Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
21305/18.9TBPRT.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: CONTRATO INTERNACIONAL DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
RESPONSABILIDADE PELA PERDA TOTAL OU PARCIAL DA MERCADORIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Ao contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR - aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, convenção essa alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro, sendo a regra em termos de responsabilidade a de que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.
II- Todavia, mesmo assim sendo, apenas uma vez que resulte demonstrada a perda ou danificação de mercadorias funcionará a “presunção de culpa”, ou seja, impenderá sobre o transportador a responsabilidade pelos danos advenientes, o qual apenas dela se poderá eximir se a demonstrada “perda avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.
III- Daqui resulta que não pode falar-se de presunção de culpa do transportador, em caso de perda ou de danificação da mercadoria, se não houver sido feita a prova dessa mesma perda ou danificação, a qual, como é óbvio, pela lógica da vida e do direito, nunca poderia ficar ao encargo ou constituir um ónus probatório do transportador, já que é um facto constitutivo da sua própria responsabilidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: X - E. R., LD.
Recorrido: Y TRANS ..., S.A., e W, SOCIEDADE DE TRANSPORTES LDA..

Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo Local Cível de Viana do Castelo, Juiz 2.

X - E. R., LDA., NIPC ……, com sede na Rua …, aqui representada pelo sócio Gerente E. R., com domicilio profissional na sede da Autora, e K – ... GROUP, com sede em …, France, Contribuinte ……, aqui representada pelo Sócio Gerente J. M., NIF ……, com domicilio profissional na sede desta Autora, intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra Y TRANS ..., S.A., com sede na Rua … – Matosinhos, NIPC …… e W, SOCIEDADE DE TRANSPORTES LDA., NIPC ……, com sede na Zona Industrial, … – Viana do Castelo, peticionando, a final, a condenação solidária destas a pagar-lhe a quantia de € 31.300,00 (trinta e um mil e trezentos euros), a título de indemnização, correspondente ao valor da mercadoria perdida e devolução dos valores pagos pelo transporte, acrescida de juros comerciais vencidos desde do dia 31/07/2018 até à efectiva citação e ainda no pagamento de juros vincendos desde a citação da presente, e até integral pagamento à taxa de 5%.
Alegaram, em síntese, que: a 1ª A. celebrou com a 1ª Ré um contrato de transporte de 30 paletes de cilindros, 6 paletes de blocos termodinâmicos e 2 paletes de painéis, desde Portugal até França, na morada indicada no ponto 3 do CMR, no valor total de €30.000,00; a mercadoria foi descarregada numa morada desconhecida, a pessoas estranhas, sem que a 1ª A. tivesse dado quaisquer instruções nesse sentido e em consequência ocorreu a sua perda total; pelo serviço de transporte da mercadoria foi paga a quantia de €1.300,00.
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Regularmente citada, a 2ª Ré, contestou e defendendo-se por excepção arguiu a incompetência territorial do 5º juízo local cível do Porto, onde a acção foi distribuída, a falta de procuração forense outorgada pela 2ª R. e a inexistência de causa de pedir e de pedido em relação à 2ª A.. Ademais alegou ainda que cumpriu o transporte da mercadoria que alegadamente foi perdida, na medida em que o seu motorista ao chegar à morada indicada no CMR foi aí informado por um funcionário que o armazém se encontrava com a lotação esgotada e foi-lhe indicado outro local para a descarga, onde foi efectivada a entrega da mercadoria.
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Notificada, a A. pronunciou-se quanto às excepções suscitadas pela 2ª R., nos termos que constam de fls. 32 e ss., pugnando, em suma, pela sua total improcedência.
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A fls. 34, foi proferida decisão que julgou verificada a incompetência territorial do 5º Juízo Local Cível do Porto e ordenou a remessa dos autos a este juízo.
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Recebidos os autos, realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, bem como o despacho a que alude o art. 596º, nº 1 do CPC fixando o objecto do litígio e os temas de prova nos seguintes termos:
i) Objecto do litígio: Apreciar se a autora tem direito a ser ressarcida, a título de indemnização, do valor correspondente à mercadoria perdida e dos valores pagos pelo transporte.
ii) Temas de prova:
1) Apurar se a 2ª R. descarregou a mercadoria numa morada desconhecida da 1ªA e a pessoas estranhas à S. I. P., sem qualquer instrução, consentimento ou consulta à 1ª A..
2) Apurar se em consequência do comportamento da 2ª R. ocorreu a perda total da mercadoria transportada.
3) Matéria de facto alegada nos artigos 23º a 29º da contestação.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver as rés do pedido.

Inconformado com tal decisão, apela a Autora, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões:

