Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
349/25.0T9VCT.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
MODIFICAÇÃO DO HORÁRIO DE TRABALHO INDIVIDUALMENTE ACORDADO
FORMA DE CONSENTIMENTO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I. o recurso de contra-ordenação cinge-se à matéria de direito, sem prejuízo de o tribunal da Relação conhecer da matéria dada como provada nas condições descritas na al. a), do art. 431º CPP, ou seja, se do processo constarem todos os elementos de prova que servem de base à modificação.
II. Não se verifica a prática da contra-ordenação de alteração não consentida de horário de trabalho individualmente acordado (217º, 4, CT) se não consta dos factos provados a não aceitação do trabalhador da passagem de regime rotativa para fixo, e se a máquina em que este trabalhava em regime de turnos foi automatizada ocorrendo alteração de circunstâncias (437º CC) que motivaram a estipulação do regime por turnos.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

“EMP01..., S.A” interpôs recurso da decisão (art. 39º RGCLSS[1]) que apreciou a impugnação judicial da decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e a julgou parcialmente procedente, condenando a arguida “pela prática da contra-ordenação grave, p. e p. pelo art. 217º, n.º 4 CT (alteração  unilateral do horário de trabalho), na coima de €2.845,00 (sendo solidariamente responsável pelo pagamento da coima o administrador AA) e ao pagamento da importância de €182,45 ao trabalhador BB e €71,24, à Segurança Social.

A ARGUIDA APRESENTA A SEGUINTE MOTIVAÇÃO DE RECURSO - súmula em razão da desnecessariamente extensa alegação:

Entende que deve ser absolvida.
A prova (testemunhal e documental) impunha decisão diversa, discordando da valoração feita pelo tribunal a quo.
Não se descortina o fio condutor e lógico determinante da convicção do tribunal quanto aos factos apurados.
A sentença recorrida decidiu que a recorrente alterou unilateralmente o horário de trabalho do trabalhador BB, violando o art.º 217º, 4 do CT, o que não corresponde à verdade. Para isso, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no facto de o trabalhador ter anuído na alteração do regime do horário de trabalho apenas enquanto se mantivesse parada a produção da máquina do seu posto de trabalho (julho 2022) e unicamente durante esse hiato temporal.
A EMP02... empresa do grupo onde o trabalhador foi colocado não laborava de modo contínuo e em turnos rotativos.
 Ficou provado que a recorrente alterou o horário de trabalho do trabalhador BB a seu pedido tendo sido, portanto, o trabalhador quem solicitou trabalhar em turnos rotativos e laboração contínua, regime propositadamente implementando na EMP02..., porquanto ali não se praticava este regime.  Posteriormente, por se encontrar sozinho aos fins de semana e feriados, solicitou à recorrente retornar ao horário normal.
 E foi esta solicitação do trabalhador BB que despoletou na recorrente a necessidade de alterar os horários para regime fixo.
O Tribunal a quo fez considerações sobre factos que nem sequer constam destes autos: afinal de que prova resulta que o trabalhador não anuiu na alteração do horário e que solicitou por diversas vezes a presença da ACT?
Como o equipamento pulper deixou de ser manual passando a automático todos os trabalhadores que compunham as equipas de trabalho que com aquela máquina laboravam não se poderiam manter naquele posto de trabalho.
Aliás, aquando das paragens da máquina de papel, o trabalhador BB assim como outros trabalhadores eram transferidos para prestar funções noutras empresas do grupo, incluindo a EMP02... SA.
Deixando de existir aquele trabalho, a gestão dos meios é feita num pressuposto empresarial de contenção de custos e distribuição de recursos, por forma a que a mão de obra não seja dispensada.
A decisão de redistribuição dos trabalhadores que laboravam por turnos naquele equipamento não foi dirigida apenas ao trabalhador CC, pois, não se tratou de uma mudança individual de horário e simples alocação a outro equipamento, mas sim a supressão de todos os turnos e equipas de trabalho que laboravam com o equipamento pulper.
Havendo uma especifica atividade da recorrente que foi mecanizada, sem necessidade de recursos humanos, é atendível que os recursos humanos para aí destacados tenham sido realocados para outros setores.
