Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1649/23.9T8CHV-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
TEMPESTIVIDADE
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CASO JULGADO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Tendo decorrido o prazo para o réu exercer o contraditório relativamente a um documento junto pelo autor, não é tempestiva a invocação de litigância de má-fé com fundamento em vício do documento, não alicerçada em qualquer circunstância superveniente, alegada com vista a ser ordenado o desentranhamento de tal documento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. Na ação declarativa, sob a forma de processo comum, que AA[1] intentou contra BB, foi em 05.11.2024 proferido despacho «a determinar, nos termos do disposto no artº 411º Código de Processo Civil, e uma vez que a invocação da má fé é tempestiva, que se solicite ao processo crime nº 47/20.... do Juízo Local Criminal de Chaves o envio das gravações dos depoimentos e posteriormente indique a secção pessoa/empresa de transcrições, a fim de serem transcritos os depoimentos das testemunhas CC, AA, DD e EE, sendo os encargos a adiantar pelos cofres, entrando em regra de custas a final. Oportunamente, e em face do agora determinado se designará data de continuação da audiência de julgamento.»
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1.2. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«1- Com todo o respeito, o tribunal a quo, errou ao aceitar um pedido de má-fé que assenta em documentos, que são prova já há muito transitada em julgado formalmente.
2 – Não se aceita a impugnação da genuinidade de documentos feito um mês depois em plena audiência de discussão e julgamento, quando o art. 444 do CPC é claro a estabelecer o prazo de 10 dias para o efeito.
3- Isto é inegavelmente uma violação do princípio da preclusão.
4- E impede o A. de fazer uma correção das transcrições e veda a defesa correta deste pois toda a prova testemunhal já tinha prestado depoimento quando proferido o referido despacho de que aqui se recorre.
5- a serem desentranhados alguma transcrição por imprecisão, ficaria vedada a prova e a descoberta da verdade material, por uma manobra com todo o respeito abusiva do Réu.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.3. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil[2]), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar as seguintes questões:
i) Tempestividade da invocação da litigância de má-fé;
ii) Violação do princípio da preclusão, na parte em que o Tribunal ordena a requisição da gravação dos depoimentos prestados por três testemunhas em anterior processo-crime e subsequente transcrição por «pessoa/empresa de transcrições»;
iii) Se o despacho recorrido «impede o A. de fazer uma correção das transcrições e veda a defesa correta deste», bem como veda «a prova e a descoberta da verdade material».
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Relevam para a apreciação das apontadas questões os seguintes factos, emergentes de atos praticados no processo:
2.1.1. Em 01.07.2024, ao pronunciar-se sobre o requerimento probatório do Autor, o Tribunal recorrido concedeu «o prazo de 10 dias para o Autor juntar, querendo, a transcrição das gravações do depoimento das testemunhas referidas».
2.1.2. Em 15.07.2024, o Autor juntou aos autos a gravação dos depoimentos prestados no processo crime nº 47/20...., do Juízo Local Criminal de Chaves.
2.1.3. Em 23.09.2024, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Uma vez que a parte juntou as gravações e não as transcrições dos depoimentos, como referido no despacho saneador, notifique-se o Autor para juntar, no prazo de 10 dias, as transcrições dos depoimentos prestados por aquelas testemunhas do processo crime, sem prejuízo de poder arrolar aquelas pessoas como testemunhas a fim de serem inquiridas, nestes autos, como para demonstração dos invocados danos sofridos pelo Autor.»
2.1.4. Por requerimento de 04.10.2024, o Autor veio aos autos «juntar as transcrições dos depoimentos e arrolar aquelas pessoas como testemunhas»
2.1.5. O Réu foi notificado do requerimento referido em 2.1.4. por comunicação eletrónica de 04.10.2024 (notificação entre mandatários).
2.1.6. Em 05.11.2024, na audiência de julgamento, segundo consta da respetiva ata, a Exma. mandatária do Réu pediu «a palavra, e sendo-lhe concedida, no seu uso requereu o desentranhamento do requerimento com as transcrições dos depoimentos junto aos autos em 04.10.2024 refª ...08, por não coincidirem com as gravações, e caso não seja ordenado o desentranhamento, que seja nomeado pelo tribunal um perito para fazer as transcrições, sendo o pagamento a efetuar pelo autor.»
2.1.7. Também na referida ata consta que «[d]ada a palavra ao ilustre mandatário do autor, pelo mesmo foi dito que deverá ser indeferido o requerido por ser infundada e extemporânea a pretensão.»
