Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
332/20.1T8CBC-A.G1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: INVENTÁRIO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
DÍVIDA
PROVA DOCUMENTAL
MEIOS COMUNS
MÚTUO NULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º.
II - Se um dos interessados impugnar a dívida, a não impugnação das dívidas relacionadas pelos demais interessados só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito, nos termos do disposto no artigo 574 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1106, 2ª parte.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 332/20.1T8CBC-A.G1

Nos autos de inventário em que é inventariado AA e interessados BB, cabeça de casal e outros foi proferido o seguinte despacho:

Sob requerimento Citius ...79 de 13-12-2020 foi apresentada relação de bens, composta por activo (concretamente por 9 verbas de imóveis) e passivo (formado por verba única de € 250.000,00 a título de mútuo).
Por requerimento sob Citius ...75 de 01-02-2022, o interessado CC veio apresentar reclamação à relação de bens em que, sumariamente, afirma discordar do valor dos imóveis (que, para estes efeitos, irreleva), e impugnar a dívida de € 250.000,00 a título de mútuo, afirmando tratar-se de uma dívida contraída sozinha pela cabeça-de-casal e não pelo de cujus e que o mútuo nunca aconteceu.
As outras interessadas, DD e EE, não impugnaram a dívida arrolada na relação de bens.
Dado contraditório à cabeça-de-casal BB (sob Citius ...49 de 10-10-2022), veio descrever que o prédio teve obras ao longo dos anos, que a dívida foi contraída pela cabeça-de-casal mas com o conhecimento do inventariado e em proveito comum do casal, e que não tem comprovativos das transferências ou facturas das obras.

Cumpre apreciar e decidir.

O regime legal que aqui interessa é o previsto no art. 1106.º, n.os 1 a 4, do Código de Processo Civil:
«1 – As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.
2 – Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados.
3 – Se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
4 – Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior.».
Como nos dizem MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e OUTROS, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, p. 91: «Assim, a omissão da contestação da dívida da herança conduz a um efeito cominatório pleno, implicando o reconhecimento da própria dívida relacionada, e não apenas a admissão por acordo dos factos constitutivos desta, nomeadamente os alegados pelo cabeça-de-casal.».
Mas, no caso vertente, só CC impugnou a dívida que consta da relação de bens.
Por conseguinte, e sem necessidade de mais, a dívida de € 250.000,00 do acervo hereditário de AA a FF vincula as interessadas BB, DD e EE, nos termos do art. 1106.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Civil, pelo que serão condenadas a final no seu pagamento.
Quanto ao interessado CC só será condenado nesse pagamento se a sua existência e montante da dívida puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, cf. o já citado 1106.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Analisemos, portanto, os documentos.
Ora, a única coisa que existe é uma confissão de dívida, datada de 10-12-2013, subscrita unicamente pela cabeça-de-casal, absolutamente omissa quanto ao de cujus, por meio da qual aquela se confessa devedora da quantia de € 250.000,00 que recebeu de FF e já gastou em recuperação e obras de aumento de imóvel, sem qualquer prazo de pagamento.
Desde logo, tal mútuo é negócio nulo, por violação do art. 1143.º do Código Civil.
A acrescer, nos termos do art. 1691.º do Código Civil, e tomando como boas as alegações de pobreza feita pela cabeça-de-casal e confessante da dívida, não há qualquer forma de considerar uma dívida daquele montante ocorrer dentro dos poderes de administração e, muito menos, corresponder a encargos normais da vida familiar e, por de todo não existir, haver consentimento do de cujus (aqui trata-se de um negócio formal, logo o consentimento do de cujus teria de estar formalmente demonstrado).
Afirma a própria cabeça-de-casal que não existem mais documentos demonstrativos desta dívida.
Significa isto que confissão de dívida, datada de 10-12-2013, subscrita unicamente pela cabeça-de-casal, e que corresponde à única prova documental de suporte de tal dívida, não confere o suporte mínimo para decidir com segurança tal questão.