A eliminação dos turnos no equipamento do pulper e a restrição dessa laboração não era sequer compatível com a necessidade de consentimento (individual) do art.º 217º, 4 do CT.
A posição defendida na sentença levaria à situação esdrúxula e absurda de a empresa nunca poder eliminar a laboração por turnos, fosse por automação de equipamentos, como é o caso, fosse por outras razões.
A entidade administrativa fundamentou do mesmo modo a aplicação da coima de 1.500,00€ na fase de pagamento voluntário e a aplicada na decisão final de 3.000,00€, sem justificar o agravamento e sem lhe ser dada oportunidade de se pronunciar.
*
RESPOSTA EM 1ª INSTÂNCIA (413º, 1, CPP) - O Ministério Público sustenta que deve ser mantida a decisão recorrida.

PARECER - O Ministério Público junto deste tribunal de recurso sustenta a manutenção da decisão recorrida, corroborando a posição da 1ª instância e frisando que nas contra-ordenações laborais não é admissível recurso da matéria de facto e que não se verifica qualquer vício previsto no art. 410º, 2, CPP.
A recorrente não respondeu (417º, 2, CPP).
O recurso foi apreciado em conferência (art. 419º, CPP).
Objecto do recurso:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente[2], as questão a decidir são:  admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto e a verificação, ou não, da prática pela arguida da infração em que foi condenada.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

B) FACTOS

FACTOS PROVADOS:
1. A arguida EMP01..., S.A., é uma pessoa coletiva com o NIPC ...64.
2. Tem sede na Avenida ..., ... ... e local de trabalho na Zona Industrial ..., 2ª fase, ....
3. Tem como actividade principal de fabricação de papel e cartão, exceto canelado (CAE 17120).
4. O trabalhador BB encontra-se vinculado à empresa “EMP01..., S.A.”, com a categoria profissional de operador de transformação, admitido pela infratora em Janeiro de 2018, nos termos do contrato junto em anexo ao auto de notícia como doc. nº 7 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. Desde o dia 15 de Julho de 2022, por determinação da empregadora, o referido trabalhador presta serviço nas instalações da “EMP02..., S.A.”, na Zona Industrial ..., 2ª fase.
6. O trabalhador remeteu aos Recursos Humanos da arguida o email de 14/07/2022 do seguinte teor: “Bom dia,
É com surpresa que recebo esta informação.
Mas venho assim por este meio comunicar que aceito a minha transferência temporária para a EMP02... na condição de quando, a máquina da EMP01... arrancar a sua produção eu volte à minha actividade normal como operador de puper em turnos rotativos, actividade que exercia anteriormente. (…)”
7. De setembro de 2023 a fevereiro de 2024 o trabalhador cumpriu um horário em regime de turnos rotativos, tendo-lhe sido pago o subsídio de turno.
8. Através de email de 22/01/2024, remetido pelos recursos humanos da arguida, foi comunicado ao trabalhador o seguinte: “Boa tarde AA, a partir de 29 de fevereiro de 2024 os serviços que prestas na EMP02... deixarão de ser necessários num regime por turnos rotativos. Assim, a partir de 01 de março de 2024 voltarás ao horário normal, das 09:00H-13:00H e das 14:00H às 18:00H, mantendo as funções no desperdício da EMP02.... Esta mudança deve-se a questões de inadiável necessidade de organização do trabalho e reajuste no planeamento para, por um lado, incrementar eficiência nos recursos, e por outro, permitir uma maior comodidade e segurança. Cumprimentos.” – cfr. documento nº 3 junto com a impugnação.
9. No dia 08/04/2024, a directora do departamento de recursos humanos da empresa, DD, e ainda o administrador, AA, confirmaram que o dito trabalhador cumpria um horário normal fixo.
10. O trabalhador BB não recebeu o valor do subsídio de turno, correspondente a 25% de retribuição base, no mês de março de 2024.
