Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
15/23.0T8VNC.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
DECRETAMENTO DE MEDIDA
NECESSIDADE E SUBSIDIARIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O regime legal dos Maiores Acompanhados, instituído pela Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, denota uma clara preocupação no sentido de que as medidas a adotar sejam as mais adequadas possíveis ao concreto caso, o que determinou o uso de conceitos indeterminados, a densificar pelo julgador no confronto com a realidade fáctica que lhe é presente.
2. O decretamento de uma medida de acompanhamento pressupõe a absoluta necessidade da mesma, não tendo lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e assistência, mormente do círculo familiar da beneficiária.
3. A existência de um quadro demencial compatível com Alzheimer em estádio moderado a grave, com incapacidade da paciente, de 87 anos de idade, gerir a sua própria pessoa e bens, desorientada no espaço e tempo em relação
à sua pessoa, reconhecendo o dinheiro, mas inadequadamente, incapaz de fazer cálculos simples, não identificando as horas, necessitando de apoio nas atividades de vida diária, nomeadamente higiene, vestuário e alimentação, dependendo totalmente da ajuda de terceira pessoa, justifica a aplicação de uma medida de acompanhamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 8 de julho de 2023 foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo:
DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente, por provada, e consequentemente:
1 - Determina-se a aplicação a AA, das seguintes medidas de acompanhamento:
 a. Representação geral.
b. Administração total de bens.
c. Impedimento de exercício de direitos pessoais, designadamente, os seguintes atos de caráter pessoal:
i. Constituir ou dissolver casamento e/ou união de facto, procriar, perfilhar, adotar, cuidar e educar os filhos ou os adotados;
ii. Deslocar-se no país e no estrangeiro;
iii. Fixar domicílio e residência;
iv. Outorgar procuração;
v. Ser tutor, vogal do conselho de família e administrador de bens de incapazes (cfr. arts. 1933.º, n.º 2, 1953.º, n.º 1 e 1970.º, todos do CC);
vi. Testar (cfr. art. 2189.º, alínea b) do CC);
vii. Desempenhar, por si, as funções de cabeça-de-casal (cfr. art. 2082.º do CC). 2 - Fixa-se em 2.12.20222 a data a partir da qual medida decretada se tornou conveniente.
3 - Nomeia-se acompanhante da beneficiária seu filho BB
4 – Nomear para o conselho de família, CC, (filho da beneficiária) e DD (esposa do Requerente) - cfr. art. 900.º, n.º 2 do CPC.
5 – Estabelece-se o prazo de cinco anos para a revisão da medida de acompanhamento (art. 155.º do CC).
6 – Determina-se que a publicidade da presente decisão se cinja à afixação de editais na porta deste Tribunal, devendo a decisão ser igualmente comunicada ao Registo Civil para efeitos de averbamento.
Sem custas, por delas estar isenta a beneficiária, de acordo com o previsto no art. 4.º, n.º 1, alínea l) do Regulamento das Custas Processuais.
Fixa-se o valor da ação em 30.000,01€ - arts. 303.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, ambos do CPC.
Registe e Notifique.

Inconformado com a decisão, o Ministério Público apelou, formulando as seguintes conclusões:

1. O Recorrente não se conforma com a sentença proferida nestes autos que decidiu julgar a ação procedente e em consequência determinar a aplicação a AA das medidas de acompanhamento de representação geral, administração total de bens e impedimento do exercício dos direitos pessoais aí elencados, com as consequências aí determinadas.
2. Considerando os factos provados números 5, 8, 9 e 11, os princípios da necessidade (artigo 145.º, n.º1, do Código Civil) e da subsidiariedade (cfr. artigo 140.º, n.º 2, do Código Civil), o espírito da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (nomeadamente os princípios constantes do seu artigo 3.º) e o espírito do instituto do acompanhamento de maior, entendemos desnecessária a aplicação de qualquer medida de acompanhamento à requerida.
3. Por outro lado, não pode ser aplicada uma medida desta natureza (limitadora dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos) com base em hipotéticas e futuras necessidades da requerida, uma vez que tal violará os princípios da necessidade e proporcionalidade previstos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
4. Ao aplicar-se a um cidadão que apresente limitações físicas e/ou psíquicas medidas da natureza das que foram aplicadas na sentença recorrida, quando, no momento em que se analisa a possibilidade de lhe limitar os seus direitos, aquele não necessita de nenhum cuidado adicional aos que já lhe são prestados, não existindo a necessidade de prática de nenhum ato burocrático em seu nome para o qual esteja prevista a necessidade de nomeação de representante legal, viola-se frontalmente os princípios da necessidade e subsidiariedade, que são basilares deste instituto (e previstos nos artigos 140.º, n.º2 e 145.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
5. Se os deveres gerais de cooperação e assistência acautelam todas as necessidades reais e concretas que a requerida apresenta neste momento não se justifica, nem é necessária, a aplicação de qualquer medida de acompanhamento.
6. Não se pode aplicar medidas desta natureza (limitadoras dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos) com o objetivo de acautelar um futuro casamento da requerida, uma hipotética vontade de querer doar parte do seu património a um terceiro ou a circunstância de poder ser interessada num hipotético e futuro processo de inventário.
7. Pois, de facto, nada resulta da matéria dada como provada que tal seja necessário ou até previsivelmente necessário na vida da Requerida, pelo que não se pode aplicar este tipo de medidas tendo por base situações hipotéticas, futuras e que se desconhecem se alguma vez ocorrerão e que nenhum suporte encontram nos factos dados como provados.
8. Razão pela qual deve ser concedido provimento ao presente Recurso, sendo revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declare a improcedência da presente ação por desnecessidade de aplicação de qualquer medida de acompanhamento à requerida (cfr. artigos 140.º, n.º2 e 145.º,n.º1, ambos do Código Civil).
9. Desta forma, com a decisão constante da sentença recorrida, foram violadas as normas jurídicas constantes dos artigos 140.º, n.º2 e 145.º, n.º1, ambos do Código Civil e do artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, as quais impõem ao Tribunal a quo a não aplicação de qualquer medida de acompanhamento à requerida.
Nestes termos, e nos que V. Ex.as muito doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, sendo revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declare a improcedência da presente ação por desnecessidade de aplicação de qualquer medida     de acompanhamento à requerida.
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos das excelentíssimas adjuntas.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar da necessidade de decretamento de medida de acompanhamento a favor da beneficiária, designadamente apurando se se mostram observados os requisitos da necessidade e da subsidiariedade.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
