência do ónus de penhora do quinhão pertencente ao Executado, sendo que, tal transmissão é inoponível à exequente.

Juntou um conjunto de Cadernetas Prediais e Certidões da CRPredial.

A 13/09/2021, o executado pronunciou-se, dizendo que não foi efetuada qualquer partilha de bens por óbito de seu pai DD e o direito do executado já se encontra decidido por sentença proferida no apenso de Embargos de Terceiro, processo nº 1561/05.....

A 21/09/2021 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“(…)
As pretensões formuladas pela exequente não podem, no entanto, ser atendidas.
Na realidade, ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, carece em absoluto de base legal que este tribunal, incidentalmente no âmbito deste processo, declare a nulidade de qualquer acto de partilha dos bens deixados por óbito de DD que tenha efectivamente existido. Tal pretensão da exequente apenas poderá ser exercitada através do meio próprio, que será uma acção declarativa comum, e no confronto com todos os interessados que tenham legitimidade para a contestar.
Bem assim, também não se encontra base legal para que, com fundamento nas razões vertidas pela exequente no requerimento em apreço, os adquirentes dos imóveis que integrariam o acervo partilhado assumam, digamos assim, a qualidade de executados, ficando eles obrigados a pagar a quantia exequenda.
O artigo 819º do Código Civil prescreve que são inoponíveis ao exequente os actos de disposição, oneração ou arrendamento realizados posteriormente à penhora, ou seja, não obstante ocorrer um acto de disposição ou de oneração dum bem que esteja já apreendido em processo de execução, esse acto será ineficaz em relação ao exequente, podendo este continuar a promover a sua venda com vista à satisfação do crédito. Não resulta daquele normativo que o beneficiário da transmissão seja, sem mais, chamado a ocupar a posição do executado.
Além disso, aquele mesmo artigo 819º do Código Civil ressalva as regras do registo. Ora, tanto quanto resulta do processado – e, designadamente, das certidões do registo predial agora juntas – não consta que a penhora do quinhão hereditário que o executado detém (ou detinha) na herança aberta por óbito de DD tenha sido já levada ao registo, como impõe o artigo 781º, nº 1 do Código de Processo Civil (lido a contrario sensu).
Nestes termos, decide-se indeferir as pretensões da exequente.

Não foi interposto recurso do citado despacho.

Entretanto a 26/01/2022 a exequente apresentou requerimento alegando que foi penhorado o direito e ação/quinhão a que o Executado AA detinha na herança aberta por óbito de seu pai, DD; tal penhora foi efetuada no dia 16/01/2020, através de notificação à cabeça-de-casal da identificada herança, recebida no dia 20/01/2020, tendo sido elaborado auto de penhora, datado de 05/02/2020; aquela herança era composta pelos bens que indica; o Executado deduziu embargos, que foram julgados improcedentes; EE, deduziu Embargos de Terceiro, que foram liminarmente indeferidos; a dação em pagamento, efetuada pelo Executado à sua mãe, através daquela escritura outorgada em 17/11/2020, ainda que faça referência a uma alegada transação formalizada no processo que indica, sempre será inoponível à Exequente; quer a transação de 05/02/2020, quer a escritura de 17/11/2020 são posteriores à penhora concretizada em 20/01/2020; não obstante, o Executado, e demais co-herdeiros, seus irmãos e mãe, procederam à partilha dos bens que compunham a herança por óbito de DD, adjudicando-os em comum e sem determinação de parte ou direito, sem que ao Executado coubesse qualquer bem; tal adjudicação em partilha ocorreu em 19/11/2020; efetuada a partilha e integrados os bens herdados nos patrimónios de cada um dos herdeiros a quem foram adjudicados, deixa de poder falar-se em bens da herança e os herdeiros respondem pelos encargos em proporção das quotas que lhes tenham cabido na herança, mas não necessariamente e só com os bens herdados, podendo, até àquela proporção, ser penhorados quaisquer bens do seu património, de harmonia com o disposto no art. 2098º do C.C.

E requereu:
“(…) Se digne ordenar o prosseguimento da execução, como se partilha não tivesse ocorrido, sobre o direito penhorado e, em consequência:

Deverá ser:
a) declarada ineficaz a escritura pública de partilha e inoponível em relação à Exequente;
b) determinado o prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos ao pedido de adjudicação do quinhão hereditário;
c) nomeada a Exequente fiel depositária de todos os bens que compõem a herança;
d) ordenado o cancelamento de todos os registos realizados na sequência da partilha.
Se assim não se entender,
Devem os herdeiros a quem foram adjudicados os bens que faziam parte da herança responder pelos encargos resultantes da penhora na proporção das respetivas quotas-partes, com os bens herdados ou quaisquer outros bens do seu património, até àquela proporção.”