Concluiu-se assim que o litígio em causa não pode ser resolvido de forma razoável como incidente de inventário (atente-se, neste sentido e desde já, nos elementos probatórios com inúmeras testemunhas, prova pericial e prova requerida a entidades terceiras).
Aqui chegados, recorrendo novamente a dizem MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e OUTROS, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 92-93, deve-se considerar que: «O n.º 3 continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve abster-se de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns.».
Daqui decorre, nos termos dos arts. 1093.º, n.º 1, e 1106.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Civil, a dívida de € 250.000,00 do acervo hereditário de AA a FF não vincula o interessado CC, remetendo-se os interessados para os meios comuns se nisso tiverem interesse.
Não se determina a suspensão da instância, porquanto não se vê que a questão em crise afecte de forma significativa a utilidade prática da partilha, cf. art. 1093.º, n.º 2, do Código de Processo Civil


As interessadas GG calçada e DD interpuseram recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão de saneamento do processo proferida nos autos, na qual se decidiu que por as interessadas, aqui apelantes, não terem impugnado a dívida arrolada na relação de bens no valor de 250.000,00 euros, estão vinculadas à mesma, nos termos do artigo 1106º, nºs 1 e 4 do Código de Processo Civil e por isso serão condenadas a final no seu pagamento.
2. Não podem as recorrentes concordar com a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo no sentido em que o foi.
3. As apelantes citadas para os termos destes autos em momento algum foram
informadas pelo Tribunal de que a falta de impugnação do passivo relacionado teria
como cominação, o seu reconhecimento/aceitação.
4. A citação feita aos interessados apenas refere o seguinte:
“Fica citado(a) na qualidade de interessado do inventário acima identificado, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 1104.º do Código do Processo Civil, podendo, no prazo de 30 dias, finda a dilação de 0 dias, contados da data da assinatura do aviso de recepção:
· Deduzir oposição ao inventário;
· Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
· Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
· Apresentar reclamação da relação de bens que se junta cópia;
· Impugnar os créditos e as dívidas da herança
Caso a assinatura do aviso de receção não tenha sido feita pelo próprio, acrescerá a dilação de 5 dias (art.ºs 228.º e 245.º do CPC).Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transferese o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.
Fica advertido de que só é obrigatória a constituição de advogado caso se suscitem ou discutam questões de direito e ainda em sede de recurso.”
5. Da leitura atenta da citação e colocando-nos na posição do homem médio, comum cidadão, não é possível entender tão grave consequência como sendo a de que o passivo fica aceite caso não seja impugnado expressamente nesta fase anterior ao saneamento do processo.
6. Em nenhum momento é dado a conhecer às interessadas, que a falta de impugnação do passivo, nesta fase de articulados, leva à sua aceitação.
7. Esta cominação é equiparada àquela que sucede em processo civil comum, em que na própria citação é feita a advertência de que a cominação para a falta de contestação é a confissão dos factos ali vertidos e alegados.
8. A este propósito o Ac. do STJ no processo 99B248, cujo relator foi a Ilustre Dra. Sousa Inês e cujo sumário é o seguinte:
I - Em acção para simples separação judicial de bens, a falta de contestação do réu, devidamente citado, não implica a confissão dos factos articulados pelo autor.
II - Quando o réu não é citado com a cominação de a falta de contestação importar a confissão dos factos alegados pelo autor, não se podem considerar confessados os factos articulados pelo autor apesar de o réu não ter contestado.
Em tal hipótese, ou se anula a citação ou não se consideram confessados os factos.
III - Só pode falar-se de confissão quando com a aquisição dos factos se favorece a parte contrária ao confitente; se os factos favorecem a ambas as partes, se quem acaba por ser sacrificado é um terceiro, os respectivos interesses, resulta a ilegitimidade do confitente para confessar por não poder dispor do respectivo objecto.
9. Por maior de razão, e sob pena de se prejudicar gravemente os interesses das partes, nestes processos de inventário, entendemos que também no caso dos autos não pode resultar da falta de impugnação do passivo, a aceitação e vinculação à dívida, quando da citação não resulta tal cominação.