1. A Requerida nasceu em .../.../1936, tendo 87 anos de idade e sendo viúva, vivendo só.
2. O Requerente BB é filho da Beneficiária.
3. Foi-lhe diagnosticado, em 02.12.2022, a Demência de Alzheimer, no estado moderado a grave, com carácter permanente e irreversível e grave défice de memória a curto prazo.
4. Tem episódios recorrentes de desorientação nos seus dados identificativos – idade e data de nascimento – e no espaço e no tempo que a impedem de compreender o alcance e o sentido dos seus atos, bem como das respetivas consequências, impossibilitando-a de reger a sua pessoa e os seus bens.
5. Depende totalmente da ajuda de terceira pessoa, sendo prestada, dia e noite, por cuidadoras contratadas para o efeito e pelo próprio requerente e respetiva esposa.
6. Não tem capacidade para realizar negócios da vida corrente, como seja efetuar uma compra de bens essenciais, levantar uma carta registada nos correios, bem como, para celebrar/cessar qualquer outro tipo de contrato, designadamente, contratos de fornecimentos de gás, água, luz, telecomunicações, nem para gerir o seu património financeiro e conta bancária, por já não ter noção adequada do valor facial do dinheiro, não sabendo conferir ou fazer trocos, nem planear e realizar os atos normais do seu dia-a-dia, designadamente, autocuidados pessoais, confeção de refeições, toma de medicação e qualquer deslocação ao exterior e em espaços públicos.
7. Vive em imóvel próprio que tem que ser administrado e gerido, designadamente, pagamento de IMI, condomínio, água, luz, telecomunicações, gás.
8. O único rendimento auferido pela beneficiária consiste na pensão de sobrevivência do falecido marido, no valor de €910,00 mensais, os quais são creditados na conta bancária que a primeira e o requerente possuem, na Banco 1..., conta nº  ...30, de onde é retirado pelo filho requerente os fundos necessários para liquidação das suas despesas com alimentação, saúde e cuidadoras.
9. O Requerente tem grande cumplicidade pessoal e afetiva com a Beneficiária, visita-a diariamente, vivendo na mesma vila e com grande proximidade entre residências, tendo sido o mesmo e esposa quem têm velado e prestado, nos últimos anos, a assistência de que a Beneficiária vai necessitando, nos cuidados de saúde, na gestão do respetivo património, na contratação de cuidadoras, na aquisição de bens essenciais, etc.
10. O outro filho da Beneficiária, CC encontra-se a trabalhar, por longos períodos, no estrangeiro, nomeadamente, em ....
11. Frequenta o Centro de Dia ... em ... e tem aspeto bem cuidado.
12. Tem incontinência de esfíncteres com uso de fralda.
13. Reconhece o relógio, mas não identifica as horas.
14. Necessita de ajuda para a realização da higiene, vestuário, alimentação e gestão da medicação e não tem capacidade de gerir a sua própria pessoa e bens.
15. A beneficiária padece de patologia degenerativa osteoarticular e de demência de Alzheimer em estadio moderado a grave.
16. O quadro clínico e a patologia de Alzheimer de que padece a beneficiária é de natureza crónica, não existindo, à data dos conhecimentos científicos atuais, tratamentos curativos, apenas tratamento de natureza sintomática, no alívio de sintomas.
17. A beneficiária não tem capacidade de realizar negócios jurídicos (comprar, vender, permutar, doar, entre outros de idêntica natureza) nem de compreender as consequências afetivas/pessoais/patrimoniais do casamento, união de facto, perfilhação/adoção e testamento.
18. A data provável de início da doença será de aferir à data da informação médica disponível e datada de 2 de dezembro de 2022 onde se faz referência ao diagnóstico de demência de Alzheimer em estadio moderado a grave.