A 10/02/2022 o executado pronunciou-se dizendo:
“Dá-se por reproduzido o teor do requerimento de 13-09-2021, com a referência citius nº ...17 e o teor do despacho proferido nos presentes autos em 21-09-2021, com a referência citius nº ...18, que recaiu sobre o requerimento da exequente com a referência citius nº ...15.”

A 11/03/2022 foi proferido o seguinte despacho:
“ (... [Esta parte corresponde ao relato do requerimento da exequente e da pronúncia do executado que por já referidas, se omitem.].. )
Para a decisão das pretensões agora formuladas pela exequente, são relevantes os seguintes factos, que ressaltam da análise do processado:
 No dia 08.01.2020, BB instaurou contra AA a presente execução, com vista à cobrança coerciva da quantia de € 30.0250,92;
 Por requerimento de 14.01.2020, a exequente indicou à penhora o “Quinhão hereditário a que o executado tem direito na herança aberta por óbito de seu pai, DD, falecido em .../.../2019”;
 Com data de 16.01.2020, o agente de execução notificou a cabeça-de-casal naquela herança, EE, nos seguintes termos: “Fica V. Exa. formalmente notificada, na qualidade de cabeça de casal/herdeira, da herança aberta por óbito de DD, falecido em .../.../2019, de que foi penhorado o direito e acção/quinhão, da mesma, pertencente ao executado AA, nif ..., para garantia do pagamento da quantia de 30.250,92 euros, acrescida de juros, custas e demais despesas, advertindo-se que o direito do executado fica à ordem do Agente de Execução, não podendo ser objecto de cessão, oneração ou alienação, salvo mediante venda judicial ou extrajudicial no âmbito dos autos de execução supra referidos. Fica ainda notificado de que pode, no prazo de 10 dias, fazer as declarações que entender quanto ao direito penhorado e ao modo de o tornar efectivo.”.
 Essa notificação foi recebida pela identificada cabeça-de-casal no dia 20.01.2020.
*
No âmbito do processo executivo, a satisfação do direito do exequente é conseguida mediante a transmissão de direitos do executado, seguida, no caso de ser feita para terceiro (através da venda executiva), do pagamento da quantia exequenda. Para que essa transmissão e pagamento se realizem, há que proceder previamente à apreensão dos bens que constituem o objecto desses direitos. Essa apreensão judicial dos bens do executado é efectivada através da penhora.
Com a realização da penhora, os bens ou direitos que dela forem objecto passam a estar juridicamente afectados aos fins da execução (a satisfação coerciva do direito do credor), ficando o executado impedido de exercer plenamente os poderes que integram os direitos de que sobre eles é titular.

Da penhora resultam essencialmente três efeitos jurídicos, a saber:
a) A transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado; b) A ineficácia  relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes; c) A constituição de preferência a favor do exequente. – Cfr. José Lebre de Freitas, «A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013», 7ª ed., Gestlegal, 2017, págs. 233 e 301/302.

Tais efeitos resultam da conjugação dos normativos constantes do artigo 822º, nº 1 do Código Civil – “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior” – e do artigo 819º do Código Civil – “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
Para o caso de que agora nos ocupamos, tem especial relevância o efeito da penhora a que alude este artigo 819º do Código Civil: a ineficácia dos actos dispositivos ou de oneração subsequentes à realização da penhora.