2.1.8. Os requerimentos referidos em 2.1.6. e 2.1.7. foram gravados.
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Litigância de má-fé
Nos termos do artigo 7º, nº 1, do CPC, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Esse dever de cooperação tem como principal manifestação, no que toca às partes, o dever de boa-fé processual, estabelecido no artigo 8º do CPC.
Portanto, as partes devem agir no processo de boa-fé, cumprindo um dever de honeste procedere, que não é mais do que a obrigação de se comportarem em juízo de modo honesto, correto e leal, abstendo-se de atuações suscetíveis de prejudicar o normal decurso da ação e adotando uma conduta conforme ao dever de verdade e de colaboração intersubjetiva.
A violação desse dever pela parte acarreta a sua responsabilização como litigante de má-fé se estiverem reunidos os requisitos previstos no artigo 542º do CPC.
A condenação de uma parte por litigância de má-fé tanto pode resultar da iniciativa oficiosa do tribunal como de requerimento apresentado por uma parte. Sendo decretada oficiosamente, a litigância de má-fé apenas pode dar origem à aplicação de uma multa. Já a condenação da parte no pagamento de indemnização à contraparte depende de esta a ter peticionado (v. art. 542º, nº 1, in fine, do CPC).
Sendo requerida a condenação de uma parte como litigante de má-fé, tal pedido dá origem a um incidente da instância[3], sendo facultada à parte o exercício do contraditório relativamente a tal pretensão. Isto porque a parte não pode ser condenada como litigante de má-fé sem que lhe tenha sido facultada a possibilidade do exercício do contraditório, tal como decorre do disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC (acórdão do Tribunal Constitucional nº 498/2011).
O Código de Processo Civil não estabelece a forma nem o momento processual em que deve ser deduzido o pedido de condenação por litigância de má-fé, o que bem se compreende se atendermos a que as manifestações de atuação de má-fé podem ocorrer em qualquer fase do processo. Por isso, pode ser requerida a condenação de uma parte como litigante de má-fé logo na fase dos articulados, na fase de instrução, na audiência de discussão e julgamento ou até na fase de recurso. No que respeita à forma, pode ser requerida em articulado, por requerimento escrito ou de forma oral se o for no decurso de audiência judicial (ou de outra diligência), ficando, neste último caso, o pedido lavrado em ata.
Porém, a litigância de má-fé é uma situação grave e nefasta, cuja arguição não pode ser deixada ao total arbítrio ou livre disponibilidade da parte requerente, suscitando-a quando lhe é mais conveniente, sob pena de se instrumentalizar o instituto e inerentemente o processo. Como nos parece óbvio, recorrendo a um exemplo extremo, se o comportamento que alegadamente consubstancia litigância de má-fé foi expressado na petição inicial é de todo incompreensível que o réu apenas suscite a questão durante a audiência final. Uma tal alegação não pode ser considerada tempestiva, sem prejuízo do poder-dever conferido ao tribunal de oficiosamente considerar o comportamento desvalioso e condenar a parte que o assumiu como litigante de má-fé. Num caso de alegação intempestiva como o atrás apontado, o requerimento deve ser indeferido e o tribunal apenas apreciará a final a questão se considerar que alguma parte litigou efetivamente de má-fé. No caso de a litigância de má-fé resultar de um conjunto de atos encadeados, naturalmente que é admissível que a parte reaja relativamente ao último ato, formulando então o pedido de condenação por litigância de má-fé.

No caso dos autos, o Réu requereu no decurso da audiência final, no dia 05.11.2024, a condenação do Autor como litigante de má-fé por, alegadamente, a transcrição dos depoimentos prestados no processo-crime não coincidirem com as gravações, mais requerendo o desentranhamento das transcrições dos depoimentos.
Sucede que a transcrição dos depoimentos foi junta aos autos em 04.10.2024 (refª ...08), sendo notificada ao Réu por via eletrónica realizada nesse mesmo dia, nos termos dos artigos 221º, nº 1, e 255º do CPC, mas este apenas suscitou a aludida questão em 05.11.2024.
Por isso, a pretensão de condenação do Autor por litigância de má-fé é claramente intempestiva: tinha que ser deduzida no prazo de dez dias a contar do terceiro dia posterior ao do envio da notificação relativa à transcrição dos depoimentos (07.10.2024), ou seja, até ../../2024.
Esse prazo coincide com aquele que o Réu dispunha para impugnar o documento, alegando a desconformidade da transcrição. Seria incongruente que, tendo o prazo para alegar o vício do documento terminado em ../../2024, o Réu pudesse alegar essa mesma desconformidade em 05.11.2024, enquanto fundamento para o desentranhamento do documento relativo à transcrição, a litigância de má-fé e a realização de nova transcrição por terceiro a quem o Tribunal deveria recorrer. Na prática, admitir-se tal requerimento seria fazer tábua rasa do prazo de 10 dias conferido à contraparte do apresentante do documento pelos artigos 444º, nº 1, e 446º do CPC, para alegar qualquer vício do documento.