Factos Não Provados  
Nenhum facto com relevo para a decisão da causa ficou por demonstrar. 
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B. Fundamentos de direito. 

O Ministério Público alegou a desnecessidade do decretamento de uma medida de acompanhamento, considerando que face aos princípios da necessidade e da subsidiariedade, e ao espírito da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a mesma não se justifica.
O artº 138º, do Código Civil, estatui que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
Mafalda Miranda Barbosa in Maiores Acompanhados, Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, Gestelegal, reimpressão de 2019, pág. 52 e ss, refere que “A lei, ao contrário do que ocorria a propósito da previsão dos regimes de interdição e inabilitação, não descreve de modo fechado os fundamentos para a adoção da medida
O atual regime legal denota uma clara preocupação no sentido de que as medidas a adotar sejam as mais adequadas possíveis ao concreto caso, o que determinou o uso de conceitos indeterminados, a densificar pelo julgador no confronto com a realidade fáctica que lhe é presente.
Em qualquer caso, o decretamento de uma qualquer medida pressupõe, a montante, a observância de alguns requisitos.
Continuando a seguir a mesma autora, “São dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.
No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres. Em causa está, portanto, a possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo natural e são. Por um lado, há-de ter as capacidades intelectuais que lhe permitam compreender o alcance do ato que vai praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever. Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo com o pré-entendimento da situação concreta que tenha. Em suma, trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres.
A formulação legal deve, porém, ser compreendida com cautelas.
Em primeiro lugar, cremos não estar apenas em causa o exercício (em sentido estrito) de direitos, mas também a própria aquisição de direitos. Do mesmo modo, não deverá estar apenas em causa o cumprimento (em sentido estrito) de deveres, mas a própria assunção desses mesmos deveres.
Em segundo lugar, e de modo relevantíssimo, haveremos de considerar que, contra o que poderia ser sugerido pela explicitação do requisito, não se trata da impossibilidade de se auto determinar em relação a um exercício concreto de um particular direito (ou ao correspondente cumprimento concreto de um particular dever). Dito de uma forma mais direta, a lei prescinde agora dos requisitos da habitualidade e da durabilidade e permite que o acompanhamento seja decretado em relação a um especial domínio da vida do beneficiário.
Mas, ainda assim, não se trata de definir uma medida de proteção para a prática de um pontual ato, de forma a suprir uma incapacidade (ou, de acordo com a intencionalidade do regime atual, uma menor capacidade) acidental, específica, também ela pontual. Significa isto que, embora desapareçam os referidos pressupostos (habitualidade e durabilidade), não se pode prescindir de uma certa ideia de constância, que, não obstante, com aquelas não se confunde.
Admite-se, por isso, que o acompanhamento possa ser decretado em relação a situações transitórias e temporárias. Pense-se, por exemplo, no internamento subsequente a um acidente, tratamento ou intervenção cirúrgica, que deixa a pessoa impossibilitada de exercer os seus direitos por um período de tempo relativamente curto.
Quanto ao requisito de índole objetiva, exige-se que a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário.
Novamente, a formulação afigura-se ampla, dando margem ao julgador para cumprir as finalidades normativas do regime em função das especificidades dos casos com que se depare. (…)
Nas razões de saúde integram-se quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental. Parece, portanto, haver um alargamento em relação ao quadro de fundamentos das interdições e inabilitações. Deixamos de estar limitados pela noção de anomalia psíquica e pelas dificuldades de recondução de algumas doenças que, afetando sistematicamente o corpo humano, podem não contender diretamente com a mente. Pense-se, por exemplo, nas doenças do sistema nervoso periférico que, provocando uma atrofia muscular absolutamente incapacitante, não alteram o pensamento. Por outro lado, e como já referido anteriormente, porque se abandona o requisito da durabilidade da situação, podemos reconduzir às razões de saúde um estado de coma transitório provocado por um acidente ou uma intervenção cirúrgica envolta em problemas.
Aquém deste alargamento, integram-se no âmbito de relevância do requisito todas as hipóteses que já antes eram contempladas pelas incapacidades dos maiores, v.g. esquizofrenias, depressões, psicoses maníaco-depressivas, doenças senis, demências pré-senis, parafilias, esclerose lateral amiotrófica.
A deficiência, por seu turno, não tem de ser congénita, mas aponta, segundo a definição da OMS, para “qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica, contemplando quer as alterações orgânicas quer as funcionais, e integrando três dimensões, física (somática), mental (psíquica) e situacional (handicap). Integram-se na previsão normativa os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as deficiências mentais, aí também contempladas. Fundamental é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. Serão, por isso, residuais as situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres. Mas tal não significa que sejam inexistentes. Do mesmo modo, se em concreto uma qualquer deficiência redundar em tal handicap pode lançar-se mão da medida.
Mais complexa parece ser a interpretação do segmento pelo seu comportamento. Se dúvidas parece não haver no tocante à possibilidade de, por essa via, se contemplarem os casos de comportamento pródigo, comportamento condicionado pelo abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes, hesita-se em saber se o regime se queda nestas hipóteses ou se permite que outros comportamentos inviabilizadores do exercício de direitos e do cumprimento de deveres possam ser tidos em conta para efeitos de decretamento do acompanhamento.
(…)
Por último, reforçamos uma nota: porque a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxilia-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica, o intérprete deixa de estar preso a uma lógica de taxatividade, o que torna viável uma maior flexibilidade.
Acresce que o acompanhamento é decretado a pedido do beneficiário ou mediante a sua autorização. Assim sendo, o julgador poderá ser menos restritivo. E se é verdade que, em situações residuais, a mencionada autorização pode ser suprida pelo tribunal e que, noutras, o Ministério Público pode requerer o acompanhamento independentemente de autorização, então, haveremos de reservar para essas hipóteses um maior rigor no controlo dos fundamentos da adoção da medida. Institui-se, portanto, um sistema móvel, em que a falta de manifestação de vontade por parte do acompanhado deve ser compensada por uma maior exigência na verificação dos requisitos que se analisam neste ponto expositivo.
Miguel Teixeira de Sousa, in “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado - O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais,  disponível online em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30 defende que “A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no artº 145º, nº2, do Código Civil; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar – artº 140º, nº2, do Código Civil), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Balizado o quadro legal e doutrinal da situação em apreço, debrucemo-nos sobre a concreta factualidade da mesma.
Defende o recorrente que os pontos 5, 8, 9, e 11, dos factos provados impõem a conclusão da desnecessidade de aplicação de qualquer medida de acompanhamento, à luz dos princípios da necessidade, da subsidiariedade e do espírito da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Recordemos, por facilidade expositiva, os referidos pontos:

5. Depende totalmente da ajuda de terceira pessoa, sendo prestada, dia e noite, por cuidadoras contratadas para o efeito e pelo próprio requerente e respetiva esposa.
8. O único rendimento auferido pela beneficiária consiste na pensão de sobrevivência do falecido marido, no valor de €910,00 mensais, os quais são creditados na conta bancária que a primeira e o requerente possuem, na Banco 1..., conta nº  ...30, de onde é retirado pelo filho requerente os fundos necessários para liquidação das suas despesas com alimentação, saúde e cuidadoras.
9. O Requerente tem grande cumplicidade pessoal e afetiva com a Beneficiária, visita-a diariamente, vivendo na mesma vila e com grande proximidade entre residências, tendo sido o mesmo e esposa quem têm velado e prestado, nos últimos anos, a assistência de que a Beneficiária vai necessitando, nos cuidados de saúde, na gestão do respetivo património, na contratação de cuidadoras, na aquisição de bens essenciais, etc.
11. Frequenta o Centro de Dia ... em ... e tem aspeto bem cuidado.
Todavia, não podemos isolar os citados factos dos demais provados.
Desde logo, e a montante, o relatório da perícia médico-legal realizada em 8 de maio de 2023, e que o tribunal recorrido acolheu nos factos provados, concluiu que “Da avaliação realizada, da consulta do seu processo judicial e clínico pode-se concluir que AA apresenta um Síndrome Demencial compatível com demência de Alzheimer em estado moderado a grave.
O seu quadro clínico e a patologia que padece é de natureza crónica, não existindo à data dos conhecimentos científicos atuais tratamentos curativos, apenas tratamento de natureza sintomática, no alívio de sintomas.
De acordo com a avaliação realizada e dos dados obtidos através da leitura do processo judicial pode-se concluir que AA não tem capacidade de gerir a sua própria pessoa e bens, existindo necessidade de decretamento de medida de acompanhamento.

Os atos que devem ser praticados pelo acompanhante são todos os que permitam a adequada subsistência, adequação de cuidados de saúde e sobrevivência do examinado:

1. Apoio nas atividades de vida diária, nomeadamente na higiene, vestuário e na alimentação.
2. Incapacidade total de realizar negócios jurídicos (comprar, vender, permutar, doar, entre outros de idêntica natureza).
3. Incapacidade de compreender as consequências afetivas/pessoais/patrimoniais do casamento, união de facto, perfilhação/ adoção e testamento.
4. Necessita de acompanhamento para todas as atividades instrumentais, desde o cuidado físico até à gestão da própria pessoa e bens (cuidados de saúde, gestão dos documentos).

