Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | MARIA LEONOR BARROSO | ||
| Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO SUCESSÃO DE ACIDENTES FACTOR DE BONIFICAÇÃO 1.5.- IDADE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 11/09/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO SOCIAL | ||
| Sumário: | A TNI apenas permite a aplicação do factor de bonificação de 1.5 por uma única vez num concreto acidente de trabalho, sob pena de desproporção na reparação do sinistro. Mas nem a letra, nem o propósito da lei vedam a aplicação do factor de bonificação de 1.5 em caso de acidentes de trabalho sucessivos, por diferentes serem os contextos e pressupostos, mormente as lesões, as sequelas, as incapacidades para o trabalho e quiçá diverso o fundamento da bonificação. O factor de bonificação de 1.5 tem uma função correctiva de certas desvantagens ou penosidades (idade, não reconversão no posto de trabalho ou a alterações físicas que prejudicam gravemente o desempenho laboral) conexionadas com cada acidente e sua circunstância. Por isso não há duplicação na reparação quando aplicado em diferentes acidentes de trabalho. | ||
| Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO Nesta acção especial emergente de acidente de trabalho o sinistrado AA apelou da sentença na parte em que condenou a entidade seguradora EMP01... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar-lhe “o capital de remição correspondente à pensão anual, devida em 30/04/2021, no montante de €275,41 (duzentos e setenta e cinco euros e quarenta e um cêntimo). “ O motivo do prosseguimento da acção para a fase contenciosa centrou-se unicamente na discordância sobre a fixação da incapacidade para o trabalho de que o sinistrado terá ficado afectado. Tudo o mais que relevava à decisão do acidente de trabalho foi aceite. A decisão recorrida que fixou a natureza e grau de incapacidade foi precedida de realização de junta médica, observando-se o preceituado nos artigos 117º, 1, b), 138º, 2, 1ª parte, 140º, 1, CPT. FUNDAMENTO DA APELAÇÃO INTERPOSTA PELO SINISTRADO: discorda da não aplicação pelo tribunal a quo do factor de bonificação 1.5% (idade) por já lhe ter sido aplicado no âmbito doutro acidente. CONCLUSÕES: “1.ª – A aplicação do fator 1.5, previsto na al. a), do n.º 5, das Instruções Gerais TNI, em razão de o sinistrado ter 50 ou mais anos de idade, tem não só uma função corretiva, mas também a função de concretizar o princípio constitucional do direito à justa reparação. 2.ª – Com a limitação prevista na mencionada Instrução Geral (“quando não tiver beneficiado da aplicação desse fator”) o legislador apenas pretendeu impedir que a incapacidade permanente resultante de lesões de um determinado acidente – e só deste - fosse bonificada mais que uma vez com o fator 1.5. 3.ª – Daí que a circunstância de o sinistrado, aqui recorrente, com mais de 50 anos de idade à data da alta já ter beneficiado da aplicação daquele fator na fixação do coeficiente da incapacidade permanente resultante de lesão derivada de acidente de trabalho anterior, não é impeditiva de tal fator ser de novo aplicado ao coeficiente de incapacidade permanente resultante de lesões derivadas deste último e novo acidente de trabalho. 4.ª – Ao decidir conforme decidiu, o tribunal a quo violou o disposto no número 5.º, alínea a), das Instruções Gerais, constantes do Anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro. artigo 14.º da LAT (Lei n.º 98/2009). NESTES TERMOS, concedendo provimento ao presente recurso, alterando a douta sentença recorrida em conformidade com o exposto e declarando que, por aplicação do fator de bonificação de 1.5, o Autor de acha afetado de uma IPP de 4,05% (2,7% x 1,5) e calculando a pensão anual e vitalícia e o correspondente capital de remição de acordo com esta IPP...” CONTRA-ALEGAÇÕES: não constam. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO - sustenta-se que deve ser dado provimento à apelação. O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC. QUESTÕES A DECIDIR [1]: saber se é aplicável o factor de bonificação de 1.5 (idade), não obstante o sinistrado ter beneficiado deste em anterior acidente de trabalho. I.I. FUNDAMENTAÇÃO A) FACTOS: FACTOS PROVADOS: 1) AA foi vítima de um acidente no dia 08 de setembro de 2020 quando trabalhava em ... sob a autoridade, direção e fiscalização de EMP02..., Lda.; 2) Tinha a categoria profissional de motorista e auferia à data a remuneração anual de €14.571,98 (catorze mil quinhentos e setenta e um euros e noventa e oito cêntimos); 3) A responsabilidade infortunística encontrava-se integralmente transferida para a seguradora demandada; 4) A seguradora reconheceu o acidente como acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, o salário auferido pelo sinistrado à data do acidente e a sua responsabilidade na reparação e aceitou os períodos de incapacidade e a data da alta; 5) AA gastou a quantia de 20,00€ (vinte euros) em transportes; 6) AA nasceu em .../.../1964. 