11. A EMP01... faz parte do grupo económico da EMP02..., S.A..
12. Entre estas empresas foi outorgado o contrato denominado “Contrato de Prestação de Serviços e Recursos em Regime de Parceria”, datado de 16/12/2022, junto como documento nº 2 da impugnação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
13. As instalações da EMP02... distam cerca de 500 metros das da EMP01....
14. Na EMP02... não existem turnos de laboração contínua pelo que não labora em turnos rotativos.
15. O trabalhador iniciou a prestação do seu trabalho na EMP02... a 14 de Julho de 2022, em horário normal.
16. Posteriormente o trabalhador prestou trabalho na EMP02... em turnos rotativos, a seu pedido.
17. A ré remeteu ao trabalhador o email de 08/02/2024, junto como documento nº 4 junto com a impugnação cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
18. Em Março de 2024 o trabalhador começou a executar o horário das 9:00H às 18:00H de segunda a sexta-feira.
19. A máquina pulper onde o trabalhador prestava trabalho foi automatizada.
20. A arguida, na sequência de fiscalização operada pela ACT em 12-01-2023, foi condenada em coima pela alegada violação do art. 217º, 4, CT, por  alteração do horário de trabalho rotativo para fixo no posto de trabalho situado na empresa EMP02... relativamente ao mesmo trabalhador,  decisão administrativa que foi judicialmente impugnada,  tendo a arguida sido absolvida da prática da infracção, proc. 2061/23.3T8VCT,  TJ de Viana do Castelo, J-2, por sentença proferida em 21-12-2023, que não foi alvo de recurso, e que se considera reproduzida - aditado (ver infra).

Fatos não provados:
a) O trabalhador apresentou queixas por trabalhar em turnos rotativos aos fins de semana e feriados, designadamente por fazer turnos sozinho ainda que o seu trabalho se cingisse, nos exactos termos, ao que prestava noutros dias, sem necessidade de colegas de trabalho.
b) Nesse seguimento, tomando em consideração as queixas do trabalhador e em conjugação com a desnecessidade do regime de turnos, o trabalhador voltou ao regime normal de trabalho.
c) A arguida procedeu à supressão do turno rotativo por questões de segurança que o próprio trabalhador apontou.
d) Em consequência do supra referido em 19., deixou de existir trabalho na EMP01... para o trabalhador.
                  
C) ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Conforme discriminado no relatório do acórdão, a arguida foi condenada pela prática da contra-ordenação resultante da alteração unilateral do horário de trabalho individualmente acordado  (passando do regime por turnos rotativos para fixo) - 217º, 4, CT.
A recorrente, embora afirma que recorre sobre o Direito, impugna a matéria de facto, questionando porque foram fixados determinados factos e não outros, fazendo considerações sobre a convicção/motivação do tribunal, mormente no que respeita ao consentimento do trabalhador na alteração do horário de trabalho.
Porém, o regime do recurso em matéria contra-ordenacional, incluindo na área laboral, cinge-se à matéria de direito, excluindo a de facto - 51º, 1, RPCOLSS[3] (regime processual aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social). Portanto, está vedado à Relação apreciar de modo diverso a prova e, por via disso, fixar diferentemente os factos da causa.
A limitação de recurso sobre a matéria de facto prende-se com duas ordens de razões.
Por um lado, os tribunais de trabalho (bem como os demais) em matéria contraordenacional não funcionam como uma primeira instância, mas antes como um tribunal de recurso das decisões proferidas pelas autoridades administrativa (por “impugnação judicial”) – 32º e 33º RPCOLSS, 55º e 59º RGCO[4]. Não sendo, sequer, gravada a produção de prova oral. Por sua vez, o tribunal da Relação funciona como uma instância de revista julgando em definitivo, sendo, assim, mais restritiva a admissibilidade de recurso, diferentemente com o que acontece no recurso penal ou civil (veja-se o paralelismo com os poderes do STJ e as suas limitações no artigo 674º, 3, CPC).
Por outro lado, as restrições impostas à admissibilidade dos recursos nas contra-ordenações encontram também explicação na diferente natureza dos ilícitos de mera ordenação social, onde apenas está em causa a aplicação de sanções de natureza económica decorrentes de um juízo de censura social e administrativa por violação de um dever legal. Ao invés do que acontece no direito penal onde, por força da natureza ética e da gravidade das sanções impostas, preponderam princípios constitucionais de defesa dos arguidos, sendo a possibilidade de recurso mais ampla.
Termos em que não se admite o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto.
