Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5314/20.0T8BRG.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
CRÉDITO À HABITAÇÃO
MORTE DA PESSOA SEGURA
ACTO INTENCIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I. Deve reconhecer-se não ter hoje justificação no nosso ordenamento processual civil a proibição de incluir factos conclusivos na fundamentação de facto das decisões judiciais.
II. Tal actual entendimento sobre como retratar (narrar) a realidade subjacente ao litígio não significa (não tem como corolário ou necessária consequência), porém, que tendo o juiz evitado incluir na fundamentação de facto conceitos conclusivos ou matéria de direito, seja facultado à parte impugnar a decisão de facto, nos termos dos artigos 640º e 662º do CPC, em vista de nela ver incluída, exclusivamente, matéria conclusiva ou de direito.
III. Não se verifica nulidade da sentença apelada por omissão de pronúncia quando a questão a decidir (a controvérsia a dirimir trazida pelas partes a juízo, considerando pedido, causa de pedir e defesa) foi conhecida e apreciada na sentença apelada (qual seja a de apreciar se a ré estava obrigada a pagar ao beneficiário o capital seguro ou se podia validamente escusar-se a tal pagamento, considerando cláusula de exclusão estabelecida no contrato de seguro e bem assim o próprio regime legal do contrato de seguro).
IV. Tendo a morte da pessoa segura ocorrido por acto intencional (doloso - homicídio) perpetrado por tomador do seguro, não pode a seguradora, com base em contrato de seguro de vida associado a crédito à habitação, ser condenada a efectuar a prestação convencionada ao beneficiário:
- porque evento como o que vitimou a pessoa segura foi expressamente excluído do âmbito de cobertura do seguro (foi excluído do objecto do contrato o risco em causa, ou seja, a morte da pessoa segura causada intencionalmente por acto de tomador do seguro),
- porque tal é também a regra legal estabelecida no art. 46º, n.º 1 do RJCS (sendo o sinistro dolosamente causado pelo tomador do seguro o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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RELATÓRIO
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Autores/apelantes: H. F. e L. F. (menor, representada por A. J. e M. J.).
Ré/apelada: X - Companhia de Seguros, SA.
Juízo central cível de Braga (lugar de provimento de Juiz 5) – Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
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Intentaram os autores (a autora L. F., porque menor, representada pelos seus avós maternos, aos quais incumbe o exercício das responsabilidades parentais concernentes aos actos da vida corrente e bem assim os de maior relevo) a presente acção pedindo a condenação da ré a pagar ao Banco ..., SA, beneficiário de apólice de seguro de ramo vida, quantia por este mutuada e ainda em dívida, até ao montante de 86.126,56€ (oitenta e seis mil cento e vinte e seis euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida dos respectivos juros legais desde a interpelação extrajudicial.
Alegaram como fundamento da pretensão que na constância do respectivo matrimónio, M. M. e A. P., seus progenitores, celebraram um contrato de mútuo com o Banco ..., SA, no valor de 86.126,56€, subscrevendo um contrato de seguro do ramo vida, para assegurar o pagamento do mútuo contraído, mediante o qual transferiram para a ré seguradora a responsabilidade de pagamento da quantia mutuada, em caso de morte ou invalidez de algum deles. Porque a A. P. – continuam os autores alegando – faleceu no dia 6/03/2019, vítima de homicídio cometido pelo M. M., ocorreu o risco coberto, recusando-se a ré a assumir a sua responsabilidade perante o beneficiário do seguro contratado, sustentando a exclusão do risco com fundamento em previsão do contrato de seguro (que estabelece não garantir a seguradora o risco caso o falecimento da pessoa seja devido a facto intencional do tomador, da pessoa segura ou do beneficiário) e, ainda, no disposto no n.º 1 do artigo 458º, do Código Comercial (que estatui que o segurador não é obrigado a pagar a quantia segura se o segurado for morto pelos seus herdeiros).
Contestou a ré, concluindo pela improcedência da acção, refutando a responsabilidade baseando-se em exclusão prevista no contrato de seguro celebrado com os progenitores dos autores, atenta cláusula que estipulava não garantir a ré o pagamento das importâncias seguras caso o falecimento da pessoa segura se ficasse da dever a facto intencional do tomador do seguro, da pessoa segura ou do beneficiário (como aconteceu, já que a morte da progenitora dos autores, pessoa segura, se ficou a dever a acto intencional do progenitor dos autores, tomador do seguro).
Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.

Não conformados, apelam os autores em vista da revogação da sentença e sua substituição por decisão que condene a ré a pagar ao beneficiário do seguro a quantia peticionada, terminando as alegações pela formulação das seguintes conclusões (que se transcrevem):

1- Os Autores/recorrentes interpuseram o presente Recurso de Apelação, por não concordarem com a douta sentença, proferida no passado dia 25/02/2021, nos autos à margem melhor id., a qual absolveu a Ré “X – Companhia de Seguros, SA”, do pedido, tendo tal ação sido julgada improcedente.
2- Na verdade, os recorrentes entendem que a Ré deveria ter sido condenada nos pedidos apresentados, na citada Ação Ordinária, objeto do presente recurso, na medida em que a doutrina e a jurisprudência maioritária, no nosso ordenamento jurídico, considera que, no caso dos autos, o seguro contratado entre o arguido M. M. e sua esposa, a falecida A. P., é um Contrato de Seguro de Adesão, e não apenas um seguro individual, porquanto no ato de celebração do aludido contrato de mútuo, aqueles dois mutuários (1ºs. Segurados) se limitaram a aderir (contrato de adesão) e a assinar um contrato de seguro já preenchido e pré-contratualizado, entre a Ré Seguradora e o Banco ... SA (Beneficiário), contrato que, só mais tarde, aderiram os aqui Autores como segundos segurados.
3- No contrato de seguro de adesão, o qual se destina a garantir o pagamento de crédito à habitação, concedido por um banco no âmbito de um contrato de mútuo a ele associado, sendo o beneficiário de tal contrato o conglomerado financeiro Banco/seguradora, deve considerar-se terceiro face ao mesmo, o segurado que a ele adere.