I - o presente Recurso pretende impugnar a matéria de facto, (tendo por objecto a reapreciação da prova gravada) consideramos erradamente provados em confronto com a prova produzida, os factos descritos e considerados provados em os factos descritos e considerados provados em 10º, 11º, 12, 13º e 14º, e considerando-se erradamente desconsiderado e dado como não provados os factos numerados como 15. c. e. f. bem como normas conexas,
II - bem como a matéria de direito por se apresentam violadas os normativos previstos nos artigos 12º, n.º 3, 14º, n.º 1, 16º, n.º 1, 17º, n.º 1, 18º, n.º 1, 20º, n.º 1, 29º, 41º, n.º 2 do Decreto Lei n.º 46/235 de 18.03.1965, e artigos 344º, 487º, n.º 1, 799º, n.º 1 do CCIVIL, artigos 596º , n.º 1 in fine, artigo 574º, n.º 1 e 2, 607º, n.º 5, 615º, n.º 1, alínea d) do CPC,
III - foi desconsiderada TODA A PROVA PRODUZIDA , até prova produzida pela própria R, subjugada à convicção do Juiz a quo, sustentada, essencialmente, na perceção que não ficara provada a perda da mercadoria em causa, desde logo porque resultariam dúvidas se a entrega teria ocorrido ao destinatário e que nos termos do previsto no artigo 414º CPCivil o ónus da prova impunha decisão contra AA, tanto mais que não provado o dano nem o nexo causal seria irrelevante apurar eventuais exclusões da responsabilidade nos termos dos artigo 17º, n.º 2 e 4 CMR,
IV – resulta, pois, que não se considerou a prova decorrente de documento n.º 5 junto com a PI em confronto com as declarações do motorista A. R., das quais resulta inequivocamente que nunca se fez presente no local de descarga, note-se que esta testemunha confirma o percurso do seu transporte nos pontos do referido documento n.º 5 da PI, resultando de forma objetiva infirmados os pontos da matéria de facto provada em 10, 11, 12, 13, 14,
V- ao que acrescem as declarações de E. S., J. M., e sobre tudo de P. C., estes dois últimos estiveram presentes nas instalações do destinatário, no dia de entrega, testemunhando de forma clara que o camião de descarga não se fez presente no local contratado,
VI- de tal forma que com base na premissa errada que resulta da não perceção que o camionista A. R. não alcançou o local de destino contratado se permitiu, o Juiz a quo formar-se em dúvida, e cito “ (…) leva-nos a concluir que apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a rececionou fosse totalmente desconhecido/estranha ao destinatário S. I. P. (…),
VII- dúvida que pretende impor a AA o ónus de prova inaceitável, desde logo porque resulta RR obrigados a entregar num concreto local a mercadoria de AA, que não pode ter sido entregue pelo simples facto da pessoa coletiva destinatária não poder ser encontrada noutro local que não fosse o da descarga,
VIII- resultando, assim, afastada a razoabilidade e prudência da apreciação plasmada da Sentença, pois a livre apreciação e valoração há-de ser da PROVA, e, in casu, a prova esclarece que o camionista não alcançou o local de descarga, ao contrário do pretendido em pontos 10, 11, 12, 13 e 14 de factos dados como provados, verificando-se, assim, completamente infundado afirmar-se que a mercadoria em causa poderia ter sido entregue ao destinatário,
VII - permitimo-nos, desde já enquadrar em correcção, tendo presente a prova produzida dado como não provados pontos 10, 11, 12, 13, 14 em causa.
VIII - sendo, pois, relevante aferir se a duvida relevante sobre qualquer facto é a duvida razoável, pois no limite podemos duvidar de tudo o que quisermos, mas não será nunca razoável duvidar que não se encontra perdida a mercadoria que RR por mote próprio decidiram descarregar em local diferente do contratado pelos AA, sendo, no mínimo obrigação de RR provar que a mercadoria não foi extraviada, como é óbvio e resulta inclusive do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 344º do CPCivil, pois RR. tornaram impossível a AA. provar a perda da mercadoria, desde logo porque só sabem a quem entregaram a mercadoria,
IX - ao que acresce que, no caso em concreto não é de aplicar a regra do n.º 1 do artigo 342º do CCivil, pelo facto de existir convenção e lei que determina a respetiva inversão, em concreto as previsões dos artigos 18º e 20º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, que, de forma clara impõem decisão diversa da lide,
X- sempre com o devido respeito, a não entrega no local contratado a pessoas que não se encontravam no local de destino não permitem dúvidas quanto à perda da mercadoria, tanto mais que qualquer dúvida sempre terá que onerar RR. no seu afastamento, pois o artigo 18º n.º 1 do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, esclarece que compete ao transportador fazer prova de que a perda teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, n.º 2, e o artigo 20º do mesmo diploma refere que os interessados não tem que apresentar provas da perda quando a mercadoria não tiver sido entregue nos 30 (trinta) dias posteriores à data contratada,
XI – por outro lado presumindo-se a culpa do transportador, conforme resulta da Douta sentença e de Decisão do STJ, tão pouco o transportador tem o direito de se aproveitar das disposições do capitulo IV do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, em concreto as que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que TRANSFEREM O ENCARGO DA PROVA se o dano provier de (…) falta que lhe seja imputável (…)
XII- RR. enviaram um motorista a França sem saber falar francês, por outro lado verificou-se objetivamente que procedeu a descarga em local diferente do contratado e sem contactar o expeditor, não pode deixar de se concluir que, pelo menos a titulo de dolo eventual os respetivos “operadores” de RR. não poderiam deixar de colocar como possível a hipótese de disporem ilicitamente da mercadoria de AA., não se afigurando, pois, como razoável excluir atuação dolosa por parte de RR.,
XIII- não se percecionando pois, como razoável, nem a pretendida inversão do ónus de prova, excluída pelo artigo 29º, n.º 1 e também n.º 2 do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, nem a dúvida de entrega a pessoa distinta do destinatário, e muito menos o exercício de pretendida não presunção dos demais elementos da responsabilidade civil,
XIV – em boa verdade as regras de ónus de prova aplicáveis são as constantes no capitulo IV do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, por remissão do n.º 1 do artigo 344º do CCivil,
XV- e até com recurso ao critério da causalidade adequada se alcança que os RR. não poderiam deixar de percecionar que as exatas circunstancias em que se colocaram são alheias à normalidade e à razoabilidade próprias e exigíveis de quem transporta valores de outrem com obrigação de os preservar e entregar ao concreto destinatário num concreto local, não é razoável a versão de RR que pretendem que após chegarem ao “local” ( que já se percebeu inclusive pelas declarações do próprio motorista a 2ª R.) que não correspondia ao local de destino e descarga, se assumam como tendo entregue a mercadoria ao destinatário,
XVI- tanto mais que o motorista deveria saber falar Francês, deveria ter observado os dizeres da pessoa coletiva destinatária, seria também razoável perceber que os três indivíduos em causa se deviam ter identificado, deveria ter contactado o expedidor, e, na mínima dúvida deveria ter-se retirado para a origem que mais não era que o interposto em França, cobrado o excesso do frete ao expedidor pois, se a mercadoria fosse propriedade do motorista certamente que naquele confesso quadro factual não teria procedido à descarga,
XVII - apesar disto não é considerado como provada a perda da mercadoria pois, segundo a interpretação de iure o Autor não o provou que a mercadoria entregue em local diferente do ordenado pelo expedidor se tenha perdido,
XVIII- não se nos afigurando, salvo Douta opinião em contrário, razoável, concluir que a A. não provou o dano que reclama, tanto mais que o reclama, entre outros, em 19º da sua PI, e não mereceu oposição por RR., e tanto assim é que tão pouco esse facto é levado à matéria de facto aos temas de prova,
XIX - pois se atendermos aos concretos temas de prova fixados em Audiência prévia,
a) em ponto 1, 2 e 3, também por remissão à factualidade alegada de 23º a 29º da contestação, por confronto com o alegado por AA em 19º da Pi do qual resulta que o valor da mercadoria em causa acrescida do preço do transporte cobrado é aceite e perfaz o total de €31.300,00, ( o que alias serviu, nos termos do artigo 306º CPCivil, à fixação do valor da ação),
b) e salvo melhor e Douta opinião, resultou afastada à discussão da lide o valor da mercadoria perdida por RR., uma vez que nos termos do previsto no artigo 596º, n.º 1 CPCivil enunciados os termos de prova, à contrario, resultaram eliminadas outras factualidades à discussão,
c) devendo ser aceites como factos provados,
d) em concreto o valor da mercadoria em causa,
e) não se percebendo porque conclui a Sentença, ora em crise, e cito “(...) entendemos que a prova produzida não é de molde a concluir pela perda da mercadoria bem assim como o seu valor (…)“ ( motivação)
f) pois se o valor da mercadoria e do transporte da mesma não resulta de temas de prova, apesar de alegado por AA e não concretamente contestado por RR não se percebe porque razão não resulta provado o valor da mercadoria em causa nos exatos termos do alegado por AA.,
XX- no entanto resulta da Douta Sentença que quem tem obrigação de provar a efetiva perda da mercadoria é AA, com o argumento que, e cito “(…) apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecida/estranha ao destinatário S. I. P.(…) “ decidindo-se contra a parte onerada com o ónus da prova (…)“ motivação in fine, o que não se aceita, também atento ao previsto no artigo 799º, n.º 1 do CCivil, para além dos já referidos artigos 17º, n.º1, 2 , 18º, n.º 1, 20º e 29º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 , tanto mais que a perda da mercadoria se presume nos termos do artigo 20º, n.º 1 do mesmo diploma, “ o interessado, sem ter de apresentar outra prova, poderá considerar a mercadoria perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos trinta dias seguintes (…)
XXI- a Convenção CMR impõe de forma clara a entrega no concreto local contratado e que verificado o incumprimento de tal factualidade o ónus da prova da perda da mercadoria não será do AA, tal como decorre,
a) do artigo 4º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ o contrato de transporte estabelece-se por meio de uma declaração de expedição (…) “
b) do artigo 6º, alínea e) “a declaração de expedição deve conter as indicações seguintes (…) (e) endereço do destinatário,
c) artigo 9º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ a declaração de expedição
(…) faz fé das condições do contrato (…)
ci) artigo 12º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ o expedidor tem direito de dispor da mercadoria, em especial (…) de modificar o lugar previsto para a entrega (…) do indicado na declaração de expedição
XXII-do qual resulta claro que só o documento declaração de expedição deveria ter sido considerado na decisão da presente lide, cumulativamente reconhecido que apenas o expeditor tinha o direito de alterar o local de entrega, e cumulativamente que a entrega em local diferente faz incorrer RR em responsabilidade civil, por força do previsto no Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065,
XXIII - no entanto verificou-se a valoração de outros documentos, guia de transporte e BL, que nada valem para este tipo de contrato, aceitando justificação de telefonemas entre RR. e outros porque à cautela se estaria a evitar eventuais fraudes, no entanto não se percebendo cautelas relativas à autenticidade da assinatura do referido documento de folhas 69,
XXIV- tão pouco ficou provado que o contacto esgrimido em defesa pela RR com um cidadão francês fosse da lavra de AA, ou sequer tivesse existido ou que a assinatura aposta no referido documento fosse verdadeira,
XXV- fosse como fosse ficou provado que a descarga não ocorreu nas instalações do destinatário e deveria ter ficado provado que o motorista de RR. nunca este em tais instalações e, portanto, nunca poderia ter recebido instruções de um funcionário do destinatário porque é o próprio motorista de RR que o declara no confronto com Documento n.º 5 junto com a PI.
XXVI- Motorista que no confronto com os documentos junto nos Autos, em concreto com o Documento n.º 5 junto com a PI reconheceu que nunca alcançou o local de destino, XXVII- razão pela qual em vista à alteração da matéria de facto provada, dando como não provado os pontos 10, 11, 12, 13, 14, e, cumulativamente,
XXVIII- em vista à substituição da Douta Sentença por Douto Acórdão que imponha a condenação de RR. conforme peticionado em primeira instância pois serão de aplicar, ao caso concreto as disposições previstas no Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065, em concreto os artigos 1º, n.º 1, 3º, 4º, 6º e), 7º, 9º n.º 1, 12º n.º 1 e 3, 14º, 17º n.º 1, e n.º 2, 18º, n.º 1 , 20º, n.º 1 e 29º, por remissão ao critério do artigo 14º, n.º 3 CPenal, artigo 344º, n.º 1 e 2 e 799º, n.º 1 do CCivil,
XXIV- reconhecendo-se que a muito douta convicção não tem por base a prova efetivamente produzida, incluindo a do próprio motorista da RR., e confronto com os documentos juntos aos autos, em especial o documento n.º 5 junto com a PI que foi exibido à referida testemunha e confirmou o percurso de GPS, do que se retira que não alcançou os locais considerados provados de 10 a 14,
XXV- e ainda que não deve ser questionado o dano pois resulta de facto articulado em 19º da Pi, não contestado, não incluído na defesa na globalidade, e tão pouco levado à lide por força de não inclusão em temas de prova, conforme se alcança, também em conclusão anterior, dos limites à livre apreciação da prova impostos pelo n.º 5 do artigo 607º do CPCivil,
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Os Apelados apresentaram contra-alegações concluindo pela improcedência da apelação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:
- Apreciar da invocada nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento, prevista no artigo 615, nº 1, al. d), do C.P.C..
- Apreciar a decisão da matéria de facto, apurando se ela deve ou não ser alterada e, ainda, em qualquer caso, se deve ou não ser mantida a decisão recorrida.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.
A- Discutida a causa, resultaram apurados os seguintes factos:

Factos provados:
1. A 1ª A. (X) tem por objeto o fabrico e comércio de termoacumuladores e bombas de calor, PME de Excelência e Exportador.
2. A 1ª R. (Y TRANS ..., S.A.), empresa que se dedica ao transporte internacional de mercadorias, sendo também transitária, tal como a 2ª R. (W, Sociedade de Transportes Lda.), que também tem por objeto social o transporte de mercadorias por estrada.
3. A 1ª A. acordou com a 1ª R. o transporte de 30 (trinta) paletes de cilindros, 6 (seis) paletes bloco termodinâmicos e 2 (dois) paletes de painéis, a serem entregues à S. I. P. no Rue … França.
4. A 1ª R. acordou com a 2ª R. o transporte em causa.
5. A mercadoria foi descarregada na Rue ….
6. Pedidas explicações à 1ª R. pelo sucedido, esta enviou o documento junto a fls. 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. O motorista da 2ª R., A. R., pelas 14h50m do dia 31/07/2018 procedeu à descarga do veículo ST em local diferente do indicado pelo expedidor.
8. O que sucedeu sem qualquer instrução, consentimento ou consulta do expedidor.
9. A 2ª A. efectou à 1ª R. o pagamento da quantia de €1.300,00 (mil e trezentos euros) pelo transporte da mercadoria supra identificada.
10. No cumprimento do referido transporte, o motorista A. R. dirigiu-se à S. I. P., em Rue ….
11. Aí chegado, o motorista recebeu indicação de que teria que efectuar a descarga da mercadoria num outro armazém.
12. Para o efeito, o motorista foi acompanhado até àquela segunda localização.
13. No documento junto a fls. 9, denominado “Guia de Transporte” consta que a S. I. P. tem morada, sita em Rue ….
14. Uma vez chegado ao referido local, o motorista fez a entrega da mercadoria, a qual decorreu com normalidade.

Factos não provados.
Com interesse para a decisão, resultaram não demonstrados os seguintes factos:
a) A 2ª A. (K – ... Group), sociedade sediada em … – França, distribuidora naquele País dos produtos fabricados pela 1ª A., em “joint venture”.
b) Por contrato entre AA. e a S. I. P. com sede em Rue …, foram enviadas 30 bombas de calor em aço inox de 260 litros.
15. A mercadoria foi entregue em morada desconhecida do expedidor e a pessoas estranhas à S. I. P..
c) Nas circunstâncias supra descritas em 10., o motorista aí chegado, ou seja, já em plenas instalações da S. I. P., foi, de imediato, abordado por um senhor que se identificou como sendo funcionário da S. I. P..
d) O qual lhe deu a indicação de que aquele armazém se encontrava com a lotação esgotada, pelo que, o motorista teria que efectuar a descarga da mercadoria num outro armazém da S. I. P..
e) Para o efeito, o referido funcionário pediu ao motorista que o acompanhasse até aquela segunda localização.
f) Face à indicação dada e à aparência de normalidade do solicitado, em particular pelo local onde o motorista foi abordado, este dirigiu-se para o outro armazém indicado.

Fundamentação de direito.

Como fundamento da nulidade que invoca alega o Recorrente que o tribunal à quo se pronunciou sobre questões que não devia tomar conhecimento por serem dadas como assentes, razão pela qual terá havido um excesso de pronúncia por parte do tribunal, a qual é geradora de nulidade.