7) O sinistrado, sem aplicação de factor de bonificação, e tendo em conta a capacidade restante de 0,92635 (após desconto das anteriores IPP de 3% e 4,365%) ficou portador da incapacidade permanente parcial (IPP) de 2,7% (0,027) desde o dia imediato ao da alta (alta em 29/04/2021). Outros factos relevantes e pacíficos entre as partes: 8) no processo que correu termos no Tribunal do Trabalho ... sob o n.º 551/14...., com base num acidente de trabalho sofrido pelo ora sinistrado foi a EMP03..., S.A. condenada a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia por estar afetado de uma incapacidade permanente parcial de 3,00%; 9) no processo que correu termos no Tribunal do Trabalho ... sob o n.º 4066/17...., com base num acidente de trabalho sofrido pelo ora sinistrado, foi a EMP01... – Companhia de Seguros, S.A. condenada a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia por estar afetado de uma incapacidade permanente parcial de 4,3650%, incluindo fator de bonificação de 1,5. B ) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO Na apelação pretende-se que o factor de bonificação de 1.5% em razão de idade (superior a 50 anos) possa ser aplicado ao acidente de trabalho dos autos, apesar de o autor ter beneficiado do mesmo no âmbito de outro sinistro. O tribunal a quo respondeu negativamente. Considerou que a letra da lei (ponto 5, alínea a) das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais, doravante TNI[2]) apenas permite a sua aplicação uma única vez em toda a vida profissional do sinistrado, independentemente de lhe ter sido atribuído no âmbito de acidente diferente ou de estar em causa o mesmo acidente. Analisando: A norma regula a questão do seguinte modo (ponto 5º das instruções gerais da TNI): “5- Na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número: a) Os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo factor 1.5, segundo a fórmula: IG + (IG x 0.5), se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse factor. b) A incapacidade será igualmente corrigida, até ao limite da unidade, mediante a multiplicação pelo factor 1.5, quando a lesão implicar alteração visível do aspecto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afecte, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho; não é cumulável com a alínea anterior;”- negritos nossos. A lei atribui, assim, uma bonificação que acresce ao coeficiente de incapacidade para o trabalho decorrente da sequela do acidente. Visa compensar uma desvantagem que acresce à outra que é a própria incapacidade laboral (esta última fixada por recursos a coeficientes variáveis da TNI, consoante a extensão e gravidade do défice funcional, estado geral da vítima, natureza das funções, aptidão e capacidade profissional, envelhecimento precoce, etc). Contempla-se três hipóteses de aplicação do factor 1.5 que a lei elege como representativas dessa desvantagem agravada: uma resultante da não reconversão do sinistrado ao posto de trabalho, outra resultante de o sinistrado ter 50 ou mais anos[3] e outra resultante da lesão implicar alteração visível do aspecto físico que afecte, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho. A lei ressalva, contudo, que elas não são cumuláveis entre si, utilizando as expressões “não tiver beneficiado da aplicação desse factor” e “não é cumulável com a alínea anterior”. Estas expressões são a causa da discórdia do recorrente relativamente ao entendimento do tribunal a quo. Em nosso entender as ressalvas têm por fim vedar a dupla bonificação no mesmo acidente, apenas se reportando à incapacidade dele decorrente. Recorde-se que ao julgador não é consentida interpretação sem suporte no texto da lei, o qual funciona como parâmetro objectivo delimitador. Obtida esta ancoragem, deve optar-se pela interpretação que melhor sirva o propósito da lei (“pensamento legislativo”), recorrendo-se a outros elementos, mormente à unidade de todo o sistema jurídicos e às circunstâncias em que a lei é criada (a sua “história”) e às actuais em que irá ser aplicada (a “actualidade”) - 9º CC. Ora, o texto da norma não veda a aplicação do factor de 1.5% em caso de acidentes de trabalho sucessivos. No mínimo temos de concordar que tal não é referido expressamente. Da letra da lei (“quando não tiver beneficiado da aplicação desse factor”) colhe-se na essência que o sinistrado só pode beneficiar do factor uma única vez, não sendo este acumulável quando ocorram em simultâneo as diversas previsões de “desvantagem” (idade, não