Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1420/11.0T3AVR-BW.G1
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: ARRESTO
PERDA ALARGADA
BENS DE TERCEIRO
MEIOS DE REACÇÃO
GABINETE DE ADMINISTRAÇÃO DE BENS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Perante uma providência de arresto específico para perda alargada, o terceiro titular de bem arrestado pode recorrer do despacho que decretou o arresto, deduzir oposição ao arresto e, ainda, embargar de terceiro (por força das remissões sucessivas do artigo 10.º, n.º 4, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, para o art.º 228.º, n.º 1, do CPP, e deste para o CPC).
II - Caso o terceiro não use dos referidos meios de defesa contra a decisão que decretou o arresto de bem de que é titular formal, a não ser que sobrevenham factos supervenientes que possam justificar uma alteração (revogação ou redução) do decidido, a decisão que decretou o arresto não pode ser posteriormente reapreciada.
III - A faculdade legal concedida a um terceiro proprietário formal ou legítimo possuidor de um bem arrestado de requerer à autoridade judiciária a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação (prevista no artigo 12.º, n.º 4, da Lei 45/2011, de 24 de Junho - Lei do Gabinete de Recuperação de Ativos) supõe que o bem esteja sob custódia material do Estado e a sua administração tenha sido entregue ao Gabinete de Administração de Bens (GAB).
Decisão Texto Integral:
Processo: 1420/11.0T3AVR-BW.G1 
Tribunal Judicial da Comarca de Bragança
Juízo Central e Criminal de Bragança – Juiz ...

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

I.1. Recurso 1:
Com data de 09.01.2024 foi proferido despacho a determinar o desentranhamento de um requerimento junto por AA e a condenar a requerente em ½ UC de custas do incidente.
Recurso 2:
Com datas de 28.11.2023 e 05.12.2023 foi decidido indeferir o pedido deduzido por AA de levantamento do arresto do veículo automóvel com a matrícula ..-LO-.., mediante pagamento de €12.500,00 ou do valor resultante de avaliação, e notificar a requerente para, em 10 dias, proceder à entrega do veículo no Posto Territorial da GNR ..., com cessação das funções de depositária.
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I.2. Recurso das decisões

A Recorrente AA interpôs recurso das duas decisões.

No recurso 1, referente ao despacho de 09.01.2024
Pugna pela revogação da decisão recorrida no segmento da condenação em ½ UC de custas do incidente.
Extraiu da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1- Vem a AA, ora recorrente, apresentar recurso ao despacho judicial de 09.01.2024 que decidiu, num simples parágrafo, considerar a recorrente como culpada de um incidente e aplicar-se uma sanção de 51 euros a que se apelidou de “custas do incidente”.
2- Referiu o Tribunal no despacho recorrido que “por não ter sido solicitado nem ter cabimento no processado”, a requerente será tributada “com custas do incidente a cargo desta” – acontece que, nem importa o valor de 51 euros ali descrito – pois a defesa iria recorrer nem que fosse um euro ali descrito! Isto é um recurso em nome da verdade, da honra e da Justiça! É «Nesta hora» que tem de se dizer a verdade toda.
3- A recorrente AA repudia veementemente ser sancionada com qualquer valor por um incidente que foi causado por exclusiva responsabilidade da Sra. Funcionária da Secção de processos, essa sim foi quem despoletou toda a tensão que se está a viver nos autos, mas quanto ao erro grave da Sra. Funcionária o Tribunal decidiu com imensa água benta dizendo apenas (e só!) “relevo a falta”, já quanto à requerente, pessoa que agiu com o expoente máximo de boa fé, com a informação que deu aos autos, a essa cidadã – que nenhum erro cometeu – caiu-lhe em cima a Espada de Dâmocles, como narra a história famosa de que “pois havia observado que pendia bem acima de sua cabeça uma espada, presa ao teto por um único fio de crina de cavalo. A lâmina brilhava, apontando diretamente para seus olhos”
4- A recorrente limitou-se a apresentar um requerimento aos autos, na sequência do despacho de 05.01.2024, lendo-se nesse despacho judicial o seguinte:
“Atendendo ao teor das alegações de recurso da requerente AA, informe, antes de mais, a Secção sobre se aquela, para além do despacho com a refª Citius 25608913, de 05.12.2023, foi também notificada do despacho com a refª Citius 25586995, de 28.11.2023”.
5- A defesa da recorrente AA, em nome dos princípios da lealdade processual, da colaboração e da cooperação com a Justiça, veio esclarecer/elucidar que, de facto, nunca foi notificada do despacho de 28.11.2023 e não tinha avistado o mesmo na plataforma Citius, que reagiu ao único despacho de que foi notificada, despacho esse datado de 05.12.2023 e, pese embora entre ../../2023 e ../../2024 tenha alterado de advogados na representação da requerente, foi contactada a anterior mandatária (Dra. BB) que atestou nunca ter sido notificada do referido despacho e que o desconhecia em absoluto.
6- A defesa entendeu, e bem, transmitir essa informação ao Tribunal de Bragança, não sendo necessário para a resolução de um problema destes que o Tribunal convide a defesa ou quem quer que seja a poder ajudar a esclarecer o sucedido, tendo a defesa limitado a sua informação nos seguintes termos bastantes objetivos e que aqui se transcrevem:
AA, Arguida [leia-se requerente] nos autos à margem referidos e ai melhor identificado, após visualização do despacho de 05/01/2024, informa os autos que, após contacto com a anterior Mandatária Exma. Sra. Dra. BB, a mesma não foi notificada do despacho de 28/11/2023, tendo apenas sido do despacho de 05/12/2023 (referencia ...12) do qual foi apresentado recurso. Caso tivesse sido notificada do tal despacho de 28/11/2023, o que não foi, teria, em pé de igualdade com o despacho de 05/12/2023, apresentado o competente recurso. Diga-se até, que à velocidade em que o recurso foi apresentado sobre o despacho de 05/12/2023, apos a notificação ocorrida no 13/12/2023, o tal despacho de 05/12/2023 nem teria existido. Por ultimo indica-se considerar-se anómalo que no processo principal a Mandatária foi notificada do despacho de 16/11/2023, que ordenou a criação deste apenso e não tenha sido notificada do despacho (já no BW) de 28/11/2023.
Caberá, por isso, ao Tribunal retirar as consequências da não notificação do despacho de 28/11/2023, uma vez que a defesa reagiu a todos os despachos recebidos.”
7- Por conclusão aberta no dia 09.01.2024, a Senhora Funcionária CC reconhece os seus lapsos, pede desculpa pelo ocorrido, dizendo a mesma o seguinte:
CONCLUSÃO - 09-01-2024, com informação a V.ª Ex.ª que por lapso, do qual desde já me penitencio, o despacho datado de 28/11/2023, com a ref.ª Citius 25586995, não foi notificado à requerente, apenas tendo sido dado cumprimento ao último parágrafo do mesmo, abrindo vista ao Ministério Público. Assim, requeiro a V.ª Ex.ª que me seja relevada a falta.
8- O Tribunal de Bragança, no despacho de que se recorre, com a referência n.º ...68, decidiu, no segundo parágrafo, cimentar a seguinte decisão: “por não ter sido solicitado nem ter cabimento no processado” aplicar «custas do incidente a cargo” da requerente no valor de 51 euros.
9- A AA peticiona que os Senhores Juízes Desembargadores declarem a revogação desta sanção/deste despacho, o qual de apelidou de «custas» pelo incidente, devendo concluir-se que a requerente não causou incidente nenhum e a informação que transmitiu aos autos TEM CABIMENTO NO PROCESSADO – por se afigurar pertinente à boa resolução dos erros da secção; além disso, o facto de não ter sido solicitado não impede que a requerente, perante um caso como aquele que foi vivido nos presentes autos, preste toda a sua colaboração no sentido de se apurarem todas as falhas e erros, até de modo a proteger-se e acautelar que seja assacada qualquer culpa e/ou responsabilidade à mesma requerente.
10- Tudo em vão. Nota-se que o Sr. Juiz de Direito está zangado, mas essa sua zanga (sentimento humano naturalístico) pode estar direcionada para quem falhou (a funcionária) e jamais para um cidadão “inocente” que nada fez de errado.
11- Considerando-se, como se deve considerar, que a informação prestada aos autos pela AA é pertinente, está dentro do objeto da discussão ocorrida, era verdadeira a informação que prestou, a sra. Funcionária atestou que o erro foi da Secção, tem de se revogar o despacho de 09.01.2024 quando o mesmo concluiu que ocorreu um tal incidente e se aplicaram custas de incidente por tal ocorrência.
12- Qualquer incidente que tenha ocorrido deriva de responsabilidade exclusiva da Sra. Funcionária, jamais se podendo imputar à AA qualquer tipo de coima/custas/sanção.
13- O Tribunal Superior, ainda assim, pode sempre revogar o despacho de 05.12.2023 com outros fundamentos diversos dos invocados no presente recurso, bem como, ao abrigo do princípio da oficiosidade e da legalidade, revogar a decisão ao abrigo de outros fundamentos legais- o que se invoca.