Sem prejuízo do supra dito, ao abrigo dos art.s 431º, a), CPP e 50º, 4, RPACOLSS, por constar do processo (fase administrativa[5]) cópia da sentença proferida nos proc. 2061/23.3T8VCT, determina-se o aditamento do ponto 20 com a seguinte redacção:
20 - A arguida, na sequência de fiscalização operada pela ACT em 12-01-2023, foi condenada em coima pela alegada violação do art. 217º, 4, CT, por  alteração do horário de trabalho rotativo para fixo no posto de trabalho situado na empresa EMP02... relativamente ao mesmo trabalhador,  decisão administrativa que foi judicialmente impugnada,  tendo a arguida sido absolvida da prática da infracção, proc. 2061/23.3T8VCT,  TJ de Viana do Castelo, J-2, por sentença proferida em 21-12-2023, que não foi alvo de recurso, e que se considera reproduzida.
***
A recorrente, além de afirmar que a prova deveria ter sido apreciada de modo diferente (segmento do recurso não admitido), refere ainda que “a motivação aduzida não permite percecionar, e nessa medida controlar, da razoabilidade da convicção sobre o julgamento de tal matéria, não contendo substancialmente a apreciação crítica das provas produzidas de per si e em confronto umas com as outras”.
Da afirmação não retira a recorrente consequências, quer dizer não dá o passo seguinte de invocar vícios da decisão (410º, 2, CPC). E se não o faz, não há que deles conhecer, pese embora sempre se diga que não se vislumbra a sua existência. Entre as anomalias da decisão contam-se o erro notório na apreciação da prova, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão. Contudo, tais vícios terão de resultar evidentes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a outros elementos, designadamente depoimentos de testemunhas ou documentos - 410º, 2, CPP, ex vi 41º, 1, RGCO, ex vi 60º do RPACLSS. A leitura da decisão permite concluir que a senhora juiz considerou que inexiste consentimento do trabalhador na modificação do horário de trabalho de turno rotativo para turno fixo (anteriormente contratualizado), dado que a concordância escrita (email de 14-7-22) apenas se reportava ao período em que a máquina pulper se encontrasse avariada. Independentemente de concordarmos ou não com esta fundamentação jurídica, julgamos que da decisão recorrida não resulta manifesto a existência de vícios, nos quais não nos alongamos porque não é esse o cerne do recurso.
***
Recurso de direito quanto ao preenchimento dos elementos típicos da infração em causa de alteração unilateral do horário de trabalho, assim tipificada:
”4- Não pode ser unilateralmente alterado o horário individualmente acordado”.
...6 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto neste artigo”.-  217º, CT.”
A norma veda a que o horário previamente acordado com o trabalhador seja alterado sem o consentimento deste.
A norma conexiona-se a outras que têm se ser tidas em conta, como aquelas que referem que “Compete ao empregador determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei, designadamente do regime de período de funcionamento aplicável” e que ““À alteração de horário de trabalho é aplicável o disposto sobre a sua elaboração, com as especificidades constantes dos números seguintes…” - respectivamente 212º, 1, 217º, 1, CT.
O horário de trabalho fixa os períodos temporais em que o trabalhador tem de estar disponível para o trabalho. Para o empregador é um importante instrumento de gestão do trabalho que lhe permite optimizar a organização empresarial ao abrigo do poder de direcção. Para o trabalhador representa a possibilidade de prever e organizar o seu tempo livre, em outras actividades, mormente de lazer e convívio familiar e social. Os dois objectivos, dentro do possível, devem conviver.
Não sofre dúvida que o horário de trabalho engloba, não só as horas de início e termo dos períodos normais de trabalho, mas também o regime de turnos.
Art. 215º CT (1-O empregador elabora o mapa de horário de trabalho tendo em conta as disposições legais e o instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável, do qual devem constar:...3. Sempre que o horário de trabalho inclua turnos, o mapa deve ainda indicar o número de turnos e aqueles em que haja menores, bem como a escala de rotação, se existir.)
*
Ordenemos agora de uma forma cronológica os factos provados mais relevantes de modo a obter melhor leitura. São os seguintes:
4.O trabalhador BB encontra-se vinculado à empresa “EMP01..., S.A.”, com a categoria profissional de operador de transformação, admitido pela infratora em Janeiro de 2018.