Nas palavras de Lebre de Freitas (ob. cit., pág. 304), “O executado perde os poderes de gozo que integram o seu direito, mas não o poder de dele dispor. Mantém, assim, a titularidade dum direito esvaziado de todo o seu restante conteúdo. E, sendo assim, continua a poder praticar, depois da penhora, actos de disposição ou oneração.
Os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados comprometeriam, no entanto, a função da penhora se tivessem eficácia plena. Por isso, são inoponíveis à execução. Não se tratando de actos nulos, mas apenas relativamente ineficazes, eles readquirirão eficácia plena no caso de a penhora vir a ser levantada. Mas se, pelo contrário, da execução resultar a transmissão do direito do executado, o direito do terceiro que tiver contratado com o exequente caduca, embora transferindo-se, por sub-rogação objectiva, para o produto da venda (artº 824º CC)”
No caso em apreço, temos uma penhora que recaiu sobre o quinhão de que o executado era titular na herança aberta por óbito do seu pai, DD, falecido a .../.../2019.
Sobre o modo e formalidades da efectivação da penhora de quinhão hereditário, rege o artigo 781º do Código de Processo Civil, que, no nº 1, assim dispõe:
 “Se a penhora tiver por objeto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada”
Decorre deste normativo que, no caso de a penhora incidir sobre quinhão do executado em património autónomo (como é a herança), o procedimento a observar consiste unicamente na notificação pessoal do facto ao administrador dos bens (aqui, ao cabeça-de-casal) e aos contitulares (restantes herdeiros), com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada.
Seja a herança composta ou não por bens sujeitos a registo, como são os imóveis, a penhora de quinhão em património autónomo, diferentemente do que sucede com a penhora de direito a bem indiviso (v.g. da quota do comproprietário), efectiva-se com a mera notificação do acto ao cabeça-de-casal e aos restantes contitulares, produzindo a penhora efeitos desde a data da primeira notificação efectuada.
Esta penhora não carece de ser registada, nem a produção dos seus efeitos em relação a terceiros está dependente de registo. Ainda que, repete-se, a herança seja integrada por bens imóveis ou por bens móveis sujeitos a registo. É o que expressamente resulta do artigo 5º, nº 2, al. c) do Código do Registo Predial. – Cfr., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. II, Almedina, 2020, pág. 172;

Assim se decidiu, p. ex., no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 11.07.2019, proc. nº 318/08.4TBPSR-A, e no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2019, proferido no proc. nº 171/17.7T8MFR, publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário é, na parte que agora releva, do seguinte teor:

“I - A penhora do direito do executado a herança indivisa efectua-se mediante notificação do facto ao cabeça-de-casal e aos demais herdeiros, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação.
II- Esta penhora não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados, integrando a exceção consagrada na al. c), do nº2, do artigo 5º do Código de Registo Predial”.

Ora, nesta execução a penhora do quinhão hereditário do executado na herança aberta por óbito do seu pai efectivou-se, como se viu, no dia 20.01.2010, data em que a cabeça-de-casal foi notificada pelo Sr. Solicitador de Execução nos termos e para os efeitos previstos no artigo 781º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil. A partir daquela data, a penhora produziu os efeitos que lhe são próprios, nomeadamente aquele que decorre do citado artigo 819º do Código Civil – a ineficácia relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes.
Em anotação a esse preceito legal, ensinavam já Pires de Lima e Antunes Varela que “(…) têm os tribunais entendido que, penhorado o direito e acção do executado a herança indivisa, nos termos do artigo 862º do Código de Processo Civil, a partilha realizada na pendência da execução é inoponível ao exequente (Ac. do S.T.J., de 28-04-1975, no B.M.J., 246, pág. 114). A tese de que a penhora do direito se converte imediatamente na penhora dos bens com que a quota do executado foi preenchida só poderá ser aceite se o penhorante tiver intervindo, como interessado, na realização da partilha e a tiver aceitado (Anselmo de Castro, Acção Executiva, 2ª ed., págs. 159 e segs.). Nesse sentido, Vaz Serra (R.L.J., ano 109º, págs. 173 e segs.)”.
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação ao artigo 781º do Código de Processo Civil, na obra acima citada referem que “(…) se, após a penhora do direito à herança indivisa do executado, os herdeiros procederem a partilha extrajudicial, esta é ineficaz em relação ao exequente, devendo a execução prosseguir como se a partilha não se tivesse realizado”.

Este tem sido o entendimento também seguido pela jurisprudência, sendo disso exemplo, entre outros, para além do já citado Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2019, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 29.05.2012, proc. nº 1718/03.1TBILH, ou o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 29.01.2015. Este último, proferido no proc. nº 164/03.1TABGC-C, e também acessível em www.dgsi.pt., contém extensa fundamentação sobre a questão agora em apreço, tendo recaído sobre um caso em tudo similar ao que aqui nos ocupa. Aí se decidiu que (sumário):

“I - O exercício e efectivação, pelo herdeiro, do seu direito e acção à herança indivisa, promovendo a respectiva partilha e obtendo nesta o preenchimento da sua quota (ideal) mediante a atribuição do direito (real) sobre bens daquela, ainda que em compropriedade, é um acto de disposição, ou pelo menos de modificação, que contende com os direitos dos credores no processo executivo, à ordem do qual aquele se encontrava penhorado, nos termos do artº 862º, do CPC.
II - Por isso, tendo tal partilha sido acordada e realizada – à revelia daquele processo e do exequente –, por todos os co-herdeiros, já depois de notificados da penhora e advertidos dos seus efeitos, ela é ineficaz em relação àqueles, por força do artº 819º, do Código Civil.
III - Também por isso, não há conversão automática da penhora daquele primitivo direito no da penhora dos bens que ao executado herdeiro hajam sido atribuídos, em que sucedeu e de que se tornou titular.
IV - Em consequência, a execução pode e deve prosseguir, como se partilha não tivesse havido, sobre o direito penhorado, acto este não sujeito a registo predial”.