No recurso 2, referente às decisões de 28.11.2023 e 05.12.2023
Pugna pela revogação dos despachos recorridos e por ser admitida a liquidar o valor de €12.500,00, ou outro que vier a ser definido em sede de avaliação, pelo veículo arrestado (do qual é proprietária e possuidora), com o subsequente cancelamento do arresto.

Extraiu da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1- Vem a AA, ora recorrente, apresentar novo recurso, agora ao despacho judicial de 28.11.2023 que decidiu indeferir a possibilidade de a requerente pagar 12.500 euros ou, caso assim não se aceitasse, indeferiu ordenar a avaliação do valor da viatura para a requerente, proprietária e legítima possuidora, poder pagar aos autos essa avaliação e retirar o arresto sobre a sua viatura.
2- Refere o despacho recorrido de 28.11.2023, em resumo, o seguinte: a requerente foi casada com o arguido DD; o arguido foi condenado na perda alargada em 273 mil euros; se a requerente quiser levantar o arresto sobre a sua viatura só pagando os 273 mil euros; mas como não pagou os 273 mil euros entregue-se já a viatura à GNR ...; negado o pedido de pagamento sobre uma eventual avaliação da entidade competente e deferiu-se a alteração de fiel depositário – nunca requerida pela AA.
3- A recorrente AA nunca foi arguida no processo, o veículo em causa é um veículo legal, não é furtado nem viciado, apenas foi arrestado porque a recorrente estava casada, em regime de comunhão de adquiridos, com o arguido DD.
4- A recorrente apresentou, como se disse, dois requerimentos aos autos, que deram origem ao presente apenso (catalogado como Caução), informando desde logo o Tribunal de que se divorciou do arguido DD, mais informou onde correu termos esse processo de divórcio e partilha judicial (que identificou o número e o Tribunal), e que tinha intenção (e ainda tem) de pagar um valor para poder “reconquistar” a sua viatura, sem arrestos, uma vez que é a sua viatura há muito tempo e tem as suas memórias, afetos e é a viatura que lhe é conhecida por todos no meio onde habita (... é uma vila pequena onde todos se conhecem).
5- O despacho recorrido de 28.11.2023 fez absoluta tábua rasa ao pedido de pagamento apresentado, bem como ao pedido de avaliação da viatura caso fosse entendido não ser de 12.500 euros o valor a pagar, o despacho recorrido ignorou os direitos de proprietária que a requerente tem.
6- Em bom rigor, o despacho recorrido dá provimento ao pedido promovido pelo Ministério Público, uma vez que se decidiu citando várias vezes o MP, para depois se ordenar a entrega do veículo, em 10 dias, à GNR ..., e ainda se ordena que alguém da GNR avalie o estado de conservação da viatura no momento da sua receção, tudo conforme despacho de 05.12.2023 – de que se recorreu também.
7- O Tribunal de Bragança sabe que a AA tem a posse da viatura, tem o registo de propriedade em seu nome, e por via disso o Tribunal sabe e tem consciência que a recorrente tem direitos constitucionais de propriedade, direitos esses plasmados no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, do art.º 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e ainda do art.º 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
8- A AA, ao longo de todos estes anos, sempre pagou o IUC da viatura, nunca foi comunicado pelo GAB à Autoridade Tributária qualquer apreensão ou arresto para efeitos de isenção fiscal – conforme artigo 15º da Lei n.º 45/2011, de 24.06, na redação conferida pela Lei n.º 30/2017, de 30.05, 71/2018, de 31.12 e ainda pela Lei n.º 2/2020, de 31.03.
9- Sempre foi proprietária para assumir todos os custos de IUC, de manutenção e de seguro da viatura, logo não lhe pode ser retirada a viatura sem lhe dar a possibilidade de pagar um montante pela mesma.
10- E agora, depois de ter sido a própria AA a dirigir-se, previamente, por escrito, ao Tribunal de Bragança, invocando querer pagar para poder retirar o arresto da sua própria viatura, o Tribunal decidiu indeferir qualquer hipótese de pagamento da viatura, defere a alteração de fiel depositário quando a requerente nunca requereu a alteração de fiel depositário e ainda manda notificar (no despacho de 05.12.2023) a AA e dar-lhe a ordem de, em 10 dias, a mesma entregar o veículo no Posto da GNR ..., e mais ordenou que alguém no Posto da GNR, presume-se que viesse a ser um Militar daquela força de segurança, desempenhe as funções de “avaliador” do estado de conservação da viatura no momento da receção da mesma. Quais serão as competências do referido militar da GNR para aferir, se for caso disso, do estado de conservação do veículo? Vai lavrar um auto onde dirá se está aspirado e lavado? Se tem riscos na pintura?
11- O despacho de 28.11.2023, por todas as razões e mais algumas, tem que ser revogado, não respeita, por um lado, os direitos de propriedade (Civis/registrais/constitucionais e internacionais) da requerente/proprietária e, por outro, nem sequer se dignou (no mínimo) a ordenar ao GAB que nomeasse uma entidade de reconhecida competência que pudesse informar o Tribunal sobre o valor do veículo, através das Tabelas EUROTAX, que têm previsto o valor muito aproximado de todos os veículos a nível mundial, mormente os portugueses onde, através da Marca, modelo, ano e mês da viatura, existe um valor de referência.
12- Além disso, existe um outro valor de referência que é atribuído pelas Companhias de Seguro quando os veículos tenham seguros danos próprios, como é o caso da recorrente, em que a seguradora diz que o valor do veículo é de 11 mil euros.
13- Como pode um Tribunal, que é um órgão de soberania, com esta leviandade medonha, mandar retirar um veículo ao seu legal proprietário, que é uma pessoa idónea, professora de profissão, isenta de qualquer cadastro, negando-lhe todas as hipóteses de efetuar um pagamento sobre a sua viatura? O estado prefere um veículo que tem uma história na vida pessoal do seu proprietário em detrimento do valor financeiro que seja atribuído ao veículo?
14- Não é mais vantajoso para o Estado, a fim de solucionar duas questões (a questão dos direitos da proprietária e, por outro lado, a recuperação de dinheiro para o erário público) , ordenar uma avaliação e a AA depositar à ordem dos autos o valor atribuído a essa viatura?
15- Qual é o interesse do Estado em «encher» o parque automóvel do estado se o cidadão, legal proprietário do mesmo, e que tem a sua posse e uso, se se prontificou e disponibilizou desde logo a efetuar o pagamento dos 12.500 euros ou, a não ser aceite aquele valor dos 12.500 euros, o valor de avaliação efetuada por alguma entidade do Estado?
16- Não se entende qual é o interesse do Tribunal, com o devido respeito, em retirar o veículo à sua legal proprietária só porque a mesma foi casada com um dos arguidos destes autos. Ela foi casada sim mas não foi co-autora dos crimes de que aquele foi acusado.
17- Certo é que, referem os artigos 12º n.º 4 e 13º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 45/2011, de 24.06, com as devidas atualizações que o proprietário/legítimo possuidor de um bem que não constitua meio de prova relevante pode requerer à autoridade judiciária competente a sua entrega contra depósito do valor de avaliação à ordem do IGFEJ.
18- Foi violado, de forma grave, o artigo 13º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 45/2011, de 24/06 que diz o seguinte: “previamente à venda, afetação ou destruição de um bem antes de decisão transitada em julgado, o GAB; b) notifica o proprietário ou legitimo possuidor para que, caso o pretenda, no prazo de 10 dias a contar da notificação, exerça a faculdade prevista no n.º 4 do artigo anterior.”
19- É verdade que o artigo 10º refere que o GAB é o Gabinete que faz a administração dos bens apreendidos, recuperados ou declarados perdidos a favor do Estado, porém o veículo ... não foi nem apreendido, nem recuperado nem declarado perdido a favor do Estado, foi isso sim arrestado nos termos do artigo 228º do Código Processo Penal, dispondo o n.º 4 deste preceito “em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para o tribunal civil, mantendo-se o arresto decretado”.
20- A recorrente tem arrestado este seu veículo (do qual era dona de metade por força do casamento em regime de comunhão de adquiridos) e ainda tem arrestado um imóvel em ..., devoluto, com hipoteca bancária que é paga mensalmente da sua conta, e também um imóvel foi adquirido em compropriedade com o DD, no regime de comunhão de adquiridos, logo também terá metade do imóvel, mas nesta sede começou por querer resolver, após o divórcio, em que ficou definido no processo de inventário que ficavam para a AA todos os bens, que o pagamento do crédito hipotecário seria da sua exclusiva responsabilidade e que teria de pagar 40 mil euros ao DD – que não pagou porque estando aquele património no que à parte dele diz respeito arrestado, esses 40 mil euros, a serem entregues, te-lo-ão que ser à ordem deste processo, com o levantamento do arresto do imóvel, em que a aqui recorrente era meeira e tem direito de preferência na compra daquele.
21- Fará algum sentido, no mais elementar bom senso jurídico, retirar-se a viatura à recorrente para depois de ser efetuada uma avaliação, notificar-se a mesma para, querendo, proceder à “recompra” da mesma, e neste hiato temporal, que poderá levar meses e/ou anos, a mesma ficará a pé? Ou, afigura-se mais correto e mais prático, quer a nível procedimental bem como a nível processual, a recorrente deslocar-se com a viatura a local indicado pelo tribunal para efetuar a avaliação, depois disso ser notificada e proceder ao pagamento, sem nunca ficar sem a viatura? Afinal, está à sua guarda há 10 anos, não é agora que vai desaparecer quando a recorrente pretende pagar a mesma.
22- Foram violados e/ou mal interpretados os artigos 13º n.º 1 alínea b) e n.º 4 do art.º 12º da Lei n.º 45/2011, de 24.06, com as devidas atualizações, na medida em que, o legal e legítimo proprietário de um veículo automóvel arrestado a um processo tem o direito de pagar o valor que seja entendido pelo GAB/Tribunal para libertação do arresto sobre aquela viatura, não se podendo ordenar a entrega daquele bem sem antes se dar a oportunidade de o cidadão pagar um determinado valor de avaliação efetuada por entidade de competência reconhecida, pagamento esse solicitado até pela requerente.
23- Mais foram violados os artigos 8º n.ºs 1 e 2 e 62º da Constituição da República Portuguesa, art.º 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art.º 1º do Protocolo adicional anexo à CEDH.
24- O Tribunal Superior, ainda assim, pode sempre revogar o despacho de 28.11.2023 com outros fundamentos diversos dos invocados no presente recurso, bem como, ao abrigo do princípio da oficiosidade e da legalidade, revogar a decisão ao abrigo de outros preceitos legais - o que se invoca.
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I.3. Resposta aos recursos

