Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
23/14.2JABRG.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: CONFLITO DE DEVERES
FARMACÊUTICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. O conflito de deveres é uma causa de exclusão a ilicitude em função da qual o agente cumpre apenas um dos deveres a que está obrigado, tornando-se, deste modo, lícito o incumprimento do outro.
2. A substituição por parte de um farmacêutico de medicamento prescrito em receita médica, e sua consequente venda ao utente, sem que tal esteja legalmente previsto, com a correspondente inserção no sistema informático S... do medicamento originalmente prescrito, ainda que com o intuito de o utente não interromper a terapêutica, não preenche a causa e exclusão da ilicitude de conflito de deveres.
3. O intuito é algo do foro íntimo e não da realidade factual sobre a qual se atua, sendo essencial saber se tais terapêuticas podiam ou não ser interrompidas, e quais as consequências prováveis se o fossem.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 23/14.2JABRG.G1
Juízo central Criminal de ...
Tribunal Judicial da Comarca de ...

I RELATÓRIO

1 No processo n.º 23/14...., do Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

1. Não conhecer das nulidades invocadas pelos arguidos, por terem sido já apreciadas e decididas em sede de instrução;
2. Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. a), por referência ao art. 202º, al. b) do Código Penal;
3. Absolver a arguida EMP01..., Lda. da prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 11º, nº 2, al. a), 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. a), este por referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal;
4. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1 da Lei 109/2009 de 15 de Setembro na pena, especialmente atenuada (art. 72º, nº 1 e nº 2, al. d) e 73º, nº 1 do Código Penal), de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à razão diária de € 10 (dez euros) o que perfaz a pena de multa de € 1500 (mil e quinhentos euros);
5. Consequentemente absolver o arguido da prática do crime previsto pelo nº 3 do art. 3º da Lei 109/09 de 15/9;
6. Condenar a arguida EMP01..., Lda. pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelos artigos 9º e 3º, nº 1 da Lei 109/2009 de 15 de Setembro e art. 11º, nº 2, alínea a) do Código Penal na pena, especialmente atenuada (art. 72º, nº 1 e nº 2, al. d) e 73º, nº 1 do Código Penal), de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 110 (cento e dez euros), o que perfaz a pena de multa de € 16.500 (dezasseis mil e quinhentos euros);
7. Consequentemente absolver a sociedade arguida da prática do crime previsto pelo nº 3 do art. 3º da Lei 109/09 de 15/9;
8. Não aplicar ao arguido AA a medida de segurança de interdição da actividade farmacêutica, prevista no artigo 100º do Código Penal;
9. Não aplicar à sociedade arguida EMP01..., Lda. as penas acessórias de interdição da actividade farmacêutica e de encerramento do estabelecimento de farmácia, previstas nos artigos 90º-J, nº 1 e 90º-L, nº 1 do Código Penal;
10. Julgar improcedente o pedido de declaração de perda a favor do Estado da quantia de € 27.156, 31 formulado pelo Ministério Público a título de perda de vantagem obtida com a prática do crime e, em consequência, absolver os arguidos do pedido.


2 Não se tendo conformado com tal decisão, os arguidos vieram interpor o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

“1.
É do segmento decisório do Tribunal Colectivo ter entendido que não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude do crime de falsidade informática pelos quais os arguidos foram condenados que vai interposto o presente recurso.
2.
Conforme resultou provado e é afirmado a vários passos no Acórdão recorrido, o facto do arguido ter introduzido no sistema S... medicamentos não vendidos na farmácia foi feito com intuito de, perante ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos, o doente não interromper a terapêutica prescrita e evitar que o doente se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta.
3.
Disponibilizando aos utentes medicamentos com o mesmo princípio activo e finalidade terapêutica igual à dos medicamentos prescritos mas que não era possível fornecer pelas razões descritas e que eram alheias aos arguidos, sem que, contudo, os arguidos pedissem ao SNS a comparticipação dos medicamentos efctivamente disponibilizados – cf. pontos 10 a 20 da matéria de facto provada, folhas 116 e 120 do Acórdão recorrido.
4.
Contrariamente ao que se entendeu no Tribunal recorrido, entendemos que este facto não deve servir de circunstância atenuante da pena aplicada, antes excluindo a ilicitude do facto por se tratar de um caso notório de conflito de deveres previsto no artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal.
5.
Como refere Olindo Geraldes, no âmbito do artigo 36.º do Código Penal, a ponderação e escolha do dever de maior valor coincidem com as do artigo 335.º, n.º 2 do Código Civil relativo à colisão de direitos – Autor citado em Separata da Revista O Direito, Ano 141.º (2009), II Almedina.
6.
Conforme se refere, e bem, no Acórdão recorrido, é entendimento maioritário que no crime de falsidade informática o bem jurídico tutelado é a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório.
7.
No caso vertente, o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, sacrificou o dever de preservar a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório para satisfazer o dever de proteger e zelar pela saúde dos utentes.
8.
Não havia, sequer, uma terceira opção - ou preservava a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório, interrompendo a terapêutica dos utentes fazendo com que estes tivessem que agendar nova consulta para se munirem de nova prescrição médica ou garantia que os utentes não interrompiam a terapêutica dispensando-lhe um medicamento com o mesmo princípio activo daquele que constava da prescrição mas que não podia ser dispensado por razões alheias ao arguido, nomeadamente, por ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos.
9.
Isto sem esquecermos que, para o caso do arguido querer preservar a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório, pedindo ao utente que agendasse nova consulta e se munisse da prescrição do medicamento existente naquela data, para além de interromper a terapêutica do doente, podia acontecer que, desde o momento do agendamento da nova consulta, a realização da mesma e a deslocação do utente à farmácia para aquisição do medicamento, nesta altura, esse mesmo medicamento que anteriormente existia, já não existir, por exemplo, por ruptura do stock de medicamentos.
10.
A isto não podemos dissociar o facto de não ter resultado provado que o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, tenha actuado com a intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo.
11.
Pelo contrário, resultou provado que o arguido actuou apenas com o intuito de não interromper a terapêutica dos utentes.
12.
Não podemos ainda esquecer que o arguido só assim actuou por razões que lhe são alheias, em concreto, por motivos de ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos - ou seja, por razões que só são imputáveis ao próprio Estado.
13.
Isto é, condenando os arguidos, estamos a criminalizar uma conduta que o próprio Estado lhe deu origem quando é o próprio Estado que tem o dever de supervisionar (por si ou por outras entidades) e de garantir que não exista ruptura no stock de medicamentos, quando é o mesmo que incumbe estabelecer as regras de prescrição de medicamentos e quando grande parte das prescrições são efectuadas nas unidades de saúde que são parte integrante do Estado.
14.
O arguido, por si e em representação da sociedade, actuou com o único propósito de proteger a saúde dos utentes em obediência ao artigo 25.º, n.º 1, 64.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º do Código Civil.
15.
Ou seja, não pode considerar-se ilícito o facto do arguido ter sacrificado a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório para satisfazer o direito á saúde dos utentes, quando é o próprio Estado, legislador, que, no caso concreto, não criou mecanismos capazes de garantir essa segurança e fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório sem sacrificar direitos de valor superior, como o é o direito à saúde.
16.
Com todo o respeito que é sempre muito, a decisão de que ora se recorre, cai no absurdo, de criminalizar condutas que apenas tiveram o propósito da defesa da saúde dos utentes, pelo facto do Estado não ter assegurado do direito à protecção da saúde desses mesmos utentes ao não cumprir com a sua tarefa primordial de disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos farmacêuticos, prevista no artigo 64.º, n.º 3, al. e) da CRP.
17.
Por outro lado, o arguido, por si e enquanto representante legal da sociedade, actuou em obediência ao artigo 8.º do Código Deontológico dos Farmacêuticos, inserto no capítulo atinente aos “deveres dos farmacêuticos”, que, sob a epígrafe de “dever geral”, estatui que a primeira e principal responsabilidade do farmacêutico é para com a saúde e o bem-estar do doente e do cidadão em geral, devendo pôr o bem dos indivíduos à frente dos seus interesses pessoais ou comerciais e promover o direito de acesso a um tratamento com qualidade, eficácia e segurança.
18.
No caso temos como evidente que o dever de proteger a saúde das pessoas enquanto agente de saúde que é um farmacêutico é um dever superior ao dever de preservar a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório.
19.
Quando muito, o que apenas se admite por mera hipótese académica, seriam deveres de valor igual.
20.
No caso dos autos, ou o arguido protegia a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório pedindo aos arguidos que agendassem nova consulta para obterem a prescrição do medicamento existente, interrompendo a terapêutica dos mesmos, ou protegia a saúde dos utentes, usando a prescrição do medicamento que não podia dispensar por razões que lhe eram alheias, para dispensar um medicamento com o mesmo princípio activo e a mesma finalidade terapêutica.
21.
Optou pela segunda hipótese, cumprindo o seu dever deontológico de tudo fazer para garantir a saúde dos utentes, satisfazendo um dever superior ao que sacrificou.
22.
Por isso, verifica-se, no caso em apreço a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal, uma situação de conflito de deveres.
23.
Assim, o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida não cometeu o crime de falsidade informática a que foi condenado.
24.
Assim, o Acórdão recorrido violou o artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal, 25.º, 64.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, artigos 70.º e 335.º do Código Civil e artigo 8.º do Código Deontológico dos Farmacêuticos.

Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida com a consequente absolvição os arguidos dos crimes de falsidade informática pelos quais foram condenados”.


3 O Ministério Público, apresentou resposta ao recurso na qual entende que deve ser mantido nos seus precisos termos o acórdão recorrido, formulando as seguintes conclusões:
 
“1. O douto acórdão recorrido, dando os factos como provados e não provados, absolveu os arguidos do crime de Burla e condenou-os pelo crime de Falsidade informática.
2. Os arguidos conformaram-se com os factos integradores do crime pelo qual foram condenados.
3. Não recorrem da matéria de facto.
4. Apenas alegam que existe um conflito de deveres e que os arguidos cumpriram o de igual ou superior valor.
5. Contudo, não têm qualquer suporte fáctico para o alegado conflito de valores e que foi nessa opção que actuaram.
6. Não foram alegados nem dados como provados factos susceptíveis de integrar a aludida causa de exclusão da ilicitude, ou seja, não tivemos qualquer testemunha a dizer que se não tivesse sido alterada a receita deixaria de conseguir aviar a mesma ou outra num período de tempo razoável ou que isso impediria de modo grave e comprometedor o tratamento ou cura.
7. A figura jurídica do conflito de deveres não se basta com o mero incómodo de obter outra receita com o medicamento efectivamente prescrito”.


4 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso interposto pelos arguidos, sendo assim mantida, nos seus precisos termos a decisão recorrida, considerando em síntese que as circunstâncias de facto assentes não configuravam qualquer causa de exclusão nem da ilicitude, nem da culpa, embora fossem, evidentemente, de considerar na motivação da atuação dos arguidos, redundando, aliás, na atenuação especial da pena. 

5 Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, tendo os arguidos apresentado resposta na qual, também em síntese, reiteram estarmos presente a uma situação de conflito de deveres e que a atuação do arguido foi a de evitar que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita, tendo atuado de acordo com o previsto no artigo 8º do Código Deontológico dos Farmacêuticos.

6 Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1 Objeto do recurso:

Os factos dados como provados consubstanciam causa de exclusão de ilicitude, na vertente de conflito de deveres, prevista no artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal?

2 Decisão recorrida (excertos relevantes)

Factos provados:

“1 - A Farmácia ..., ...., sita na Praça ..., em ..., ..., é um estabelecimento comercial.
2 - Foi concedido o alvará nº ...15, de 29 de Novembro de 2012, para abertura ao público e funcionamento desse estabelecimento de farmácia, não obstante ter sido autorizada a sua instalação e funcionamento por deliberação de 18 de Dezembro de 1970.
3 - O arguido AA é farmacêutico desde ../../2003.
4 - O arguido AA, por escritura pública de trespasse, outorgada a 29 de Setembro de 2005, passou a ser, desde ../../2005, o titular do direito de propriedade sobre referido alvará nº ...15.
5 - O arguido AA exerce as funções de Director Técnico do referido estabelecimento de farmácia desde ../../2005.
6 - Por contrato de cessão, celebrado a ../../2012, foi cedida a exploração do estabelecimento de farmácia, pelo prazo de 30 anos, com início e termo, respectivamente, a 01 de Agosto de 2012 e 01 de Agosto de 2042, a favor da sociedade comercial com a denominação social EMP01..., Lda., sociedade por quotas, constituída a 26 de Julho de 2012, com o NIPC ...23, com sede na Praça ..., em ..., ....
7 - Essa sociedade tem por objecto o comércio a retalho de produtos farmacêuticos, substâncias medicamentosas, medicamentos e produtos veterinários e homeopáticos, produtos naturais, dispositivos médicos, suplementos alimentares e produtos de alimentação especial, produtos fitofarmacêuticos, cosméticos e de higiene corporal, artigos de puericultura e produtos de conforto e, bem assim, à prestação de serviços farmacêuticos de promoção da saúdo e do bem estar dos utentes, nomeadamente apoio domiciliário, administração de primeiros socorros, administração de medicamentos, utilização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, administração de vacinas não incluídas no plano nacional de vacinação, programas de cuidados farmacêuticos, campanhas de informação, colaboração em programas de educação para a saúde, a que corresponde a C.A.E. principal 47730-R3.
8 - O arguido AA é sócio e gerente da sociedade arguida EMP01..., Lda., desde a data da sua constituição.
9 - E é detentor de € 4.900 do capital social total de € 5.000,00 dessa sociedade.
10 - O arguido AA conhecia o funcionamento do programa informático de gestão e facturação, S..., instalado na Farmácia ... e sabia que teria que introduzir nesse programa a identificação de medicamentos que tivesse vendido a utentes desse estabelecimento para serem comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde.
11 - No período compreendido entre 01/01/2012 e 29/2/2016 a Farmácia ... debateu-se com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos.
12 - Nessas alturas, perante a indisponibilidade de medicamentos prescritos, porque a prescrição era efectuada, essencialmente, por marca de medicamento e através de receitas manuais, o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica (mesmo princípio activo), que vendeu a utentes da farmácia.
13 - Deste modo, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2012 e ../../2012, enquanto Director Técnico da Farmácia ..., e, entre ../../2012 e ../../2016, em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, não tendo disponível o medicamento prescrito ao utente, o arguido vendeu-lhe, em substituição, um medicamento com a mesma finalidade terapêutica, cuja comparticipação não pediu.
14 - No programa S... o arguido introduziu a identificação do medicamento prescrito na receita e não do medicamento que efectivamente vendeu.
15 - Assim, entre ../../2012 e ../../2012, o arguido AA introduziu no programa S... a venda de medicamentos constantes de prescrições médicas que, de facto, não vendeu e cuja comparticipação pediu.
16 - O que também fez entre ../../2012 e ../../2016, em representação e no interesse da sociedade arguida da qual era sócio gerente.
17 - O arguido agiu desse modo com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta.
18 - Nesses períodos, e mediante a actuação descrita, o arguido AA, por si e depois em representação e no interesse da sociedade arguida, produziu e apresentou, através do programa S..., documentos referentes a vendas de medicamentos prescritos que efectivamente não vendeu, para serem comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde.
19 - No mesmo período temporal o arguido não solicitou ao Serviço Nacional de Saúde a comparticipação dos medicamentos que vendeu em substituição dos prescritos, quer enquanto director técnico da Farmácia ..., quer, a partir de 01/08/2012, enquanto legal representante da sociedade arguida.
20 - Ao não o fazer o arguido e a sociedade arguida deixaram de receber do Serviço Nacional de Saúde comparticipações de medicamentos efectivamente vendidos pela Farmácia ..., em montante não concretamente apurado.
21 - O arguido AA sabia que, ao actuar da forma descrita, introduzia no programa S... a identificação de medicamentos que, nem ele, nem a sociedade que representava venderam e que, através desse programa, gerava documentos que foram apresentados ao Serviço Nacional de Saúde, tanto por um como por outra, para comparticipação, como sabia que iria suceder.
22 - Ao assim proceder o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, no período compreendido entre 01/01/2012 e 31/07/2012, na qualidade de director técnico da Farmácia ... e, no período compreendido entre ../../2012 e 29/02/2012, em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, não obstante soubesse que essas condutas eram proibidas e punidas por lei.
23 - Os factos descritos foram praticados pelo arguido enquanto director técnico da Farmácia ... e, posteriormente, em representação da sociedade arguida, durante o exercício e em virtude da actividade de comércio de farmácia por ela desenvolvida.
24 - A partir de Agosto de 2015, a prescrição de medicamentos passou a ser feita preferencialmente por via electrónica, com recurso à Receita Médica Electrónica e à Receita Sem Papel (RSP).
25 - Actualmente, a prescrição dos medicamentos é electrónica e efectuada por princípio activo e não pela marca do medicamento.
26 - Essa circunstância evita que o médico prescreva medicamentos esgotados no mercado.
27 - No período compreendido entre ../../2012 e ../../2016, os arguidos facturaram ao Serviço Nacional de Saúde um total de 398.005 embalagens de medicamentos.
28 - Dessas embalagens não pediram ao SNS a comparticipação em relação a 1842 referências de medicamentos que venderam.
29 - No período compreendido entre ../../2012 e ../../2016 a Farmácia ... procedeu à venda de medicamentos comparticipados por outros subsistemas públicos de assistência na doença, como o regime geral da assistência na doença aos servidores civis do Estado (ADSE), a assistência na doença aos militares das Forças Armadas (ADM), a assistência na doença aos militares da Guarda Nacional Republicana (SAD/GNR) e da Polícia de Segurança Pública (SAD/PSP).
30 - No auto de análise de fls. 311 a 315 o valor dessas comparticipações não foi considerado.
31 - Na informação enviada e validada pelo Centro de Conferência de Facturas do Serviço Nacional de Saúde, no campo comparticipação, constam as entidades mencionadas no ponto 28).
32 - No auto de análise de fls. 311 a 315 foram considerados, no que ao histórico de vendas da Farmácia ... concerne, no período compreendido entre 01/01/2012 e 29/2/2016, apenas os valores de comparticipação relativos ao SNS - Administração Regional de Saúde do Norte, IP.
33 - O arguido é pessoa respeitada e integrada no meio social onde reside.
*
34 - O arguido AA nasceu a ../../1980, no agregado familiar composto pelos pais, o progenitor, médico de clinica geral, e a progenitora, professora do 2º ciclo, actualmente reformada, e três descendentes, sendo o arguido o mais velho.
35 - Iniciou o percurso escolar aos 5 anos de idade, na área de residência, em ..., onde concluiu o 9º ano de escolaridade, posteriormente, estudou no Colégio ..., em ..., onde concluiu o ensino secundário, aos 16 anos de idade.
36 - Com 17 anos inscreveu-se na Universidade ..., onde frequentou o curso de farmácia, tendo terminado o curso com 22 anos.
37 - Após ter concluído o curso deu início a actividade profissional como adjunto de farmacêutico na “Farmácia ...”, em ....
38 - Em 2005, na sequência da reforma dos proprietários da farmácia, adquiriu a farmácia, que remodelou passado dois anos.
39 - Em 2007 inscreveu-se numa formação dirigida para executivos, com a duração de um ano, na Escola de Gestão no ..., que concluiu com sucesso.
40 - Com 36 anos frequentou o curso de Leadership, na faculdade de gestão SBE (School Business Economic) da Universidade ...”.
41 - Em 2009 iniciou o mestrado na Universidade ..., no curso de “Sistemas de Informação”, que não concluiu, faltando-lhe fazer a dissertação da tese.
42 - Casou em Junho 2008, com 27 anos e tem dois filhos.
43 - É o presidente da “Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de ...” desde 2015 e tem assento no Conselho Geral do Agrupamento e no Conselho Municipal de Educação do Município, por inerência ao cargo de presidente da Associação de Pais, fazendo também parte da CPCJ ....
44 - À data dos factos exercia, como exerce, a actividade de farmacêutico, sendo sócio gerente da Farmácia ..., sita na ....
45 - O seu agregado familiar é constituído pela mulher, BB (com 44 anos de idade), farmacêutica na Farmácia ..., por um filho com 13 anos e uma filha com 11 anos de idade, ambos estudantes.
46 - O agregado habita em residência própria, um apartamento de tipologia T3, adquirido com recurso a crédito bancário, com adequadas condições de habitabilidade e conforto.
47 - O rendimento do agregado provém da actividade profissional desenvolvida pelo arguido e pelo cônjuge, auferindo o primeiro um vencimento mensal líquido de € 1.600,00 e a mulher um vencimento mensal líquido de € 1500.00, no valor global de € 3100,00.
48 - O arguido exerce ainda actividade como director do curso e professor da disciplina formação tecnológica do “Curso de Técnico Auxiliar de Farmácia”, na Escola Profissional ..., auferindo um vencimento mensal de € 500,00.
49 - O agregado apresenta como despesas fixas mensais as relativas ao crédito bancário com a habitação, no montante de € 450,00, consumos de água, electricidade e gás no valor de cerca de € 200,00 e ainda telecomunicações, num total de cerca de € 650,00.
50 - O arguido é presidente da Delegação do Norte da Associação de Farmácias desde 2021, tendo sido reeleito em 2023, sendo delegado da associação desde 2011.
51 - Ocupa os tempos livres aprendendo a tocar bateria e estudar informática.
52 - Na comunidade de residência detém uma imagem social positiva, associada também à prática profissional.
*
53 - Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
*
54 - No ano de 2019 a sociedade arguida declarou, em sede de IRC, um lucro tributável no valor de € 117.792,65.
*
55 - À sociedade arguida não são conhecidos antecedentes criminais”.

(…)

II. O crime de falsidade informática:

Aos arguidos vem ainda imputada a prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1 e nº 3 e pelo artigo 9º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro e, ainda, pelo artigo 11º, nº 2, alínea a), do Código Penal.
A Lei nº 109/2009 de 15 de Setembro, que aprovou a Lei do Cibercrime, dispunha, ao tempo da prática dos factos, no seu artigo 3º, o seguinte:
 