4- O homicídio doloso da segurada às mãos do seu marido e herdeiro não exclui o risco nem desvincula a Seguradora face ao Beneficiário e aos demais herdeiros que nele não tiveram qualquer participação.
5- De qualquer modo, mesmo assumindo que o contrato de seguro não é um contrato de adesão (embora o mesmo tenha sido classificado, na douta fundamentação da sentença/recorrida, como um contrato de adesão) como seguro sobre a vida de terceiro, a Seguradora nunca ficaria desobrigada da entrega do capital seguro ao respetivo beneficiário, por efeito do disposto no artigo 458º, § único do Código Comercial e do disposto no artigo 46.º, n.º 1, do RJCS, aprovado pelo Dec-Lei n.º 72/2008, de 16.04.
6- Na conformidade do exposto, entendem os Autores/recorrentes, salvo o devido respeito por opinião contrária e que é muito, que o M.º Juiz, ao entender – na matéria de facto provada - que o contrato de seguro objeto dos presentes autos se tratava de um contrato de seguro do ramo vida, celebrado entre a Ré e os restantes contraentes, não se tendo pronunciado sobre as consequências jurídicas do facto de tal contrato ser também um contrato de adesão (que reconheceu na fundamentação da sentença/recorrida, incorreu numa omissão de pronúncia.
7- E, incorreu numa omissão de pronúncia, na medida em que – quer do teor dos factos dados como provados e/ou não provados, quer da douta fundamentação constante da sentença/recorrida –, não resulta que tal questão de direito tenha sido devidamente abordada, discutida e analisada, de forma a que os Autores pudessem entender qual o raciocínio, os fundamentos e as razões em que se baseou, aquele ilustre magistrado, para dar como provado que se estava apenas perante um seguro do ramo vida e não perante um contrato de seguro de adesão, situação que implicou que o M.º Juiz não tenha extraído e/ou analisado as necessárias consequências jurídicas em face da legislação aplicável a tais contratos.
8- Não se podendo olvidar que o aludido contrato de seguro é um documento autêntico, sendo certo que os documentos particulares gozam de força probatória plena, nos termos do disposto no artigo 376º, do Código Civil, situação que impunha que tal análise jurídica tivesse sido efetuada na douta sentença/recorrida e constasse da fundamentação dos factos dados como provados, o que não foi feito, como já se referiu e alegou anteriormente.
9- Por fim, cumpre referir que, a douta sentença/recorrida desconsiderou tal situação relativa à análise e classificação jurídica do referido contrato, como sendo um contrato de adesão, não se pronunciando sobre tal questão, apesar de bem saber que a classificação do aludido contrato de seguro poderia (e pode), eventualmente, alterar a decisão final proferida na douta sentença/recorrida, por força da legislação aplicável a tais contratos, situação que para além de configurar uma omissão de pronúncia, configura, ainda, a violação, por erro de interpretação, das disposições combinadas dos artigos 374°, n.º 1 e 376º, nºs 1 e 2 do Código Civil e os n.ºs 4 e 5 do artigo 607º, do Código de Processo Civil (2.ªparte).
10- Pelo exposto, impõe-se a modificação da matéria de facto, dada como provada no Ponto n.º 3, da douta sentença/recorrida, em conformidade com o anteriormente alegado, mormente dando como provado que estamos perante um contrato de seguro de adesão, na medida em que, quer o contrato de mútuo, quer o contrato de seguro, foi celebrado, numa primeira fase, apenas e exclusivamente, entre a Ré e o Banco beneficiário do seguro, tendo os primeiros segurados se limitado a aderir a tal contrato já preenchido, aderindo posteriormente, a tal contrato, os segundos segurados, conforme se verifica da análise dos Anexos 1 e 2 daquele contrato, tendo, assim, sido violado o disposto nos artigos 374º, n.º 1 e 376º, nºs 1 e 2 do Código Civil, para além de terem sido violados, ainda, os n.ºs 4 e 5 do artigo 607º, do Código de Processo Civil (2.ªparte).
11- O M.º Juiz do Tribunal a quo, entendeu, ainda, na sua douta sentença, que por força do estabelecido na cláusula n.º 1.7 – 1.7.1 – 1.7.1.1, do aludido contrato de seguro, que a Ré estava desobrigada do pagamento da quantia segura ao banco beneficiário.
12- Salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, os Autores/recorrentes, não aceitam, nem concordam com tal decisão, pelas razões e motivos que se passam a descriminar de seguida.
13- Segundo o clausulado constante no contrato de seguro objecto dos presentes autos, como seu beneficiário terá de entender-se a pessoa ou a entidade a favor da qual é celebrado o contrato, isto é, e como se viu acima, o Banco credor do mútuo hipotecário – in casu o Banco ..., SA, que nada teve a ver com o referido homicídio, não sendo, assim, pelo aludido clausulado que se justificará tal exclusão.
14- Mais fundamentou o M.º Juiz que, mesmo que assim se não entendesse, sempre a desobrigação da seguradora, encontraria fundamento legal no artigo 46.º, n.º 1, do RJCS, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.04 e/ou no nº 1 do artigo 458º do Código Comercial, onde se prescreve que o segurador não é obrigado a pagar a quantia segura se o segurado foi morto pelos seus herdeiros, norma que, segundo a douta sentença/recorrida teria o sentido e alcance de ser oponível ao próprio beneficiário do contrato e aos herdeiros que não tiveram qualquer participação naquela morte.
15- Na sua completa redação estatui-se naquele artigo 458º, do Código Comercial, o seguinte:
“O segurador não é obrigado a pagar a quantia segura:
1.º Se a morte da pessoa cuja vida se segurou, é resultado de duelo, condenação judicial, suicídio voluntário, crime ou delito cometido pelo segurado, ou se este foi morto pelos seus herdeiros;
2.º Se aquele que reclama a indemnização foi autor ou cúmplice do crime da morte da pessoa, cuja vida se segurou.
§ único. A disposição do nº1 deste artigo não é aplicável ao seguro de vida contratado por terceiro.” – (Fim de Citação).

Por sua vez, o artigo 46.º, n.º 1, do RJCS, aprovado pelo Dec-Lei n.º 72/2008, de 16.04, estatui:
[…..]