10. A citação não contém a informação necessária para que o homem médio possa alcançar a gravidade da sua falta de acção no caso dos autos, pelo que deve ser anulada.
11. Não é aceitável, nem se coaduna com os princípios da segurança e certeza jurídicas, nem mesmo com as expectativas das partes, tanto mais que até há bem pouco tempo as questões relacionadas com dívidas da herança eram decididas nas conferências de interessados, sendo tal facto do conhecimento e prática geral até à recente alteração legislativa, que, sem que se faça qualquer advertência nesse sentido no acto da citação, possa existir cominação tão grave como a validação do passivo na falta da sua impugnação, sem possibilidade de poder em mais nenhum momento questionar a sua existência, validade ou extensão.
12. Não pode a falta de impugnação da divida por parte das aqui apelantes dar lugar à sua aceitação, vinculando as mesmas, quando nenhuma informação sobre esta tão grave cominação lhes foi prestada aquando da citação.
13. Considerando o vertido no Ac. supra referido entendemos que, por aplicação analógica do entendimento ali vertido e seguindo a mesma teleologia, sempre deve acontecer nestes autos uma de duas coisas, pois só assim estarão acautelados todos os direitos dos interessados nestes autos:
- ou se anula a citação, repetindo-se o processado,
- ou a falta de impugnação não pode implicar a aceitação/validação do passivo.
14. Sem prescindir do exposto, a decisão vertida no despacho de saneamento proferido nestes autos, não está correcta também pelo facto de fazer uma distinção entre interessados e uma diferente aplicação do direito que não pode suceder.
15. Apesar de decidir que a divida vincula as interessadas/apelantes, o Meritíssimo Juiz, no que se refere ao interessado CC, único interessado que reclamou da relação de bens e põe em crise a referida dívida, refere o seguinte (itálico nosso):
“Quanto ao interessado CC só será condenado nesse pagamento se a sua existência e montante da dívida puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, cf. O já citado 1106.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Analisemos, portanto, os documentos.
Ora, a única coisa que existe é uma confissão de dívida, datada de 10-12-2013, subscrita unicamente pela cabeça-de-casal, absolutamente omissa quanto ao de cujus, por meio da qual aquela se confessa devedora da quantia de € 250.000,00 que recebeu de FF e já gastou em recuperação e obras de aumento de imóvel, sem qualquer prazo de pagamento.
Desde logo, tal mútuo é negócio nulo, por violação do art. 1143.º do Código Civil.
A acrescer, nos termos do art. 1691.º do Código Civil, e tomando como boas as alegações de pobreza feita pela cabeça-de-casal e confessante da dívida, não há qualquer forma de considerar uma dívida daquele montante ocorrer dentro dos poderes de administração e, muito menos, corresponder a encargos normais da vida familiar e, por de todo não existir, haver consentimento do de cujus (aqui trata-se de um negócio formal, logo o consentimento do de cujus teria de estar formalmente demonstrado).
Afirma a própria cabeça-de-casal que não existem mais documentos demonstrativos desta dívida.
Significa isto que confissão de dívida, datada de 10-12-2013, subscrita unicamente pela cabeça-de-casal, e que corresponde à única prova documental de suporte de tal dívida, não confere o suporte mínimo para decidir com segurança tal questão.
Concluiu-se assim que o litígio em causa não pode ser resolvido de forma razoável como incidente de inventário (atente-se, neste sentido e desde já, nos elementos probatórios com inúmeras testemunhas, prova pericial e prova requerida a entidades terceiras).
Aqui chegados, recorrendo novamente a dizem MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e OUTROS, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 92-93, deve-se considerar que: «O n.º 3 continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve absterse de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns.».
Daqui decorre, nos termos dos arts. 1093.º, n.º 1, e 1106.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Civil, a dívida de € 250.000,00 do acervo hereditário de AA a FF não vincula o interessado CC, remetendo-se os interessados para os meios comuns se nisso tiverem interesse.
Não se determina a suspensão da instância, porquanto não se vê que a questão em crise afecte de forma significativa a utilidade prática da partilha, cf. art. 1093.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