Sendo intempestivo, o requerimento do Réu devia ter sido indeferido, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se, sem prejuízo da possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso.
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2.2.2. Preclusão e caso julgado
Já concluímos que a pretensão do Réu, deduzida em 05.11.2024, é extemporânea.
Se bem interpretamos o alegado no recurso, o Recorrente entende que estando ultrapassado o prazo de 10 dias previsto no nº 1 do artigo 444º do CPC, o Tribunal a quo não podia determinar a requisição «das gravações dos depoimentos» e, logo que juntas, a transcrição dos «depoimentos das testemunhas CC, AA, DD e EE».
No seu entender, a transcrição que juntou aos autos é «prova já há muito transitada em julgado formalmente», pelo que o Tribunal ao decidir como decidiu violou o princípio da preclusão.
Será que é assim? A aludida transcrição adquiriu o referido valor probatório e o Tribunal não podia determinar a transcrição dos depoimentos prestados no processo-crime?
Estão em causa depoimentos prestados no processo-crime 47/20...., do Juízo Local Criminal de Chaves, onde o Réu foi condenado, em 15.06.2022, nos seguintes termos (v. certidão junta aos autos em 28.12.2023):
«a) julgar o arguido BB pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pessoa de CC e, em consequência, condená-lo na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros);
b) julgar o arguido BB pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pessoa de DD e, em consequência, condená-lo na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros);
c) julgar o arguido BB pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pessoa de AA e, em consequência, condená-lo na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros);
d) operar o cúmulo jurídico das penas referidas em a), b) e c) e, em consequência, condenar o arguido BB na pena única de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfaz o total de 1.260,00€ (mil duzentos e sessenta euros);
e) condenar o arguido BB na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas, prevista no artigo 90.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro que aprova o Regime Jurídico das Armas e Munições, pelo período de 1 (um) ano, ficando advertido que a interdição implica a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição;
f) ao abrigo do disposto no artigo 109.º do Código Penal, declarar perdidas a favor do Estado as armas de fogo e respectivos livretes de manifesto, melhor identificadas no auto de apreensão de fls. 18».
Na petição inicial o Autor pretendeu fazer valer a sua pretensão com base nas «declarações prestadas pelas testemunhas do MP, no processo 47/20.... que seguiu os seus termos no juízo local de chaves,
- Testemunha: AA
- Testemunha: FF
- Testemunha: EE
- Testemunha: CC
- Testemunha: GG
- Testemunha: DD
gravações já muito foram requeridas e ainda não foram fornecidas, pois continua em processamento no portal citius e, cuja junção ao presente processo desde já se requer».

No despacho saneador decidiu-se «concede[r] o prazo de 10 dias para o Autor juntar, querendo, a transcrição das gravações do depoimento das testemunhas referidas.»
Por requerimento de 15.07.2024, o Autor juntou ficheiros contendo gravações dos depoimentos, mas não as transcrições dos aludidos depoimentos, pelo que o Tribunal, por despacho de 23.09.2024 decidiu:
«Uma vez que a parte juntou as gravações e não as transcrições dos depoimentos, como referido no despacho saneador, notifique-se o Autor para juntar, no prazo de 10 dias, as transcrições dos depoimentos prestados por aquelas testemunhas do processo crime, sem prejuízo de poder arrolar aquelas pessoas como testemunhas a fim de serem inquiridas, nestes autos, como para demonstração dos invocados danos sofridos pelo Autor.»
Em 04.10.2024, o Autor juntou aos autos um documento que intitulou «transcrições dos depoimentos».

Posto isto, analisada a situação, concluímos que o aludido documento não constitui «prova já há muito transitada em julgado formalmente».
Desde logo, as provas não produzem caso julgado, efeito que apenas as decisões são suscetíveis de produzir.
Diz-nos o artigo 628º do CPC que a decisão se considera transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
Forma-se então o caso julgado, que não é mais do que a insusceptibilidade de impugnação ou modificação da decisão decorrente do seu trânsito em julgado[4]. O caso julgado pode ser formal ou material: o primeiro «só tem um valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida»; «o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada»[5]. Formam caso julgado formal as decisões sobre questões ou relações de carácter processual (art. 620º, nº 1, do CPC). Já as decisões sobre a relação material controvertida formam caso julgado material, pois, nos termos do artigo 619º, nº 1, do CPC, «transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.» E, segundo o artigo 621º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).»