Como fundamento e em síntese alega que, além da matéria de facto, recorre também da matéria de direito, desde logo porque, entre outros, se apresentam violadas os normativos previstos nos artigos 12º, n.º 3, 14º, n.º 1, 16º, n.º 1, 17º, n.º 1, 18º, n.º 1, 20º, n.º 1, 29º, 41º, n.º 2 do Decreto Lei n.º46/235 de 18.03.1965, e artigos 344º, 487º, n.º 1, 799º, n.º 1 do CCIVIL, artigos 596º, n.º 1 in fine, artigo 574º, n.º 1 e 2, 607º, n.º 5, 615º n.º 1, alínea d) do CPC, bem como normas conexas, verificando-se que o tribunal se pronuncia sobre questões que não devia tomar conhecimento por serem dadas como assentes, para tal dando como provados, da motivação de facto considerada provada resultaram 14 factos, numerados de 1 a 14 dos quais consideramos erradamente provados em confronto com a prova produzida, os factos descritos e considerados provados em 6º, 10º, 11º, 12, 13º e 14º, e considerando-se erradamente desconsiderado e dado como não provados os factos numerados como 15. c. f.

Mais alega que apesar de se concluir que sobre o transportador recai uma presunção de culpa no incumprimento da obrigação de entrega, decorre da sentença, ora em crise, que não se provou que em consequência desse incumprimento houvesse perda da mercadoria.

Salvo o muito e devido respeito, sem pôr em causa a substância dos fundamentos invocados, temos algumas dúvidas sobre o enquadramento jurídico que o Recorrente faz deles, ou seja, que possam configurar uma nulidade por excesso de pronúncia.

Na verdade, conforme expressamente se prescreve no artigo 615, al. d), do C.P.C., “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Como é sabido, a omissão de conhecimento ou o conhecimento indevido consistem, respectivamente, no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer ou de conhecer de outras de que não podia conhecer, por força do disposto no art. 608º, nº 2 do C.P.C..

Daí que se possa afirmar que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.

A segunda das referidas hipóteses, a prevista na alínea d) – a do conhecimento indevido ou excesso de pronúncia –, verifica-se em todos aqueles casos em que sejam conhecidas e apreciadas questões que na sentença não podiam ser tratadas ou julgadas, por não terem sido colocadas em causa por qualquer das partes e não serem de conhecimento oficioso.

Este tipo de nulidade, tal como a omissão de pronúncia, está também directamente relacionada com o comando legal fixado no nº 2, do artº 608º, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Esta norma suscita o problema de se saber qual o sentido exacto da expressão «questões» nele empregue, sendo elucidativos os ensinamentos de Alberto dos Reis, o qual refere que “(…) assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (…) também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado”.

E, assim sendo, óbvio resulta que o conceito (questões) terá de ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado.

De tudo decorre, assim, que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie a divergência jurídica carreada para autos pelas partes, podendo assim considerar-se que esta causa de nulidade da decisão complementa a da nulidade por falta de fundamentação, pois que, o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.

Destarte e, sintetizando, estando defeso ao Juiz ocupar-se de questões não suscitadas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, a nulidade da decisão por pronúncia indevida (conhecimento indevido), constituindo hipótese inversa à da omissão de pronúncia, apenas ocorre nos casos em que na decisão se conhece questão de que não se podia tomar conhecimento.

Aqui chegados, vejamos então se a decisão recorrida enferma ou não do apontado vício, ou seja, se deixou se pronunciar sobre a aludida materialidade, ou seja, de qualquer questão de que não pudesse deixar de conhecer, como pretende o Recorrente.

Como é consabido, a doutrina e a jurisprudência distinguem, por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” e, concluem que só a falta de apreciação das primeiras – das "questões” – integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das «razões» ou «argumentos» invocados para concluir sobre as questões.

Efectivamente, sabemos que o objecto da acção é o pedido (petitum) formulado na petição inicial (artigo 552º nº 1 e) do C.P.C.), já que este tem, como objecto imediato, a obtenção de uma prestação jurisdicional, consubstanciada na sentença que, através do processo, actua o direito objectivo a um caso concreto.

Assim, o consagrar este regime de nulidades visou a lei abranger todas aquelas situações em que a construção ou elaboração da sentença se encontra viciada por virtude de os fundamentos nela omitidos e/ou mencionados conduzirem, inelutavelmente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, daquela que foi tomada, encontrando-se fora do âmbito deste vício a errada subsunção dos factos à norma jurídica, bem como, a errada interpretação dela, que configuram o erro de julgamento (1).

Na verdade, não deve confundir-se tal nulidade com o erro na de subsunção dos factos à norma jurídica, ou seja, quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade. (2)

Assim, a desconsideração de fundamentos ou a oposição entre fundamentos de facto e a decisão não constitui o vício ali previsto, mas sim erro de julgamento, sendo que, a existir, o vício que daí resultaria não seria a nulidade da sentença recorrida, mas antes o previsto na alínea c), do nº 2, do artigo 662º do C.P.C., de harmonia com o qual a Relação deve oficiosamente, “anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.”

Ora à luz de tudo o exposto, somos de entender que a questão suscitada pelo Recorrente não se enquadra numa nulidade por excesso de pronúncia, pois, conforme com evidência decorre da sua própria alegação, a questão levantada não é a de que o tribunal tenha conhecido do que não podia conhecer, mas sim de que conheceu do que podia conhecer, embora na opinião do Recorrente, tenha conhecido mal, como inequivocamente decorre da sua alegação no sentido de que “verificando-se que o tribunal se pronuncia sobre questões que não devia tomar conhecimento por serem dadas como assentes, para tal dando como provados, da motivação de facto considerada provada resultaram 14 factos, numerados de 1 a 14 dos quais consideramos erradamente provados em confronto com a prova produzida, os factos descritos e considerados provados em 6º, 10º, 11º, 12, 13º e 14º, e considerando-se erradamente desconsiderado e dado como não provados os factos numerados como 15. c. f.”.

Ora, como é evidente, e sem necessidade de mais considerações a divergência quanto à fixação da matéria de facto relevante para a decisão da causa não é subsumível ao conceito da nulidade ora em apreço, razão pela qual, por a questão suscitada não configurar essa nulidade, improcede nesta parte a apelação.

Cumpre agora proceder à apreciação da impugnação da matéria de facto pretendida pelo Apelante, pois sem a fixação definitiva dos factos provados e não provados não é possível extrair as pertinentes consequências à luz do direito.

Nas contra-alegações que apresentaram pronunciam-se os Recorridos no sentido da rejeição do recurso apresentado alegando como fundamento que o Recorrente não cumpriu, desde logo e de forma mais evidente e clara, os deveres que lhe são impostos pelas alíneas a) a c), do nº 1, do artigo 640, do C.P.Civil.

Na verdade, em seu entender, o Recorrente, pese embora nas suas alegações, procedam à especificação dos alvos da impugnação que dirige contra a decisão da matéria de facto, não indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, nem a decisão que em seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Como é sabido, em decorrência do disposto nos artigos 640 e 662º do C.P.C., o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto deve não só identificar os pontos de facto que considera incorrectamente como também especificar concreta e individualizadamente o sentido da resposta diversa que, em seu entender, a prova produzida permite relativamente a cada um dos factos impugnados.

Ao recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto exige-se, assim, que:

- Especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mencionando o diverso sentido em que se impõe decidir quanto a cada um dos factos impugnados, por referência ao que foi julgado provado na decisão recorrida (ou seja, que indique o sentido ou sentidos das respostas a dar, em substituição das consideradas);
- Fundamente as razões da discordância, especificando os concretos meios probatórios em que funda a impugnação;
- Quando se baseie em depoimentos testemunhais, que efectue a localização, por referência ao assinalado em acta, da parte dos depoimentos que considera sustentarem a sua versão.

Assim, e como resulta da análise do aludido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (negrito nosso)
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.

Estas exigências impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto são decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso, não sendo elas também alheias ao princípio do contraditório, já que destinam a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente.

A impugnação da matéria de facto não gera a realização dum novo julgamento integral em segunda instância, constituindo antes um meio de sindicar a decisão da primeira instância quanto à decisão da matéria de facto – não envolve a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida, incidindo sobre pontos determinados da matéria, que ao recorrente compete identificar, aduzindo em complemento os concretos meios probatórios que, em seu entender, justificam uma diversa decisão.

Isto considerado temos que na presente situação o principal fundamento da impugnação da matéria de facto que foi efectuada consiste, em síntese, por um lado, precisamente no facto de se considerar a prova que foi valorizada pelo tribunal não se revelou de profundidade e consistência suficiente para permitir alicerçar algumas das conclusões factuais nos moldes em que foram extraída pelo tribunal recorrido, e, por outro, com fundamento em que o tribunal recorrido não terá valorado toda a prova existente e produzida, que permitia a extracção de diversas conclusões factuais.

Acresce que, tendo os factos impugnados sido indicados, embora se faça considerações genéricas sobre os meios de prova que se entendem não valorados, houve indicação suficiente daqueles em que o Recorrente sustenta a sua impugnação.

E assim sendo, somos de entender que o Recorrente cumpriu minimamente os ónus que lhe eram impostos pelo artigo 640, do C.P.C., devendo, por consequência, por ter sido aduzida de modo correcto e relevante, ser admitida e conhecida a impugnação factual realizada.

Como é consabido, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância.

Contudo, nesta actividade, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães, de 26/09/2018 (3), os poderes do Tribunal da Relação não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância face aos elementos probatórios disponíveis no processo, devendo antes a Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção (4).

A análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta, que lhe confere a natureza de decisão, afastando-a do que seria uma simples imposição judicial) consiste na sua apreciação e valorização, tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva – na sujeição dos elementos probatórios a mútuos testes de compatibilidade), à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida (das leis da ciência, quando for o caso).

Esta apreciação transcende a averiguação da sinceridade dos depoentes e testemunhas – a decisão da matéria de facto assenta numa convicção objectivável e motivável, a que se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e bom senso.

Apreciação que também se não confunde ou resume a certificar o declarado pelas partes ou testemunhas ou o teor de determinado elemento probatório – aprecia-se quer da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios (da consistência, coerência e verosimilhança de cada um dos referidos elementos, tomado individualmente) e também a sua valia extrínseca (da conjugação e compatibilidade entre todos eles).

Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.

Mas, como é óbvio, e convirá realçar, a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.

À luz de tudo o exposto importa agora sindicar a decisão da matéria de facto.se as respostas impugnadas foram ou não proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório aplicáveis.

Ora, como resulta do supra exposto, o Recorrente impugna a materialidade fixada na decisão recorrida alegando como fundamento que o Tribunal recorrido considerou como provados e não provados, respectivamente, os factos a seguir referidos, os quais, contudo, em seu entender, em respeito pela integridade da prova produzida nos autos, deveriam ter obtido uma resposta de sentido diverso e de sentido contrário.