1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.
(…)
3 - Quem, actuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objecto dos actos referidos no nº 1 ou cartão ou outro dispositivo no qual se encontrem registados ou incorporados os dados objecto dos actos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respectivamente.
A responsabilidade penal das pessoas colectivas encontra-se expressamente prevista no art. 9º do diploma referido, tanto na versão vigente na data dos factos, como na versão actual, ao determinar que “as pessoas colectivas e entidades equiparadas são penalmente responsáveis pelos crimes previstos na presente lei nos termos e limites do regime de responsabilização previsto no Código Penal”.
Como refere Pedro Verdelho, “Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro”, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, I, pág. 505, este ilícito pretende adaptar as especificidades do mundo online à teleologia da matriz geral da falsificação do mundo real, ou off-line. Por isso, no crime de falsidade informática, pretende-se proteger interesses semelhantes aos que tradicionalmente são tutelados através dos delitos de falsificação, isto é, a segurança, a fiabilidade, a força probatória dos documentos ou outros instrumentos com importância na vida jurídica quotidiana. A manipulação de dados ou programas com valor probatório fica em pé de igualdade com a falsidade de outros documentos.
No mesmo sentido Duarte Alberto Rodrigues Nunes, “O crime de falsidade informática”, in Revista Julgar Online, Outubro de 2017, pág. 2, ao afirmar que “a essência do crime de falsidade informática reside na manipulação dos dados inseridos num sistema informático ou do seu tratamento por via desse mesmo sistema, acabando por resultar dessa manipulação a criação de documentos ou dados falsos, o que põe em causa a segurança e a fiabilidade dos documentos no
tráfico jurídico-probatório, à semelhança do que sucede com os documentos “em sentido clássico” falsos no âmbito do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º do Código Penal.
No crime de falsidade informática, os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados. Por tal, “mais do que na própria “falsificação de documento” prevista no Código Penal, releva a intenção de “provocar engano nas relações jurídicas” enquanto além é a intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou a obtenção para si ou para terceiro de beneficio ilegítimo”. (…) não deixa de ser proeminente, na falsidade informática, o peso que o ónus probandi documental ocupa como interesse a proteger. (…) A sanção mais pesada do que no crime de falsificação previsto no Código Penal, aponta no mesmo sentido.” (Garcia Marques/Lourenço Martins, “Direito da Informática”, 1ª Ed., pág. 520-521). Também com este mesmo entendimento surge Pedro Verdelho, ob. cit., pág. 506, quando afirma: “Na verdade, o tipo principal de crime de falsidade informática, previsto no n.º 1 do artigo 3º, exige ainda, para que se verifique, que dos actos típicos descritos resulte a produção de “dados ou documentos não genuínos.”
Não obstante inexista unanimidade quanto ao bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade informática, havendo quem entenda que é a integridade dos sistemas informáticos, pretendendo o legislador impedir a prática de actos que atentem contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade dos sistemas informáticos e dos dados informáticos - cf. Acs. da Rel.Lisboa de 30.06.2011 e de 10.07.2012 e Acs. da Rel. Porto de 21.11.2012, 24.04.2013 e 17.09.2014, todos in www.dgsi.pt -, bem como a utilização fraudulenta dos mesmos (Acs. Rel. Porto de 21.11.2012 e 24.04.2013, ambos in www.dgsi.pt,). Parece ser hoje entendimento maioritário que o bem jurídico tutelado é a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (i.e., o mesmo bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação p. e
p. pelo art. 256.º do Código Penal - neste sentido Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 680 e ss, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 672 e Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Vol., 3.ª Edição, pág. 1097). Este entendimento assenta no facto de o crime de falsidade informática e o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º do Código Penal, serem de tal modo semelhantes (apenas se distinguindo quanto ao modus operandi, em que releva a execução pelo meio informático) que, ao nível da visualização dos dados no sistema informático, esses dados acabam por se apresentar como um documento no seu significado “clássico” (neste sentido, Garcia Marques/Lourenço Martins “Direito da Informática”, 2.ª Ed., pág. 683 e ss.; Faria Costa, “Algumas reflexões sobre o estatuto dogmático do chamado “Direito penal informático”, in Direito Penal da Comunicação, pág. 109; Faria Costa/Helena Moniz, “Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal”, in BFDUC, 1997, pág. 328, entre outros autores mencionados por Duarte Alberto Rodrigues Nunes, in ob. cit.).
Assim, segundo este último entendimento o que se pretende com a incriminação é impedir os actos praticados contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta desses sistemas, redes e dados – cf. Preâmbulo da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, aprovada em Budapeste, a 23.11.2001, publicada no DR Iª série A, 15.09.2009 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30.4.2008, Proc. n.º 0745386, e de 26.05.2015, in www.dgsi.pt.
Perfilhando o entendimento defendido por Duarte Alberto Rodrigues Nunes, in ob. cit., também somos da opinião que “(…) o bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade informática é a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (…), embora, pelas razões sobreditas, ainda que de forma meramente reflexa, acabe por tutelar também a integridade dos sistemas informáticos.” (…) “E, da circunstância de o bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade informática ser a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório, decorre que, como refere Oliveira Ascensão, “Criminalidade informática”, in Direito da Sociedade da Informação, II, pág. 222, a manipulação de dados próprios do agente (ou do seu tratamento automático) inseridos num sistema informático igualmente do próprio agente (v.g. um comerciante alterar um programa informático para obter um resultado que vicia a sua própria escrituração) configura a prática do crime de falsidade informática, uma vez que, nesse caso, continuará a estar em causa a protecção da segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório, que também é lesada quando o agente manipula dados informáticos que lhe pertencem (ou manipula o seu tratamento automático) e inseridos num sistema informático que igualmente lhe pertence.”

Quanto aos elementos objectivos do crime, tendo em conta a imputação em causa nos autos, são os seguintes:

1 - Introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos (art. 3º, n.º 1);
2 - Usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objecto de introdução, modificação, apagamento ou supressão ou cujo tratamento informático foi alvo de interferência por qualquer outra forma (art. 3º, nº 3, 1ª parte).
“Dados informáticos” são, segundo a alínea b) do art. 2º do mesmo diploma legal, qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.
Quanto à questão de saber em que consiste o “introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num tratamento informático de dados”, entendemos que esses conceitos devem ser interpretados partindo do significado corrente de tais palavras.
Quanto ao que deva entender-se como “tratamento de dados informáticos”, parece-nos ser de lançar mão, na falta de definição na Lei 109/09, do Relatório Explicativo da Convenção sobre o Cibercrime, donde o tratamento de dados informáticos consistirá na realização de operações relativas a esses dados executadas através da execução de um programa de computador (que, por sua vez, é um conjunto de instruções passíveis de serem executadas pelo computador para obter o resultado pretendido). Assim, o agente vai influenciar essas operações com a finalidade de que elas sejam executadas de modo diverso daquele como seriam executadas se o agente não as influenciasse do modo como as influenciou.
Dado que a introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos não deixam de ser formas de interferência no tratamento automático desses dados, a referência da Lei a “ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados” significa que o legislador quis criar uma cláusula geral, de modo a que toda e qualquer interferência relativamente ao tratamento de dados por um sistema informático caiba nesta norma incriminatória, a fim de obstar a lacunas de punibilidade.
O legislador previu um outro elemento objectivo do tipo na primeira das condutas típicas referidas e que consiste em, por via daquelas acções, serem produzidos dados ou documentos não genuínos, sendo certo que, em face do bem jurídico protegido e do próprio elemento subjectivo especial do tipo “intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes”, esses dados ou documentos terão de ser susceptíveis de servirem como meio de prova.
Da introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou da interferência, de outro modo, num tratamento informático de dados resultará, desde logo, uma realidade material falseada, razão pela qual, quando a lei actual fala em «produzindo dados ou documentos não genuínos» está a exigir que da introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou da interferência, de outro modo, num tratamento informático de dados resulte uma produção de dados ou documentos não genuínos. No mesmo sentido também Pedro Verdelho, ob. cit., pág. 506, ao afirmar, «o tipo principal de crime de falsidade informática, previsto no nº 1 do artigo 3º, exige ainda, para que se verifique, que dos actos típicos descritos resulte a produção de “dados ou documentos não genuínos”.
 