Por conseguinte, o caso julgado formal confere força obrigatória dentro do processo à decisão que recaia sobre a relação processual, dentro dos limites em que julga. Decisão que recaí unicamente sobre a relação processual é toda aquela que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito[6].
Proferida uma decisão sobre uma questão de natureza adjetiva, logo que adquira carácter definitivo, o caso julgado formal realiza os seguintes efeitos: i) um efeito negativo, que se traduz na insusceptibilidade de o tribunal que decidiu voltar a pronunciar-se sobre a decisão proferida; ii) um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão ao que nela foi definido ou estabelecido[7].

No caso dos autos, antes de 05.11.2024, não incidiu qualquer decisão sobre as transcrições juntas aos autos pelo Autor. Por outro lado, como já se demonstrou, a prova produzida num processo, designadamente um elemento documental junto por uma parte, não forma caso julgado.
Pelo exposto, ao contrário do propugnado pelo Recorrente, nenhum efeito de caso julgado se produziu no que concerne às transcrições dos depoimentos prestados no processo-crime.

Prosseguindo, tendo em ../../2024 terminado o prazo para o Réu se pronunciar sobre o documento relativo às ditas transcrições, com o efeito, quanto a este, que já enunciamos, cabia ao Tribunal a quo apreciar, além do mais, se o documento junto pelo Autor correspondia às «transcrições dos depoimentos» cuja junção havia determinado no despacho de 23.09.2024 (e também anteriormente, aquando da prolação do despacho saneador).
Lidas as transcrições, facilmente se conclui que as mesmas não constituem a integral transcrição dos depoimentos, mas apenas de curtos excertos destes.
Por exemplo, o depoimento da testemunha DD, com a duração de cerca de 31 minutos (entre as 15:28 e as 15:59 horas) foi resumida nos termos que a seguir se transcrevem ipsis verbis, com semelhante composição gráfica:
«Começa as15h28
Perg o M Juiz: conhece o arguido BB
responde a testemunha: só o conheço dos factos
perg o MP: podia esclarecer o tribunal do que se passou?
...o senhor estava na varanda com a arma na mão apontada... uma pistola... tive medo claro
era uma arma
.. entramos os 3 em casa, com o AA... e ouvi o barulho de uma arma... eu andava a ligar a
policia porque tinha um senhor a porta com a arma na mão.. cheios de medo.. não voltamos
a dormir la, nem o AA, porque tinhamos receio, tinhamos medo.... não ficaram la a dormir
nem um nem outro
… sois uns drogados.. vinde cá fora que vos mato …
Termina as 15h59»

Ora, como está em causa o valor da prova produzida num outro processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 421º do CPC, o Tribunal recorrido tem que ter acesso à totalidade dos depoimentos invocados e não apenas a excertos sincopados e descontextualizados destes. É um problema de conteúdo: para valorar qualquer um desses depoimentos, a Mma. Juiz a quo necessita de ser confrontada com o conteúdo integral dos depoimentos.
Por isso, na parte em que no despacho recorrido se ordenou a requisição das gravações dos depoimentos e determinou a respetiva transcrição, a Sra. Juiz fez aquilo que a lei lhe impunha.
O facto de o Réu não se ter pronunciado tempestivamente sobre as transcrições em nada releva, pois, a aludida prova, produzida num processo de natureza criminal, será apreciada e valorada pelo Tribunal a quo (e não em função do que o Réu diga ou deixe de dizer a propósito das transcrições). Como entre o momento em que terminou o prazo para o Réu se pronunciar sobre o documento (../../2024) e a data da realização da audiência final (05.11.2024) não foi apreciada a questão relativa à manifesta incompletude da transcrição, essa matéria tinha necessariamente de ser apreciada durante o aludido ato judicial.
Nesta conformidade, o Tribunal a quo também não violou o princípio da preclusão, fenecendo as conclusões aduzidas no recurso sobre esta questão.
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2.2.3. Da violação do direito de defesa do Autor
O Recorrente sustenta que o despacho recorrido o impede «de fazer uma correção das transcrições e veda a defesa correta deste», e lhe veda «a prova e a descoberta da verdade material».
Para atalhar argumentação, em primeiro lugar, não se vislumbra como é que a requisição das gravações e a transcrição integral dos depoimentos pode impedir a descoberta da verdade material. Pelo contrário, a junção das gravações e transcrição da totalidade dos depoimentos prestados no processo-crime é mais apta a permitir a descoberta da verdade do que a mera transcrição de curtas passagens desses depoimentos, como o Autor havia feito anteriormente no processo.