16. Estamos perante uma dívida no valor de 250.000 euros que foi relacionada pela cabeça de casal, sustentada apenas e só numa simples confissão de dívida, não havendo mais documentos demonstrativos desta divida, como assume a Cabeça de casal.
17. Divida esta que foi alvo de reclamação e impugnação por parte de um dos herdeiros (CC) e que levou a que o Meritíssimo Juiz determinasse que a mesma não vinculava o herdeiro em causa.
18. Mais referindo o Meritíssimo Juiz que:
“Significa isto que confissão de dívida, datada de 10-12-2013, subscrita unicamente pela cabeça-de-casal, e que corresponde à única prova documental de suporte de tal dívida, não confere o suporte mínimo para decidir com segurança tal questão.”
19. Sem tecer grandes considerações, o Meritíssimo Juiz decidiu que a divida vinculava as demais interessadas nos autos, como sendo as aqui apelantes, por as mesmas não terem impugnado a divida.
20. Apesar de declarar no referido despacho a nulidade do negócio jurídico que sustenta a divida, por falta de forma, apesar de referir que a divida se sustenta unicamente num documento subscrito pela cabeça de casal e de referir que tal prova documental não dá qualquer suporte e segurança jurídica para dela decidir, ainda assim o Meritíssimo Juiz a quo decide contra todas as expectativas que a divida vincula as aqui apelantes, com base nas disposições contantes dos artigos 1106º, nº 1 e 4 do Código Civil, apenas e só porque estas não impugnaram a dita dívida.
21. Esta decisão não está correta.
22. O artigo 1106º do Código de Processo Civil, no que à verificação do passivo diz respeito:
1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.
2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados.
3 - Se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior.
5 - As dívidas vencidas, que hajam sido reconhecidas por todos os interessados ou se mostrem judicialmente reconhecidas nos termos do n.º 3, devem ser pagas imediatamente, se o credor exigir o pagamento.
6 - Se não houver na herança dinheiro suficiente e se os interessados não acordarem noutra forma de pagamento imediato, procede-se à venda de bens para esse efeito, designando o juiz os que hão de ser vendidos, quando não haja acordo entre os interessados.
7 - Se o credor quiser receber em pagamento os bens indicados para a venda, são-lhe os mesmos adjudicados pelo preço que se ajustar.
23. Resulta do nº 1 do referido artigo que as dividas reclamadas e não impugnadas devem ser reconhecidas sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º.
24. O artigo 574º sob a epígrafe “ónus de impugnação”, sob o seu nº 2 estatui:
Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior. (itálico, negrito e sublinhado nosso)
25. Dos preceitos supra é possível extrair-se que as dividas não impugnadas devem ser reconhecidas desde que não estejam em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
26. Nestes autos, da defesa/impugnação apresentada pelo interessado CC resultou que o negócio jurídico que titula a divida relacionada é nula por falta de forma e ainda que não há mais documentos demonstrativos da divida.
27. Se o negócio jurídico (mutuo) é nulo para o interessado CC, também o é para as aqui apelantes, não podendo também quanto a elas produzir quaisquer efeitos.
28. A nulidade é o vício mais grave do nosso ordenamento jurídico e neste caso tratase de um vício de que o Tribunal pode e deve ter conhecimento oficioso, sem necessidade de ser invocada pelas partes, podendo essa nulidade ser invocada a todo o tempo. (cfr artigo 286º Código Civil).
29. Nulidade essa que desde já se requer seja reconhecida também no que às aqui apelantes diz respeito.
30. O conhecimento da nulidade e a sua declaração pelo Tribunal, conforme estatui o artigo 289º, nº 1 Código Civil, têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. (itálico e negrito nosso)
31. Tratando-se de um negócio nulo, como declarado pelo Meritíssimo Juiz no seu despacho de saneamento do processo, o mesmo não pode produzir efeitos, nem ser oponível às aqui apelantes.
32. Estando perante um negócio nulo e não havendo mais documentação que demonstre a existência da alegada divida, não permitindo que se possa decidir e concluir com certeza e segurança jurídica exigíveis pela sua existência, ou até por aquilo que alegada e efetivamente possa ter sido prestado, como pode tal dívida ser oponível e vincular as aqui apelantes ??