No entanto, o crime consuma-se mesmo que os documentos falsos ou contendo dados falsos não sejam impressos após a sua manipulação ilícita.
Quanto à modalidade prevista pelo artigo 3º, nº 3, 1ª parte, está em causa a utilização, por qualquer modo, do documento produzido em consequência da manipulação dos dados ou do seu tratamento nos termos já referidos. Esta conduta típica consistirá, não na manipulação dos dados informáticos ou do seu tratamento de que resultará a produção de um documento ou dados não genuínos, mas na utilização desse documento.
Quanto ao tipo subjectivo, estamos em presença de um crime doloso.
Além disso, o tipo exige que estas actuações sejam animadas de um duplo dolo: num primeiro momento, em termos lógicos, o agente do crime de falsidade informática deverá estar imbuído de “provocar engano nas relações jurídicas”. Depois, exige-se ainda, que a sua intenção seja a de que os documentos digitais falsificados “sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes” como se fossem verdadeiros – cf. art. 3º, nº 1. Ou seja, os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados, relevando aqui a intenção de “provocar engano nas relações jurídicas”.
Deste modo, no caso da conduta dos nºs 1 e 2, exige-se, para além do dolo relativamente aos elementos objectivos do tipo, que o agente manipule os dados informáticos e, em consequência disso, produza documentos ou dados não genuínos com a intenção de que sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes e, desse modo, causar engano nas relações jurídicas. Já, no caso da conduta do n.º 3, exige-se, para além do dolo relativamente aos elementos objectivos do tipo, que o agente utilize o documento com a intenção de causar um prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo.
Começando pela intenção de que os documentos ou dados não genuínos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes e, desse modo, causar engano nas relações jurídicas, apesar da redacção da Lei (em que as duas intenções do agente surgem separadas, acabando por se reconduzir uma delas – a de causar engano nas relações jurídicas – à conduta de manipulação dos dados ou do seu tratamento e a outra – a de que os documentos ou dados não genuínos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes
– ao resultado dessa manipulação), consideramos (diz-nos Duarte Alberto Rodrigues Nunes, in ob. cit.,) “que se trata de “duas intenções” que se podem resumir a apenas “uma intenção”, que é a de que os documentos ou dados não genuínos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes, surgindo a intenção de causar engano nas relações jurídicas como consequência óbvia e forçosa, uma vez que a única consequência de os documentos ou dados não genuínos serem considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes é a causação de engano nas relações jurídicas.”
Deste modo, prossegue o citado Autor “a intenção de que os documentos ou dados não genuínos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes e, desse modo, causar engano nas relações jurídicas consiste em o agente, ao manipular os dados informáticos ou o seu tratamento, ter de actuar com a intenção de os documentos ou dados não genuínos que resultarão dessa manipulação virem a ser considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes e, desse modo, causar engano nas relações jurídicas (por assentarem em documentos ou dados falsos).”
Quanto à intenção de causar um prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo (no caso da utilização), consiste em o agente, ao utilizar os documentos, agir com intenção de, por via dessa utilização, causar um prejuízo, que pode ser patrimonial (v.g. levar à realização de um pagamento indevido) ou não patrimonial (v.g. prejudicar o bom nome) a outra pessoa (física ou jurídica) ou obter (para si ou para outra pessoa, física ou jurídica) um benefício a que não tem direito, podendo esse benefício ser patrimonial (v.g. receber uma quantia em dinheiro a que não tenha direito) ou não patrimonial (v.g. casar com uma pessoa com a qual não poderia casar por existência de um impedimento legal) ou consistir num ganho (v.g. receber uma quantia em dinheiro a que não tenha direito) ou na evitação de uma perda (v.g. evitar que um determinado bem seja penhorado para pagamento de uma dívida pela qual o património do beneficiado pelo uso do documento teria de responder).
De todo o modo, na medida em que a consideração e/ou utilização dos documentos ou dados não genuínos para finalidades juridicamente relevantes e o consequente engano nas relações jurídicas e a causação de um prejuízo a outrem ou a obtenção de um benefício ilegítimo não integram o tipo objectivo, bastará que o agente actue com essa intenção, não tendo de ocorrer uma efectiva e concreta consideração e/ou utilização dos documentos ou dados não genuínos para finalidades juridicamente relevantes e o consequente engano nas relações jurídicas nem causação de um prejuízo a outrem ou obtenção de um benefício ilegítimo. Se tal suceder, trata-se de uma circunstância (agravante) que deverá ser considerada em sede de determinação da medida concreta da pena (cf. artigo 71º, n.º 2, do CP) (assim, Duarte Nunes, ob. cit.).
*
No caso ficou demonstrado que o arguido AA é, desde ../../2005 titular do alvará da Farmácia ..., altura desde a qual exerce as funções de Director Técnico desse estabelecimento de farmácia e que, a partir de 01/08/2012 a cessão da exploração da farmácia foi cedida, pelo prazo de 30 anos, a favor da sociedade arguida EMP01..., Lda., da qual é sócio e gerente desde a data da sua constituição.
Também se comprovou que o arguido AA conhecia o funcionamento do programa informático de gestão e facturação S..., instalado na apontada farmácia e sabia que teria que introduzir nesse programa a identificação de medicamentos que tivesse vendido aos utentes da farmácia a fim de serem comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde.
Sucede, porém, que, no período compreendido entre 01/01/2012 e 29/02/2016 porque a Farmácia ... se debateu com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos, perante a indisponibilidade de medicamentos prescritos e porque as prescrições eram efectuadas, essencialmente, por marca de medicamento e através de receitas manuais, o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica, que vendeu a utentes da farmácia.
Assim, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2012 e ../../2012, enquanto Director Técnico da Farmácia ..., e, entre ../../2012 e ../../2016, em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, não tendo disponível o medicamento prescrito ao utente, o arguido vendeu- lhe, em substituição, um medicamento com a mesma finalidade terapêutica, cuja comparticipação não pediu. Todavia, no programa S..., introduziu a identificação do medicamento prescrito na receita, cuja comparticipação pediu, e não do medicamento que efectivamente vendeu, cuja comparticipação não pediu.
Ao actuar desta forma, o arguido, por si e depois em representação e no interesse da sociedade arguida, produziu e apresentou, através daquele programa informático, documentos referentes a vendas de medicamentos prescritos que efectivamente não vendeu, os quais vieram a ser considerados pelo SNS para efeitos de comparticipação.
Portanto, introduziu no sistema informático utilizado na farmácia a identificação de medicamentos comparticipados vendidos, quando tal não correspondia à verdade, já que não vendeu efectivamente esses medicamentos, mas outros em sua substituição. Assim, ficaram registados no sistema informático da farmácia e foram transmitidas ao SNS para efeito de comparticipação vendas de medicamentos que na realidade não foram vendidos pela farmácia. O que significa que o arguido ao introduzir aqueles dados no sistema informático da farmácia, produziu dados falsos, com a intenção de que fossem utilizados para finalidades juridicamente relevantes, no caso, para efeitos de comparticipação.
A relação jurídica que em virtude do comportamento do arguido foi introduzida no sistema informático não corresponde à verdade, sendo que os dados assim vertidos no sistema informático produzem os mesmos efeitos de um documento falsificado, pondo em causa o seu valor probatório e consequentemente a segurança nas relações jurídicas.
E, porque se provou que o arguido AA sabia que, ao actuar da forma descrita, introduzia no programa S... a identificação de medicamentos que, nem ele, nem a sociedade que representava venderam e que, através desse programa, gerava documentos que foram apresentados ao Serviço Nacional de Saúde, tanto por um como por outra, para comparticipação, como era seu propósito e que, ao assim proceder, actuou de forma livre, voluntária e consciente, no período compreendido entre 01/01/2012 e 31/07/2012, na qualidade de director técnico da Farmácia ... e, no período compreendido entre ../../2012 e 29/02/2012, em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, não obstante soubesse que essas condutas eram proibidas e punidas por lei, agiu com dolo, na modalidade de dolo directo – art. 14º, nº 1 do Código Penal.
Nesta conformidade, o comportamento do arguido e da sociedade arguida, em cujo nome, interesse e representação aquele actuou, preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsidade informática p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 9º da Lei 109/09 de 15/9.
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É certo que vinha imputada aos arguidos a prática do crime previsto no nº 3 do citado art. 3º, todavia, por não se ter comprovado que actuação dos arguidos fosse determinada pela intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, impõe-se, nessa parte, a improcedência da pronúncia.
Como resultou comprovado, o arguido procedeu do modo descrito com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta.
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Das causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa:
 