11. A EMP01... faz parte do grupo económico da EMP02..., S.A..
5. Desde o dia 15 de Julho de 2022, por determinação da empregadora, o referido trabalhador presta serviço nas instalações da “EMP02..., S.A.”, na Zona Industrial ..., 2ª fase.
6. O trabalhador remeteu aos Recursos Humanos da arguida o email de 14/07/2022 do seguinte teor:
Bom dia,  É com surpresa que recebo esta informação. Mas venho assim por este meio comunicar que aceito a minha transferência temporária para a EMP02... na condição de quando, a máquina da EMP01... arrancar a sua produção eu volte à minha actividade normal como operador de puper em turnos rotativos, actividade que exercia anteriormente. (…)”
13. As instalações da EMP02... distam cerca de 500 metros das da EMP01....
14 Na EMP02... não existem turnos de laboração contínua pelo que não labora em turnos rotativos.
15. O trabalhador iniciou a prestação do seu trabalho na EMP02... a 14 de Julho de 2022, em horário normal.
16. Posteriormente o trabalhador prestou trabalho na EMP02... em turnos rotativos, a seu pedido.
7. De setembro de 2023 a fevereiro de 2024 o trabalhador cumpriu um horário em regime de turnos rotativos, tendo-lhe sido pago o subsídio de turno.
8. Através de email de 22/01/2024, remetido pelos recursos humanos da arguida, foi comunicado ao trabalhador o seguinte: “Boa tarde AA, a partir de 29 de fevereiro de 2024 os serviços que prestas na EMP02... deixarão de ser necessários num regime por turnos rotativos. Assim, a partir de 01 de março de 2024 voltarás ao horário normal, das 09:00H-13:00H e das 14:00H às 18:00H, mantendo as funções no desperdício da EMP02.... Esta mudança deve-se a questões de inadiável necessidade de organização do trabalho e reajuste no planeamento para, por um lado, incrementar eficiência nos recursos, e por outro, permitir uma maior comodidade e segurança. Cumprimentos.” – cfr. documento nº 3 junto com a impugnação.

17. A ré remeteu ao trabalhador o email de 08/02/2024, junto como documento nº 4 junto com a impugnação cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
( transcreve-se o conteúdo para efeitos da presente análise:  “Boa tarde AA,
A EMP02... nunca trabalhou num sistema de turnos rotativos. Foi uma solicitação tua trabalhares nesse regime e a empresa foi ao encontro do que pediste.
E, mesmo tendo a empresa ido ao encontro dos teus pedidos, a fazeres horário de turnos rotativos, voltaste a queixar-te do horário. Desta vez as tuas queixas devem-se a estares sozinho aos fins de semana e feriados.
Atendendo a que a empresa não consegue garantir que aos fins de semana e feriados possas estar acompanhado e por forma a manter condições ideais de trabalho, a partir do dia 01/03/2024 retomarás ao teu turno das 13:00H às 21:00H ou das 09:00 às 18:00 na EMP02..., de 2ªf a 6ªf.
Aguardo a tua informação acerca de qual destes horários pretendes.”)
18. Em Março de 2024 o trabalhador começou a executar o horário das 9:00H às 18:00H de segunda a sexta-feira.
19. A máquina pulper onde o trabalhador prestava trabalho foi automatizada.
20. A arguida, na sequência de fiscalização operada pela ACT em 12-01-2023, foi condenada em coima pela alegada violação do art. 217º, 4, CT, por  alteração do horário de trabalho rotativo para fixo no posto de trabalho situado na empresa EMP02... relativamente ao mesmo trabalhador,  decisão administrativa que foi judicialmente impugnada,  tendo a arguida sido absolvida da prática da infracção, proc. 2061/23.3T8VCT,  TJ de Viana do Castelo, J-2, por sentença proferida em 21-12-2023, que não foi alvo de recurso, e que se considera reproduzida.
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Peguemos neste último facto provado (n. 20).
Na sentença ali mencionada teve-se em conta contexto similar ao dos autos, sendo analisada a situação do mesmo trabalhador a prestar trabalho em regime de horário fixo na EMP02....
