Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
353973/09.8YIPRT.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: INJUNÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: É admissível o recurso ao processo de injunção regulado pelo DL 269/98, com as modificações introduzidas pelo DL 32/2003, mesmo que as obrigações exigidas se tenham vencido antes da data da entrada em vigor deste último e ascendam a valor superior ao da alçada do tribunal de 1ª instância.
Decisão Texto Integral: I – Relatório

No Tribunal Judicial de Braga foi apresentado, por “Centro Tecn. Ldª” o presente requerimento de injunção, no qual é peticionada a condenação de Joaquim B. a pagar-lhe €49.718,51, provenientes de fornecimento de serviços.
Na oposição oportunamente apresentada, veio este último invocar, além do mais, erro na forma de processo por se tratar de facturas anteriores à vigência do DL 32/2003 e respeitarem a um contrato de execução continuada.
A autora respondeu dizendo que, caso o Tribunal assim entenda, deverá remeter os autos para o meio processual adequado.
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Foi, então, proferido o despacho recorrido, onde se consignou, resumidamente, o seguinte:
«…as prestações alegadamente em dívida reportam-se a facturas datadas de 21.08.2001 e 11.07.2002, altura em que ainda não estava em vigor o regime do mencionado diploma, sendo que, de harmonia com o então vigente, não era possível recorrer à injunção quando estivessem em causa prestações de valores superiores à alçada do Tribunal da Relação.
Isso mesmo resulta do art. 9º do acima referido D.L. nº 32/2003, que excepciona as prestações vencidas em data anterior ao início de vigência, nos casos de contratos de execução continuada.
Destes corolários resulta que não poderia a autora lançar mão do procedimento de injunção para obter a condenação do réu no pagamento da importância que discrimina».
Considerando que o processado da injunção é incompatível com o da acção declarativa comum, julgou verificado o erro na forma de processo e, em consequência, declarou nulo todo o processado.
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Inconformada, a autora interpôs recurso que foi admitido, apresentando as respectivas alegações, onde conclui do modo seguinte:
- O contrato em causa é de execução instantânea, na medida em que o comportamento exigível do devedor (requerido) se esgota num só momento: o do pagamento do preço, sendo que à data da instauração do processo injuntivo o preço ainda estava por liquidar.
- Assim sendo cremos ser inequívoco que verificando-se o incumprimento do requerido (atraso no pagamento da transacção comercial) à data do requerimento da injunção, e como tal alegado nenhuma objecção pode ser oposta ao meio processual usado.
- Ao considerar que o regime jurídico da injunção não se aplica às obrigações nos autos, o Mmº Juiz a quo violou os artºs 7° do DL 269/98, de 1 SET, os artºs 7°, 8°, 9° e 10° do DL 32/2003, de 17 FEV, e o n°2 do artº 142° do C. P.Civil.
- Motivo por que, a sentença sob recurso, deve ser revogada, ordenando-se que os autos prossigam os seus termos legais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.


II – Fundamentação
A matéria factual a considerar é a que consta do relatório acima elaborado que aqui se tem por inteiramente reproduzido, acrescida da seguinte:
1. A Autora, ora recorrente, intentou requerimento de Injunção pretendendo obter a condenação do Réu, ora recorrido, a pagar-lhe a quantia de €49.718,51, a título de capital e juros, provenientes do contrato de prestação de serviços firmado entre ambos.
2. As prestações em divida reportam-se a facturas datadas de 21.08.2001 e 11.07.2002 e resultam de ementas, impressões gráficas, fotografias e outros.