33. O negócio nulo, tem de ser declarado nulo para todos os interessados, produzindo efeitos em relação a todos eles e, a isto obriga o Principio da certeza e segurança jurídicas, sob pena de termos decisões contrárias para uma mesma situação.
34. A nulidade declarada oficiosamente pelo Tribunal deve produzir efeitos quanto a todos os interessados e não apenas quanto ao interessado que impugnou a divida relacionada.
35. A declaração de nulidade, por falta de forma, do negócio jurídico (mutuo) que sustenta a divida é suficiente para excluir do acervo hereditário a divida, remetendo todas as partes para os meios comuns, de forma a aí se averiguar da sua hipotética e alegada existência ou não, produzindo tal decisão necessariamente efeitos na partilha.
36. A nulidade do negócio jurídico que titula a divida tem consequências que são susceptíveis de influir e muito na partilha, devendo suspender-se estes autos até decisão da questão.
37. A declaração de nulidade do negócio, por falta de forma, implica a necessidade de se provar a existência dos factos constitutivos do negócio invocado, o que no caso, como bem referiu o Meritíssimo Juiz a quo, não é possível constatar.
38. Estamos perante uma declaração unilateral da cabeça de casal e na qual o inventariado não teve qualquer intervenção, devendo também ser sopesado o facto de que o seu reconhecimento nesta partilha, apenas à própria declarante aproveita, uma vez que o mutuante é o seu actual companheiro e que não existem mais documentos que sustem esta alegada divida.
39. Ficando por explicar qual a proveniência desse dinheiro que não são 10 nem 20 mil euros, mas sim € 250.000,00…
40. A declaração de nulidade do negócio jurídico por falta de forma levanta a questão da sua existência, a sua validade e a veracidade dos factos invocados, o que justifica sobejamente a sua remessa para os meios comuns.
41. Em face do que consta do despacho saneador, do processo e dos próprios autos nos articulados, não é possível aferir com segurança o que foi efectivamente prestado e em que termos ou até se o foi, para se determinar se há algo que deve ser restituído.
42. As partes devem ser remetidas para os meios comuns para aferir da alegada existência, extensão e exigibilidade da divida, suspendendo-se os presentes autos.
43. Considerando a defesa no seu todo, ou seja, considerando a impugnação feita pelo CC, bem como as declarações prestadas pela cabeça de casal, que determinaram a declaração de nulidade do negocio jurídico que titula a divida, bem como a decisão de que a divida não vincula o interessado CC, as consequências que advêm dessa declaração de nulidade, as quais são suscetíveis de influir e muito na partilha que se venha a fazer nestes autos, devem as partes ser remetidas para os meios comuns e suspenso o presente processo de inventário até que haja decisão sobre esta questão.
44. A nulidade por falta de forma do negócio jurídico que titula a divida produz os seus efeitos quanto a todos os interessados e não apenas quanto ao interessado CC.
45. Se assim não for, estamos a impossibilitar que as interessadas aqui apelantes possam colocar em crise os efeitos da nulidade do negócio jurídico por falta de forma e ainda o apuramento do que possa ter sido prestado, ou não, e que deva ou não ser restituído.
46. A nulidade do negócio jurídico por falta de forma implica a restituição do que foi prestado e nos presentes autos, não havendo negocio que titule a divida não se pode aferir o que foi efectivamente prestado, ou se o foi, em que termos e condições e por quem.
47. Por tudo quanto se deixa exposto, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu no que concerne ao facto da divida vincular as aqui apelantes.
48. A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo no despacho proferido, caso não se entenda que a citação deva ser anulada, deve, por tudo quanto supra ficou explanado, ser revogada na parte em que afirma que a divida vincula as interessadas aqui apelantes, alterando-se no sentido de que a divida não vincula nenhum dos herdeiros/interessados até ser decidida a questão nos meios comuns, como determina o artigo 1093º e ainda do vertido no artigo 1106º do Código de Processo
Civil.
49. Mais devendo ainda ser declarada a suspensão da instância até à decisão desta questão, uma vez que a questão a decidir afeta significativamente a utilidade da partilha, considerando que a divida arrolada é de valor muito superior ao somatório do valor patrimonial tributário dos bens (activo) arrolados.
50. A douta decisão recorrida viola, além do mais, os artigos 574º, 1106º e 1093º do Código de Processo Civil.