Artigo 46.º
Actos dolosos
1 - Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, assim como convenção em contrário não ofensiva da ordem pública quando a natureza da cobertura o permita, o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado.
2 - O beneficiário que tenha causado dolosamente o dano não tem direito à prestação.” – (Fim de Citação).
16- Salvo o devido respeito, que é muito, os Autores/recorrentes, entendem que importa começar por dizer que tais imperativos justificam que a desvinculação da Seguradora, no caso da morte do segurado às mãos dos herdeiros que nos ocupa, nos presentes autos, apenas se estenda àquele ou àqueles que nela participaram e, ainda, in casu, nunca ao beneficiário do seguro que não teve qualquer participação na morte do 1º segurado.
17- Como refere Moitinho de Almeida, na obra supra referenciada, a pág. 191, “num seguro contraído pelo pai a favor dos filhos não faz sentido que a morte daquele por um destes faça extinguir o direito dos restantes”, desde logo porque “é contrário à finalidade de previdência que caracteriza o contrato de seguro”.
18- No mesmo sentido escreve José Vasques (in “Contrato de Seguro”, 1999, a pag. 359) que: “o legislador não foi feliz na redação desta exclusão…uma vez que no seu espírito, estaria a desobrigar a seguradora de qualquer pagamento ao beneficiário homicida, mas prevaleceria a obrigação quando o segurado fosse morto pelos herdeiros quando não fossem estes os beneficiários” – o que, aliás, resulta do teor de ambos os nºs 2º dos dois normativos anteriormente citados e reproduzidos.
19- Motivo pelo qual, os recorrentes entendem que a cláusula em análise não tem o sentido e alcance que o M.º Juiz lhe deu na sua douta/sentença, ora recorrida, devendo interpretar-se a aludida clausula de exclusão, com o n.º 1.7.1 – 1.7.1.1, restringindo a sua ação, nomeadamente quando o segurado é morto pelos seus herdeiros e aos casos em que estes são os beneficiários da quantia segura à luz do contrato celebrado, características que no caso vertente não existem, como se viu, na medida em que foi o pai dos recorrentes que matou a sua esposa, não tendo os herdeiros e o beneficiário qualquer participação em tal homicídio.
20- Por outro lado, afigura-se aos Autores/recorrentes que a exclusão aplicada pelo M.º Juiz, na sua douta sentença, não tem aplicação ao contrato firmado nos autos. Na verdade, e em primeiro lugar, caracterizou-se tal contrato como sendo um contrato de seguro Ramo Vida, mas também um contrato de Adesão cujas especificidades decorrem de uma relação “triangular” – assim apelidada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.10.2009, Proc. n.º 2157/06, in www.dgsi.pt e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2007, Proc. n.º 07B1277, in www.dgsi.pt.
21- Trata-se, portanto, de contrato realizado em nome próprio pelo respetivo tomador, mas o interesse nele coberto pertence ao segurado aderente, considerado terceiro face a esse contrato quadro - (Cfr. “O Seguro de Vida…”, de Maria Inês Oliveira Martins, a pag. 86).
22- Nesta perspetiva, estamos perante o contrato sobre a vida de terceiro a que se refere o § único do citado artigo 458º e o artigo 46.º, n.º 1, do RJCS, aprovado pelo Dec-Lei n.º 72/2008, de 16.04, à sombra dos quais resultaria, assim, inviabilizada a aplicação a este, do nº 1 desse mesmo dispositivo. Ou seja: ter-se-ia de manter a obrigação da Ré, Seguradora, em pagar o montante segurado.
23- Fundamenta-se, ainda, em síntese, a sentença/recorrida, no seguinte:
(…..). Por isso que aceitar a cobertura deste sinistro pelo ajuizado contrato de seguro seria premiar o tomador do seguro que, por meio de uma atuação dolosa, homicídio voluntário por si cometido, determinou o respetivo acionamento” – (Fim de citação – sublinhados nossos).
24- Sobre esta matéria cumpre dizer, salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, que os recorrentes entendem que, por via da indignidade sucessória que lhe foi aplicada por sentença judicial, o aludido homicida está impedido de beneficiar do hipotético remanescente do capital seguro (artigo 67º, 2032º, n.º 1 e 2037º, n.º 1, todos do Código Civil).
25- Cumprindo, ainda, sublinhar, desde logo por uma questão de rigor, mesmo presumindo-se que o segurado marido (Homicida) possa vir a beneficiar com o pagamento de algum remanescente do aludido seguro, mesmo que tal possa suceder, não foi esse o propósito a que obedeceu a constituição do contrato de seguro em apreciação, o qual, no quadro da constelação de relações jurídicas travadas em torno do aludido mútuo, tinha por função, tal como a hipoteca, garantir o cumprimento deste perante o Banco credor – beneficiário que nada teve a ver com o referido homicídio.
26- Não se vislumbrando, assim, imoralidade naquilo que é afinal o cumprimento, por banda da Ré, da obrigação de entregar a quantia segura, por si assumida em letra de forma quando subscreveu, na qualidade de Seguradora, o respetivo contrato de seguro, quando é certo, como se viu, não subsistir fundamento para a desvincular de tal cumprimento.
Contra-alegou a ré pugnando pela improcedência do recurso e integral manutenção da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar.

Considerando as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, n.º 2, 5º, n.º 3, 635º, n.ºs 4 e 5 e 639, n.º 1, do CPC), as questões a decidir (que conformam o poder-dever cognitivo do tribunal no âmbito da presente apelação) reconduzem-se a:
- apreciar da pretendida alteração da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto (os apelantes argumentam dever a matéria de facto ser modificada, dando-se como provado, no facto 3º, que o contrato celebrado é um ‘contrato de seguro de adesão’ – conclusão 10ª),
- apreciar da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (por não terem sido apreciadas/ponderadas as consequências jurídicas do contrato de seguro ser um contrato de adesão – conclusões 6ª a 9ª),
- apreciar da responsabilidade da seguradora – mais propriamente, se a seguradora não está obrigada a efectuar a prestação (quer em razão de cláusula de exclusão constante do contrato, quer em razão do disposto no artigo 46º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04).