Assim, em seu entender:
A- Deverá ser dada como não provada a matéria de facto ínsita nos factos tidos como provados sob os números 10), 11), 12), 13 e 14), que tem o seguinte teor:
6. Pedidas explicações à 1ª R. pelo sucedido, esta enviou o documento junto a fls. 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
10. No cumprimento do referido transporte, o motorista A. R. dirigiu-se à S. I. P., em Rue ….
11. Aí chegado, o motorista recebeu indicação de que teria que efectuar a descarga da mercadoria num outro armazém.
12. Para o efeito, o motorista foi acompanhado até àquela segunda localização.
13. No documento junto a fls. 9, denominado “Guia de Transporte” consta que a S. I. P. tem morada, sita em Rue ….
14. Uma vez chegado ao referido local, o motorista fez a entrega da mercadoria, a qual decorreu com normalidade.

B- Deverá ser dada como provada a matéria de facto dada como não provada sob o número 15), e alíneas c), e), e f), dos factos não provados, que têm o seguinte teor:
15. A mercadoria foi entregue em morada desconhecida do expedidor e a pessoas estranhas à S. I. P..
c) Nas circunstâncias supra descritas em 10., o motorista aí chegado, ou seja, já em plenas instalações da S. I. P., foi, de imediato, abordado por um senhor que se identificou como sendo funcionário da S. I. P..
e) Para o efeito, o referido funcionário pediu ao motorista que o acompanhasse até aquela segunda localização.
f) Face à indicação dada e à aparência de normalidade do solicitado, em particular pelo local onde o motorista foi abordado, este dirigiu-se para o outro armazém indicado.

A propósito da materialidade tida por demonstrada e não provada e, designadamente, objecto de impugnação refere-se na motivação da decisão recorrida o seguinte:
(…)
Para fundar a convicção nos termos supra declarados na fundamentação de facto, o tribunal atendeu a todos os documentos juntos aos autos em conjugação com as declarações de parte dos representantes legais das AA. e com os depoimentos testemunhais.
O representante legal da 1ª A., declarou que, em fins de Julho de 2018, esta contratou a 1ª R. para efectuar o transporte de 30 bombas de calor, para a cliente S. I. P., em França, sendo que o cliente diz que não recebeu a mercadoria e recusa-se a pagar. Foi-lhe transmitido que a 1ª R. informou que a mercadoria foi descarregada num armazém situado a 8Km da morada que constava do CMR e neste momento não sabem onde a mesma se encontra, estando perdida. Por este motivo, em início de Setembro, remeteram uma nova encomenda, igual à primeira, que também foi entregue a 12 km do local indicado no CMR e perdeu-se. Referiu que segundo lhe foi transmitido logo que a A. teve conhecimento da perda da 1ª encomenda, reclamou de imediato, telefonicamente, e só depois é que começou a haver correspondência. Esclareceu que a negociação com o cliente francês – S. I. P. - esteve exclusivamente a cargo do comercial da A. em França, o J. M., sendo que ele nunca contactou com aquele, e quando questionado se conhecia “F. C.” disse achar que se trata do comercial do cliente.
J. M., representante legal da 2ª A., declarou que em 31/07/2018, a 1ª A. contratou a 1ª R. para proceder ao transporte de 35 (!) bombas de calor para a S. I. P., em França. Mas declarou que ele e a testemunha P. C. estiveram presentes no armazém logístico do cliente em França, durante todo o dia, à espera que o camião da transportadora chegasse, o que não sucedeu – confrontado com a fotografia de fls. 55 verso esclareceu que não corresponde à morada onde esteve. Nessa sequência, contactou telefonicamente um colega da 1ª A., em Portugal, para que entrasse em contacto com a 1ª R. para saber o que se passava e foi-lhe transmitido que não obtiveram qualquer informação sobre a mercadoria. Declarou ainda que ele não fez qualquer reclamação dirigida à 1ª R., mas apresentou uma queixa, em França em 19/09/2018. Acrescentou que na segunda encomenda aconteceu a mesma situação, nunca chegou ao destino. Por fim, quando confrontado com o documento de fls. 69, referiu não conhecer “F. C.” e que o representante da cliente francesa com quem sempre tratou apresentou-se como “S. B.”.
A testemunha A. R., motorista da 2ª R. disse ter sido ele que fez o transporte da mercadoria. Esclareceu que foi até à morada “…” e ali chegado deparou-se com uma zona industrial situada “no meio” de uns prédios, onde “estava tudo muito fechado”, e questionou uns senhores que ali encontrou sobre o nome da empresa destinatária, mas não obteve qualquer informação. Disse que perante isto telefonou para o seu “chefe”, o Sr. Manuel e pediu-lhe para ele telefonar para o contacto que consta do documento de fls. 69 – no interior do quadrado situado do lado direito -, que lhe foi entregue nas instalações da 1ª A. quando procedeu ao carregamento da mercadoria, tendo-lhe sido dito para aguardar que alguém iria ter com ele aquele local. Decorrida cerca de meia hora dirigiram-se a ele três indivíduos, de raça negra, que lhe pediram para os acompanhar referindo que aquele armazém estava “cheio” e tinham de fazer a descarga em outro local, o que acabou por suceder. Admite que a morada onde procedeu à descarga não é a que consta do CMR mas a que corresponde aos dados fornecidos pelo GPS (cfr. fls. 11) e confirma que o local onde se dirigiu inicialmente corresponde à fotografia de fls. 10 verso – veja-se que este local não coincide com o indicado pelo representante legal da 2ª A., J. M. e pela testemunha P. C. como tendo sido aquele em que aguardaram e afirmaram não ter visto chegar nenhum camião. Por fim, disse que não estranhou esta situação pois de vez em quando há alteração do local de entrega devido aos armazéns estarem cheios, o que entende ser de estranhar foi o facto de só decorrido cerca de um mês desde a data de entrega é que lhe perguntaram sobre a mercadoria.
A testemunha P. C., director de produção da 1ª A. há cerca de 10 anos, disse que em finais de Julho de 2018, numa sexta-feira, assistiu ao carregamento das 30 bombas de calor, nas instalações da 1ª A. e depois, no Domingo, deslocou-se até França, de carro, para ali presenciar a descarga que estava prevista para uma terça-feira. Esteve na morada “…”, com o J. M., durante todo o dia, mas o camião nunca chegou – referiu, aliás, que não viu chegar nenhum camião de matrícula portuguesa – confrontado com as fotografias de fls. 10 verso e 55, refere que não se trata do local onde esteve. Referiu, de forma aligeirada, que viu o J. M. telefonar “para alguém” e que este depois lhe disse que tinha “falado com a empresa e que o informaram que o transporte estava pendente” - note-se que neste particular há divergência entre o que foi dito por esta testemunha e J. M. dado que este declarou que não contactou directamente a empresa transportadora mas apenas a 1ª A. pedindo para esta o fazer!
Disse que neste momento desconhecem onde se encontra a mercadoria e que o cliente francês não assume a recepção da mesma e ainda que naquele mesmo dia regressou para Tolouse e no dia seguinte a Portugal, sem que entretanto tivesse encetado qualquer diligência para saber se a mercadoria teria entretanto chegado.
A testemunha R. C., responsável de expedição da A. há 21 anos, referiu apenas que os documentos de fls. 9 (guia de transporte) e 9 verso (CMR) foram preenchidos por ele, e em relação ao documento de fls. 69 (BL) disse que só preenche a descrição da mercadoria e entrega-o à sua colega, desconhecendo quem preencheu a indicação do destinatário e tudo o mais que dele consta bem como a quem pertence a assinatura nele aposta. Salientou, por último, que depois lhe disseram que a mercadoria não chegou ao cliente e que não sabiam da carga.
A testemunha R. A., director comercial da 1ª A, desde 2004, começou por referir que a 2ª A. trata-se de um “mero distribuidor exclusivo da 1ª A. em França”. Sobre o transporte disse que teve conhecimento que a mercadoria não tinha chegado ao local da entrega pelo que “fizeram contactos telefónicos e só passados uns dias souberam que a mercadoria não tinha sido entregue no local indicado e a pessoas diferentes”. Disse que nunca mais souberam desta carga. Esclareceu que o negócio com o cliente francês foi acordado por intermédio do J. M. e consistia no fornecimento de 500/600 bombas por ano e que como a mercadoria não foi entregue o negócio não se consumou e a cliente não procedeu ao pagamento – “o negócio morreu à nascença”; “não sabe quem rompeu a negociação”. Acrescentou que desde o dia 31/7/2018 quando tiveram conhecimento que a carga não tinha chegado, só ficou descansado porque a transportadora, 2ª R., assumiu que ia participar ao seguro. Asseverou que falou com o R. S. e depois as telefonistas deixaram de passar as chamadas e no final da semana é que lhes comunicaram que não localizavam a mercadoria e que iam participar ao seguro. Quando acareado, rectificou que o R. S. disse-lhe apenas que iam tentar saber se a mercadoria tinha sido entregue noutro armazém e que depois funcionária D. AS. é que fez uma chamada telefónica para a D. C. G. da 2ª R. tendo esta informado aquele que iam participar ao seguro. Referiu ainda que por regra a factura é emitida de imediato mas desconhece quando foi facturada a mercadoria referente a este transporte, por estas matérias estarem atribuídas a outra funcionária da autora.
A testemunha R. S., motorista de transportes internacionais, e confirmou ter sido ele que procedeu ao transporte a que alude o CMR junto a fls. 53. Relatou que se dirigiu à morada constante do CMR, que correspondia a uma casa de habitação onde não se encontrava ninguém, pelo que entrou em contacto com a sua entidade patronal que lhe deu indicações para aguardar no local até que apareceu um rapaz que o conduziu a um armazém a cerca de 200 metros onde procedeu à descarga, depois de ligar a pedir autorização para descarregar. Este local não tinha identificação de qualquer empresa, mas era vigiado, com seguranças.
A testemunha L. M., administrativa da 2ª R., desde 2015, referiu que o transporte foi contratado pela 1ª R. directamente com o cliente e esta é que o subcontratou para a 2ª R.. Disse ainda que só decorrido 1/1,5 mês (Set./Out) foram contactados pela 1ª R., via email, solicitando informação sobre o local onde tinham procedido à descarga porque não sabiam da mercadoria e, remeteu nessa sequência o relatório de GPS de fls. 11. Segundo teve conhecimento, o motorista deles chegou ao local onde tinha de descarregar e depois de telefonar para os escritórios da 2ª R. que contactaram o contacto do cliente, em França (cfr. fls. 69), receberam ordens para o fazer em outro sítio.
A testemunha R. S., funcionário da 1ª R., admitiu ter sido ele que tratou administrativamente os dois transportes solicitados pela A., o primeiro dos quais em 27/07/2018. Esclareceu que a sua colega D. C. G. trata da adjudicação do transporte e depois remete-lhe o processo para a contratação de uma transportadora, que no caso foi a 2ª R.. Asseverou que o transporte foi efectuado sem que houvesse qualquer reclamação da 2ª A., que é a cliente deles. Apenas na segunda entrega, acusa a recepção de um email da testemunha R. A. a dizer que iam imputar custos por terem entregue esta encomenda. Referiu que no dia 19/9, o Sr. J. M. telefonou-lhe e informou-o de que tinham recuperado a 2ª carga – mencionou o nome de F. C. -, mas quanto à primeira referiu-lhe que o problema era apenas com o seu pagamento, e solicitou documentos tendo em vista única e exclusivamente obter o pagamento da mercadoria, pelo que lhe remeteu o CMR e o relatório de GPS. Quando acareado com a testemunha R. A. manteve o deu depoimento reiterando que nunca lhe foi feita nenhuma reclamação relativa à 1ª carga, nem ele comunicou que iam participar ao seguro, pois só falaram da 2ª carga.
A testemunha C. G., referiu que a cliente da 1ª R. era a 2ª A., e quem procedeu ao pagamento da factura foi o J. M.. Esclareceu que foram solicitados e cotados dois transportes individuais, ou seja o 2º transporte não foi substituição do 1º. Disse que é ela a responsável pela tramitação de todas as reclamações apresentadas pelos clientes, as quais têm sempre de ser formalizadas por escrito, pois todo o processo tem de ficar documentado e a resposta é também redigida a escrito e fundamentada. Acrescentou que ainda que o cliente apresente a reclamação por contacto telefónico há instruções da 1º R. para solicitar a redução da mesma por escrito. Referiu que no caso não houve nenhuma reclamação relativa à 1ª carga e inclusivamente a factura foi paga dois dias antes de procederem ao 2º transporte, o que não se compreenderia caso alguma coisa tivesse corrido mal. Disse também que tem em seu poder um email remetido pela testemunha P. C. onde consta o contacto morada de entrega (cfr. fls. 122).
Pois bem, do cotejo de toda a prova produzida, documental e testemunhal, resultam claramente evidenciadas incongruências que cumpre assinalar e que suscitaram um estado de dúvida no julgador.
Em primeiro lugar, não há qualquer suporte documental relativo à perda da mercadoria e também não há do alegado contrato estabelecido entre as AA. E a S. I. P., sendo certo que apesar de se reconhecer que este contrato não se traduz num facto essencial para a decisão, a verdade é que no contexto em que se inserem os factos relevava instrumentalmente para a sustentação da tese da autora.
Com efeito, tanto os representantes legais da AA., obviamente interessados no desfecho da causa, como os depoimentos testemunhais de P. C., R. C. e R. A., que, em bom rigor, também não se revelam inteiramente isentos, referiram desconhecer o paradeiro da mercadoria, cujo valor computaram, sem mais, em €30.000,00.
Ora, inexiste nos autos factura da mercadoria transportada emitida em nome do cliente destinatário, de onde resulte, entre o mais, o valor de €30.000,00; inexiste prova de qualquer reclamação dirigida às AA. por parte do cliente S. I. P. por incumprimento na entrega; inexiste prova da recusa do pagamento por parte do cliente S. I. P. por falta de recepção da mercadoria; inexiste prova de diligências que as AA., tivessem encetado para localizar o paradeiro da mercadoria – p. ex., não há prova documental de que realmente tivesse sido apresentada uma queixa crime em França, tal como foi afirmado por J. M., ainda que só após o transporte da 2ª carga -; inexiste nos autos reclamação escrita dirigida à transportadora acusando a perda da 1ª carga - revelam os depoimentos das testemunhas R. S. e C. G. que a reclamação só ocorreu aquando o segundo transporte, o que, aliás, coincide com a prova documental, e verifica-se que a solicitação da 1ª A. à 1ª R. de documentação relativa à entrega da carga aqui em causa só foi feita após o segundo transporte; está provado que a 2ª A. procedeu ao pagamento do transporte, no valor de €1.300,00 e que a mercadoria foi entregue em morada distinta da que consta do CMR.
Não podemos, desde logo, deixar de referir que não se coaduna com o normal acontecer, com as regras da experiência comum e até com a prática comercial, que a A. tenha procedido ao pagamento da factura relativa ao transporte aqui em causa desconhecendo o paradeiro da mercadoria, sobretudo porque está em causa o valor de €30.000,00! E, s.m.o., também não faz sentido que a ter-se verificado a perda total da mercadoria, a A. tenha solicitado/confiado à 1ª R. um novo transporte de carga no mesmo valor!
Também nos causa estranheza o facto de não ter sido, desde logo, emitida factura da mercadoria em nome da cliente S. I. P. – até porque segundo a testemunha R. A. é esse o procedimento habitual.
Destarte, embora reconheçamos que não se alcança o concreto significado do documento nº 8 junto com a p.i. (fls. 12 verso), nem muito menos se tem relação com a mercadoria aqui em causa, certo é que do mesmo parece resultar que a 2ª A. é na verdade cliente da 1ª A., e este facto, associado à ausência de outra prova segura, também não esclarece cabalmente nem a relação comercial entre as duas AA. nem com a S. I. P..
Do exposto resulta que a prova não permite concluir pela verificação da efectiva perda da mercadoria e muito menos do seu valor.
Ademais, estava assente que a mercadoria foi entregue pela 2ª R. numa morada distinta da que vem indicada no CMR.
No que toca à prova produzida sobre esta matéria, não podemos deixar de assinalar que a versão dos acontecimentos relatada pelo motorista da 2ª R., A. R., não coincide rigorosamente com a que vem descrita nos artigos 23º a 29º da contestação da 1ª R.. E, como é óbvio, só esta testemunha estava em condições de relatar com conhecimento directo o que realmente se passou aquando a descarga da mercadoria.
De facto, de acordo com o testemunho do motorista, ao chegar ao local de descarga indicado no CMR não encontrou ninguém, muito menos alguém que se tivesse identificado como funcionário da S. I. P., que lhe tivesse dado indicação de outro local de descarga. Segundo o mesmo, dado que não logrou obter qualquer informação nem localizar a empresa destinatária no local da descarga, telefonou para a sua entidade patronal solicitando que esta entrasse em contacto telefónico, para o número que consta do documento de fls. 69, documento que lhe foi entregue por uma funcionária da 1ª A. aquando o carregamento, tendo recebido indicações do seu superior para aguardar naquele local onde alguém iria ter com ele para indicar o local de descarga; decorrida cerca de meia hora, surgiram, então, três indivíduos que lhe indicaram outra morada para a descarga, sendo que esta decorreu dentro da normalidade – querendo com isto significar que nem o local, nem as pessoas e nem os procedimentos de descarga lhe suscitaram reservas por terem sido efectuados dentro dos padrões habituais.
É importante salientar que ao ser confrontado com o CMR de fls. 68, o motorista referiu que a assinatura aposta no ponto 24 – “recepção de mercadorias” – foi aposta por um dos três indivíduos que se dirigiram a ele para indicar o local de descarga.
Destarte, resulta documentalmente provado nos autos que o nome correspondente a esta assinatura – “F. C.” -, coincide com a indicação aposta no documento de fls. 69, documento que a testemunha R. C., confirmou ter sido emitido/preenchido em parte por ele próprio (no que concerne à identificação e quantidade do material), e no restante disse, convenientemente, desconhecer quem introduziu os restantes elementos, nomeadamente os elementos relativos ao contacto da sociedade destinatária, apesar de ter afirmado que o entregou tudo à sua colega. Mas veja-se que no email remetido em 26/7/2018, subscrito por esta testemunha R. C.. à 1ª R., a informar a morada de entrega e respectivo contacto consta exactamente o mesmo número de telefone que está aposto no documento de fls. 69 e que, por sinal, a testemunha disse não ser de sua lavra.
A este propósito parece-nos relevante, ainda, aludir que o representante da 1ª A., E. S. declarou, embora invocando dúvidas, que “F. C.” seria o comercial da cliente S. I. P..
E isto, leva-nos a concluir que apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecida/estranha ao destinatário – S. I. P. -, tal como veio alegado pelas AA., dada a coincidência verificada através da confrontação dos documentos enunciados e até pela referência feita pelo próprio representante da 1ª A., no sentido de relacionar o nome “F. C.” com a cliente S. I. P..
Em suma, entendemos que a prova produzida não é de molde a concluir pela perda da mercadoria bem assim como o seu valor nem tão pouco que a mercadoria tenha sido entregue a pessoa estranha ao destinatário, apesar de a entrega ter sido feita numa morada distinta da que consta do CMR.
As respostas negativas relativas aos restantes factos, e para além do que já ficou dito, deveram-se à ausência e/ou insuficiência de prova sobre os mesmos, nomeadamente, pericial, testemunhal ou documental, decidindo-se contra a parte onerada com o ónus probatório respectivo.
(…)