Sendo assim, como é, impõe-se concluir, como faz a exequente, que a partilha da herança deixada pelo pai do executado que os herdeiros realizaram após a penhora e sem a intervenção da aqui exequente (partilha que terá ocorrido a 19.11.2020), não produz quaisquer efeitos em relação a esta, devendo a execução prosseguir os seus termos no que concerne ao quinhão hereditário penhorado ao executado, com a sua venda ou com a sua adjudicação à exequente, nos termos dos artigos 799º e segs. do Código de Processo Civil, caso essa seja a sua vontade.
Já as restantes pretensões formuladas pela exequente no requerimento em apreço, não podem ser atendidas.
Resulta do já exposto que a realização da partilha em data posterior à da penhora do quinhão hereditário do executado não torna aquele acto nulo ou anulável. O executado mantém o poder de dispor ou de onerar os bens e direitos que lhe sejam penhorados, não sendo esses actos de disposição ou oneração nulos ou anuláveis. Apenas são ineficazes em relação à exequente. Donde, ainda que outras razões não existissem (e existem), logo por aí estaria vedado a este tribunal ordenar o cancelamento dos registos que foram realizados com base na partilha em questão.
Também carece de fundamento a pretensão da exequente no sentido de ser constituída depositária de todos os bens que compõem a herança do pai do executado. A penhora efectivada neste processo recaiu sobre o quinhão do executado nessa herança, e não sobre quaisquer bens concretos e determinados, ou sobre qualquer fracção deles. Isso mesmo resulta do preceituado no artigo 743º, nº 1 do Código de Processo Civil. Não estando penhorados os prédios, inexiste fundamento para que deles sejam desapossados os seus eventuais detentores e constituída depositária a aqui exequente.
Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele, e ordena-se os ulteriores termos da execução com vista à venda ou à adjudicação do quinhão hereditário penhorado nestes autos a 20.01.2020.”

O executado interpôs recurso do citado despacho, pedindo que o mesmo seja declarado nulo ou, caso assim não se entenda, deve o mesmo ser revogado e indeferido o requerido pela exequente, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:


No processo à margem identificado a exequente em incidente anómalo, em 26-01-2022, requereu ao Senhor Juiz, requerimento que se dá como reproduzido, com a referência citius ...36, pedindo o seguinte, transcreve-se:
“…
Requer-se de V. Exª Se digne ordenar o prosseguimento da execução, como se partilha não tivesse ocorrido, sobre o direito penhorado e, em consequência:

Deverá ser:
a) declarada ineficaz a escritura pública de partilha e inoponível em relação à Exequente;
b) determinado o prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos ao pedido de adjudicação do quinhão hereditário;
c) nomeada a Exequente fiel depositária de todos os bens que compõem a herança;
d) ordenado o cancelamento de todos os registos realizados na sequência da partilha.
Se assim não se entender,
Devem os herdeiros a quem foram adjudicados os bens que faziam parte da herança responder pelos encargos resultantes da penhora na proporção das respetivas quotas-partes com os bens herdados ou quaisquer outros bens do seu património, até àquela proporção.
…”

O executado respondeu ao requerimento supra identificado, nos termos do requerimento junto aos autos em 10-02-2022, documento com a referência citius ...83, que se dá como reproduzido, do qual resulta a posição já anteriormente expressa nos autos, folhas 105, de que não foi efetuada qualquer partilha de bens por óbito de seu pai DD, e que o direito do executado já se encontra decidido por sentença proferida no apenso de Embargos de Terceiro, processo nº 561/05...., deste Juízo.

Em 11-03-2022, pelo Senhor Juiz titular do processo, foi proferido despacho, documento com a referência citius ...20, decidindo nos seguintes termos, cita-se:
“…
Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele, e ordena-se os ulteriores termos da execução com vista à venda ou à adjudicação do quinhão hereditário penhorado nestes autos a 20.01.2020.
…”