O Ministério Público respondeu aos recursos, no sentido da sua improcedência, nos seguintes termos (transcrição):

Recurso 1:
1.º Pretende a recorrente a impugnação do douto Despacho proferido a 09.01.2024, sob a referência ...68 por via do qual foi determinado o desentranhamento do requerimento de 08.01.2024, junto sob a referência ...60.
2.º É ao Tribunal que incumbe a gestão do processo e sua tramitação, entendido aquele enquanto conjunto ordenado de atos.
3.º O Tribunal a quo por Despacho de 05.01.2024, sob a referência ...87 ordenou à Secção que prestasse uma informação, sendo que a Requerente ao invés de aguardar a tomada de posição pela Secção veio apresentar o requerimento que então se determinou fosse desentranhado.
4.º Aquele requerimento é absolutamente inócuo porquanto a informação tinha de ser dada pela Secção, conforme ordenado e, só após a mesma, sendo concedido contraditório – se assim se entendesse justificado – teria o mesmo cabimento.
5.º Assim, bem andou o Tribunal a quo ao determinar o desentranhamento daquela peça processual e, subsequentemente, ao condenar a ora recorrente em custas processuais devidas pelo incidente, nos termos do Regulamento das Custas Processuais, sendo que por incidente se entende qualquer tramitação anómala, o que é, pois, o que se verifica in concreto.
6.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos da resposta que antecede e se dá por reproduzida, que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso.
7.º Em face do que, não merecendo qualquer censura ou reparo o douto Despacho recorrido, deve julgar-se improcedente o recurso interposto.
8.º Porém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.

Recurso 2:
1.º Pretende a recorrente a impugnação dos doutos Despachos proferidos a 28.11.2023 e 05.12.2023, sob as referências ...95 e ...13 por via do qual foi indeferida a substituição de parte do arresto determinado ao abrigo do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, pela prestação de caução no correspetivo montante de 12.500,00Eur.
2.º É, no essencial, tal questão a que merece atenção, a de saber se deve ser levantado o arresto preventivo que incide sobre a viatura de marca ..., com a matrícula ..-LO-.., pela quantia de 12.500,00Eur.
3.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos da resposta que antecede e se dá por reproduzida, que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso.
4.º Com efeito, estatui o artigo 11.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro que: “1 - O arresto cessa se for prestada caução económica pelo valor referido no n.º 1 do artigo anterior ”, valor esse apurado nos termos do artigo 7.º, n.º 1 de tal Diploma e que, no caso em apreço, ascende à quantia de 283.166,01Eur (duzentos e oitenta e três mil cento e sessenta e seis euros e um cêntimo).
5.º Assim, o Legislador apenas admitiu a cessação do arresto decretado, no todo ou em parte, pela satisfação, na íntegra, da quantia cuja perda vem peticionada como sendo a de património incongruente.
6.º Outrossim, o património do arguido, para efeitos da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, entre outros, é «o conjunto dos bens que “estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente (alínea a), nº2, do art.7º)», sendo que o «valor incongruente é garantido através do arresto dos bens de que o arguido tem o seu domínio e beneficia, ainda que não de modo exclusivo, por estarem incluídos no património comum indiviso dos ex-cônjuges, independentemente de algum dos seus titulares ser ou não o agente da atividade criminosa e, assim, de poder ou não ser considerado autor dos correspetivos ilícitos típicos» (vide, o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.04.2022, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador João Pedro Pereira Cardoso - disponível em www.dgsi.pt).
7.º Por fim, quanto ao facto de se haver nomeado novo fiel depositário tal decorre da vontade única e exclusiva da própria ora recorrente que solicitou, então, proceder à entrega do veículo para do mesmo se desonerar.
8.º Disse a mesma no ponto 8 do seu requerimento de 30.10.2023, que se transcreve: “ou procede à entrega da viatura e compra uma nova, querendo dar por terminado esta pendência do arresto sobre a sua viatura” (sic. realces do signatário).
9.º Em face do que, não merecendo qualquer censura ou reparo o douto Despacho recorrido, deve julgar-se improcedente o recurso interposto.
10.º Porém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.
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I.4. Parecer do Ministério Público