reconversão no posto de trabalho, alteração física prejudicial do desempenho no trabalho). Exemplificando, se já beneficiou do factor de 1.5 por ter 50 ou mais anos, o mesmo não pode voltar a ser aplicável ao sinistrado, ainda que este não seja convertível ao posto de trabalho no que àquele acidente se refere. O contrario levaria a valorização desproporcionada. Ademais, há que atentar no “fim da norma”. O factor 1.5 tem natureza correctiva, não é em si mesmo um coeficiente de desvalorização. É antes um critério que visa limar as referidas desvantagens e que está também ligado ao “casuísmo” do acidente (posto de trabalho e função, lesão, sequela, incapacidade) e ao estado do sinistrado num determinado momento que coincide com o da alta clínica (idade, estado geral, aspecto físico, capacidades, etc..). A bonificação, associada ao específico coeficiente de incapacidade arbitrado, visa ajudar a repor a capacidade de ganho da vítima na situação anterior ao do acidente. Não há duplicação ou desproporção em aplicar o factor de bonificação 1.5 conquanto não se aplique ao mesmo acidente. Pode até acontecer que num acidente se atribua a bonificação pela idade e que noutro posterior se atribua pela deformação física que afecta relevantemente o posto de trabalho, situação em que, visivelmente, é difícil sustentar a argumentação de que o factor só pode ser aplicado uma única vez na vida profissional do sinistrado. Assim sendo, a ratio da lei aponta para a possibilidade de bonificações sucessivas, conquanto respeitem a acidente de trabalho diferentes, pois diversos são os seus contextos e circunstâncias, quiçá até a função ou o posto de trabalho não serão os mesmos, as lesões serão outras, assim como diversos serão os coeficientes de incapacidade para o trabalho arbitrados, pelo que diferentes serão as realidades sobre as quais assenta o factor de bonificação. Se assim não fosse o legislador tê-lo-ia dito expressamente (e presume-se que se expressou bem). O que aliás fez relativamente a outras questões conexionadas à temática, conclusão a que se chega por recurso a elemento sistemático e de unidade do sistema jurídico. Veja-se, assim, o caso de sequelas múltiplas decorrentes de acidentes de trabalho diversos (11º, 3, NLAT[4]) ou mesmo o caso de lesões anteriores independentemente de resultarem ou não de acidente de trabalho (11º, 2, NLAT). No primeiro caso, paradigmático, o legislador teve o cuidado de ressalvar que o sinistrado que se venha a acidentar de novo após já lhe ter sido arbitrada uma incapacidade para o trabalho em anterior acidente, não pode ver graduada a sua capacidade como se estivesse totalmente apto (11º, 3, NLAT “3 - No caso de o sinistrado estar afectado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação é apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.” Caso não se atendesse à diminuição anterior da capacidade de trabalho do sinistrado gerar-se-ia uma compensação desajustada e desproporcionada, porquanto o somatório das diversas reparações pelos sucessivos acidentes de trabalho acabaria por superar a capacidade de ganho do sinistrado - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, regime jurídico anotado, 2ª ed., pág. 71. Queremos com isto apenas sublinhar que o legislador nas situações em que entendeu que haveria “duplicação” e desproporção fê-las constar na lei de um modo que se afigura claro. O que não acontece no caso da bonificação originadas em certas “desvantagens” renovadas por via de sucessivos e diversos acidentes de trabalho - no sentido exposto vai a jurisprudência que sobre o assunto encontrámos, tais como os acórdãos da RG de 21-02-2019, proc. 534/18.0T8BCL.G1, da RL de 28-09-2022, proc. 1047/20.6T8PTM.L1-4, e da RP de 5-04-2017, proc. 1780/15.4T8VFR.P1, todos www.dgsi.pt Assim, é de dar razão ao recorrente. Considerando a IPP global de 4.05% (2,7% x 1.5) tem o autor direito ao capital de remição de pensão anual no valor de 413,11€ - 48º, 3, al. c), NLAT I.I.I. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e revoga-se a sentença nesta parte condenando-se a ré seguradora a pagar ao autor capital de remição da pensão anual de 413,11€ (quatrocentos e treze euros e onze cêntimos), mantendo-se no mais a decisão, incluindo condenação em juros de mora. Custas a cargo da Recorrida. Notifique. 9-11-2023 Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora) Antero Dinis Veiga Francisco Sousa Pereira [1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s. [2] Decreto-Lei 352/2007, de 23 de outubro. [3] A “desvantagem” associada à idade decorre do conhecimento da ciência médica actual de que a partir dos 50 anos, progressivamente, o ser humano vai diminuindo nas suas capacidades e funções. [4] Lei 98/2009, de 4 de setembro. |