A Recorrente estrutura a sua divergência em relação à materialidade que considera ter sido indevidamente julgada como demonstrada e indemonstrada, respectivamente, pelo tribunal a quo, na conjugação de meios probatório produzidos, dos quais, em seu entender, deveria ter resultado uma resposta diversa da que foi dada a essa factualidade, ou seja, de sentido negativo e positivo, respectivamente, e que, em síntese, são os seguintes:
- Foi desconsiderada TODA A PROVA PRODUZIDA , até prova produzida pela própria R, subjugada à convicção do Juiz a quo, sustentada, essencialmente, na percepção que não ficara provada a perda da mercadoria em causa, desde logo porque resultariam dúvidas se a entrega teria ocorrido ao destinatário e que nos termos do previsto no artigo 414º CPCivil o ónus da prova impunha decisão contra AA, tanto mais que não provado o dano nem o nexo causal seria irrelevante apurar eventuais exclusões da responsabilidade nos termos dos artigo 17º, n.º 2 e 4 CMR,
- Resulta pois que não se considerou a prova decorrente de documento n.º 5 junto com a PI em confronto com as declarações do motorista A. R., das quais resulta inequivocamente que nunca se fez presente no local de descarga, note-se que esta testemunha confirma o percurso do seu transporte nos pontos do referido documento n.º 5 da PI, resultando de forma objectiva infirmados os pontos da matéria de facto provada em 10, 11, 12, 13, 14,
- Ao que acrescem as declarações de E. S., J. M., e sobre tudo de P. C., estes dois últimos estiveram presentes nas instalações do destinatário, no dia de entrega, testemunhando de forma clara que o camião de descarga não se fez presente no local contratado,
- De tal forma que com base na premissa errada que resulta da não percepção que o camionista A. R. não alcançou o local de destino contratado se permitiu, o Juiz a quo formar-se em dúvida, e cito “ (…) leva-nos a concluir que apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecido/estranha ao destinatário S. I. P. (…),
- Dúvida que pretende impor a AA o ónus de prova inaceitável, desde logo porque resulta RR obrigados a entregar num concreto local a mercadoria de AA, que não pode ter sido entregue pelo simples facto da pessoa colectiva destinatária não poder ser encontrada noutro local que não fosse o da descarga,
- Resultando, assim, afastada a razoabilidade e prudência da apreciação plasmada da Sentença, pois a livre apreciação e valoração há-de ser da PROVA, e, in casu, a prova esclarece que o camionista não alcançou o local de descarga, ao contrário do pretendido em pontos 10, 11, 12, 13 e 14 de factos dados como provados, verificando-se, assim, completamente infundado afirmar-se que a mercadoria em causa poderia ter sido entregue ao destinatário,
- permitimo-nos, desde já enquadrar em correcção, tendo presente a prova produzida dado como não provados pontos 10, 11, 12, 13, 14 em causa.
- Não será nunca razoável duvidar que não se encontra perdida a mercadoria que RR por mote próprio decidiram descarregar em local diferente do contratado pelos AA, sendo, no mínimo obrigação de RR provar que a mercadoria não foi extraviada, como é óbvio e resulta inclusive do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 344º do CPCivil, pois RR. tornaram impossível a AA. provar a perda da mercadoria, desde logo porque só sabem a quem entregaram a mercadoria,
- Ao que acresce que, no caso em concreto não é de aplicar a regra do n.º 1 do artigo 342º do CCivil, pelo facto de existir convenção e lei que determina a respetiva inversão, em concreto as previsões dos artigos 18º e 20º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, que, de forma clara impõem decisão diversa da lide,
- Sempre com o devido respeito, a não entrega no local contratado a pessoas que não se encontravam no local de destino não permitem dúvidas quanto à perda da mercadoria, tanto mais que qualquer dúvida sempre terá que onerar RR. no seu afastamento, pois o artigo 18º n.º 1 do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, esclarece que compete ao transportador fazer prova de que a perda teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, n.º 2, e o artigo 20º do mesmo diploma refere que os interessados não tem que apresentar provas da perda quando a mercadoria não tiver sido entregue nos 30 (trinta) dias posteriores à data contratada,
- RR. enviaram um motorista a França sem saber falar francês, por outro lado verificou-se objetivamente que procedeu a descarga em local diferente do contratado e sem contactar o expeditor, não pode deixar de se concluir que, pelo menos a titulo de dolo eventual os respetivos “operadores” de RR. não poderiam deixar de colocar como possível a hipótese de disporem ilicitamente da mercadoria de AA., não se afigurando, pois, como razoável excluir atuação dolosa por parte de RR.,
- Não se percepcionando pois, como razoável, nem a pretendida inversão do ónus de prova, excluída pelo artigo 29º, n.º 1 e também n.º 2 do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1965, nem a dúvida de entrega a pessoa distinta do destinatário, e muito menos o exercício de pretendida não presunção dos demais elementos da responsabilidade civil,
- O motorista deveria saber falar Francês, deveria ter observado os dizeres da pessoa colectiva destinatária, seria também razoável perceber que os três indivíduos em causa se deviam ter identificado, deveria ter contactado o expedidor, e, na mínima dúvida deveria ter-se retirado para a origem que mais não era que o interposto em França, cobrado o excesso do frete ao expedidor pois, se a mercadoria fosse propriedade do motorista certamente que naquele confesso quadro factual não teria procedido à descarga,
- Apesar disto não é considerado como provada a perda da mercadoria pois, segundo a interpretação de iure o Autor não o provou que a mercadoria entregue em local diferente do ordenado pelo expedidor se tenha perdido,
- Não se nos afigurando, salvo opinião em contrário, razoável, concluir que a A. não provou o dano que reclama, tanto mais que o reclama, entre outros, em 19º da sua PI, e não mereceu oposição por RR., e tanto assim é que tão pouco esse facto é levado à matéria de facto aos temas de prova,
- no entanto resulta da Douta Sentença que quem tem obrigação de provar a efectiva< perda da mercadoria é AA, com o argumento que, e cito “(…) apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecida/estranha ao destinatário S. I. P.(…) “ decidindo-se contra a parte onerada com o ónus da prova (…)“ motivação in fine, o que não se aceita, também atento ao previsto no artigo 799º, n.º 1 do CCivil, para além dos já referidos artigos 17º, n.º1, 2 , 18º, n.º 1, 20º e 29º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 , tanto mais que a perda da mercadoria se presume nos termos do artigo 20º, n.º 1 do mesmo diploma, “o interessado, sem ter de apresentar outra prova, poderá considerar a mercadoria perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos trinta dias seguintes (…)
- a Convenção CMR impõe de forma clara a entrega no concreto local contratado e que verificado o incumprimento de tal factualidade o ónus da prova da perda da mercadoria não será do AA, tal como decorre,
a) do artigo 4º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ o contrato de transporte estabelece-se por meio de uma declaração de expedição (…) “
b) do artigo 6º, alínea e) “a declaração de expedição deve conter as indicações seguintes (…) (e) endereço do destinatário,
c) artigo 9º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ a declaração de expedição
(…) faz fé das condições do contrato (…)
ci) artigo 12º do Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065 “ o expedidor tem direito de dispor da mercadoria, em especial (…) de modificar o lugar previsto para a entrega (…) do indicado na declaração de expedição
- Do qual resulta claro que só o documento declaração de expedição deveria ter sido considerado na decisão da presente lide, cumulativamente reconhecido que apenas o expedidor tinha o direito de alterar o local de entrega, e cumulativamente que a entrega em local diferente faz incorrer RR em responsabilidade civil, por força do previsto no Decreto Lei n.º 46.235 de 18.03.1065,
- No entanto verificou-se a valoração de outros documentos, guia de transporte e BL, que nada valem para este tipo de contrato, aceitando justificação de telefonemas entre RR. e outros porque à cautela se estaria a evitar eventuais fraudes, no entanto não se percebendo cautelas relativas à autenticidade da assinatura do referido documento de folhas 69,
- Tão pouco ficou provado que o contacto esgrimido em defesa pela RR com um cidadão francês fosse da lavra de AA, ou sequer tivesse existido ou que a assinatura aposta no referido documento fosse verdadeira,
- Fosse como fosse ficou provado que a descarga não ocorreu nas instalações do destinatário e deveria ter ficado provado que o motorista de RR. nunca este em tais instalações e, portanto, nunca poderia ter recebido instruções de um funcionário do destinatário porque é o próprio motorista de RR que o declara no confronto com Documento n.º 5 junto com a PI.
- Motorista que no confronto com os documentos junto nos Autos, em concreto com o Documento n.º 5 junto com a PI reconheceu que nunca alcançou o local de destino.