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no essencial, nos seguintes sentidos:
Recurso 1:
Quanto à condenação da recorrente em custas pelo incidente (recurso de 12/1/2024), oferece-nos dizer o seguinte:
Como decorre do art.º 7.º n.º 8 do Regulamento das Custas Processuais, “Consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas”.
Conforme esclarece Salvador da Costa in As Custas Processuais – Análise e Comentário, Almedina, 2017, 6ª Edição, pág. 143, “são pressupostos dos referidos incidentes ou procedimentos a extraneidade ao desenvolvimento normal da lide, isto é, que seja suscitada uma questão descabida no quadro da sua dinâmica”.
Igualmente escrevendo no Regulamento das Custas Processuais, 2011, 3.ª Edição, Almedina, pág. 218, que “O não cabimento na tramitação normal do processo significa a sua desconexão com a finalidade da forma de processo envolvente, e o requerimento autónomo é a forma normal de formulação de pretensões, ao que acresce ser o cumprimento do contraditório uma exigência normal, prevista no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil”.
Assim, “Anómalo, estranho ao desenvolvimento da lide, a justificar tributação autónoma, é o requerimento que se distancie da normalidade da tramitação, dando corpo a uma actividade ou conduta processual entorpecedora da acção da justiça “- Cfr.Acórdão da Relação de Coimbra de 20 de Março de 2019, no Processo n.º 171/16.4GASEI-A.C1, in www.dgsi.pt.
ORA:
Ante o processado e de que acima se deu nota, parece inexistirem dúvidas que a requerente apresentou requerimentos, que foram alvo do despacho de 28 de Novembro de 2023, despacho este que, porém, por omissão da secção, não lhe foi notificado, vindo a recorrente, apenas, a ter conhecimento já da ordem de entrega do veículo no Posto Territorial ... da GNR, assim como que cessava as funções de depositária, na notificação de 13 de Dezembro de 2023.
É na sequência desta notificação e enquanto o Tribunal diligenciava por apurar se a notificação do despacho ocorrera que a recorrente, não obstante para tal não ter sido notificada, veio informar da efectiva falta da mesma notificação, à qual era alheia porquanto reagira a todos os despachos recebidos…
Daí que, em nosso entender, apesar de ter sido apresentado de forma espontânea, tal requerimento não se prefigurou como um incidente anormal ou um acréscimo anormal da atividade processual, pois o Tribunal sempre teria de tomar posição relativamente à questão pendente da eventual omissão da notificação da requerente, omissão essa que, aliás, se veio a confirmar, com a consequente ordem para o cumprimento da notificação.
Por conseguinte, cremos que inexistia fundamento para se condenar a recorrente nos termos do art.º art.º 7.º n.º 8 do Regulamento das Custas Processuais, devendo, em nosso entender, este recurso proceder no tocante à condenação da arguida nos termos decididos.
Recurso 2:
Relativamente ao indeferimento dos requerimentos de 15 de Dezembro de.2022 e 30 de Outubro de 2023 (recurso do despacho de 28 de Novembro de 2023:
Questão prévia: falta de legitimidade da recorrente para o recurso em questão.

De acordo com o art.º 401.º do CPP,
1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
No caso, não sendo a recorrente arguida, assistente ou parte civil, a sua legitimidade para interpor o presente recurso, quando muito, teria de se subsumir à al. d) deste normativo ( tal como aconteceu quanto ao recurso de que se tratou antecedentemente, muito embora tal recurso se enquadre na 1.ª parte da alínea em causa).
A recorrente, que se intitula como interveniente acidental nos requerimentos apresentados, veio, no recurso, sustentar a sua legitimidade por ser parte civil alegando que “ …é proprietária do veículo automóvel arrestado “ e que recorre na “ defesa de um direito civil e constitucional: o direito à sua propriedade “
Contudo, partes civis são as pessoas ou entidades (lesados) que, no âmbito do processo penal, podem apresentar pedido de indemnização civil contra as pessoas com responsabilidade civil fundada na prática do crime, ainda que não se tenham constituído como assistentes (cfr. artºs 71.º e segs. do Código de Processo Penal) o que, seguramente, não é o caso da recorrente, que, processualmente, apenas assume o cargo de fiel depositária do veículo em causa.
Por outro lado, salvo melhor opinião, a decisão proferida não afecta qualquer direito da recorrente para os fins previstos na 2ª parte da citada al. d) do normativo em questão.
No recurso, a recorrente invoca que peticionou pagar 12.500 euros pela viatura para a poder “recomprar e o Tribunal indeferiu esse pagamento sendo que nunca se pode entender retirar-se a propriedade do bem sem que antes lhe seja dada a oportunidade de a mesma exercer o seu direito de preferência, até porque é a própria que figura como sua legal e legitima proprietária já há muitos anos, mais invocando terem sido violados e/ou mal interpretados os artigos 13º n.º 1 alínea b) e n.º 4 do art.º 12º da Lei n.º 45/2011, de 24.06
Ou seja, para sustentar a sua legitimidade para o recurso, a recorrente parte do pressuposto, erróneo, que o despacho recorrido afecta o seu direito de propriedade.
Ora, como emerge dos requerimentos sobre os quais se debruçou o despacho em escrutínio, na base da pretensão da recorrente para o levantamento do arresto, seria negociar a aquisição do veículo arrestado, propondo pagar ao Estado o valor de 12 500,00€ por ele ou, não sendo esta proposta aceite, que o Tribunal ordenasse a sua avaliação para atribuição de outro valor, reservando-se o direito de não o aceitar, entregando, então, o veículo, a quem fosse nomeado fiel depositário
Acontece que, como sublinhado em tal despacho, foi já proferido nos autos o Acórdão de 13 de Dezembro de 2017, confirmado parcialmente pelo Acórdão deste TRG de 30 de Setembro de 2019, entretanto transitado em julgado, onde se decidiu manter o arresto do veículo nos termos e para os efeitos do disposto art. 11º, nº 3 da Lei, 5/2002 de 11/1 ou até que os arguidos visados paguem voluntariamente o valor da incongruência, mantendo-se eventualmente para além da decisão final nos termos do art.º 12º, nº 4 do mesmo diploma legal.
Daí que, no despacho recorrido, o Tribunal a quo mais não fez que chamar à colação tal segmento decisório, indeferindo a pretensão da recorrente porquanto o arresto teria de se manter nos termos aí decididos, não fazendo qualquer sentido, como faz a recorrente no recurso, o apelo ao exercício do direito de preferência previsto no art.º 13º n.º 1 alínea b) e n.º 4 do art.º 12º da Lei n.º 45/2011, de 24.06, porquanto tal norma está prevista para as diligências de venda dos bens apreendidos, ainda não encetadas no caso pelo Gabinete de Recuperação de Activos.
Por conseguinte, salvo melhor opinião, a decisão proferida não afecta qualquer direito da recorrente de molde a legitimá-la para o recurso nos termos previstos no art.º 401.º n.º 3 al. d) do CPP.
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I.5. Resposta ao parecer.

 Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, foi apresentada resposta, onde a Recorrente, basicamente, sustenta a sua legitimidade recursiva.
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I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1.  Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre, por exemplo, com os vícios previstos nos artigos 410.º, n.º 2, ou 379.º, n.º 1, ambos do CPP (cf. art.ºs 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP).

Delimitando o thema decidendum:

Recurso 1:
- Saber se um requerimento onde a Recorrente, por iniciativa própria, presta informação sobre a sua não notificação de despachos, consubstancia incidente ou procedimento anómalo e deve ser tributado em custas.