Assente que está a prática pelo arguido do crime de falsidade informática, cumpre averiguar se se mostra preenchida alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, por ter resultado provado que, no período a que se reportam os autos, a Farmácia ... debateu-se com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos. Que foi perante essa indisponibilidade de medicamentos prescritos, porque as prescrições eram essencialmente manuais e por marca de medicamento, que o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica (mesmo princípio activo), que vendeu e cuja comparticipação não pediu, tendo apenas solicitado a comparticipação dos medicamentos que constavam das receitas. O que fez com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta. E, por fim, que, nesse mesmo período temporal os arguidos não solicitaram ao Serviço Nacional de Saúde a comparticipação dos medicamentos que venderam em substituição dos prescritos, assim deixando de receber do Serviço Nacional de Saúde comparticipações de medicamentos efectivamente vendidos pela Farmácia ..., em montante não concretamente apurado. Nesse período os arguidos facturaram ao Serviço Nacional de Saúde um total de 398.005 embalagens de medicamentos e dessas embalagens não pediram a comparticipação em relação a 1842 referências de medicamentos que venderam.
Todavia, vistas as causas de exclusão da ilicitude e da culpa constantes dos art. 31º a 39º do Código Penal, não vemos que essas circunstâncias de facto configurem qualquer causa de exclusão nem da ilicitude, nem da culpa, embora sejam, evidentemente, de considerar na motivação da actuação dos arguidos.
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Da responsabilidade da sociedade:

A sociedade “EMP02..., Lda.” é penalmente responsável nos termos do disposto pelo art. 9º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, tanto na versão vigente na data dos factos, como na versão actual, na medida em que considera as pessoas colectivas e entidades equiparadas penalmente responsáveis pelos crimes previstos nessa lei nos termos e limites do regime de responsabilização previsto no Código Penal.
Pese embora a responsabilidade penal seja, em regra, exclusiva das pessoas singulares - art. 11º do Código Penal - “na generalidade dos sistemas jurídicos reconhece-se às pessoas colectivas uma responsabilidade de direito público, na qual se inclui ou pode incluir a criminal, embora só para hipóteses em que fortes razões pragmáticas aconselham a sujeitar a essa disciplina” (Ac. do S.T.J. de 15-1- 1997, in CJ STJ, I, pág. 194).
Assim, segundo dispõe o art. 11º, nº 2 do Código Penal, tanto na versão em vigor à data da prática dos factos (introduzida pela Lei nº 30/2015, de 22 de Abril), como actualmente (o preceito em questão foi alterado pela Lei nº 102/2019, de 06/09, Lei nº 40/2020, de 18/08, Lei nº 79/2021, de 24/11 e Lei n.º 94/2021, de 21/12), as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis por crimes cometidos (al. a) em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança. Entendendo-se como tal, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade.
Só havendo lugar à exclusão da responsabilidade das pessoas colectivas quando o agente tivesse actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (cf. nº 6).
No caso, o arguido, no período compreendido entre ../../2012 e 29/02/2016 agiu em nome e no interesse da sociedade arguida da qual era gerente, sendo que gerente é precisamente o titular do órgão executivo da sociedade (Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, 2º vol., pág. 777) isto é, é ele quem a representa perante terceiros, exprimindo ou vinculando a vontade da sociedade procurando a satisfação dos interesses dessa pessoa.
A sociedade arguida incorreu, pois, na prática do aludido crime de falsidade informática.
*
Após a prática dos factos entrou em vigor a Lei n.º 79/2021, de 24/11, que alterou a Lei do Cibercrime, todavia porque as disposições legais em causa nos autos, o art. 3º, nº 1 e o art. 9º, se mantiveram inalterados não há que cuidar da sua aplicação – cf.- art. 2º do Código Penal.

(…)

3 O direito.

Os arguidos não impugnaram a matéria de facto que desse modo se encontra estabilizada, porquanto não se vislumbra qualquer vício na decisão recorrida, nomeadamente de erro notório na apreciação da prova.

A questão que se levanta é a de saber se, perante a matéria fática dada por provada, estamos perante uma situação de conflito de deveres.

A este respeito o acórdão recorrido teceu as seguintes considerações:

“Assente que está a prática pelo arguido do crime de falsidade informática, cumpre averiguar se se mostra preenchida alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, por ter resultado provado que, no período a que se reportam os autos, a Farmácia ... debateu-se com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos. Que foi perante essa indisponibilidade de medicamentos prescritos, porque as prescrições eram essencialmente manuais e por marca de medicamento, que o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica (mesmo princípio activo), que vendeu e cuja comparticipação não pediu, tendo apenas solicitado a comparticipação dos medicamentos que constavam das receitas. O que fez com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta. E, por fim, que, nesse mesmo período temporal os arguidos não solicitaram ao Serviço Nacional de Saúde a comparticipação dos medicamentos que venderam em substituição dos prescritos, assim deixando de receber do Serviço Nacional de Saúde comparticipações de medicamentos efectivamente vendidos pela Farmácia ..., em montante não concretamente apurado. Nesse período os arguidos facturaram ao Serviço Nacional de Saúde um total de 398.005 embalagens de medicamentos e dessas embalagens não pediram a comparticipação em relação a 1842 referências de medicamentos que venderam.
Todavia, vistas as causas de exclusão da ilicitude e da culpa constantes dos art. 31º a 39º do Código Penal, não vemos que essas circunstâncias de facto configurem qualquer causa de exclusão nem da ilicitude, nem da culpa, embora sejam, evidentemente, de considerar na motivação da actuação dos arguidos”.

Ensina Figueiredo Dias [1] “Durante muito tempo não tomou a doutrina penal consciência da especificidade e (relativa) autonomia do conflito de deveres perante a teoria do estado de necessidade justificante: também aquele se reconduziria, na sua figuração jurídico-penal, a um conflito de interesses cuja solução deveria, em termos de justificação, correr parelha com a do direito de necessidade. É hoje geralmente aceite doutrina diversa, sem prejuízo do reconhecimento de que o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento justificador do direito de necessidade. Em todo o caso, a colisão de deveres assume especificidades - e decisivas, em termos de solução do conflito - que o autonomizam face ao direito de necessidade. Dessa consciência é fruto a regulamentação autónoma que o conflito de deveres recebe no nosso CP, na 1.ª parte do art. 36.°-1. Sem por isso deixar de dever afirmar-se que, em tudo quanto não sejam especificidades do conflito de deveres, valerá para este a teoria que acima se expôs para o estado de necessidade justificante. Não é, todavia, unívoco - longe disso - determinar quando existe um verdadeiro conflito de deveres (e não apenas um conflito meramente aparente) para efeito do art. 36.°-1, 1. parte. Por aí começaremos o nosso tratamento.
Autêntico conflito de deveres suscetível de conduzir a justificação existe apenas quando na situação colidem distintos dever de ação, dos quais só um pode ser cumprido; (…) Fora ficam por isso os casos em que o conflito da entre um dever de ação e um dever de omissão, (…) Em hipóteses destas não existe um a autêntico conflito de deveres para efeito do art. 36.°-1, 1.ª parte: o que então sucede é que um dever de ação entra em contradição com o dever (geral) de não ingerência em bens jurídicos alheios, pelo que verdadeiramente e no fundo se verifica é uma colisão de interesses que deve ser decidida segundo o art. 34.° e a teoria do estado necessidade justificante.
Justamente por ser assim é que surge o específico problema e a razão de autonomia do tratamento jurídico-penal do conflito de deveres justificante: remetendo-o pura e simplesmente para o direito teríamos que a justificação só teria lugar se o dever cumprido (ou, mais rigorosamente, a ponderação dos interesses nesse cumprimento implicados) fosse de valor sensivelmente superior aquele que se infringe (ou aos interesses respetivos). O que, uma vez dito, logo se compreenderá constituir uma solução inaceitável (…) A única solução materialmente justa - e correspondente ao sentido jurídico do lícito e do ilícito uma vez que a situação exclui em absoluto a possibilidade de conduta que não lese nenhum dos bens jurídicos em conflito - considerar justificado o facto correspondente ao cumprimento de um dos deveres em colisão, mesmo à custa de deixar o outro incumprido, suposto que o valor do dever cumprido seja pelo menos igual – vale dizer, igual ou superior, mesmo que o não seja "sensivelmente" – ao daquele que se sacrifica. Deve ponderar-se que no conflito de deveres, diferentemente do que sucede no conflito de bens, o agente não é livre de se imiscuir ou não no conflito. Mesmo perante deveres iguais, ele deve pelo menos cumprir um deles, sob pena de o seu comportamento ser ilícito. Se, com isto, ele torna impossível o cumprimento do outro dever, em todo o caso o seu comportamento, porque correspondente a uma imposição jurídica, não pode ser ilícito. Outra solução, de resto, equipararia, sob o denominador comum da ilicitude, aquele que faz tudo quanto lhe é possível (cumprindo um de dois ou mais deveres, ainda que iguais) àquele que nada faz e não cumpre nenhum dos deveres, É esta pois a solução correta do conflito, a qual não poderia ser lograda nos quadros do direito de necessidade do art. 34.° e que, certamente por isso, o art. 36.°-1, 1. parte, expressamente consagra”.