Na descrição da matéria de facto, o despacho recorrido, considerou como relevantes para a decisão, os seguintes factos; transcreve-se o trecho do despacho a isso respeitante:
“…
Para a decisão das pretensões agora formuladas pela exequente, são relevantes os seguintes factos, que ressaltam da análise do processado:
- No dia 08.01.2020, BB instaurou contra AA a presente execução, com vista à cobrança coerciva da quantia de €30.0250,92;
- Por requerimento de 14.01.2020, a exequente indicou à penhora o “Quinhão hereditário a que o executado tem direito na herança aberta por óbito de seu pai, DD, falecido em .../.../2019”;
- Com data e 16.01.2020, o agente de execução notificou, na qualidade de cabeça de casal/herdeira, da herança, EE, nos seguintes termos: “Fica V. Exa. Formalmente notificada, na qualidade de cabeça de casal/herdeira, da herança aberta por óbito de DD falecido em .../.../2019, de que foi penhorado o direito e acção/quinhão, da mesma, pertencente ao executado AA, nif ..., para garantia do pagamento da quantia de 30.250,92 euros, acrescida de juros, custas e demais despesas, advertindo-se que o direito do executado fica à ordem do Agente de Execução, não podendo ser objeto de cessão, oneração ou alienação, salvo mediante venda judicial ou extrajudicial no âmbito dos autos de execução supra referidos. Fica ainda notificado de que pode, no prazo de 10 dias, fazer as declarações que entender quanto ao direito penhorado e ao modo de o tornar efectivo”
- Essa notificação foi recebida pela identificada cabeça-de-casal no dia 20.01.2020.
…”

Como se constata da matéria de facto supra transcrita, não há qualquer referência à invocada escritura pública de partilha inserta no despacho em crise.

Nem podia existir, porque não foi realizada, como anteriormente já se havia dito no processo.

Nem se encontra nos autos ou fora deles qualquer documento que demonstre a realização da partilha dos bens da herança por óbito de DD.

O que ocorreu foi um Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos, constante nos autos a folhas 66 e seguintes e uma escritura pública de “Dação Em Pagamento”, constante no apenso F, dos autos, com base nos quais foram efectuados os registos em comum e sem determinação de parte ou direito, conforme se verifica do documento constante nos autos de folhas 97 a 104 verso.

Verifica-se assim uma absoluta falta de fundamento de facto que justifique a decisão.
10ª
Incorreu, por isso, o despacho recorrido no vício inserto no artigo 615º, nº 1, al. b) do C.P.C., que de acordo com o mesmo normativo, “é nula a sentença quando (…) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…)”.
11ª
Caso porém, não se entenda haver nulidade, por erro na construção do silogismo judiciário, sempre haverá erro de julgamento da matéria de facto, uma vez que a mesma é insuficiente, por inexistência, para a decisão.
12ª
Assim, deve ser considerada nulo o despacho recorrido, por força do disposto no artigo 615º, nº 1, al, b) do C.P.C., ou caso assim não se entenda, ser revogado o despacho recorrido por haver erro de julgamento da matéria de facto e ser indeferido o requerido pela exequente, no seu requerimento de 26-01-2022, com a referência citius ...36.
13ª
Acresce que a questão colocada pela exequente e objecto de decisão, já anteriormente havia sido colocada e teve decisão, constante a folhas 107 dos autos.
14ª
Verifica-se, assim uma duplicidade de decisões sobre a mesma questão, contraditórias, devendo ser de aplicar o disposto no artigo 625º do CPC.”

Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações.

O tribunal recorrido, por despacho de 12/05/2022, não admitiu o recurso.

O recorrente apresentou Reclamação e por Decisão do aqui Relator de 28/09/2022, o recurso foi admitido a subir imediatamente (art.º 853º n.º 1 e 644º n.º 1, alínea a)), em separado (art.º 853º n.º 1 e 645º n.º 2) e com efeito devolutivo (art.º 853º n.º 1 e 647º n.º 1 do CPC).

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

São três as questões suscitadas pelo recorrente, de acordo com a sua precedência lógica:
- nulidade da decisão recorrida à luz do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea b) do CPC;
- casos julgados contraditórios;
- erro de julgamento.

3. Fundamentação de facto

A factualidade a considerar é que resulta do Relatório do Acórdão.
           
4. Direito
4.1. Da nulidade da sentença
4.1.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o art.º 615º do CPC (aplicável aos despachos, nos termos do art.º 613º n.º 3 do CPC):

1. É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão;
 (…)”

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

A alínea b) está directa, imediata e especificamente relacionada, no que respeita à sentença, com o disposto no n.º 3 do art.º 607º do CPC, onde se dispõe que nos fundamentos, deve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes e com a parte inicial do n.º 4, onde se dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados

Tal normativo é uma decorrência do disposto no art.º 205º n.º 1 da CRP - que dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei – e esta ainda correlacionado com o disposto no art.º 154º do CPC - que dispõe, no n.º 1, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas e no n.º 2 que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo, quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade

Mas o n.º 4 do art.º 607º dispõe que o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.