Recurso 2:
- Saber se após o trânsito do acórdão condenatório, no qual se declarou perdido a favor do Estado o valor do património incongruente do arguido (nos termos previstos no art.º 12º, da Lei 5/2002 de 11/1) e se considerou o veículo automóvel matrícula ..-LO-.. contabilizado nesse valor, é admitido à Recorrente, na qualidade de proprietária formal e/ou possuidora, o levantamento do arresto, mediante o pagamento do seu atual valor comercial.
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II.2. Decisões recorridas

Recurso 1:
Despacho de 09.01.2024 (transcrição):
Ref.ª ...60:
Por não ter sido solicitado nem ter cabimento no processado, determino o desentranhamento e restituição à apresentante do requerimento identificado em epígrafe, com custas do incidente a cargo desta, que se fixam em 0,5 UC, nos termos do art.º 7.º, n.º 8, e tabela II anexa ao RCP.

Por ser essencial ao conhecimento do recurso, procede-se à transcrição do requerimento (ref. citius 2380760) de 08.01.2024, sobre o qual recaiu o despacho recorrido.
AA, Arguida nos autos à margem referidos e ai melhor identificado, após visualização do despacho de 05/01/2024, informa os autos que, após contacto com a anterior Mandatária Exma. Sra. Dra. BB, a mesma não foi notificada do despacho de 28/11/2023, tendo apenas sido do despacho de 05/12/2023 (referencia ...12) do qual foi apresentado recurso.
 Caso tivesse sido notificada do tal despacho de 28/11/2023, o que não foi, teria, em pé de igualdade com o despacho de 05/12/2023, apresentado o competente recurso.
Diga-se até que à velocidade em que o recurso foi apresentado sobre o despacho de 05/12/2023, apos a notificação ocorrida no 13/12/2023, o tal despacho de 05/12/2023 nem teria existido.
Por ultimo indica-se considerar-se anómalo que no processo principal a Mandatária foi notificada do despacho de 16/11/2023, que ordenou a criação deste apenso e não tenha sido notificada do despacho (já no BW) de 28/11/2023.
Caberá, por isso, ao Tribunal retirar as consequências da não notificação do despacho de 28/11/2023, uma vez que a defesa reagiu a todos os despachos recebidos.

Recurso 2:
Despachos recorridos (transcrições):
Despacho de 28.11.2023
AA, interveniente acidental, veio, por requerimentos de 15.12.2022 e de 30.10.2023, em súmula, invocar ser dona de, pelo menos metade, do veículo de marca ..., de matrícula ..-LO-.., arrestado nos presentes autos ao arguido DD, face ao regime de bens do casamento entre ambos – comunhão de adquiridos -, propondo o pagamento de 12.500,00 € para que seja levantado o arresto sobre tal veículo.
Caso o Ministério Público não aceite este valor, requer que seja indicado o montante atribuído à viatura e que seja suficiente para que o arresto sobre esta seja levantado ou, subsidiariamente, a quem deverá entregá-la e onde, uma vez que se encontra já divorciada do referido arguido.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão da Requerente, nos termos da promoção que antecede, com a ref.ª ...57.
Tudo visto.
O veículo de matrícula ..-LO-.. foi arrestado nos presentes autos para garantia do pagamento pelo arguido DD do valor incongruente apurado de € 272.956,63, cuja perda foi decretada no acórdão condenatório proferido no processo principal, já transitado.
No mesmo acórdão foi determinado que o arresto se mantém nos termos e para os efeitos do disposto art.º 11.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, ou até que o arguido pague voluntariamente o valor da incongruência, mantendo-se eventualmente para além da decisão final nos termos do art.º 12.º, n.º 4, do mesmo diploma legal.
Entende o Ministério Público que, da conjugação dos art.ºs 11.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, o arresto preventivamente decretado apenas pode cessar, no todo ou em parte, se e na medida em que o arguido ou a caucionante preste caução no valor global correspondente àquele que foi declarado a título de perdimento a favor do Estado.
Vale isto por dizer que os requerimentos AA têm carácter anómalo, na medida em que, não pondo em causa o arresto decretado sobre o supra referido veículo automóvel, visam, essencialmente, propor a substituição do arresto por um valor monetário, que considera justo.
Sucede, porém, que, como o Ministério Público se opôs, colocando a questão em termos de a Requerente apenas poder libertar o veículo automóvel (e, eventualmente, outros bens arrestados) caso caucione a totalidade do valor incongruente do património do arguido DD, cuja perda foi decretada, mostra-se inviável a pretensão da Requerente.
Como tal, terá de ser indeferida.
No tocante à pretensão subsidiária, não havendo oposição do Ministério Público, defere-se o requerido por AA.
Assim sendo, abra vista, a fim de o Ministério Público indicar pessoa que possa desempenhar as funções de fiel depositária do mencionado veículo.
Notifique.

Despacho de 05.12.2023
Ref.ª Citius 25601936:
Atenta a posição do Ministério Público, notifique AA para, em 10 dias, proceder à entrega do veículo de matrícula ..-LO-.. no Posto Territorial ... da GNR, assim cessando as funções de depositária.
Oficie ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), constituído junto do IGFEJ, no sentido de assegurar a guarda e administração do aludido veículo, nos termos dos art.ºs 10.º, n.ºs 1 e 3, al. a), e 11.º, da Lei 45/2011, de 24 de Junho.
Comunique ao PT de ... da GNR, solicitando que, no momento da recepção do veículo, seja verificado o seu estado de conservação.
D.N.

Ainda com relevo para a decisão do recurso 2, apura-se dos autos que:

i). O veículo com a matrícula ..-LO-.., registado em nome da Recorrente, foi arrestado no procedimento de arresto específico para perda alargada (ao abrigo do disposto no art.º 8.º, n.º 2, e 7.º, da Lei 5/2002 de 11/1), em que foi visado o arguido DD.
ii).   O arguido DD foi condenado, por acórdão declarado transitado em julgado, pelos seguintes crimes, penas e perdas a favor do Estado (transcrição):
- pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de 112 crimes de corrupção passiva, p. e p. pelo art. 373º, n.º 1, do Código Penal (por consequência da convolação da prática, em execução continuada, de um crime para concurso de crimes), na pena de 2 anos e 8 meses de prisão por cada um deles;
- pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de 103 crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, als. c) e d), por referência ao art. 255º, al. a), ambos do Código Penal (por consequência da convolação da prática, em execução coninuada, de um crime para concurso de crimes), na pena de 6 meses de prisão por cada um deles;
- pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, als. c) e d), e n.º 2, por referência aos arts. 2º, n.º 1, als. p) e q); 3º, n.º 3 (categ. B) e n.º 5, al. e) (categ. C); e art. 2º, n.º 3, al. p), todos da Lei n.º 5/2006, na redação dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/0, na pena de 1 ano de prisão;
- em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão;
- tendo sido declarada a perda do valor incongruente apurado no montante de €272.956,63, ao abrigo do disposto nos arts. 7º e ss. da Lei n.º 5/2002, de 11-01;
- e ainda a perda dos valores, veículos e demais objetos apreendidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 109º e 111º do Código Penal.
iii).   Resulta ainda de tal acórdão, ora com interesse:
[O] arresto mantem-se nos termos e para os efeitos do disposto art. 11º, nº 3 da referida Lei, 5/2002 de 11/1 ou até que os arguidos visados paguem voluntariamente o valor da incongruência, mantendo-se eventualmente para além da decisão final nos termos do art. 12º, nº 4 ainda do mesmo diploma legal.
iv). AA foi casada com DD, no regime de comunhão de adquiridos.
v). AA foi notificada do arresto.
vi). O veículo arrestado manteve-se sempre na disponibilidade efetiva de AA, por não ter sido alvo de apreensão material.
vii). AA nunca foi nomeada fiel depositária de tal veículo.
viii). O veículo não esteve sujeito à administração do Gabinete de Administração de Bens (GAB).
ix). No âmbito destes autos o veículo não foi alvo de avaliação, nem pelo GAB, nem por outra entidade.
x). Não se mostra declarada a perda a favor do Estado dos bens arrestados no procedimento aludido em i), nomeadamente do veículo com a matrícula ..-LO-.., nos termos e para os efeitos do artigo 12º, n.º 4, da Lei 5/2002, de 11.01.
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II.3. Da análise dos fundamentos dos recursos:
II.3.1. Recurso 1:

- Saber se um requerimento onde a Recorrente, por iniciativa própria, presta informação sobre a sua não notificação de despachos, consubstancia incidente ou procedimento anómalo e deve ser tributado em custas.
A Recorrente teve a iniciativa de informar o tribunal da falta de notificação de um certo despacho.
Tal requerimento foi qualificado como incidente anómalo e, como tal, foi tributado em custas.
É contra esta decisão que a Recorrente se insurge.
Vejamos.
Os incidentes e procedimentos anómalos são tributáveis em custas (neste sentido art.ºs 1º, 7º, n.ºs 4 e 8, e tabela ii, do Regulamento das Custas Processuais - RCP-).
Um incidente será anómalo sempre que se desvie da dinâmica da tramitação processual da lide, constituindo, por isso, uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo.
Porém, a condenação em custas de um incidente desta natureza não se basta com a simples anomalia do procedimento.
Como decorre da parte final do citado n.º 8, do art.º 7, do RCP, a tributação em custas destes incidentes não dispensa a aplicação dos normativos legais que definem a responsabilidade pelas custas, i. e., dos princípios que regem a condenação em custas.
A condenação em custas de uma tramitação estranha ao desenvolvimento do processo supõe que a parte tenha dado causa a tal tramitação ou, pelo menos, que dela retire proveito (art.º 527.º, do CPC).
In casu, verifica-se que a Recorrente não deu causa à necessidade de junção do requerimento onde informou não ter sido notificada de certo despacho.
Na verdade, quem deu causa à necessidade de prestar a informação foi o próprio tribunal, por se ter “esquecido” de notificar tempestivamente a Recorrente do despacho.
Por outro lado, aquando da junção do requerimento (08.01.2024) ainda não estava esclarecido no processo se estava em falta a notificação, posto que apenas em 09.01.2024 foi informado pela Secção quepor lapso, do qual desde já me penitencio, o despacho datado de 28/11/2023, com a ref.ª Citius 25586995, não foi notificado à requerente, apenas tendo sido dado cumprimento ao último parágrafo do mesmo, abrindo vista ao Ministério Público. Assim, requeiro a V.ª Ex.ª que me seja relevada a falta.”.
Nesta sequência, o requerimento não pode ser apodado de supérfluo ou desnecessário, posto que, através do mesmo, a Recorrente pretendeu acautelar os seus direitos processuais.
Não sendo o teor requerimento descabido, temos de concluir não se mostrarem verificados os pressupostos de responsabilidade – nem na vertente da causalidade, nem na do proveito processual – em que assenta qualquer condenação em custas processuais.

Termos em que julga procedente este recurso.
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II.3.2. Recurso 2:
- Saber se após o trânsito do acórdão condenatório, no qual se declarou perdido a favor do Estado o valor do património incongruente do arguido (nos termos previstos no art.º 12º, da Lei 5/2002 de 11/1) e se considerou o veículo automóvel matrícula ..-LO-.. contabilizado nesse valor, é admitido à Recorrente, na qualidade de proprietária formal e/ou possuidora, o levantamento do arresto, mediante o pagamento do seu atual valor comercial.
A Recorrente insurge-se contra o despacho recorrido, que lhe negou o direito ao levantamento do arresto (previsto na Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, referente às Medidas de Combate à Criminalidade Organizada – LCCO de ora em diante) do veículo com a matrícula ..-LO-.., mediante o pagamento do seu atual valor comercial.
Estriba esta sua pretensão nos artigos 13.º, n.º 1, al. b), e 12º, n.º 4, da Lei 45/2011, de 24 de Junho (Lei do Gabinete de Recuperação de Ativos – LGRA de ora em diante) e no seu direito de propriedade, que considera terem sido violados.
Sustenta-se nos seguintes argumentos recursivos:
- O despacho recorrido violou o seu direito de propriedade sobre o veículo, tanto mais que o arresto deveria ter recaído apenas sobre a meação do veículo pertença do arguido;
- Nunca foi notificada nos termos previstos no art.º 13.º, n.º 1, al. b), da LGRA;
- Foi violado o disposto no art.º 12.º, n.º 4, da LGRA, porque não lhe foi permitido o exercício do direito aí conferido ao proprietário e/ou legítimo possuidor;
- Com o pagamento do valor do veículo que se propõe a realizar e o levantamento do arresto, as pretensões do Estado em nada ficam prejudicadas, dado que o Estado fica em seu poder com o valor correspondente ao objeto arrestado;
- Foram violados os artigos 8.º, n.ºs 1 e 2, e 62.º, ambos da CRP, 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 1º do protocolo adicional anexo à CEDH.
Vejamos.
A Recorrente é interveniente acidental, por ser terceira (formal), em virtude de o veículo automóvel de que é formalmente titular ter sido considerado “património do arguido”, para os efeitos do art.º 7.º, da LCCO, e, nessa qualidade, ter sido alvo de uma medida de garantia patrimonial - arresto específico para garantia do pagamento do valor incongruente, previsto nos art.ºs 10.º e ss da LCCO -.
Este arresto específico traduz-se numa medida provisoriamente restritiva do ius utendi, fruendi et abutendi inerente, no caso, ao direito de propriedade, apesar de não afetar o direito real em si mesmo.
A impossibilidade, ainda que provisória, de utilizar e dispor juridicamente e de facto de certo bem tem, previsivelmente, danos associados (mais ou menos extensos, consoante cada caso), em razão do que a mesma deve ser reduzida ao justo ponto, embora sem fazer perigar outros interesses perseguidos pelo Estado, como sejam a necessidade de impedir a manutenção e a consolidação de ganhos decorrentes da prática de ilícitos e a promoção do bem comunitário comum.
A procura desse equilíbrio entre estes interesses públicos da aplicação do direito criminal e os direitos dos arguidos e de terceiros que possam ser atingidos com as normas impositivas de restrições de direitos, liberdades e garantias constitui, não raras vezes, a principal dificuldade do direito penal e processual penal.
A modelação processual da defesa desses direitos passa pela previsão de mecanismos que garantam, pelo menos, um conjunto mínimo de direitos processuais de defesa, entre os quais ter-se-ão de contar os de audição, representação por mandatário, apresentação da sua versão e de produzir prova, contradizer e controlar a demais prova apresentada sobre a mesma matéria, prestar declarações e alegar em audiência de julgamento, direito de oposição/recurso de decisões desfavoráveis.
Essa modelação pressupõe a previsão legal dos modos de exercício desses direitos, o que supõe, na outra face da moeda, a existência de regras objetivas para o exercício de cada direito (pressupostos, prazos, ritualismo processual).
Os terceiros (mesmo quando só formais) cujo património por si titulado, ainda que só formalmente, é atingido numa dessas providências cautelares de garantia patrimonial não podem deixar de ser admitidos a defender os seus direitos ou a situação jurídica relativamente a esse património.
Na verdade, o princípio conformador de todo o processo penal é o do processo equitativo, com o significado de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), garantido nos artigos 20.º e 32.º, da CRP, “mas também na CEDH e na interpretação que tem vindo a ser sufragada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, chamado a pronunciar-se acerca de alegadas violações do art. 6º (direito a um processo equitativo) e do art. 1º do Protocolo nº 1, relativo à proteção da propriedade privada;” “o Tribunal de Estrasburgo considera que inexiste violação da Convenção se for garantido o direito efetivo a desafiar a decisão que aplica a medida no âmbito do processo criminal” “Cfr. os casos Filkin v. Portugal, nº 69729/12, §§84-92, 03/03/2020, e G.I.E.M. S.R.L. e outros v. Italy, [GC], nºs 1828/06 e outros dois, §302, 28/06/2018, jurisprudência acessível em https://hudoc.echr (Ac. do TRL, processo 244/11.0TELSB-S.L1, datado de 14.12.2023, disponível em dgsi.pt).
É este princípio que, em última linha, legitima a confiança e a conformação dos interessados nas decisões judiciais.
É, por isso, impensável, não garantir a esses terceiros o tal conjunto mínimo de direitos processuais de defesa acima elencados.
Por seu turno, no uso desses seus direitos processuais de defesa, os sujeitos processuais ficam adstritos ao cumprimento das referidas regras objetivas de exercício desses direitos (aos ditos pressupostos, prazos e ritualismos processuais) e ao cumprimento dos seus deveres processuais com lealdade.
Só assim se logrando realizar a justiça e a obtenção de uma decisão justa.