O Direito:
O procedimento de injunção, criado pelo DL 404/93, de 10/12, consiste na “providência destinada a conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância” (artº 1º).
Conforme já se escreveu repetidamente, “com a criação de um tal procedimento, caracterizado pelo processado simples e não intervenção do juiz, visou-se permitir ao credor de uma prestação que se consubstancie numa obrigação pecuniária, obter, de forma célere, um título executivo, condição indispensável para exigir, por via executiva, o cumprimento da obrigação (Ac. RP, de 03/05/04, em ITIJ/net, proc. 0452201).
Aquele diploma foi revogado pelo DL 269/98, de 1/9, que cria o regime jurídico dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, mantendo-se o procedimento de injunção com a mesma natureza e semelhantes formalidades.
Pelo DL 32/2003, de 17/2 (que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29/6), possibilitou-se o recurso à injunção independentemente do valor da dívida, quando estejam em causa atrasos de pagamento de transacções comerciais – artº 7º, nº1.
Este mesmo diploma, agora no seu artº 8º, altera o artigo 7º do regime jurídico aprovado pelo DL 269/98, que passa a preceituar: “considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro”.
Por força do seu artº 9º, ficou estabelecido que ele se aplica às prestações de contratos de execução continuada ou reiterada que se vençam a partir da data da sua entrada em vigor.
Finalmente, de acordo com o seu artº 10º, entra em vigor no 30º dia posterior à sua publicação no que concerne aos artºs 7º e 8º e, quanto aos restantes, no dia seguinte ao da mesma.
Importa assim, e desde logo, analisar a presente causa debendi, com vista a aquilatar se estamos perante um contrato de execução continuada ou instantânea.
Todos sabemos que as obrigações que do contrato derivam para os seus outorgantes, denominam-se de «prestação», consistindo esta, em geral, na acção ou actividade que cada um dos obrigados deverá desenvolver, para se liberar, perante o credor.
Quanto à maneira da sua realização temporal, as prestações debitórias, podem classificar-se em «instantâneas» e «duradouras». «Dizem-se instantâneas as prestações em que o comportamento exigível do devedor se esgota num só momento (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral Vol. I, 5ª edc, pag, 85. Nas relações «duradouras» «a prestação protela-se no tempo, tendo a duração temporal da relação creditória uma influência decisiva na conformação global da prestação» (obra citada, pag. 85).
Dentro das obrigações duradouras, coloca o doutrina as «prestações de execução continuada» e as «prestações reiteradas, periódicas ou de trato sucessivo». Nas primeiras, o cumprimento prolonga-se ininterruptamente, como ocorre com o locador, fornecedor de água, luz e gás. Nas segundas o cumprimento depende de actos que «se verificam com determinados intervalos» (Dir. Das Obrigações Vol. I, Meneses Cordeiro, pag. 357). É disso exemplo a obrigação do locatário.
Como ensina Antunes Varela (obra citada, pag. 88), «não se confundem com as obrigações duradouras, as obrigações fraccionadas ou repartidas. Dizem-se fraccionadas ou repartidas, as obrigações cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objecto da prestação está previamente fixado, sem dependência da duração da relação contratual (como no caso do pagamento de preço a prestações)... Nas obrigações duradouras, a prestação devida depende do factor tempo... nas prestações fraccionadas, o tempo não influi na determinação do seu objecto, apenas se relacionando com o modo de execução».
De acordo com estes ensinamentos, a peticionada dívida resulta de contrato ou contratos de execução instantânea, pois que as prestações que incumbem a cada parte esgotam-se num só momento – a prestação do “serviço” por parte da recorrente e a correlativa obrigação de pagamento por lado do recorrido. E, sendo assim, tendo em conta o estritamente consignado, é inaplicável o estatuído no artº 9º do DL 32/2003.
Acresce que tal norma, revestindo-se de carácter manifestamente excepcional, não é passível de interpretação analógica, admitindo, contudo, interpretação extensiva – artº 11º do Código Civil.
Sabemos que existe interpretação extensiva sempre que o intérprete, ao reconsituir a parte do texto da lei e segundo os critérios estabelecidos no artº 9º do último diploma citado, conclua que o pensamento legislativo coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas o legislador, ao formular a norma, disse menos do que queria, sendo, por isso, necessário alargar o texto legal.
Será que assim se passou relativamente a esta norma, isto é, será que o legislador disse menos do que queria?
Não o cremos.
Na verdade, tendo presente que estamos perante normas de carácter processual e em que, portanto, a sua aplicação é imediata aos actos praticados na sua vigência – artº 142º do Código de Processo Civil – o legislador optou por fixar regime diverso para os contratos de execução continuada ou reiterada.
Não o fez, porém, para os outros e, incluí-los agora seria fixar um regime de excepção que não tem assento no espírito legislativo, uma vez que é de todo inverosímel que tendo tido o cuidado de mencionar determinado tipo de contrato, não tenha mencionado o que se lhe contrapõe.
Como se decidiu no acórdão da Relação do Porto de 26 de Janeiro de 2006 (itij), «Quanto à aplicação do diploma em causa no tempo, da aplicação imediata apenas se excepciona o preceituado no artigo 9º, pelo que não há que fazer interpretação de modo a deixar de aplicar o regime estabelecido a situações não contempladas. Podendo surgir dúvidas sobre a aplicabilidade às obrigações emergentes de contrato de execução continuada ou reiterada, a lei limita-se esclarecer a situação mandando aplicar o procedimento às prestações vencidas a partir da sua entrada em vigor.
(…)nenhuma garantia da requerida se vê diminuída, posto que, após oposição, o processo passa à esfera judicial, e a seguir os termos do processo comum (artigo 7º, nº 2, do DL 32/2003), segundo o valor da causa (artigos 461º e 462º do CPC), e a controvérsia a ser decida pelo juiz».
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Concluindo, é admissível o recurso ao processo de injunção regulado pelo DL 269/98, com as modificações introduzidas pelo DL 32/2003, mesmos que as obrigações exigidas se tenham vencido antes da data da entrada em vigor deste último e ascendam a valor superior ao da alçada do tribunal de 1ª instância.



III - DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão proferida que deverá ser substituída por outra que leve à prossecução dos autos.

Custas pela parte vencida a final.


Guimarães, / /