Este n.º 4 tem em vista a motivação da decisão quanto à matéria de facto – com o CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, os factos provados e não provados e a respectiva motivação passaram a constar da sentença -, e tem em vista possibilitar o controlo daquela decisão dada a possibilidade que as partes têm de recorrer da mesma, cumpridos que sejam os requisitos do art.º 640º do Código de Processo Civil.

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª edição, pág. 707 “A fundamentação [da decisão de facto] passou a exercer, pois, a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional”.

Mas, coloca-se a questão de saber se, quando a alínea em referência alude a “…fundamentos de facto…” abrange, apenas, a ausência dos factos fundantes da decisão ou, também, a falta de motivação da decisão de facto, ou seja, a indicação dos meios de prova decisivos e a análise crítica da prova a que alude o art.º 607º n.º 4 do CPC.

Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, 140, a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão e utilizando a locução “motivação” no sentido de “fundamentos de facto e de direito”, locução que restringimos à justificação da decisão da matéria de facto, afirmava: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, 2º Volume, pág. 736 entendem que a eventual falta de fundamentação da matéria de facto é aplicável o regime do art.º 662, n.ºs 2, alínea d) e 3.

Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, 2020, pág. 80, responde no segundo sentido, com base no disposto no n.º 4 do art.º 607º, na necessidade de respeitar a unidade sistemática dos dois normativos – 607º e 615º - e com o argumento de que a ausência da análise crítica das provas ou uma fundamentação da decisão da matéria de facto que seja genérica, sem especificação da prova que foi decisiva é, funcionalmente, uma falta de fundamentação indirecta, da parte dispositiva, que não respeita o art.º 205º n.º 1 da CRP e, finalmente, pondera que, actualmente, a motivação da decisão da matéria de facto passou a constar da sentença.

Salvo melhor opinião, mas tendo em consideração que a lei se refere a “fundamentos de facto“, e que associa a esta expressão os “fundamentos (…) de direito”, cremos que apenas se tem em vista a discriminação dos factos provados e não provados e não, também, a sua motivação da decisão de facto.

Mas, a não especificação dos fundamentos de facto só se verifica quando seja absoluta, total, não quando se trate de discriminação de factos provados e não provados medíocre, insuficiente, incompleta, não convincente ou contrária à lei, em que poderá haver erro de julgamento de facto, a constituir, por isso, objecto de recurso de impugnação da matéria de facto, salvo as situações em que esteja pura e simplesmente em causa a aplicação de normas de direito probatório material (cfr. Abranges Geraldes, ob. cit. pág. 333-334).

E, ainda que se considere que a alínea b) do n.º 1 do art.º 615º também abrange  a “motivação”, a mesma só se verifica quando for absoluta, porque se for pura e simplesmente incompleta, no sentido de não estar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, aplica-se o disposto no art.º 662º n.º 2, alínea d) do CPC.

4.1.2. Em concreto

O recorrente conclui que “como se constata da matéria de facto supra transcrita, não há qualquer referência à invocada escritura pública de partilha inserta no despacho em crise” (conclusão 5ª), “verifica-se, assim, uma absoluta falta de fundamento de factos que justifique a decisão”, (conclusão 9ª) e “incorreu, por isso, o despacho recorrido no vicio inserto no artigo 615º, n.º1, alínea b) do CPC…“.

O alegado pelo recorrente traduz-se, singelamente, na invocação de que a discriminação dos factos provados não contempla a “invocada escritura pública de partilha”.

Porém e face ao supra exposto, tal invocação não se reconduz à nulidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 615º, mas a um eventual erro de julgamento e que se traduz no seguinte: os factos provados são insuficientes para a decisão de direito.

Em face do exposto, improcede a invocada nulidade.

4.2. Caso julgado
4.2.1. Enquadramento jurídico

Nos termos do n.º 1 do art.º 625º do CPC havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

E nos termos do n.º 2, é aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.

Neste ponto importa ter em consideração que, nos termos do disposto no art.º 620º do CPC e cuja epígrafe é “caso julgado formal” as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

Finalmente há que considerar o disposto no art.º 628º do CPC: a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.

A decisão proferida sobre objecto já coberto pelo caso julgado é ineficaz – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 2º Volume, 3ª edição, pág. 731 (anotação ao art.º 613º) e 766 (anotação ao art.º 625º).

4.2.2. Em concreto

Invoca o recorrente que a questão colocada pela exequente e objecto de decisão, já havia sido colocada e objecto da decisão constante de fls. 107 dos autos - e que é a decisão de 21/09/2021 -, citada no relatório supra, pelo que se deve aplicar o disposto no art.º 625º do CPC.