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

Na sentença recorrida consideraram-se com relevo para a decisão:

Factos provados
1. M. M. e A. P. casaram em primeiras e únicas núpcias de ambos no dia - de Agosto de 1998.
2. Em 28 de Fevereiro de 2014 M. M. e A. P. celebraram com o Banco ... SA., agência de …, Braga, um contrato de mútuo – crédito habitação –, no valor de 90.000,00€.
3. No dia 30 de Maio de 2019, para assegurar o pagamento de tal mútuo, em caso de morte e/ou invalidez, o M. M. e a A. P., celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo vida, apólice n.º .....57 (Produto Vida Habitação Plus – 2 cabeças), com efeitos a partir do dia 28 de Fevereiro de 2019, com o capital seguro no valor de 86.126,56€, ficando como beneficiário de tal seguro o Banco ..., SA.
4. A ré emitiu o respectivo certificado de seguro, apólice n.º .....57, no dia 30 de Maio de 2019, constando de tal contrato de seguro, no seu Anexo 1, das Condições Particulares, como pessoas seguras o M. M. e a A. P..
5. No Anexo 2 das Condições Particulares de tal contrato de seguro consta como seu primeiro beneficiário o Banco ..., S.A. no caso do capital em dívida do empréstimo contraído pelas pessoas seguras, no caso de ocorrer a morte dos segurados, durante a vigência do seguro.
6. Constando, ainda, no Anexo 2 das Condições Particulares daquele contrato de seguro, como seus segundos beneficiários, os herdeiros legais, em conjunto, na proporção do respectivo título sucessório, apenas no caso de existir capital remanescente, após o pagamento do capital em dívida ao 1º beneficiário.
7. No âmbito do contrato de seguro titulado pela apólice n.º .....57 foram estabelecidas Condições Gerais, Especiais e Particulares.
8. Entre as Condições Gerais estatuídas no contrato de seguro titulado pela apólice n.º .....57, figura o seguinte:
‘[…..]
Capítulo I – Condições Gerais Seguro de Vida Individual – Crédito à Habitação.
1. Definições: Para efeitos deste Contrato consideram-se as seguintes definições:
1.1. SEGURADOR – … Seguros, Companhia de Seguros de Vida S.A. – Matriculado na Conservatória do Registo Comercial de … - 3ª Secção, sob o N.º …….13 de Pessoa Coletiva, Capital Social de 47.250.000€, com sede na rua da …; Portugal.
1.2. TOMADOR DO SEGURO - entidade que celebra o contrato e é responsável pelo pagamento dos prémios;
1.3. PESSOA SEGURA - cada uma das pessoas que satisfaça as condições de elegibilidade e faça parte da relação das pessoas incluídas no seguro;
1.4. BENEFICIÁRIO - pessoa singular ou coletiva a favor de quem reverte a prestação do Segurador decorrente do Contrato.’
9. No âmbito das Condições Especiais Seguro Vida Habitação Plus 1 – no seu Capítulo II, ficou estabelecido, entre outras, a seguinte cláusula:
[…..] 1. Cobertura Principal de Morte.
1.1. Objeto do Contrato: O Segurador garante, em caso de morte da Pessoa Segura, e sempre que esta ocorra antes do termo do Contrato, o pagamento aos Beneficiários do Capital Seguro previsto, de acordo com o estabelecido na Apólice.’
10. No âmbito das Condições Especiais - Seguro Vida Habitação Plus 1 – no seu Capítulo II, ficou estabelecido, entre outras, a seguinte cláusula:
[…..]
1.7. Riscos Excluídos.
1.7.1. O Segurador não garante o pagamento das importâncias seguras, caso o falecimento da Pessoa Segura seja devido a:
1.7.1.1. Facto intencional do Tomador do Seguro, Pessoa Segura ou Beneficiário.
11. No âmbito das Condições Especiais - Seguro Vida Habitação Plus 1 – no seu Capítulo II, ficou estabelecido, entre outras, a seguinte cláusula:
[…..]
1.9 Liquidação das importâncias seguras.
(…)
1.9.2 A ocorrência de sinistro deverá se comunicada ao Segurador, pela pessoa que demonstre ter legitimidade para o efeito atenta a sua qualidade de pessoa segura ou de beneficiário, mediante explicitação comprovada das circunstâncias que estão na origem da verificação do sinistro, das respetivas causas subjacentes à sua ocorrência e, sendo o caso, das respetivas consequências, devendo, ainda, ser prestada à Companhia de Seguros, toda a informação comprovadamente relevante relativa ao sinistro e respetivas consequências, tudo conforme o disposto no artigo 100º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.’
12. No dia 6 de Março de 2019, entre as 20 horas e as 21 horas, M. M. matou A. P..
13. Por escritura outorgada no dia 26 de Março de 2019, foram habilitados, como únicos herdeiros legitimários de A. P., o seu cônjuge M. M., e os dois filhos, H. F. e L. F., consignando-se que ‘não há outras pessoas que, segundo a Lei, prefiram aos indicados herdeiros na sucessão ou quem com eles concorra.’
14. Perante o facto descrito em 12, nos dias subsequentes, A. J. e M. J., em representação dos autores L. F. e H. F. (este na altura tinha 16 anos de idade), comunicaram ao Banco ... com delegação na rua da Gandra n.º 2, Celeiros em Braga o falecimento da segurada A. P..
15. Em 18 de Junho de 2019, A. J. e M. J., em representação dos autores L. F. e H. F., enviaram carta registada à ré X, a informar por escrito o óbito da A. P., solicitando que a ré assumisse o pagamento integral do remanescente do valor em dívida ao Banco ..., SA e lhes enviasse cópia das condições gerais e particulares do contrato de seguro titulado pela apólice n.º .....57.
16. Na sequência daquela missiva, a ré enviou uma comunicação a solicitar documentos a fim de se pronunciar e ainda enviou os documentos solicitados pelos AA.
17. Em 20 de Agosto de 2019 os autores enviaram para a ré apenas o auto de ocorrência tendo em conta o despacho do magistrado do MP, pelo facto de o processo se encontrar em segredo de justiça.
18. No dia 31 de Dezembro de 2019 a ré respondeu que não se podia pronunciar sobre o referido sinistro, necessitando que lhe fossem enviadas cópias do auto de ocorrência e dos elementos relativos ao processo de inquérito, para depois poder analisar e decidir sobre o pedido apresentado pelos autores, na medida em que ainda estava a decorrer o respectivo processo crime.