Ensina na mesma esteira Eduardo Correia [2] “Para muitos Autores o problema não pode resolver-se pelo caminho da exclusão da culpa, como consequência da aplicação do princípio da ponderação de interesses em face de bens jurídicos de igual valor. Julgamos, porém, com BIDING, MEZGER, ARMIN KAUFMANN e WELZEL, que nestes casos o cumprimento de qualquer dos deveres justifica a omissão do cumprimento do outro dever, excluindo a ilicitude do facto”.

Refere por sua vez Paulo Pinto de Albuquerque [3] “O conflito de deveres supõe a existência de dois deveres jurídicos de ação, dos quais só um deles pode ser cumprido, incluindo o conflito entre um dever jurídico-penal e um dever não penal”.

Vejamos o disposto no artigo 31.º do Código Penal:

CAPÍTULO III
Causas que excluem a ilicitude e a culpa
  Artigo 31.º
Exclusão da ilicitude
1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
(…)
c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou
(…).

Vejamos ainda o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do mesmo diploma legal:

“Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfazer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”.

Ora, para podermos qualificar uma determinada conduta como um dever jurídico temos de atentar, antes de mais, nos factos que a enformam.

Relembremos que ficou provado:

- no período compreendido entre 01/01/2012 e 29/2/2016 a Farmácia ... debateu-se com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos;
 
- perante a indisponibilidade de medicamentos prescritos, porque a prescrição era efetuada, essencialmente, por marca de medicamento e através de receitas manuais, o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica (mesmo princípio activo), que vendeu a utentes da farmácia;

- agiu desse modo com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta;

- no programa S... o arguido AA introduziu a identificação do medicamento que se encontrava prescrito na receita e não do medicamento que efetivamente vendeu.

Assim sendo, dos factos dados como provados não é possível concluir pela verificação de qualquer dever que impusesse aos recorrentes a dispensa de medicamento não prescrito na receita médica aviada. Não se sabe que medicamentos foram dispensados, que doenças se destinam a tratar, que gravidade têm essas doenças, qual o concreto estado dos doentes, pelo que tanto pode estar em causa, por exemplo, uma apoplexia iminente como uma dermatite alérgica.

Os recorrentes invocam o cumprimento do dever resultante do artigo 8.º do Código Deontológico dos Farmacêuticos inserto no capítulo atinente aos “deveres dos farmacêuticos”, que, sob a epígrafe de “dever geral”, estatui que a primeira e principal responsabilidade do farmacêutico é para com a saúde e o bem-estar do doente e do cidadão em geral, devendo pôr o bem dos indivíduos à frente dos seus interesses pessoais ou comerciais e promover o direito de acesso a um tratamento com qualidade, eficácia e segurança.

Nada a obstar ao acerto deste dever, que aqui assume apenas dimensão ao nível de código deontológico, mas que se encontra igualmente plasmado o artigo 78.º do Estatuto da Ordem dos Farmacêuticos (Decreto-Lei n.º 288/2001, de 10711/2001), o que lhe confere uma vinculação jurídica mais evidente.

Todavia, discorda-se que o cumprimento deste nuclear dever da profissão farmacêutica imponha (ou sequer permita) ao profissional em causa a substituição de um medicamento prescrito numa receita médica por um outro, salvo, naturalmente, os casos em que, atualmente, note-se, essa possibilidade se encontra legalmente prevista. E mais se discorda quando, como se disse, da matéria de facto não resulta a verificação de qualquer patologia dos doentes servidos que reclamasse uma intervenção imediata e inadiável com a excecionalidade em causa.

Deve ter-se presente que ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos são vicissitudes que podem ocorrer em qualquer altura e em qualquer lado, pelo que a aceitação desta atuação dos recorrentes legitimaria os milhares de farmacêuticos que exercem a sua profissão entre nós a proceder de igual modo, o que nos aportaria certamente a um indescritível caos. Poder-se-á aceitar como possível que um farmacêutico, em virtude da sua experiência profissional, se depare com uma situação grave e inadiável, de indiscutível urgência, em que esteja em causa a vida ou a saúde de um utente, e que, perante isso, lhe dispense até um medicamento não prescrito que o possa salvar ou ajudar – mas terá de ser uma situação bem delimitada, devidamente caracterizada, tecnicamente classificada como urgente ou para ele aparentemente urgente, de modo a eventualmente legitimar o seu comportamento, e não uma acumulação de casos (quase dois mil), cujos contornos são totalmente desconhecidos, sem possibilidade sequer de virem a ser conhecidos, fundados apenas no seu intuito de não interromper terapêuticas (quais?) nem obrigar os utentes a obter a receita médica devida.

O dever do farmacêutico é dispensar o medicamente prescrito, caso disponha dele em stock, ou, caso a lei o permita, substituí-lo por outro idêntico, se tal for necessário ou solicitado. Na altura em que os factos tiveram lugar, as substituições efetuadas não tinham cabimento legal. E os factos apurados também não demonstram situações clínicas que justifiquem o referido procedimento.

E não esqueçamos que, tal como ensina o Insigne Mestre acima citado, o conflito de deveres é uma causa de exclusão a ilicitude em função da qual o agente cumpre apenas um dos deveres a que está obrigado, tornando-se, deste modo, lícito o incumprimento do outro.

No caso em apreço temos que aos recorrentes se lhes deparavam dois deveres: um era o de fornecer a medicação prescrita que os utentes necessitavam, estando em vista o direito à saúde; o outro era o dever de fazer inserir informaticamente a indicação fiel de qual o medicamento que tinha sido efetivamente vendido nessa sua farmácia, sendo, porém, que no caso em apreço, perante a receita com o nome do medicamento que tinha sido prescrita, não podiam inserir nesse sistema o medicamento vendido. Repare-se que, em bom rigor, os recorrentes não cumpriram o primeiro dos deveres nem o segundo. Incumpriram o primeiro, invocando um dever estatutário profissional – a bem dos doentes (dizem, sem o demonstrar) substituíram medicamentos prescritos por outros, algo que não podiam fazer, e, não se sabe bem a que título, mas provavelmente de ordem financeira, inseriram no sistema informático de modo infiel como dispensado algo que o não foi.

Não obstante, segundo a estrutura intrínseca da alegação dos recorrentes, estes cumpriram ambos dos deveres – simplesmente, um deles foi voluntariamente mal cumprido.

Se os arguidos nada tivessem inserido no sistema informático, então sim, teriam desatendido o cumprimento de um dever, e, na sua maneira de ver, discutível, com se viu, teriam cumprido um outro.

Do modo que ficou dado como provado, os recorrentes:

- incumpriram dois deveres: dispensar medicamentos de acordo com a lei, e inserir fielmente esse dispensa no sistema informático;

- invocando normas deontológicas e estatutárias, decidiram proceder de modo que entendem representar o cumprimento do dever ali enunciado;

- pretendendo receber do Estado quantia monetária inseriram de modo infiel no sistema um medicamento como vendido que, na realidade, o não foi (repare-se que não nos referimos aqui, nem isso interessa, a qualquer intuito de enriquecimento, questão já arrumada nos autos, mas não pode deixar de se referir a evidência do intuito de recebimento de quantia monetária do Estado mediante a aludida inserção informática da dispensa, que não se deverá a simples diletantismo).