Dito isto, têm proliferado pedidos de levantamento de arrestos de bens titulados formalmente por terceiros (na sua aceção formal, por não serem arguidos, nem suspeitos) por simples requerimento dirigido ao apenso do arresto, já após se mostrarem esgotados os meios de oposição à decisão do arresto.
Nestes requerimentos é comum questionar-se a integração dos bens no património arrestado para garantia do pagamento do valor do património incongruente e a invocação da violação do direito de propriedade.
O caso que nos ocupa é, precisamente, uma dessas situações.
Detalhando.
Conquanto os referidos direitos processuais destes terceiros se encontrem legalmente previstos de modo disperso e, por vezes, por via de remissões (até duplas e triplas), a verdade é que é possível perscrutar, na essência, a sua consagração.
 Concretamente, perante uma providência de arresto em vista da garantia do pagamento do valor do património incongruente, o terceiro titular de bem arrestado (sem audiência prévia, nos termos do art.º 393.º, n.º 1, do CPC), para além da invocação de eventuais invalidades, tem, por força das remissões sucessivas do artigo 10.º, n.º 4, da LCCO, para o art.º 228.º, n.º 1, do CPP, e deste para o CPC, os seguintes meios de defesa:
- O recurso do despacho que decretou o arresto do bem – no prazo 30 dias – (artigos 399.º, n.º 1, e 411.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP);
- A dedução de oposição – no prazo 10 dias – (artigos 372.º, n.º 1, al. b), do CPC, “ex vi” dos artigos 4.º e 228.º, n.º 1, do CPP); e
- Segundo alguns autores, ainda o direito de embargar de terceiro - no prazo de 30 dias após a decisão ou o conhecimento o arresto - (art.º 342.º e ss, do CPC, “ex vi” dos artigos 4º e 228.º, n.º 1, do CPP), sobretudo quando os terceiros se encontrem na situação prevista no artigo 7º, n.º 2, al. c), da LCCO (neste sentido, vide, por exemplo, João Cura Mariano, em “Estudos Projeto ETHOS – Corrupção e Criminalidade Económico-Financeira”, “Bens de terceiros no Regime da perda alargada”, a fls. 366).
Na dita outra face da moeda, caso o terceiro não use nenhum dos meios de defesa contra a decisão que decretou o arresto de bens de que é titular formal, ou, tendo-os usado, não tenha obtido procedência nas suas pretensões, a não ser que sobrevenham factos supervenientes que possam justificar uma alteração (revogação, redução) do decidido, a decisão que decretou o arresto não pode ser reapreciada, ficando o interessado impedido de suscitar e/ou renovar as pretensões que podia ter esgrimido nesses meios de oposição.
Ora, a Recorrente assenta parte da sua argumentação recursiva em questões que deveria ter suscitado através dos meios de oposição ao arresto, nomeadamente quando questiona a violação do seu direito de propriedade pela providência decretada, por ter abrangido a sua meação no bem comum.
Não o tendo feito, não pode, por simples requerimento, nesta fase do processo, suscitar, inter alia, esta problemática e pretender o levantamento do arresto com estes argumentos.

Por outro lado - e ainda mais relevante - o arresto, enquanto providência provisória e precária que é, constitui sempre uma antecipação de uma declaração definitiva da existência (ou não) do direito, o que ocorre numa decisão final de mérito, transitada em julgado.
No caso em apreço, por acórdão, considerado transitado em julgado, foi declarado perdido a favor do Estado o valor do património incongruente, foi declarado que o veículo em causa foi tido em conta nesse valor e foi mantido o seu arresto até que os arguidos visados paguem voluntariamente o valor da incongruência, mantendo-se eventualmente para além da decisão final nos termos do art. 12º, nº 4 da Lei, 5/2002 de 11/1.
No âmbito da audiência de julgamento que precedeu a prolação dessa decisão final de mérito a Recorrente, por força dos direitos processuais consagrados no art.º 347.º-A, do CPP, teve a oportunidade, de novo, de exercer a defesa dos seus direitos relativamente ao veículo.
Sem embargo, a decisão de mérito declarou, em definitivo, a perda do valor do património incongruente, a que corresponde um direito de crédito do Estado no valor correspondente, a ser liquidado através da declaração de perda dos bens arrestados - arresto que decidiu manter -, a menos que o arguido proceda ao pagamento voluntário de tal montante.
A Recorrente teve, ainda, a oportunidade de recorrer do acórdão condenatório, na parte em que decidiu contra as suas pretensões.
Tendo essa decisão transitado em julgado, o caso julgado impede a Recorrente de questionar a integração do veículo no valor da incongruência, no património que garante o pagamento do valor declarado perdido a favor do Estado e a subsistência do arresto do veículo nos termos decididos.

A Recorrente socorre-se, ainda, dos artigos 13.º, n.º 1, e 12.º, n.º 4, da LGRA para, nesta fase processual, evitar a perda definitiva do veículo a favor do Estado.
Vejamos se, por esta via, pode alcançar o seu desiderato.
Em relação à criminalidade cujo escopo é o lucro, este móbil só pode ser combatido com contramedidas económicas equivalentes, de modo a restituir o condenado ao status patrimonial anterior à prática dos crimes, através da declaração de perda a favor do Estado das vantagens económicas - comprovadas ou presumidas (caso da perda alargada) - decorrentes da prática dos crimes.
Ciente da necessidade de intensificar o confisco e das exigências práticas de investigar, recuperar, gerir e liquidar esses ativos, o legislador, através da Lei 45/2011, de 24 de Junho (LGRA), criou dois organismos especializados em vista da recuperação de ativos (Gabinete de Recuperação de ativos – GRA) e da conservação e administração dos bens apreendidos (Gabinete de Administração de Bens  - GAB).
Compete ao GRA identificar, localizar e apreender os bens ou produtos relacionados com os crimes (art.º 3.º, n.º 1, da LGRA).
Compete ao GAB, dentro das suas competências de administração dos bens que se encontram à custódia do Estado, entre o mais, proteger, conservar e gerir esses ativos, determinar a sua venda e/ou afetação a finalidades públicas ou socialmente úteis; e, dentro das suas competências de avaliação, proceder ao exame, descrição e avaliação dos bens à sua guarda, para efeitos da sua administração e fixação do valor de eventual indemnização (art.ºs 10.º, n.ºs. 1, 3 e 5, e 12.º, n.º 1, da LGRA).
Quando o bem é entregue à administração do GAB e este procede à sua avaliação, preceitua o art.º 12.º, n.º 4, da LGRA, que “o proprietário ou legítimo possuidor de um bem que não constitua meio de prova relevante pode requerer à autoridade judiciária competente a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação à ordem do IGFEJ, I. P”.
Previamente à venda, afetação ou destruição de um bem, antes de decisão transitada em julgado, o GAB notifica o proprietário ou legítimo possuidor para, no prazo de 10 dias a contar da notificação, exercer, querendo, a faculdade de entrega do bem, contra o depósito do valor da avaliação, à ordem do IGFEJ, IP (art.º 13.º, n.º 1, al. b, da LGRA).