19. Em 14 Janeiro de 2020 os autores enviaram à ré, por correio electrónico, cópias do auto de ocorrência, cópias do despacho final de acusação proferido pelo Ministério Público e cópias do relatório de autópsia efectuado à vítima/segurada.
20. No dia 15 de Janeiro de 2020 a ré acusou a recepção dos elementos solicitados, informando que iria proceder à sua análise, sendo que, oportunamente, informaria os autores da sua decisão.
21. No dia 27 de Fevereiro de 2020 a ré comunicou aos autores que apenas iria pronunciar-se sobre o pedido de reembolso por óbito da segurada A. P. após a prolação da respectiva sentença/decisão judicial sobre a acusação proferida contra o 1.º segurado.
22. Pelo facto descrito em 12, M. M. foi julgado e condenado, no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 344/19.8JABRG, que correu seus legais termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 6, pela prática de um crime de homicídio qualificado.
23. No acórdão condenatório foi, ainda, declarada a indignidade de M. M. para suceder na herança aberta por óbito do seu cônjuge A. P..
24. No dia 02 de Julho de 2020 os autores enviaram à ré cópias do acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n.º 344/19.8JABRG, no qual o 1º segurado, M. M., foi condenado na pena de 19 anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado.
25. No dia 31 de Julho de 2020 a ré informou os autores que: “Na sequência da avaliação pelo nosso Departamento Clínico de toda a documentação amavelmente enviada, vimos comunicar-lhe a impossibilidade de qualquer pagamento do capital referente à apólice em epígrafe, já que verificamos que o presente sinistro se encontra excluído nas Condições Gerais da apólice. Para que possa confirmar o atrás exposto relativamente ao estabelecido nas Condições Gerais e Especiais deste contrato de seguro, enviamos em anexo extrato das mesmas com os artigos respetivos”.
26. Face a tal resposta, os autores, através de correio electrónico datado de agosto de 2020, reclamaram junto da ré o pagamento do capital seguro.
27. Por correio electrónico de 24 de Agosto de 2020 a ré manteve a decisão de recusar assumir o pagamento do capital referente ao contrato de seguro.
28. Por sentença datada de 20 de Fevereiro de 2020, proferida no âmbito do processo n.º 1502/19.0T8BRG-A – Regulação das Responsabilidades Parentais –, do Juízo de Família e Menores de Braga, J3, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi homologado o acordo relativo aos autores H. F. e L. F., pelo qual estes ficaram entregues à guarda e cuidados dos avós maternos – A. J. e M. J., com quem ficaram a residir, exercendo estes as responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente e tomando as decisões de maior relevo na vida dos netos.
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Fundamentação de direito

A. Da impugnação da decisão da matéria de facto

Impugnam os apelantes a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, defendendo a sua modificação, para que no facto 3º se considere como provado que o contrato celebrado é um ‘contrato de seguro de adesão’.
Impugnação de manifesta e patente improcedência, pois que o segmento que pretendem ver vazado na matéria de facto constitui, exclusivamente, matéria de direito.
Não se desconhece não ter hoje justificação no nosso ordenamento processual civil a proibição de incluir factos conclusivos na fundamentação de facto das decisões judiciais.
A doutrina vem expressiva e veementemente exortando a jurisprudência para que atenda ao novo e adequado modelo de retratar a realidade a ponderar no concreto litígio que é chamada a dirimir – atenuando o espartilho tradicional, assente na clássica e, por vezes, esotérica divisão entre matéria de facto/matéria de direito (1) (ou matéria conclusiva), não negando a inadmissibilidade da assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou a impossibilidade de, através de afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da decisão da matéria de facto, deve atentar-se que a ‘opção legislativa tem subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito’, devendo optar-se por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada da matéria factual, ‘de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integram permita a qualquer das partes a sua impugnação’ (2).
A exigência está, actualmente, centrada na fluência e harmonia descritiva da matéria de facto, em detrimento da sua apresentação sincopada, tal qual a que resultava da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas restritivas ou explicativas que usualmente preenchiam os pontos da base instrutória – e assim que optando-se ‘por proposições de carácter mais abrangente ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio’, justificar-se-á um ‘maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades do concreto litígio, desde que, como é natural, seja respeitada a correspondência com a prova que foi produzida e bem assim os limites materiais da acção e da defesa’ (3).
Não está, pois, actualmente excluído (e sem prejuízo de se buscar uma descrição factual e não juízos conclusivos (4)) o recurso a expressões de conteúdo mais genérico ou até conclusivo, desde que permitam percepcionar a realidade invocada e estejam concretizadas e substanciadas nos demais factos que as contêm ou que a elas se reportam em ordem à concretização da realidade subjacente ao litígio (e acautelado o exercício do contraditório (5) e circunscrita a realidade a apreciar jurisdicionalmente para efeitos de delimitação do caso julgado material) – até porque tal proibição de uso de expressões conclusivas (‘proibição dos factos conclusivos’) não ‘corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre matéria de facto e matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objecto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.’ (6)
Assim que não sendo adequado, p. ex., numa acção real levar-se à matéria de facto a simples afirmação de que ‘o autor é o proprietário do prédio, numa pura petição de princípio que assimile a causa de pedir e o pedido’, não poderá já negar-se a possibilidade do juiz que presidiu ao julgamento ‘assumir essa qualificação acompanhada da invocação da existência de uma presunção registral (documentada) não ilidida ou, com mais utilidade ainda, sustentada na afirmação de que considera provada a prática pelo autor e seus antecessores, durante 20 ou 30 anos, de atos que normalmente caracterizam a posse reportada ao referido direito real ou noutras afirmações fácticas que correspondam, sem qualquer espécie de dúvida, as segmentos normativos através dos quais o legislador regulou esta forma de aquisição originária.’ (7)
Estando a realidade a retratar exposta nos factos a que os ‘factos conclusivos’ ou ‘jurídicos’ se reportam (constantes da fundamentação de facto), e não resolvendo o ‘facto conclusivo’, atento o objecto do litígio, a questão jurídica (a sorte da acção) senão com a consideração da realidade a que se reporta e acompanha (e que se limita a adjectivar, qualificar, valorizar – sem substituir ou prescindir da enunciação concretizadora daquela realidade objectiva), permitindo-se sobre a matéria o integral e efectivo cumprimento do contraditório (respeitando-se, pois, os limites materiais da acção e da defesa) e alcançando-se a circunscrição/delimitação da realidade a apreciar jurisdicionalmente para efeitos de delimitação do caso julgado material, não poderá censurar-se o recurso a juízos conclusivos/valorativos.