Ora, se relativamente ao ponto 1 das conclusões da perícia realizada poderíamos concordar que a factualidade vertida nos pontos referidos pelo recorrente (5, 8, 9 e 11 dos factos provados) permitiria concluir pela desnecessidade do decretamento de uma medida de acompanhamento, já não assim é quanto aos demais pontos.

Vejamos.
Como proteger a beneficiária perante a sua incapacidade total para realizar negócios jurídicos (comprar, vender, permutar, doar, etc.)? E como protegê-la perante uma hipotética assunção de responsabilidades, pessoais, financeiras, sem que a mesma tenha o pleno alcance dos seus atos? E como salvaguardá-la perante os necessários cuidados na gestão de documentos, sendo certo que reconhece o dinheiro, mas não de forma adequada, não sendo capaz de fazer cálculos simples?
Estamos perante um quadro de síndrome demencial compatível com demência de Alzheimer em estádio moderado a grave, sem cura. Não se trata, por isso, de uma qualquer necessidade momentânea, passageira, nem perante uma simples incapacidade motora, em que as faculdades cognitivas permanecem intocáveis. Ao invés, estamos perante um quadro fáctico que só poderá ter agravamento, e não melhorias, à medida que a idade vai avançando.
Está assim demonstrada a necessidade da medida de acompanhamento, em ordem a assegurar o bem-estar, o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos deveres da beneficiária, como objetiva o artº 140º do Código Civil.
O recorrente alegou ainda que se estará perante uma violação dos princípios da subsidiariedade e do princípio constitucional da proporcionalidade, previsto no artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa.
O artº 140º do Código Civil, epigrafado de “Objetivo e supletividade”, dispõe que “1 – o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença. 2 – A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”
O tribunal recorrido decretou medidas de representação geral, administração total de bens e impedimento de exercício de direitos pessoais, designadamente de caráter pessoal.
Defende o recorrente (conclusão 7) que não se pode aplicar este tipo de medidas tendo por base situações hipotéticas, futuras e que se desconhecem se alguma vez ocorrerão.
Discordamos em absoluto desta asserção. É precisamente evitar que situações que possam prejudicar a beneficiária possam ocorrer que determina a necessidade de aplicação das medidas. O objetivo é prevenir e evitar, não reagir à posteriori.
Mas a questão mantém-se: os deveres gerais de cooperação e assistência referidos no supracitado artº 140º, nº2, do Código Civil, no caso a cargo dos filhos, mormente o requerente, não são suficientes para salvaguardar o bem-estar da beneficiária?
Cremos que não.
Pese embora o demonstrado acompanhamento familiar, mantêm validade as considerações que fizemos sobre a necessidade da medida de acompanhamento, que reproduzimos.
O quadro demencial da requerida e a impossibilidade fáctica de um acompanhamento 24 horas por dia, a cada momento, por parte dos seus filhos, não permite prevenir a prática de atos que se possam revelar gravosos para a beneficiária.
E, muito menos existe qualquer violação do princípio constitucional da proporcionalidade nas medidas decretadas pelo tribunal recorrido, como alegou o recorrente.

O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

- Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
- Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);
Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).

Compulsadas as medidas decretadas pelo tribunal recorrido, e atento tudo o que expusemos, impõe-se concluir pela adequação e suficiência das mesmas: relembramos a conclusão que a senhora psiquiátrica forense exarou no seu relatório pericial: “AA não tem capacidade de gerir a sua própria pessoa e bens, existindo necessidade de decretamento de medida de acompanhamento.
Concordamos, assim, com a sentença recorrida, que confirmamos.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas – artº 4º, nº2, alínea h), do RCP.
Notifique.
Guimarães, 12 de outubro de 2023.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes.
2ª Adjunta: Maria Gorete Morais.