Conforme consta da mesma, deu-se como provado que: a causa da colocação neste regime fixo foi a paragem da máquina de papel que obrigou à implementação de várias medidas e à supressão de turnos rotativos, o que, aliás, aconteceu anteriormente por diversas vezes e a vários trabalhadores; em 14-07-2022 (data de nova paragem a máquina, sem data prevista de arranque), os trabalhadores da máquina (total de 6) passaram de turnos rotativos para fixos, incluindo o trabalhador ora em causa; estes foram alocados à empresa do grupo, a EMP02..., com horário fixo,  turno que sempre o trabalhador teria na arguida se não fosse cedido dada a paragem da máquina; o trabalhador consentiu na alteração de horário através do email de 14-07-2022.
O contexto fáctico do presente recurso apenas diverge do subjacente ao decidido por sentença transitada em julgado pelo facto de a máquina pulper ter sido, entretanto, automatizada em vez de estar parada. Da leitura das duas decisões resulta que foi esta circunstância que levou a que a senhora juíza (a mesma que presidiu ao julgamento dos dois processos) tivesse considerado que o consentimento anteriormente dado pelo trabalhador quanto à alteração de horário de trabalho (ponto nº 6)  actualmente não se mantinha. E, no pressuposto de que não haveria consentimento, condenou agora a arguida porquanto “ficou plasmado na cláusula 7ª do contrato de trabalho o período normal de trabalho semanal de 40 horas repartidas por turnos rotativos, em laboração contínua...” e de que o horário só poderia ser alterado por acordo das partes.
O caso, porém, tem mais complexidade do que a espelhada na sentença recorrida e deve ser resolvido com uma compreensão sequencial e holística dos factos.
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Duas questões se colocam: (i) se o consentimento do trabalhador subsistiu quando a máquina pulper deixou de estar parada e passou a automatizada e o modo como o consentimento pode ser prestado, mormente se expressamente por escrito, ou se tacitamente; (ii) se, ainda que hajam dúvidas sobre o consentimento do trabalhador, a arguida poderia unilateralmente alterar o regime de turnos contratualizado tendo em conta princípios de igual ou valor superior ao contido no brocardo pacta sunt servanda (“os acordos devem ser cumpridos”).
Primeira questão (consentimento):
A lei não exige que o consentimento do trabalhador na alteração do horário de trabalho seja prestado por escrito (embora se reconheçam as vantagens de o fazer). O próprio contrato de trabalho não tem de observar a forma escrita vigorando a regra geral de liberdade de forma (110º CT e 219º CC), salvo os casos especialmente previstos na lei, mormente os contratos a termo. Na altura dos factos o trabalhador em causa estava vinculado à empresa por tempo indeterminado (conforme documento junto aos autos na fase administrativa), logo a sua modificação não estaria sujeita a forma especial.
Precisamente Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 9º ed, Almedina, pág. 759 refere “Deste modo, só quando o horário de trabalho consta do próprio contrato, individualizando-se para aquele trabalhador, é que o acordo carece de mútuo consenso para ser modificado (art. 217º, 4, CT); mas o acordo do trabalhador pode ser tácito, se cumpriu o novo horário sem ter reclamado[6].
No caso concreto não vem provado a reação do trabalhador perante o novo circunstancialismo de, a partir de março de 2024, regressar ao regime de turnos fixos e de a máquina ter sido automatizada (pontos 17 a 19). Sabemos apenas que, desde então, o trabalhador passou a praticar este horário fixo. Não consta dos factos provados que, em face desta nova realidade, se tivesse oposto ao horário perante a empregadora. Na própria fundamentação da sentença se faz a alusão de que “Desconhece-se se o trabalhador assumiu formalmente/por escrito alguma posição – muito menos de concordância - perante esta alteração”, conquanto seguidamente se teçam considerações sobre “presunções” de não consentimento as quais não encontram respaldo na matéria provada.
 Dos elementos típicos objectivos da contra-ordenação faz parte a falta de consentimento do trabalhador na alteração do horário de trabalho, consentimento esse que nos termos acima referidos pode ser tácito. O elemento objectivo da infração tem de constar do elenco dos factos provado, a saber a oposição do trabalhador à nova mudança de regime por turnos para regime fixo. Recorda-se o óbvio, estamos perante uma contra-ordenação, portanto compete ao Ministério Público a prova dos seus elementos.