Analisar criticamente os elementos probatórios significa apreciá-los e valorizá-los, seja um por um, intrinsecamente, seja conjugadamente, relacionando-os reversivamente (testando a compatibilidade entre uns e outros), tudo isto à luz das regras da normalidade, da experiência da vida e dos ensinamentos da ciência.

Nesta actividade não está o tribunal submetido a critérios ou regras pré-estabelecidas (salvo quando a lei exige, para prova do facto, certo meio de prova – p. ex., documento ou confissão), devendo considerá-las a todas, apreciá-las em conjunto, fazer a sua análise crítica, tendo em conta as regras da ciência, da lógica e da experiência comum a todo o homem médio, e, por fim, especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 607º, nº 4 do CPC), assim permitindo que se ‘possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado’ (5) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.

A motivação ou justificação da decisão sobre a matéria de facto, enquanto elemento verdadeiramente estruturante da legitimidade (e de legitimação) da decisão mais não significa do que a explicação da convicção do juiz.

As provas, di-lo o art. 342º do C.C., têm por função a demonstração da realidade dos factos. Porém, através delas não se busca criar no espírito do julgador a certeza absoluta da realidade dos factos – “se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça” (6), o que implica que tem a justiça de bastar-se com um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência” (7).

Assim, porque a prova como demonstração efectiva - segundo a convicção do juiz - da realidade de um facto “não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida - certeza histórico-empírica” -, é necessário fazer uma análise crítica dos elementos probatórios produzidos nos autos, isto é, apreciá-los e valorizá-los de forma conjugada, relacionando-os reversivamente (testando a compatibilidade entre uns e outros), tudo isto à luz das regras da normalidade, da experiência da vida e dos ensinamentos da ciência.

O legislador ao determinar a afirmar que a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto, designadamente, se a prova produzida ou documento superveniente impuseram decisão diversa – artigo 662, nº1, do C.P.C. -, pretendeu que o tribunal de 2.ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.

O Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (8), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.

Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

E é á luz do que se acaba de expender que importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando se as respostas impugnadas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório e com o que os meios de prova produzidos nos autos, impõem concluir.

Ora como resulta de tudo o exposto, além das decorrências que em termos probatórios pretende extrair dos supracitados preceitos legais, o Recorrente sustenta a sua impugnação da matéria factual, nos mesmo meios probatórios de que o tribunal recorrido se serviu, podendo, assim, dizer-se que, na situação vertente, a questão em dissenso no recurso com relação à matéria factual fixada na decisão recorrida, no que concerne aos meios probatórios valorados pelo tribunal, não incide sobre o respectivo conteúdo substancial desses meios de prova produzidos, mas exclusivamente e tão só sobre a valoração crítica que deles efectuou o tribunal recorrido, ou seja, e essencialmente, sobre a interpretação que na sua globalidade foi efectuada já que nem sequer está em causa a respectiva credibilidade e consistência que foi atribuída a cada um deles e que esteve na origem da fixação da matéria de facto objecto de impugnação e de que o Recorrente também se serviu para sustentar esta impugnação.

Ora, como é consabido, não é compatível com a exigência da lei, em termos de reapreciação da matéria de facto, o exercício (apenas formal) por parte da Relação de um poder que se fique por afirmações genéricas de não modificação da matéria de facto, por não se evidenciarem erros de julgamento ou se contenha numa simples adesão aos fundamentos da decisão, ou numa pura aceitação acrítica das provas, abstendo-se de tomar parte activa na avaliação dos elementos probatórios indicados pelas partes ou adquiridos oficiosamente pelo tribunal.

Todavia, afigura-se-nos também inquestionável que, constatando-se ter o tribunal a quo procedido a uma avaliação da matéria de facto, deixando expressa a interpretação que fez dos meios de prova produzidos sobre os factos impugnados, e fundamentado desse modo a sua convicção, nos quais igualmente se alicerça a impugnação deduzida, se possa assegurar o cumprimento do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, procedendo à análise das razões determinantes da consistência ou inconsistência que lhe foi atribuída, já que o conteúdo não foi questionado, efectuando, dessa forma, um novo julgamento, em vista à prossecução de uma convicção própria, igualmente fundada nesses mesmos meios probatório.