A interessada BB, cabeça de casal apresentou contra-alegações na quais pugna pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 635º e 639º Código de Processo Civil -.

Dispõe o artigo 1104 do Código de Processo Civil que:

1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:
a) Deduzir oposição ao inventário;
b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
d) Apresentar reclamação à relação de bens; e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança.
 2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo.
3 - Quando houver herdeiros legitimários, os legatários e donatários são admitidos a deduzir impugnação relativamente às questões que possam afetar os seus direitos.

Decorre deste artigo que é no prazo ali referido após a citação que devem ser concentradas todas as impugnações, reclamações ou outros meios de defesa que os interessados entendam deduzir.
“Adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no artigo 573º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo), deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (…) “- Conselheiro Lopes do Rego, “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019.
Assim, desenvolve-se o processo de inventário numa primeira fase declarativa com apresentação dos articulados entendendo-se que está expressamente consignado um efeito cominatório resultante da não impugnação pelos interessados directos das dívidas reclamadas, que é o de estas serem consideradas reconhecidas.

Por sua vez dispõe o artigo 227º do Código de Processo Civil que :
1 - O ato de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a ação a que o duplicado se refere, e indicando-se o tribunal, juízo e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição.
2 - No ato de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e
as cominações em que incorre no caso de revelia.

Conforme decorre dos autos quando foi efectuada a citação não foram as interessadas advertidas das cominações em que incorriam no caso de não contestarem as dívidas relacionadas.
Temos assim, que a citação não cumpriu as formalidades prescritas na lei.
No entanto, conforme decorre do artigo 191 n.º 2 do citado código já há muito decorreu o prazo para a sua arguição.
Acresce que no que concerne à verificação do passivo o artigo 1106º do citado código enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas.
De acordo com o n.º 3 do artigo, se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados
Em princípio a impugnação não aproveitará aos não impugnantes que nos termos do n.º 4 daquele preceito serão condenados a pagar a sua quota parte da dívida reconhecida .
Assim, e como decorre do n.º 3 do citado artigo e como é referido pelo Mmº Juiz, citando Miguel Teixeira de Sousa ”o n.º 3 continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve abster-se de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns.”.
Ora, e também como foi decidido, nos autos não existe qualquer documentação que comprove a existência da referida dívida, razão pela qual o Mmº Juiz não a reconheceu e remeteu o interessado CC para os meios comuns.
E, por isso,  entendemos que por essa razão estamos perante a situação prevista no artigo 574º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1106, 2ª parte.
De acordo com esta disposição legal a não impugnação das dívidas relacionadas só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito ( neste sentido, João Espírito Santo, Revista de Direito Comercial, 16/02/2021).
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sosa, Código de Processo Civil anotado, em anotação ao artigo 574º, “ não opera o ónus de impugnação quanto aos factos que careçam de ser provados por documento escrito. Apesar de, em matéria de declaração negocial vigorar o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (art. 219º do CC), há diversas situações em que a lei exige, sob pena de nulidade (art. 220º do CC) documento escrito ou uma formalidade ainda mais solene para a celebração de certos negócios, o que constitui um requisito ad substanciam (cf. entre outros 875, 947, 1143 e 1250) (…).
(…) nestes casos ainda que o réu não impugne esse facto, nem por isso se dará como assente tal negócio.”
Efectivamente de acordo com o n.º 2 do citado artigo 574º, há situações em que falta de impugnação de um facto não pode implicar a confissão tácita dele, quando o mesmo esteja em inequívoca contradição com o que resulta da defesa globalmente considerada, sendo que no caso essa contradição está em oposição com a decisão tomada em relação à existência ou não da dívida e das situações acabadas de referir.
Na decisão recorrida considerou-se (oficiosamente) o mútuo nulo, cujos efeitos não podem deixar de estenderem-se a todos os interessados, e mais ainda se considerou não existir prova cabal da existência do mesmo, razão pela qual não se considerou reconhecida a dívida em relação ao interessado CC remetendo-se o mesmo para os meios comuns porque a questão não pode ser resolvida de forma razoável como incidente do inventário.
Como já se referiu, tendo-se considerado que o mútuo é nulo também os efeitos da nulidade do negócio jurídico se estendem aos demais interessados – não podendo considerar-se simultaneamente a nulidade do mútuo e a sua validade - e também como consta da decisão recorrida que “até não existe o suporte mínimo para decidir com segurança tal questão”, pelo que o reconhecimento da dívida em relação às apelantes está em manifesta contradição com a pronúncia (defesa) considerada no seu conjunto, o que viola o disposto no artigo 574º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Deste modo, todos os interessados devem ser remetidos para os meios comuns, a fim de com segurança ser decidido a existência da referida dívida, que não pode sem mais ser reconhecida, devendo proceder-se a uma averiguação mais profunda, nos termos do disposto no artigo 1093º do Código de Processo Civil.

III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida nos termos supra referidos.
Custas pela apelada.
Guimarães, 25 de Maio de 2023.