Vejamos

A decisão de 21/09/2021 apreciou as seguintes pretensões da exequente, indeferindo-as in totum:
- “(…) seja declarada nula a partilha efetuada por óbito de DD, em virtude de sobre os bens que compõem o acervo hereditário existir penhora efetivada nos presentes autos para garantia do pagamento da quantia exequenda;
- em alternativa, deverão os adquirentes dos bens assumir a posição do Executado e efetuar o pagamento da quantia exequenda, em virtude de terem adquirido os identificados bens com perfeito conhecimento da existência do ónus de penhora do quinhão pertencente ao Executado, sendo que, tal transmissão é inoponível à exequente.

A decisão ora recorrida pronunciou-se sobre as seguintes pretensões da exequente:
 “(…) Se digne ordenar o prosseguimento da execução, como se partilha não tivesse ocorrido, sobre o direito penhorado e, em consequência:
Deverá ser:
a) declarada ineficaz a escritura pública de partilha e inoponível em relação à Exequente;
b) determinado o prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos ao pedido de adjudicação do quinhão hereditário;
c) nomeada a Exequente fiel depositária de todos os bens que compõem a herança;
d) ordenado o cancelamento de todos os registos realizados na sequência da partilha.
Se assim não se entender,
Devem os herdeiros a quem foram adjudicados os bens que faziam parte da herança responder pelos encargos resultantes da penhora na proporção das respetivas quotas-partes, com os bens herdados ou quaisquer outros bens do seu património, até àquela proporção.”

E pronunciando-se quanto às mesmas decidiu:
Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele, e ordena-se os ulteriores termos da execução com vista à venda ou à adjudicação do quinhão hereditário penhorado nestes autos a 20.01.2020.”

Tendo em consideração a economia do recurso, ou seja a decisão que é objecto de impugnação, apenas importa verificar se a ineficácia e inoponibilidade da partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele,  foi apreciada e decidida na decisão recorrida e foi apreciada e decidida a 21/09/2021.

E confrontando as duas decisões, é patente e manifesto que a resposta é negativa, pois na decisão de 21/09/2021 apenas foi apreciada a questão de saber se a “partilha efetuada por óbito de DD“ era nula e não a questão de saber se a mesma era, ou não, eficaz ou inoponível à exequente.

Destarte, a decisão recorrida, não se pronunciou sobre objecto já coberto pelo caso julgado, pelo que improcede a sua invocação.

4.3. Erro de julgamento
O recorrente conclui que “como se constata da matéria de facto supra transcrita, não há qualquer referência à invocada escritura pública de partilha inserta no despacho em crise” (conclusão 5ª), “caso porém, não se entenda haver nulidade, por erro na construção do silogismo judiciário, sempre haverá erro de julgamento da matéria de facto, uma vez que a mesma é insuficiente, por inexistência, para a decisão “ (conclusão 11ª)

Como já ficou dito supra, o invocado pelo recorrente não se reconduz à nulidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, mas a um eventual erro de julgamento e que, de acordo com o recorrente, assume a seguinte feição: por um lado, não consta da decisão recorrida qualquer referência à invocada escritura de partilha; por outro, não podia existir, porque não foi realizada, como já anteriormente se havia dito no processo, e não se encontra nos autos qualquer documento que demonstre a realização da partilha.

Neste ponto importa ter em consideração que a exequente alegou que o executado, os demais co-herdeiros, seus irmãos e mãe, procederam à partilha dos bens que compunham a herança por óbito de DD, adjudicando-os em comum e sem determinação de parte ou direito, sem que ao Executado coubesse qualquer bem e que tal adjudicação em partilha ocorreu em 19/11/2020.

Com o seu requerimento não juntou qualquer prova documental dessa partilha.

O executado e ora recorrente deu por reproduzido o requerimento de 13/09/2021, onde afirmou que não foi efectuada qualquer partilha.

A decisão recorrida considerou provados alguns factos.

Mas nos factos provados não consta qualquer referência à citada partilha.

De referir que a decisão recorrida não contempla factos não provados.

Porém, na fundamentação escreveu-se:
Sendo assim, como é, impõe-se concluir, como faz a exequente, que a partilha da herança deixada pelo pai do executado que os herdeiros realizaram após a penhora e sem a intervenção da aqui exequente (partilha que terá ocorrido a 19.11.2020), não produz quaisquer efeitos em relação a esta, devendo a execução prosseguir os seus termos no que concerne ao quinhão hereditário penhorado ao executado, com a sua venda ou com a sua adjudicação à exequente, nos termos dos artigos 799º e segs. do Código de Processo Civil, caso essa seja a sua vontade.