Assim, procedendo à análise dos concretos meios probatórios produzidos, ou mais concretamente da prova resultante das declarações e depoimentos prestados, em ordem ao aquilatar da consistência da fundamentação efectuada pelo tribunal recorrido e da argumentação alternativa em que se sustenta a impugnação da aludida matéria de facto, depois de analisado o seu conteúdo, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, que pese embora não possa aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, permite, no entanto, afirmar peremptoriamente que a síntese deles efectuada na motivação da decisão recorrida expressa com linear clareza e rigor o respectivo conteúdo.

Ora tal como consta da decisão recorrida. também a nós se nos afigura que do cotejo de toda a prova produzida, documental e testemunhal, resultam claramente evidenciadas incongruências que cumpre assinalar e que suscitaram um estado de dúvida no julgador.

E aí se refere, designadamente, o seguinte:
(…)
Em primeiro lugar, não há qualquer suporte documental relativo à perda da mercadoria e também não há do alegado contrato estabelecido entre as AA. E a S. I. P., sendo certo que apesar de se reconhecer que este contrato não se traduz num facto essencial para a decisão, a verdade é que no contexto em que se inserem os factos relevava instrumentalmente para a sustentação da tese da autora.
Com efeito, tanto os representantes legais da AA., obviamente interessados no desfecho da causa, como os depoimentos testemunhais de P. C., R. C. e R. A., que, em bom rigor, também não se revelam inteiramente isentos, referiram desconhecer o paradeiro da mercadoria, cujo valor computaram, sem mais, em €30.000,00.
Ora, inexiste nos autos factura da mercadoria transportada emitida em nome do cliente destinatário, de onde resulte, entre o mais, o valor de €30.000,00; inexiste prova de qualquer reclamação dirigida às AA. por parte do cliente S. I. P. por incumprimento na entrega; inexiste prova da recusa do pagamento por parte do cliente S. I. P. por falta de recepção da mercadoria; inexiste prova de diligências que as AA., tivessem encetado para localizar o paradeiro da mercadoria – p. ex., não há prova documental de que realmente tivesse sido apresentada uma queixa crime em França, tal como foi afirmado por J. M., ainda que só após o transporte da 2ª carga -; inexiste nos autos reclamação escrita dirigida à transportadora acusando a perda da 1ª carga - revelam os depoimentos das testemunhas R. S. e C. G. que a reclamação só ocorreu aquando o segundo transporte, o que, aliás, coincide com a prova documental, e verifica-se que a solicitação da 1ª A. à 1ª R. de documentação relativa à entrega da carga aqui em causa só foi feita após o segundo transporte; está provado que a 2ª A. procedeu ao pagamento do transporte, no valor de €1.300,00 e que a mercadoria foi entregue em morada distinta da que consta do CMR.
Não podemos, desde logo, deixar de referir que não se coaduna com o normal acontecer, com as regras da experiência comum e até com a prática comercial, que a A. tenha procedido ao pagamento da factura relativa ao transporte aqui em causa desconhecendo o paradeiro da mercadoria, sobretudo porque está em causa o valor de €30.000,00! E, s.m.o., também não faz sentido que a ter-se verificado a perda total da mercadoria, a A. tenha solicitado/confiado à 1ª R. um novo transporte de carga no mesmo valor!
Também nos causa estranheza o facto de não ter sido, desde logo, emitida factura da mercadoria em nome da cliente S. I. P. – até porque segundo a testemunha R. A. é esse o procedimento habitual.
Destarte, embora reconheçamos que não se alcança o concreto significado do documento nº 8 junto com a p.i. (fls. 12 verso), nem muito menos se tem relação com a mercadoria aqui em causa, certo é que do mesmo parece resultar que a 2ª A. é na verdade cliente da 1ª A., e este facto, associado à ausência de outra prova segura, também não esclarece cabalmente nem a relação comercial entre as duas AA. nem com a S. I. P..
Do exposto resulta que a prova não permite concluir pela verificação da efectiva perda da mercadoria e muito menos do seu valor.
Ademais, estava assente que a mercadoria foi entregue pela 2ª R. numa morada distinta da que vem indicada no CMR.
No que toca à prova produzida sobre esta matéria, não podemos deixar de assinalar que a versão dos acontecimentos relatada pelo motorista da 2ª R., A. R., não coincide rigorosamente com a que vem descrita nos artigos 23º a 29º da contestação da 1ª R.. E, como é óbvio, só esta testemunha estava em condições de relatar com conhecimento directo o que realmente se passou aquando a descarga da mercadoria.
De facto, de acordo com o testemunho do motorista, ao chegar ao local de descarga indicado no CMR não encontrou ninguém, muito menos alguém que se tivesse identificado como funcionário da S. I. P., que lhe tivesse dado indicação de outro local de descarga. Segundo o mesmo, dado que não logrou obter qualquer informação nem localizar a empresa destinatária no local da descarga, telefonou para a sua entidade patronal solicitando que esta entrasse em contacto telefónico, para o número que consta do documento de fls. 69, documento que lhe foi entregue por uma funcionária da 1ª A. aquando o carregamento, tendo recebido indicações do seu superior para aguardar naquele local onde alguém iria ter com ele para indicar o local de descarga; decorrida cerca de meia hora, surgiram, então, três indivíduos que lhe indicaram outra morada para a descarga, sendo que esta decorreu dentro da normalidade – querendo com isto significar que nem o local, nem as pessoas e nem os procedimentos de descarga lhe suscitaram reservas por terem sido efectuados dentro dos padrões habituais.
É importante salientar que ao ser confrontado com o CMR de fls. 68, o motorista referiu que a assinatura aposta no ponto 24 – “recepção de mercadorias” – foi aposta por um dos três indivíduos que se dirigiram a ele para indicar o local de descarga.
Destarte, resulta documentalmente provado nos autos que o nome correspondente a esta assinatura – “F. C.” -, coincide com a indicação aposta no documento de fls. 69, documento que a testemunha R. C.., confirmou ter sido emitido/preenchido em parte por ele próprio (no que concerne à identificação e quantidade do material), e no restante disse, convenientemente, desconhecer quem introduziu os restantes elementos, nomeadamente os elementos relativos ao contacto da sociedade destinatária, apesar de ter afirmado que o entregou tudo à sua colega. Mas veja-se que no email remetido em 26/7/2018, subscrito por esta testemunha R. C.. à 1ª R., a informar a morada de entrega e respectivo contacto consta exactamente o mesmo número de telefone que está aposto no documento de fls. 69 e que, por sinal, a testemunha disse não ser de sua lavra.
A este propósito parece-nos relevante, ainda, aludir que o representante da 1ª A., E. S. declarou, embora invocando dúvidas, que “F. C.” seria o comercial da cliente S. I. P..
E isto, leva-nos a concluir que apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecida/estranha ao destinatário – S. I. P. -, tal como veio alegado pelas AA., dada a coincidência verificada através da confrontação dos documentos enunciados e até pela referência feita pelo próprio representante da 1ª A., no sentido de relacionar o nome “F. C.” com a cliente S. I. P..
Em suma, entendemos que a prova produzida não é de molde a concluir pela perda da mercadoria bem assim como o seu valor nem tão pouco que a mercadoria tenha sido entregue a pessoa estranha ao destinatário, apesar de a entrega ter sido feita numa morada distinta da que consta do CMR”.

E sem nada de relevante que se nos afigure valorizar concordamos que da prova produzida se infere legitimamente esta conclusão, ou seja, de que a perda da mercadoria não resultou demonstrada.

E para contrariar esta conclusão alega a Recorrente que foi desconsiderada TODA A PROVA PRODUZIDA, subjugada à convicção do Juiz a quo, sustentada, essencialmente, na percepção que não ficara provada a perda da mercadoria em causa, desde logo porque resultariam dúvidas se a entrega teria ocorrido ao destinatário e que nos termos do previsto no artigo 414º CPCivil o ónus da prova impunha decisão contra AA, tanto mais que não provado o dano nem o nexo causal seria irrelevante apurar eventuais exclusões da responsabilidade nos termos dos artigo 17º, n.º 2 e 4 CMR.

A CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA(CMR) (assinada em 19 de Maio de 1956 em Geneve - aprovada em Portugal pelo Decreto Lei nº 46 235, de 18 de Março de 1965, que entrou em vigor em 21 de Dezembro de 1969, dispoe, designadamente o seguinte:
(…)
Artigo 17º 1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
3. O transportador não pode alegar, para se desobrigar da sua responsabilidade, nem defeitos do veículo de que se serve para efectuar o transporte, nem faltas da pessoa a quem alugou o veículo ou dos agentes desta.
4. Tendo em conta o artigo 18º, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes:
a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso foi ajustado de maneira expressa e mencionado na declaração de expedição;
b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas;
c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário;
d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores;
e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes;
f) Transporte de animais vivos.
5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns dos factores que causaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os factores pelos quais responde em virtude do presente artigo.
Artigo 18º
1. Compete ao transportador fazer prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2.
2. Quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17º, parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos.
3. A presunção acima referida não é aplicável no caso previsto no artigo 17º, parágrafo 4, a), se houver falta de uma importância anormal ou perda de volume.
4. Se o transporte for efectuado por meio de um veículo equipado de maneira a subtrair as mercadorias à influência do calor, frio, variações de temperatura ou humidade do ar, o transportador não poderá invocar o benefício do artigo 17º, parágrafo 4, d), a não ser que apresente prova de que, tendo em conta as circunstâncias, foram tomadas todas as medidas que lhe competiam quanto à escolha, manutenção e uso daqueles equipamentos e que acatou as instruções especiais que lhe tiverem sido dadas.
5. O transportador só poderá invocar o benefício do artigo 17º, parágrafo 4, f), se apresentar prova de que, tendo em conta as circunstâncias, foram tomadas todas as medidas que normalmente lhe competiam e acatou as instruções especiais que lhe possam ter sido dadas.
Artigo 19º Há demora na entrega quando a mercadoria não foi entregue no prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, quando a duração efectiva do transporte, tendo em conta as circunstâncias, e em especial, no caso de um carregamento parcial, o tempo necessário para juntar um carregamento completo em condições normais, ultrapassar o tempo que é razoável atribuir a transportes diligentes.
Artigo 20º
1. O interessado, sem ter de apresentar outras provas, poderá considerar a mercadoria como perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos 30 dias seguintes ao termo do prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos 60 dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador.
2. O interessado, ao receber o pagamento da indemnização pela mercadoria perdida, poderá pedir por escrito que seja avisado imediatamente se a mercadoria aparecer no decurso do ano seguinte ao pagamento da indemnização. Ser-lhe-á acusada por escrito a recepção desse pedido.
3. Dentro dos 30 dias seguintes à recepção desse aviso, o interessado poderá exigir que a mercadoria lhe seja entregue contra pagamento dos créditos resultantes da declaração de expedição e contra a restituição da indemnização que recebeu, sendo eventualmente deduzidas as despesas incluídas nessa indemnização, e com reserva de todos os direitos a indemnização por demora na entrega prevista no artigo 23, e, se for caso disso, no artigo 26.
4. Na falta quer do pedido previsto no parágrafo 2, quer de instruções dadas no prazo de 30 dias previsto no parágrafo 3, ou ainda no caso de a mercadoria dó aparecer depois de mais de um ano após o pagamento da indemnização, o transportador disporá dela em conformidade com a lei do lugar onde se encontra a mercadoria.
Artigo 21º Se a mercadoria for entregue ao destinatário sem cobrança do reembolso que deveria ter sido percebido pelo transportador em virtude das disposições do contrato de transporte, o transportador tem de indemnizar o expedidor até ao valor do reembolso, salvo se proceder contra o destinatário”.