Não se trata aqui de excesso de formalismo. Só perante uma reacção do trabalhador poderia a empregadora conhecer a sua vontade e, das duas uma, ou chegava a acordo com o trabalhador, ou, não chegando, sujeitava-se conscientemente a eventuais consequências legais (desde a fase administrativa que a arguida insiste neste ponto). 
Entendemos, assim, que foi feita errada apreciação do direito aos factos, desde logo no que respeita à verificação do elemento objectivo da infração (falta de consentimento).
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A comunicação do trabalhador expressa no email de 14-07-2022 (aceitação de turnos fixos até à recuperação da máquina pulper) respeita a um circunstancialismo passado, inexistente ao tempo da presente infração (avaliada no âmbito da anterior contra-ordenação, da qual a ora arguida foi absolvida).
Desde então, o trabalhador na empresa do grupo já alternou entre turnos fixos (durante mais de 14 meses) e turno rotativo (5 meses) e novamente fixo (desde março/24 em diante) e, acima de tudo, sobreveio a nova realidade de ter sido automatizada a máquina pulper onde o trabalhador desempenhava actividade em regime de turnos (ponto 19). O que significa que tal equipamento passou a realizar tarefas sem necessidade de intervenção humana contínua, por via de novas tecnologias e programação.
O que nos leva a concluir que não haveria maneira de o trabalhador poder regressar ao anterior posto e ter um regime de turnos rotativos. O que de resto consta da própria fundamentação da sentença quando analisa a prova, mencionando quanto à testemunha DD, directora dos RH, que esta declarou: “Por conseguinte, o trabalhador não poderia regressar ao anterior posto e em regime de turnos rotativos” e, quanto à testemunha EE, director de produção na arguida: “entretanto o sistema foi automatizado e deixaram de necessitar dele”.
É inócuo que conste como não provado que “em consequência dessa automação a arguida não tivesse trabalho”. Ao caso importava que se provasse, antes, que a empregadora dispunha de trabalho por turnos para atribuir ao trabalhador. A possibilidade de se manter esta modalidade de horário é o cerne do problema.
Segunda questão:
Ao ponto acabado de assinalar, numa outra perspectiva que não deve ser ignorada na ponderação global do caso, liga-se a seguinte interrogação da recorrente “não existindo o equipamento pulper manual onde o trabalhador desempenhava as suas funções...como poderia a recorrente manter aí o posto de trabalho do trabalhador BB?”
Somos remetidos para problemáticas relacionadas com a alteração de circunstâncias que estiveram na base da contratação (437º CC[7]), princípios de proporcionalidade, equilíbrio, colisão de direitos (335º CC[8]), e até boa fé (762º, 2, 334º CC).
A alteração de circunstâncias refere-se a factos determinantes e supervenientes ao acordado. No caso, será a existência de uma máquina de papel que funcionava manualmente e requeria a intervenção humana de modo contínuo, o que justificou a estipulação de um regime de trabalho de funcionamento em modo contínuo por turnos.
Pedro Martinez, ob. cit., pág. 759 refere “perante uma alteração fundamental das circunstâncias, o empregador poderá alterar o horário de trabalho fixado individualmente com base no disposto no art. 437º CC, desde que se encontrem previstos os respectivos pressupostos”. O autor dá o exemplo de o Governo proibir o funcionamento de certos estabelecimentos em determinados dias ou horas, tendo a empresa de alterar os horários de trabalho para se adaptar à lei.