Tal actual entendimento sobre como retratar (narrar) a realidade subjacente ao litígio não significa (não tem como corolário ou necessária consequência), porém, que tendo o juiz evitado incluir na fundamentação de facto conceitos conclusivos ou matéria de direito, seja facultado à parte impugnar a decisão de facto, nos termos dos artigos 640º e 662º do CPC, em vista de nela ver incluída, exclusivamente, matéria conclusiva ou de direito.
Efectivamente, ou a demais matéria de facto permite considerar a matéria ‘conclusiva’ ou ‘jurídica’, e a questão terá lugar próprio de tratamento e apreciação na apreciação jurídica do recurso, ou não o permite, caso em que terá a impugnação da decisão de facto de incidir sobre matéria que, a incluir na fundamentação de facto, a possa revelar, alicerçando-a em termos de realidade objectiva – como resulta do acima exposto, a matéria ‘conclusiva’ ou ‘jurídica’ a utilizar no segmento reservado à descrição/concretização da realidade a valorizar tem o seu âmbito circunscrito à adjectivação, qualificação ou valorização da realidade a que se reporta e acompanha, não tendo por função substituir a enunciação concretizadora do material objectivo que constitui a causa do litígio.
Apreciar se o contrato a que se refere a matéria de facto é um contrato de adesão constitui exclusiva questão de direito, a apreciar e tratar na fundamentação de direito, aplicando regras jurídicas aos factos apurados, concretizadores dos termos e condições que rodearam a emissão das declarações negociais produzidas pelas partes.
Improcede, pois, a impugnação da decisão de facto – por se não tratar, efectivamente, de impugnação da decisão de facto, nos termos regulados nos artigos 640º e 662º do CPC.

B. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Imputam os apelantes à sentença recorrida o vício da omissão de pronúncia em virtude de não terem sido apreciadas, abordadas, discutidas e analisadas ‘as necessárias consequências jurídicas’ a retirar da legislação aplicável aos contratos de adesão (conclusões 6ª a 9ª).
Uma vez mais (porque também uma vez mais vem invocada em recurso a nulidade da sentença) se nos impõe uma observação preliminar: mais do que a frequência com que, em sede de apelação, se suscita a nulidade da decisão recorrida, impressiona, vários anos volvidos sobre a introdução de tal solução no nosso ordenamento jurídico, que não se haja ainda interiorizado que caso conclua pela verificação do vício, caberá à Relação supri-lo e conhecer do objecto do apelação (art. 665º, n.º 1 do CPC), salvo se alguma questão tiver sido considerada prejudicada e haja necessidade, para decidir, de recolher outros elementos não disponíveis nos autos (caso em que, então, os autos voltarão à primeira instância) (8) – solução que, nos casos em que a aplicação do preceito (art. 665º, n.º 1 do CPC) se imponha, retira qualquer interesse prático à invocação do vício que, assim, quedará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão.
À situação trazida em recurso quadra, precisamente, a solução legal prescrita no art. 665º, n.º 1 do CPC – se for de reconhecer o vício (a omissão de pronúncia), impor-se-á a esta Relação suprir o vício e apreciar do objecto do recurso, por os elementos necessários para tanto se mostrarem disponíveis.
Feita a observação, apreciar-se-á da arguição.
As nulidades da sentença (regime aplicável às decisões da 2ª instância – art. 666º, n.º 1 do CPC) têm regime específico, traçado nos arts. 615º e 617º do CPC.

A omissão de conhecimento (omissão de pronúncia) é patologia que ocorre nas situações em que a decisão se não pronuncia sobre (e não aprecia, soluciona ou decide) questões cujo conhecimento se lhe impõe – deve ‘o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções que oficiosamente lhe cabe conhecer’ (9).
Situação que se correlaciona com o n.º 2 do art. 608º do CPC, por ele tendo de ser integrado (10) – impõe-se ao juiz que conheça e aprecie de todas as questões suscitadas pelas partes que não sejam prejudicadas pela solução dada a outras.
Questões (na concepção normativa do art. 608º, n.º 2 do CPC) são os ‘pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir’ (11). Conceito a ser tomado em sentido amplo, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência da causa de pedir e das excepções e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem, importando que o tribunal aprecie os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa (12) – conceito não recondutível ou confundível com razões ou argumentos, pois os «argumentos» ‘não são «questões», e é a estas que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa (13).
Assim que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia se circunscreve às situações em que uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não tenha aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão e cuja resolução não haja sido prejudicada pela solução dada a outras.
Considerando a pretensão deduzida e causa de pedir invocada como fundamento, fácil concluir que a questão que na presente acção ao tribunal cumpria apreciar e decidir se reconduzia a apurar se (controvérsia central a dirimir – nos articulados apresentados as partes circunscreveram a discussão a tal questão) a ré apelada podia validamente escusar-se ao pagamento do capital seguro ao beneficiário, considerando cláusula de exclusão estabelecida no contrato de seguro celebrado com os progenitores dos autores apelantes (e bem assim o próprio regime legal do contrato de seguro).
Fácil constatar, pois, não se verificar a invocada nulidade da sentença apelada por omissão de pronúncia – a questão a decidir (a controvérsia a dirimir trazida pelas partes a juízo, considerando pedido, causa de pedir e defesa) foi conhecida e apreciada na sentença apelada (qual seja a de apreciar se a ré estava obrigada a pagar ao beneficiário o capital seguro ou se podia validamente escusar-se a tal pagamento, considerando cláusula de exclusão estabelecida no contrato de seguro e bem assim o próprio regime legal do contrato de seguro).