Assim, como se refere mo Acórdão da Relação de Lisboa, de 24/06/2010, “Ao contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR - assinada em Genebra, a 19 de Maio de 1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, convenção essa alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.
A regra é a de que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.
O transportador só fica desobrigado dessa responsabilidade se a perda teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta sua, um vício próprio da mercadora ou circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, cabendo ao transportador o ónus de alegação e de prova das referidas circunstâncias com vista a eximir-se da responsabilidade decorrente da perda da mercadoria (9).

Destarte, por virtude do disposto no artº 17º nº 1, da CMR, o transportador é responsável pela perda total ou parcial ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega, sendo que, nos termos do nº 2 desse mesmo normativo, “o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.

Como se refe no Acórdão da Relação do Porto, de 14/06/2020, “Da conjugação deste artº 17º nºs 1 e 2 e do artº18º nº1 CMR extrai a doutrina uma verdadeira presunção de culpa do transportador, em caso de perda ou de danificação da mercadoria, à semelhança do disposto no artº 799º nº1 C.Civ. – cf., a propósito, S.T.J. 8/4/87 Bol.366/507, S.T.J. 5/12/91 in www.dgsi.pt, pº nº 080818, relator: Cabral de Andrade, S.T.J. 29/10/96 in www.dgsi.pt, pº nº 96A432, relator: Torres Paulo, S.T.J. 10/7/08 in www.dgsi.pt, pº nº 07B3704, relatora: Maria dos Prazeres Beleza, S.T.J. 29/4/10, in www.dgsi.pt, pº nº 982/07.1TVPRT.P1.S1, relator: Fonseca Ramos, Ac.R.C. 4/11/08 Col.V/9, Ac.R.C. 13/11/01 Col.V/19, Ac.R.L. 2/2/93 Col.I/122 ou Ac.R.E. 19/3/92 Col.II/285. (10)

Cumpre ainda referir que de harmonia com o disposto no artigo 20º, n.º 1 do aludido diploma, “o interessado, sem ter de apresentar outra prova, poderá considerar a mercadoria perdida quando esta não tiver sido entregue dentro dos trinta dias seguintes (…)

Na situação vertente, e como resulta da prova produzida, não logrou adesão de prova, pelas razões expressas, a perda da mercadoria (…) nem tão pouco que a mercadoria tenha sido entregue a pessoa estranha ao destinatário, apesar de a entrega ter sido feita numa morada distinta da que consta do CMR”.

Ora mesmo não se estando perante uma presunção em sentido estrito, tal como sucede com estas, também nesta situação a prova da “presunção” consiste precisamente "na dedução, na inferência do raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo provado ou conhecido e se chega a um facto desconhecido” (11), ou seja, e reportando agora por analogia ao caso em apreço, não pode falar-se de presunção de culpa do transportador, em caso de perda ou de danificação da mercadoria, se não houver sido feita a prova dessa mesma perda ou danificação, a qual, como é óbvio, pela lógica da vida e do direito, nunca poderia ficar ao encargo ou constituir um ónus probatório do transportador, já que é um facto constitutivo da sua própria responsabilidade.

E assim sendo, apenas uma vez demonstrada a perda ou danificação de mercadorias funcionará a “presunção de culpa”, ou seja, impenderá sobre o transportador a responsabilidade pelos danos advenientes, o qual apenas dela se poderá eximir se, como se deixou dito, a demonstrada “perda avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.

E isto, leva-nos a concluir que apesar de a mercadoria ter sido entregue em local distinto não há certeza de que a pessoa que a recepcionou fosse totalmente desconhecida/estranha ao destinatário – S. I. P. -, tal como veio alegado pelas AA., dada a coincidência verificada através da confrontação dos documentos enunciados e até pela referência feita pelo próprio representante da 1ª A., no sentido de relacionar o nome “F. C.” com a cliente S. I. P..

Destarte, e pelo exposto, improcede, na íntegra, a impugnação factual.

Mais alega o Recorrente que se apresentam violados, entre outros, os normativos previstos nos artigos 6º, n.º 1, 12º, n.º 3, 14º, n.º 1, 17º, n.º 1, 18º, n.º 1, 20º, n.º 1, 29º, 41º, n.º 2 do Decreto Lei n.º 46/235 de 18.03.1965, e artigos 334º, 487º, n.º 1, 799º, n.º 1 do CCIVIL, e artigos 596º, n.º 1 in fine, 574º, n.º 1 e 2, pois que, apesar de se concluir que sobre o transportador recai uma presunção de culpa no incumprimento da obrigação de entrega, decorre da Sentença, ora em crise, que não se provou que em consequência desse incumprimento houvesse perda da mercadoria.

Ora, sendo certo que do exposto resulta já implicitamente respondida esta questão, a decisão recorrida também lhe dá cabal resposta quando refere o seguinte:
(…)
E inquestionável que o contrato aqui em causa configura, à luz dos factos apurados, um contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias (artº. 1º da CMR), sendo que, naquilo que para aqui interessa, a 1ª Ré, subcontratou os serviços da 2ª Ré, para efetuar o referido serviço de transporte, sendo que nas relações internas entre ambas, tudo se passa como se aquela assumisse a posição de expedidora e a última de transportadora.
Sendo assim, e à luz do citado artº. 17º, nº. 1, da CMR, entendemos que a sobre a autora impendia, antes de mais, o ónus de provar a perda efectiva da mercadoria que foi transportada, pois só no caso de esta se verificar é que se acciona a responsabilidade da transportadora.
Com efeito, sendo a perda total da mercadoria o facto constitutivo do direito de que a autora se arroga titular, era sobre ela que impedia a prova do mesmo (art. 342º, nº 2 do CCivil). E, caso a autora tivesse feito esta prova, sobre as Rés impenderia o ónus de afastar a presunção de culpa que as onera, designadamente a verificação de alguma das situações previstas no art. 17º, nºs 2 e 4, da CMR.
Não concordamos que pelo facto de a mercadoria ter sido entregue numa morada diferente da que vinha prevista no CMR se possa, sem mais, concluir que a mercadoria se perdeu.
O que pode afirmar-se, certamente, é que a transportadora incumpriu uma das suas obrigações contratuais, como seja a que vem prevista no art. 14º, por referência ao art. 12º, da CMR, onde se estabelece que “1. Se por qualquer motivo a execução do contrato nas condições previstas na declaração de expedição é ou se torna impossível antes da chegada da mercadoria ao lugar previsto para a entrega, o transportador tem de pedir instruções à pessoa que tem o direito de dispor da mercadoria em conformidade com o artigo 12º. 2. No entanto, se as circunstâncias permitirem a execução do transporte em condições diferentes das previstas na declaração de expedição e se o transportador não pode obter a tempo as instruções da pessoa que tem o direito de dispor da mercadoria em conformidade com o artigo 12, tomará as medidas que se lhe afigurarem melhores para o interesse da pessoa que tem o direito de dispor da mercadoria.”
Mas não se provou que em consequência deste incumprimento houvesse perda da mercadoria e o dano correspondente ao seu valor. Sendo certo que mesmo aplicando o Código Civil se chegaria à mesma conclusão pois que, estando nós no domínio da responsabilidade contratual, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor (artigo 798º), sendo certo que sobre aquele (neste caso a 2ª R.) existia uma presunção de culpa do incumprimento do contrato, que ao incumbia ilidir (artº. 799º, nº. 1)., necessário se torna que as autoras provem o nexo de causalidade adequado entre o comportamento da Ré e o dano que produziu – perda da mercadoria – (artº. 563º).
(…)
A jurisprudência dominante defende neste aspecto face à presunção decorrente do disposto no artigo 799º do CC, que a inversão do ónus da prova é tão-só relativamente à culpa. Não quanto ao nexo de causalidade e ao dano. Ou seja, ainda que se presuma a culpa, caberá a quem alega o direito demonstrar a existência do nexo causal entre a ilicitude e o dano, não se podendo, em caso algum presumir-se (quer o nexo de causalidade quer o dano) – cf. Acs. do STJ de 13/09/2018 e de 02/11/2010, in www.dgsi.pt.
(…)
Caso assim se não entendesse e considerássemos que era suficiente para a prova da perda efectiva da mercadoria e do dano/prejuízo o simples facto de esta ter sido entregue pela transportadora em local distinto do previsto no CMR poder-se-ia dar azo ao desencadeamento de um esquema fraudulento com vista ao enriquecimento sem causa dos expedidores.
Destarte, predispõe o art. 414º, do CPC que em caso de dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
(…)

Deste modo e concluindo, como supra se deixou exposto, apenas uma vez demonstrada a perda ou danificação de mercadorias funcionará a “presunção de culpa”, ou seja, impenderá sobre o transportador a responsabilidade pelos danos advenientes.

Improcede, assim, a presente apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.


IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.
Guimarães,

Relator: Jorge Alberto Martins Teixeira
Adjuntos: Desembargador José Fernando Cardoso Amaral.
Desembargadora Helena Gomes de Melo.

Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.


1. Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 56.
2. Cfr. Lebre de Freitas CPC anotado, 2008, vol II, pag. 704.
3. Cfr. Acórdão da Rel. De Guimarães, proferido no processo nº 702/18.5 T8BRG.G1. in www.dgsi.pt.
4. Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt/jstj. Posição que doutrina e jurisprudência vêem mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 298 a 303 (máxime 302 e 303) e na jurisprudência (por mais recente) o Acórdão do STJ de 8/01/2019, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
5. Cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
6. A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
7. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 191.
8. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
9. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 2010-06-24 (Processo n.º 7298/05.6TCLRS.L1-2). In www.dgsi.pt
10. Cfr Acórdão Relação do Porto, de 14/06/2020, proferido no `processo nº 155643/09.6YIPRT.P1, in www.dgsi.pt.
11. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 8/04/2008, proferido no processo nº 456/04.2TBALB.C1, in www.dgsi.pt.