Por sua vez Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo, Comentário ao CT, CIJE, 2018, Biblioteca RED, pág. 254, refere que o 217º, 4, CT, deve ser interpretado em termos restritivos, de forma a acautelar não só a autonomia das partes, mas também “os interesses relacionados com a necessidade de ajustar a organização do tempo de trabalho às exigências da actividade económica com que a empresa se depare posteriormente à constituição do vínculo”. Salienta o autor que, não obstante o elemento literal, a blindagem do preceito apenas se deve impor em caso de as partes conferiram ao horário de trabalho um carácter essencial no quadro da constituição e de manutenção do vínculo laboral. Fora desta hipótese, desde que se venham a verificar necessidades inultrapassáveis em manter o horário de trabalho convencionado, a liberdade de modificação do empregador decorre das exigências da liberdade económica e mercantil, sem prejuízo de eventual direito de resolução do contrato nos termos do 394º, 3, b), CT, assim se resolvendo um caso de conflito de direitos (com o trabalhador a ter direito de resolução que aqui não está em causa, respeitando a acção de natureza completamente diferente, do foro civil/laboral)
 (394º CT “1 - Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.... 3 - Constituem ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhado ....(b) Alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício lícito de poderes do empregador;”) - sublinhados nossos.
No caso dos autos, não estão provados factos demonstrativos da essencialidade da cláusula aferida no momento da constituição e/ou manutenção do vinculo.
O trabalhador passou de uma modalidade de regime por turnos para um fixo, pelo que as únicas razões que aqui podem ser convocadas respeitam à supressão do subsidio de turno, e não a trabalho em regime mais penoso. Certos regimes de trabalho representam um acréscimo patrimonial, sendo pacífico, contudo, que esses acréscimos não são abrangidos pelo princípio da irredutibilidade da prestação, apenas sendo devidos enquanto subsistirem as condições de maior penosidade que as justificam (trabalho suplementar, nocturno, IHT, turno). Nestas situações se for lícito suprimir ou alterar o regime de trabalho, o trabalhador deixará de ter direito aos mesmos.
Ora, vimos repisando que a arguida automatizou a máquina de pulper, posto de trabalho onde o trabalhador desenvolvia as tarefas em regime de turnos rotativos, razão pela qual não pode retornar a este posto e a este regime. Ficou também provado que no local onde se encontra actualmente (EMP02..., empresa do grupo) não existem turnos rotativos, mas somente regime de trabalho fixo.
Forçoso é concluir que, em razão de alteração posterior da tecnologia de produção, não subsistem as condições objectivas que motivaram a contratação do trabalhador em regime de turnos.
Repare-se que tudo indica que se tratou de uma mera medida compreensível e racional de gestão empresarial (a máquina apresentava avarias anteriores, conforme decorre do email do trabalhador e da motivação da sentença), em nada se relacionando com intuitos persecutórios ou punitivos. Ora, não vemos como possa ser exigível à empresa que mantenha um trabalhador em regime de turnos que estavam associados a um posto de trabalho que foi automatizado, e que deixou de necessitar de assistência manual contínua, pois que, além do mais, buliria também com princípios de proporcionalidade e de adequação.
Assim sendo, é de absolver a arguida por estas duas ordens de razões.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se totalmente a arguida da infracção em que foi condenada.
Sem custas.
Notifique.
Após trânsito em julgado, comunique a presente decisão à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Guimarães, 23-10-2025

Maria Leonor Barroso (relatora)
Vera Sottomayor
Francisco Sousa Pereira


[1] Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e da Segurança Social regulado na Lei 107/2009, de 14/09.
[2] Segundo os artigos 403º, 1, 412º, 1, CPP, aplicável ex vi artigo 50º, 4, Lei 107/2009, de 19-9 (doravante, RPACOLSS), o âmbito do recurso e a área de intervenção do tribunal ad quem é delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente e extraídas da sua motivação do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação dos vícios previstos no art. 410º, 2, CPP.
[3] Lei 107/2009, de 14-09, que refere “Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância só conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”
[4] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, DL 433/82, de 27/10 e posteriores alterações.
[5] O facto de o recurso versar apenas sobre matéria de direito não impede o tribunal da Relação de conhecer da matéria dada como provada nas condições descritas na al. a), do art. 431º CPP, ou seja, se do processo constarem todos os elementos de prova que servem de base à modificação, como é o caso de uma sentença - António Leones Dantas, Direito Processual das Contraordenações, Almedina, 2023, pág. 281
[6] Contra Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo, Comentário ao CT, CIJE, 2018, Biblioteca RED, pág. 254, do que discordamos pelas razões referidas - regra geral de liberdade de forma.
[7] Art. 437º, CC” 1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”
[8]Art. 335 CC “ 1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. 2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”