A qualificação do contrato celebrado entre os progenitores dos autores e a ré seguradora como contrato de adesão (e eventuais consequências jurídicas a extrair da legislação a tais contratos aplicável) era questão inócua à apreciação da controvérsia central do litígio, ponderando a factualidade invocada e a discussão jurídica que, com base nela, as partes suscitaram – atente-se, p. ex., que não invocaram os autores matéria que determinasse ao tribunal a necessidade de averiguar da validade do clausulado no contrato, mormente a invalidade de qualquer cláusula contratual por violação dos deveres de comunicação/informação (questão que não é de conhecimento oficioso) (14). Não constituía questão a decidir, na concepção normativa do art. 608º, nº 2 do CPC (e com a autonomia que tal implica para se poder concluir que a sua não apreciação redunda em omissão de pronúncia), apreciar de eventuais consequências jurídicas (que os apelantes nem sequer identificam nas suas conclusões) que a qualificação do contrato de seguro como contrato de adesão poderia implicar.
Não padece, pois, a sentença apelada do invocado vício de omissão de pronúncia.

C. Da responsabilidade da seguradora – rectius, da inexistência da obrigação de efectuar a prestação (quer em razão de cláusula de exclusão constante do contrato, quer em razão do disposto no artigo 46º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04).
Constitui o contrato objecto dos autos um contrato de seguro de vida, associado a crédito a habitação.
Da matéria provada concluem-se todos os elementos deste tipo de contrato (factos provados números 3 a 6) – foi celebrado negócio jurídico pelo qual os progenitores dos autores (tomadores do seguro) transferiram para a ré, empresa para tanto habilitada (seguradora), o risco que uma futura invalidez ou morte lhes acarretaria (pessoas seguras) no cumprimento de contrato de mútuo que haviam celebrado com entidade bancária, risco que a ré seguradora aceitou assumir (pagando à entidade bancária – a beneficiária – o montante em dívida ao tempo do sinistro) mediante o recebimento da contrapartida constituída pela prestação certa e periódica (prémio) que os tomadores do seguro se comprometeram a efectuar (art. 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04). Ademais, compreendendo a cobertura risco relacionado com a morte das pessoas seguras, é um seguro de vida (um seguro de pessoas – artigos 175º, n.º 1 e 183º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
Contrato que se rege pela lex contratus, vazada nas condições especiais e particulares e bem assim em clausulado designado por clausulado geral (condições gerais) – o contrato de seguro rege-se, primacialmente, pelas cláusulas contratuais acordadas entre as partes, dentro dos limites da lei, e cujo conteúdo não seja contrário à lei, à boa fé, à ordem pública ou aos bons costumes, sendo na matéria não expressamente prevista ou regulada no contrato aplicável o regime legal supletivo (15).
Tal lex contratus, mormente a estabelecida nas condições gerais, representa objectivação do princípio da liberdade contratual (corolário do princípio da autonomia privada, que postula a legitimidade dos particulares para ordenarem as suas relações jurídicas), na sua vertente da conformação, modelação, fixação ou estipulação do conteúdo dos contratos (art. 405º, n.º 1 do CC e, especificamente quanto aos contratos de seguro, o art. 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
Livre fixação do conteúdo dos contratos que sofre restrições, havendo que salientar, no âmbito dos contratos de seguro, ‘limites específicos como a proibição da celebração de contrato que cubra determinados riscos, por serem contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (art. 14º); a aplicação «do disposto na legislação sobre cláusulas contratuais gerais, sobre defesa do consumidor e sobre contratos celebrados à distância, nos termos do disposto nos referidos diplomas» (art. 3º) por a generalidade dos contratos de seguro seguirem esses modos de formação e se destinarem, essencialmente, aos consumidores; a regulamentação de diversos aspectos do tipo de contrato em questão por normas imperativas, tanto aquelas que, em caso algum podem ser afastadas pelas partes (art. 12 da LCS e normas para as quais o primeiro remete), como as que somente podem ser afastadas para se adotar «um regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação do seguro» (art. 13º da LCS e normas para as quais o primeiro remete), vigorando, assim, um princípio de tratamento mais favorável da parte contratualmente mais fraca (neste caso, o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário)’ (16) .
Na situação trazida em apelação, nenhuma das cláusulas gerais conformadoras do conteúdo do contrato se mostra desconforme (nem tal foi pelos autores apelantes alegado) a qualquer norma legal imperativa, contrária à boa fé, à ordem pública ou aos bons costumes, designadamente a cláusula especificada no facto provado número 10, sustentando os apelantes que a obrigação assumida pela ré, verificada a morte de uma das pessoas seguras (esse o risco coberto), não pode ter-se por excluída com fundamento em tal aludida cláusula (ou mesmo de qualquer norma legal).
Porque a morte da pessoa segura (progenitora dos autores) – uma das pessoas seguras – ocorreu por acto intencional (homicídio qualificado) de um dos tomadores do seguro (o progenitor dos autores) – vejam-se os factos provados números 12 e 22 –, verifica-se a exclusão do risco, por razão de ordem contratual – a cláusula contratual especificada no facto provado com o número 10, que dispõe, regulando os riscos excluídos, não garantir a seguradora o pagamento das importâncias seguras caso o falecimento da pessoa segura seja devido a facto intencional do tomador do seguro, pessoa segura ou beneficiário.
Da citada cláusula, conformando o conteúdo do contrato de seguro, resulta estar excluída a cobertura (e, assim, a garantia assumida pela seguradora – trata-se de risco excluído) caso o sinistro fique a dever-se a acto intencional do tomador do seguro, pessoa segura ou beneficiário. De arredar terminantemente a interpretação que para ele propugnam os apelantes – a de que tal cláusula tem o seu âmbito circunscrito aos casos em que o segurado é morto pelos seus herdeiros e aos casos que estes são beneficiários da quantia segura. Interpretando a referida cláusula de acordo com a teoria da impressão do destinatário (arts. 236º e 238º do CC), em vista de apreender o seu sentido e alcance decisivos, extrai-se que qualquer destinatário medianamente diligente e sagaz, colocado na posição do real declaratário (no caso, o tomador do seguro), concluiria estar fora do âmbito de cobertura do seguro (fora dos riscos cobertos e assumidos pela seguradora) a morte de pessoa segura (eventualmente também tomadora do seguro) causada intencionalmente por um dos tomadores do seguro (17), independentemente da sua qualidade de herdeiro da pessoa segura ou de beneficiário da prestação garantida.