E decidiu:
Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele, e ordena-se os ulteriores termos da execução com vista à venda ou à adjudicação do quinhão hereditário penhorado nestes autos a 20.01.2020.”

Do exposto, resulta que muito embora não conste do elenco dos factos provados que ocorreu a partilha por óbito do pai do executado, implicitamente a decisão recorrida considera, na sua fundamentação de direito, essa partilha como uma realidade, um facto provado.

Não oferecendo dúvida que nos termos do disposto no art.º 819º do CC, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, não oferecendo dúvida que a ineficácia a que se reporta o normativo nem sequer carece de ser declarada, pois, simplesmente, a execução prossegue, como se os bens pertencessem ao executado e, também, não oferecendo dúvida que, de acordo com a doutrina que resulta do citado normativo, tem sido entendido  que penhorado o direito e acção do executado à herança indivisa, a partilha realizada na pendência da execução é inoponível ao exequente (cfr, Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, II, anotação ao art.º 819º, pág. 93-94), entra-se na questão de saber se o tribunal recorrido podia considerar provada a referida partilha, por não se encontrar junto aos autos qualquer documento que a demonstre.

Estamos perante um facto essencial, pois só se pode considerar a partilha ineficaz e inoponível…se tiver havido partilha.

Importa também ter em consideração que, como decorre do disposto no art.º 2102º do CC, que tem por objecto a forma da partilha, havendo acordo dos interessados, a partilha é realizada nas conservatórias ou por via notarial, e, em qualquer outro caso, por meio de inventário, nos termos previstos em lei especial.

Será efectuado na conservatória do registo civil mediante o procedimento de “habilitação de herdeiros, partilha e registos”, previsto no art.º 210º - F do CRCivil ou, tendo já sido realizada habilitação de herdeiros, mediante o procedimento de partilha e registos previsto no art.º 210º - H do CRCivil

Pode ainda ser efectuada mediante escritura pública, nos termos do Código de Notariado, ainda que com a revogação da alínea l) do art.º 80º do C Not, tenha deixado de ser obrigatória a escritura pública quando esteja em causa a partilha de património hereditário, de que façam parte coisas imóveis.

E finalmente deve ser por inventário nas situações previstas no n.º 2 do art.º 2012º do CPC.

Mas seja a partilha efectuada através dos procedimentos referidos nos art.ºs 210º F e 210º H, do CRCivil, através de escritura pública ou inventário, a mesma só pode ser demonstrada validamente através de, respectivamente, certidão emitida pelo Conservador, pelo Notário ou pelo tribunal em que correu termos o inventário.

Compulsado o processo de execução, por via electrónica, não consta do mesmo qualquer documento demonstrativo da partilha.

Nomeada e concretamente, a exequente, que alegou o facto em referência por duas vezes e, portanto, tinha interesse na sua demonstração, nunca juntou qualquer prova do mesmo.

Sendo assim, não é possível dar como provada a “partilha da herança deixada pelo pai do executado que os herdeiros realizaram após a penhora e sem a intervenção da aqui exequente (partilha que terá ocorrido a 19.11.2020)…”

E não sendo possível dar como provado tal factualidade, há um efectivo erro de julgamento de facto.

E tal erro de julgamento de facto inquina a decisão de direito na medida em que, como se referiu, estamos perante um facto essencial, pois a pretender-se que a partilha fosse considerada ineficaz e inoponível, isso só era possível… tendo havido partilha.

Em face de tudo o exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que decidiu “Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele…” e em sua substituição indeferir a pretensão deduzida pela exequente na alínea a) do seu requerimento de 26/01/2022, termos em que o recurso deve ser julgado procedente.

Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.

No caso em análise, não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, conclui-se que não há parte vencida.

Há assim que recorrer ao critério do proveito, pelo que as custas devem ficar a cargo do recorrente, pois obteve proveito do recurso – art.º 527º n.º 1 do CPC.

5. Decisão

Termos em que acordam os juízes que constituem a 1ª Secção desta Relação em revogar a decisão recorrida, na parte em que decidiu “Nestes termos, deferindo-se parcialmente ao requerido, considera-se ineficaz e inoponível em relação à exequente a partilha que os herdeiros do pai do executado fizeram dos bens deixados por aquele…” e, em sua substituição, indefere-se a pretensão deduzida pela exequente na alínea a) do seu requerimento de 26/01/2022 e, em consequência, julga-se o recurso procedente.
*
Custas pelo recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
                                                                                               22/06/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Morais
Maria João Matos