Em segundo lugar, sendo certo que foi o Autor que invocou e pretende que sejam valorados os depoimentos prestados no processo-crime e tendo o Tribunal a quo, no uso de um poder-dever que lhe é conferido pelo artigo 411º do CPC, preceito que expressamente invocou, se limitado a requisitar as gravações dos depoimentos invocados pelo demandante e a determinar a transcrição da totalidade desses depoimentos, isso não representa qualquer limitação à produção de prova. É precisamente o inverso: a diligência que o Tribunal a quo ordenou é que respeita a integridade do meio probatório invocado, além de ser a única forma admissível de valorar um depoimento prestado noutro processo.
Em terceiro lugar, em momento algum o Autor admitiu que a sua transcrição dos depoimentos padece de imprecisão ou de incorreção, pelo que o problema, pelo menos por enquanto, não é de incorreção ou de qualquer outra desconformidade entre o que disserem as pessoas e o que consta da transcrição, mas de não observância do disposto no artigo 421º, nº 1, do CPC. Juntou apenas a transcrição de breves passagens dos depoimentos quando deveria ter junto transcrição da totalidade do conteúdo dos depoimentos por si invocados.
Nesse enquadramento, o Tribunal a quo não tinha que convidar o Autor a corrigir as transcrições (v. conclusão 4ª, quando se refere à «correção das transcrições»). Tinha, isso sim, em face do sucedido anteriormente (num primeiro momento, pelo requerimento de 15.07.2024, o Autor diz juntar as transcrições sem as apresentar; num segundo momento, pelo requerimento de 04.10.2024, junta apenas a transcrição de excertos dos depoimentos), de determinar a requisição da gravação e a transcrição da totalidade dos depoimentos.
Finalmente, é destituída de sentido a alusão que o Recorrente faz no sentido de que a diligência ordenada «veda a defesa correta deste».
A realidade é que não está em causa a defesa contra uma pretensão, pois a transcrição do conteúdo dos depoimentos alicerça precisamente a pretensão por si deduzida nesta ação contra o Réu, que é a condenação deste no pagamento ao Autor de uma quantia a título de compensação pelos danos não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência da conduta do Réu.
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Nesta conformidade, na parcial procedência da apelação, impõe-se a revogação da decisão recorrida na parte em que considera tempestivo o requerimento do Réu a pedir a condenação do Autor por litigância de má-fé e a manutenção do decidido quanto à requisição da gravação e à transcrição dos depoimentos prestados no processo-crime.
Quanto à responsabilidade tributária, beneficiando o Recorrente de dispensa do pagamento de taxa de justiça (art. 529º, nº 2, do CPC) e não envolvendo o recurso o pagamento de encargos (arts. 529º, nº 3, e 532º do CPC), estão apenas em causa as custas de parte (arts. 529º, nº 4, e 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
A regra geral em matéria de custas é a de que suporta as custas a parte que a elas houver dado causa, sendo que se deve entender que dá causa às custas a parte vencida (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
No âmbito do recurso estavam em causa duas matérias suficientemente delimitadas: a intempestividade do pedido de condenação do Autor por litigância de má-fé e a questão relativa à requisição da gravação e à subsequente transcrição, sendo que esta última, para efeitos de apreciação da argumentação aduzida no recurso, subdividia-se em duas.
No que concerne à litigância de má-fé, quem deu causa às custas foi o Recorrido, na medida em que ficou vencido quanto à mesma. Já quanto à outra questão, o Recorrente ficou vencido.
Por isso, as custas de parte devem ser suportadas por Recorrente e Recorrido, em igual proporção, sem prejuízo do apoio judiciário.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que considera tempestivo o requerimento do Réu a pedir a condenação do Autor por litigância de má-fé, mantendo-se o decidido em tudo o mais, nos termos supra expostos.
Custas, na vertente de custas de parte, a suportar por Recorrido e Recorrente, em igual proporção, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Guimarães, 30.01.2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
António Beça Pereira



[1] Inicialmente a ação foi também intentada por CC, mas no saneador o Réu foi absolvido da instância, com fundamento na incompetência material do Tribunal, quanto ao pedido deduzido por aquela.
[2] De ora em diante, CPC.
[3] Constitui uma ocorrência extraordinária, acidental, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual, que se configura como questão a resolver de forma acessória e secundária face ao objeto da ação ou do recurso.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 567.
[5] Autor e obra citados, pág. 569.
[6] Código de Processo Civil, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 753.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 572.