Cláusula (com o sentido e alcance referidos) que, verdadeiramente, define o objecto do contrato, precisando o seu conteúdo (cláusula limitativa do objecto do contrato) (18) – não trata de excluir a responsabilidade, antes de suprimir uma obrigação (19), circunscrevendo o objecto da relação contratual por exclusão de certa e determinada obrigação (a parte não responde, na situação prevista, por não estar vinculada ao cumprimento) (20); em tais circunstâncias, a seguradora não é responsável por não ter assumido tal risco (não ter assumido a obrigação de proceder, face ao concreto sinistro, ao pagamento do capital seguro ao beneficiário), por ter sido validamente excluído do objecto do contrato o risco em causa (designadamente a morte de pessoa segura causada por tomador do seguro).
Considerando a referida cláusula – cuja validade e eficácia, mais uma vez se faz notar, não põem os apelantes em causa –, conclui-se que a morte da pessoa segura, progenitora dos autores, atendendo à sua concreta causa (acto intencional de tomador do seguro), traduz risco que não integrava o conteúdo do contrato de seguro, por expressamente excluído.
Improcedência da pretensão que também resulta ponderando o disposto no art. 46º, n.º 1 do RJCS – decorre do preceito que o regime-regra é o que o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado, admitindo a lei, porém que haja lugar à prestação do segurador em dois casos: quando a cobertura resulte de disposição legal ou regulamentar ou, se a natureza da cobertura o permitir, de convenção não ofensiva da ordem pública (21).
Tendo no caso dos autos o sinistro (a morte duma das pessoas seguras) sido dolosamente causado pelo tomador do seguro (o tomador do seguro matou a pessoa segura, sendo condenado pela prática de crime de homicídio qualificado, um ilícito típico doloso), não poderia a seguradora ser obrigada a efectuar a prestação convencionada, pois que regime-regra legalmente previsto (no n.º 1 do art. 46º do RJCS) não é afastado por qualquer disposição legal ou regulamentar ou por convenção em contrário (convenção em contrário que não existe e, a existir, teria de haver-se por ofensiva da ordem pública – teria de considerar-se imoral que a cobertura se mantivesse nos casos em que morte é causada pelo tomador do seguro, nos contratos sobre a vida de outrem (22)).
Decorre do exposto que a seguradora não está obrigada a efectuar a prestação convencionada – seja à luz da lex contratus, porque evento como o que vitimou a progenitora dos autores foi expressamente excluído do âmbito de cobertura do seguro (foi excluído do objecto do contrato o risco em causa - a morte de pessoa segura causada intencionalmente por tomador do seguro), seja à luz da rega legal estabelecida no art. 46º, n.º 1 do RJCS (porque o sinistro foi dolosamente causado pelo tomador do seguro).
D. Do que vem de se expor resulta a improcedência da apelação.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Cabe aos apelantes a responsabilidade pelas custas da apelação.
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Guimarães, 2/06/2021
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)



1. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), Almedina, 2018, p. 722.
2. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 721
3. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pp. 600/601.
4. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª edição, Volume I, p. 587.
5. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 27.
6. Teixeira de Sousa, apud Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 26 e 721/722.
7. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 722.
8. Cfr., a propósito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado (…), p. 736.
9. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 737.
10. Fernando Amâncio Ferreira, Manuel dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 57, A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, p. 690, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, p. 142, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 1982, p. 142 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 737.
11. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado (…), p. 727.
12. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, p. 220.
13. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil (…), p. 116. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado (…), p. 738, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado (…), p. 737 (referindo que, tal nulidade – omissão de pronúncia – não ocorre já quando a omissão constitua desconsideração de ‘linhas de fundamentação jurídica’) e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, p. 142 143 (referindo que não ocorre a nulidade – omissão de pronúncia – quando a decisão se não ocupe de toda as considerações feitas pela parte, sendo coisas diferentes deixar de conhecer de questão que se devia conhecer e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte; quando coloca ao tribunal determinada questão, socorre-se a parte de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista, importando que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo já apreciar todos os fundamentos ou razões alegados pela parte em sustento da pretensão).
14. A falta de comunicação ou informação de determinada cláusula contratual geral para efeitos da sua exclusão do contrato não é de conhecimento oficioso do tribunal - acórdão do STJ de 15/09/2016 (Távora Victor), no sítio www.dgsi.pt.. Sem embargo da qualificação do contrato de seguro como de adesão e das exigências que a lei comete à seguradora, contraente mais forte, não fica o segurado eximido de alegar a matéria de facto pertinente da violação dos deveres de comunicação e de informação, por tal não constituir matéria de oficioso conhecimento - acórdão do STJ de 2/11/2017 (Fernanda Isabel Pereira), no sítio www.dgsi.pt.
15. Acórdão do STJ de 4/10/2018 (António Joaquim Piçarra), no sítio www.dgsi.pt.
16. Joana Galvão Teles, ‘Liberdade contratual, e seus limites – imperatividade absoluta e imperatividade relativa’, in Temas de Direito dos Seguros, A Propósito da Nova Lei do Contrato de Seguro, coordenação de Margarida Lima Rego, Almedina, p. 108.
17. Assim também considerou o acórdão do STJ de 4/10/2018.
18. Assim, António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, 1985, pp. 116 e segs.
19. António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas (…), p. 117.
20. António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas (…), p. 119, referindo pertencer a esta categoria (cláusulas limitativas do objecto do contrato), a assunção, em contratos de seguros, de certos riscos, com exclusão de outros, por parte da seguradora, cuja validade constitui orientação corrente da jurisprudência nacional, ainda que impropriamente designadas por «cláusulas de exclusão da responsabilidade da seguradora».
21. Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, Pedro Romano Martinez e outros, p. 195, anotação de José Vasques ao art. 46º.
22. Neste sentido, o mencionado acórdão do STJ de 4/10/2018, louvando-se a propósito em Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 1971, pp. 391 e 392.