A Recorrente sustenta que deveria ter sido notificada nos termos do artigo 13.º, n.º 1, da LGRA.
Sem razão.
Decorre literalmente do dispositivo legal que tal notificação apenas se impõe quando o GAB, dentro dos seus poderes/deveres de administração dos bens à sua guarda, se propõe vender, afetar ou destruir o bem, antes de o mesmo ter sido, de forma definitiva, declarado perdido a favor do Estado.
Na situação em apreço o veículo nunca esteve à guarda efetiva do Estado e/ou do GAB.
Nesta medida, o GAB não tinha legitimidade ou competência para proceder à sua administração e, dentro desta, à sua venda ou afetação pública ou socialmente útil.
A ser assim, não se verificam os pressupostos legais inerentes ao dever de proceder à referida notificação.

A Recorrente entende que o art.º 12.º, n.º 4, da LGRA, lhe confere o direito de ver levantado o arresto, mediante o depósito do valor da avaliação do veículo.
Também sem razão.
A faculdade concedida por este preceito legal aos proprietários e/ou possuidores pressupõe que a coisa esteja sob administração do GAB e que haja sido avaliada por tal organismo.
Na situação em apreço o veículo não está, nem nunca esteve, sob administração do GAB e, consequentemente, este não realizou nenhuma avaliação do bem.
A ser assim, não se verificam os pressupostos legais do exercício da faculdade concedida ao proprietário/possuidor de obter a entrega do bem sujeito à administração do GAB, mediante o depósito do seu valor, fixado através de avaliação antes feita pelo mesmo organismo.

Por outro lado, cumpre salientar que a faculdade de obtenção da entrega do bem mediante depósito do seu valor, prevista no citado art.º 12.º, n.º 4, da LGRA, não se confunde com a prestação de caução substitutiva do arresto (prevista nos art.ºs 368.º, n.º 3, “ex vi” do art.º 376.º, n.º 1, ambos do CPC, e artigo 11.º, n.º 1, da LCCO), apesar de os efeitos práticos serem semelhantes.
De resto, mesmo a entender-se que o terceiro deva ser admitido a prestar caução substitutiva do arresto em montante restrito ao valor comercial do bem por si titulado e “atacado” pela providência do arresto (neste sentido, vide, por exemplo, João Cura Mariano, em op. cit. pp 365; mas contra Hélio Rigor Rodrigues, em “Gabinete de Recuperação de Ativos – O Que É, Para Que Serve E Como Atua”, em “Revista do CEJ, I, 2013: 66-87”, pp 84, onde considera que, nos casos de aplicação da perda alargada, será sempre de exigir a entrega da totalidade do valor do património incongruente), a verdade é que a Recorrente nunca se ofereceu para prestar tal caução substitutiva.
Derradeiramente, ainda que se interprete a pretensão da Recorrente como uma oferta espontânea de caução substitutiva (apesar de a mesma não parecer seguir por este caminho), sempre se dirá que essa pretensão teria de ser deduzida pelo meio processual apropriado, a saber: o incidente da caução espontânea previsto do CPC – artigos 913.º e 915.º– (neste sentido Cura Mariano, op. cit., pp 365, e ainda Sofia dos Reis Rodrigues, in “O Novo Regime de Recuperação De Ativos À Luz da Diretiva 2014/52/EU E Da Lei Que A Transpôs”, 2018, Imprensa Nacional, no artigo intitulado “Dos Meios de Impugnação das Garantias Processuais Penais do Confisco”, pp 279), com cumprimento das exigências processuais aí mencionadas, e não por simples requerimento avulso.

Uma última nota, referente à invocada violação dos artigos 8º, n.ºs 1 e 2, 62.º, ambos da CRP, 17º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 1º do protocolo adicional anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que dispõem:
- Artigo 8.º da CRP (direito internacional):
1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
- Artigo 62.º da CRP (direito de propriedade privada):
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
- Artigo 17º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem:
1. Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.
- Protocolo adicional à Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, artigo 1° (proteção da propriedade):
o Qualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens.
o Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.
o As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.
Estes instrumentos legais internacionais vigoram diretamente na ordem jurídica portuguesa, como decorre do transcrito artigo 8.º, da CRP, situando-se em patamar infraconstitucional, mas supra legislação ordinária.
No respeitante especificamente à Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 16.º, n.º 2, da CRP, impõe a interpretação e integração dos preceitos legais relativos aos direitos fundamentais, nomeadamente os constitucionais, à luz desse instrumento legal internacional.
As decisões do Tribunal Constitucional têm, portanto, de atender a tais instrumentos, em particular à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Ora, levando em conta esses princípios, o Tribunal constitucional já teve a oportunidade de se pronunciar sobre a conformidade constitucional das restrições ao direito de propriedade impostas pelo regime da perda alargada.
Vide, por exemplo, o Ac. do TC 34/2024, disponível em tribunalconstitucional.pt, onde se concluiu que a compressão ao direito de propriedade decorrente da perda alargada não é desproporcionada, nem violadora dos artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da Constituição, conjugados entre si,  por duas ordens de razões:
- Primeiro porque “o património confiscado não pode em rigor considerar-se como sendo propriedade do sujeito visado, uma vez que resulta de atividade ilícita”;
- Segundo, e numa outra perspetiva, “mesmo que por princípio se rejeite a ideia de que o direito de propriedade tem limites imanentes, dúvidas não haverá de que é possível restringi-lo para confiscar vantagens indevidas”.
No mesmo sentido, fundando-se em idênticos argumentos, vide João Conde Correia, em “Da proibição do Confisco À Perda Alargada”, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Junho de 2012, pp. 120, onde se lê que “a perda alargada (conforme já foi reconhecido quer pelo TEDH, quer pelo BVerfG para mecanismos homólogos) também não viola o direito fundamental de propriedade privada (…)”. Aponta no sentido de que “o crime nunca é título legítimo de aquisição”, pelo que, só na aparência se poderá falar de direito de propriedade. Por outro lado, o direito de propriedade não é intransigente, absoluto ou intocável.
Seguindo de perto Hélio Rigor Rodrigues, o TEDH tem afirmado que a norma ínsita no artigo 1º do protocolo adicional à CEDH deve ser compreendida através da invocação de três regras distintas: o reconhecimento do direito de propriedade, a possibilidade de privação da liberdade e o reconhecimento de os Estados poderem regulamentar o uso dos bens em conformidade com o interesse geral (in “O Novo Regime de Recuperação de Ativos à Luz da Diretiva 2014/52/EU e da Lei Que a Transpôs”, 2018, Imprensa Nacional, no seu escrito “O Confisco das Vantagens do Crime: Entre os Direitos dos Homens e os Deveres dos Estados a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Matéria de Confisco”, pp 39 e segs.).
A CEDH admite expressamente a restrição do direito à proteção da propriedade, dentro dos limites previstos na lei e na medida em que tal seja necessário no âmbito de um Estado de Direito, desde que tal limitação respeite o princípio da proporcionalidade.
No contexto do confisco das vantagens do crime, essa limitação está naturalmente justificada, como se afirma em diversos arestos do TEDH, como por exemplo no Ac. Lavrechov vs. Czech Republic, Abril 2010, onde se refere que “a tramitação própria do processo penal, e no geral o combate e prevenção do crime, preenche indubitavelmente o interesse público previsto no artigo 1.º do protocolo n.º 1”.
Nesta conformidade, carece razão à Recorrente também neste segmento.

Termos em que se julga improcedente o recurso 2.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Recurso 1
Julgar procedente o recurso interposto por AA, revogando-se o despacho recorrido no segmento em que tributa o incidente em custas processuais a cargo da ora Recorrente.
- Recurso 2:
Julgar improcedente o recurso interposto por AA.
Sem custas na parte referente ao recurso 1 (art.º 521º, n.º 2, “a contrario”, do CPP).
Custas pela Recorrente na parte relativa ao recurso 2, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s (art.º 521º, n.º 2, do CPP).
Notifique e D.N.