É verdade que estando o medicamento esgotado no mercado, não era possível aos doentes aviarem o mesmo, pelo que teriam de agendar novas consultas para que o médico lhes prescrevesse um outro que estivesse disponível, mas isso em nada releva sem que se saiba o que está em causa nas doenças e terapêuticas das várias centenas de medicamentos nestes termos dispensados, como já se disse – e todos nós já passámos pela situação de adquirir na farmácia um medicamento necessário cuja receita é posteriormente obtida para efeito de comparticipação do Estado, o que, sem dúvida, poderia ser um procedimento alternativo e altruísta, esse sim deontologicamente nobre, sem que daí adviesse qualquer prejuízo para os doentes, para os arguidos  ou para o Estado (relembramos que, atento o já dado como provado e decidido nos autos, quando aqui referimos prejuízo para o Estado, nos referimos apenas ao prejuízo da inveracidade informativa, perturbação do mercado do medicamento, distorção dos stocks existentes, finalidades, entre outras, que o sistema informático em causa também persegue e ajuda a regular).

Repare-se nos exemplos fornecidos por Figueiredo Dias na obra citada para colisão de deveres: um pai salvar apenas um dos dois filhos em risco de afogamento, porque o salvamento de um tornou impossível salvar também o outro; um médico que, perante dois doentes igualmente necessitados de reanimação, salva apenas um porque, cumprido o necessário procedimento de reanimação, o outro já havia morrido (pag. 548) – estas situações geradoras de conflitos de deveres resultam de factos, não sendo possível que uma decisão as desse como verificadas apenas deste modo conclusivo, sendo necessário, a título meramente exemplificativo e não exaustivo, no primeiro caso, saber as condições de mar, piscina ou  rio em que os filhos se encontravam, as aptidões de natação do pai e dos filhos, as idades de todos, condições físicas, etc., e, no segundo, as doenças ou estado clínico de ambos os pacientes, qual o acertado procedimento de reanimação segundo as legis artis, qual a especialidade médica do agente e a sua experiência, etc., tudo no sentido de a factualidade assim descrita permitir ao tribunal subsumi-la, ou não, na aludida causa de exclusão da ilicitude.

No caso presente temos apenas, como fundamento da atuação, o intuito de não interromper terapêuticas – ora, o intuito é algo do foro íntimo e não da realidade factual sobre a qual se atua, cumprindo averiguar se tais terapêuticas podiam ou não ser interrompidas, e quais as consequências prováveis se o fossem, o que não está, minimamente sequer, demonstrado nos autos. Assim, este intuito é meramente proclamatório pois não é acompanhado dos factos reais que originaram a sua formação – neste segmento, temos apenas que por vezes ocorria ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos, o que, para os fins aludidos na parte final do anterior parágrafo, é equivalente a nada.

Na verdade, como também resultou provado, atualmente a prescrição dos medicamentos é eletrónica e efetuada por princípio ativo e não pela marca do medicamento, o que evita que o médico prescreva medicamentos esgotados no mercado, e que também permite uma maior liberdade de escolha ao utente de obter a medicação que necessita, entre as várias marcas que existam no mercado, não se colocando assim necessariamente neste momento a situação com que se depararam os recorrentes – todavia, cumpre indagar o que sucederá ou poderá licitamente suceder, atualmente, se entre o dia da prescrição e o aviamento da receita o medicamento prescrito pela marca ficar esgotado, e o prescritor da dita receita não autorizar qualquer substituição, possibilidade que, como sabemos, está prevista na lei? Na tese dos recorrentes, poder-se-á proceder à substituição por medicamento idêntico, e inserir no sistema informático como vendido algo que o não foi, com base no seu invocado estatuto profissional farmacêutico e no interesse do doente, o que, como é evidente, é absolutamente injustificado e intolerável. Assim sendo, a situação que se verificou e está retratada nos autos pode facilmente repetir-se atualmente, sendo certo que a razão de decidir deverá ser igual em ambos os casos, e levará à mesma conclusão.

Ora, o fundamento primeiro da causa de exclusão da ilicitude conflito de deveres encontra-se na impossibilidade de cumprimento, tempestivo ou simultâneo, de deveres de agir que se mostram em conflito — ad impossibilita nemo tenetur — e na consequente necessidade de dar prevalência a um e sacrificar o outro.[4] Todavia, como acima se disse, os recorrentes incumpriram dois deveres, e cumpriram outros dois, e os que foram cumpridos, foram-no erradamente. Ora esta miríade de deveres cumpridos/incumpridos afasta-nos decididamente do campo da causa de exclusão da ilicitude de conflito de deveres, e transporta-nos para um campo da desorganização medicamentosa, comercial, informática, financeira e até de gestão de stocks e de fluxo informativo (finalidades essenciais do sistema informático de gestão das farmácias, como é consabido) – interessante  seria ainda saber como procediam os recorrente em relação aos stocks ou existências da farmácia quando inseriam no sistema a venda de medicamentos que nele não existiam e como faziam, relativamente a esses mesmos stocks, em relação aos que dispensavam sem receita médica, quer para fins de regulação do mercado do medicamento, quer para fins tributários, mas isso não se mostra explicitado nos autos, ou pelo menos, não está devidamente debatido no presente recurso, pelo que nada mais diremos a esse respeito.

Como elucida Figueiredo Dias [5] “Para além disto, cumpre acentuar que - tal como no direito de necessidade do art. 34.° - também no conflito de deveres o resultado da ponderação (igualdade dos deveres, superioridade ou inferioridade do dever cumprido) não deve resultar simplesmente da hierarquia dos bens jurídicos em colisão, mas da ponderação concreta dos interesses em conflito no quadro da situação global”. Mas, percute-se, os interesses resultam de factos e não de puras intenções ou intuitos, algo que os autos não contêm.

Considera-se deste modo que, face à matéria de facto dada como provada, não existem factos a partir dos quais se possa concluir que o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, agiu numa situação de conflito de deveres, que, a verificar-se, excluiria a ilicitude da conduta, nos termos previstos no artigo 36º nº 1 do Código Penal.

 O recurso deve, assim, ser julgado improcedente.

III DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e “EMP01..., Ldª”, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando em 4 UCs a responsabilidade a cargod e cada um deles.
*
Notifique.
                                                                     
Guimarães, 9 de abril de 2024.

Os Juízes Desembargadores,
Bráulio Martins (Relator)
Madalena Caldeira (1ª Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto) -  vencido conforme voto que segue.


Salvo o devido e muito respeito pela decisão maioritária, entendo que a matéria de facto provada, levaria a concluir pela existência de uma situação de conflito de deveres.
Relembremos que ficou provado que no período compreendido entre 01/01/2012 e 29/2/2016 a Farmácia ... debateu-se com ruptura na disponibilidade de medicamentos, erros na prescrição de medicamentos e erro na codificação de medicamentos e perante a indisponibilidade de medicamentos prescritos, porque a prescrição era efetuada, essencialmente, por marca de medicamento e através de receitas manuais, o arguido substituiu medicamentos não disponíveis por outros, com a mesma finalidade terapêutica (mesmo princípio activo), que vendeu a utentes da farmácia.
Agiu desse modo com o intuito de que o doente não interrompesse a terapêutica prescrita e, assim, evitar que se tivesse de munir de nova prescrição para o medicamento em causa, mediante o agendamento de nova consulta.
No programa S... o arguido AA introduziu a identificação do medicamento que se encontrava prescrito na receita e não do medicamento que efetivamente vendeu.
No caso em apreço temos que ao arguido se lhe deparavam dois deveres: um era o de fornecer a medicação que os utentes necessitavam, estando em vista o direito à saúde, o outro era o dever de fazer inserir informaticamente a indicação fiel de qual o medicamento que tinha sido efetivamente vendido nessa sua farmácia, sendo, porém, que no caso em apreço, perante a receita com o nome do medicamento que tinha sido prescrita, não podia inserir nesse sistema o medicamento vendido.
Não está em causa neste recurso que o arguido quisesse ou tivesse tido algum lucro adicional, pelo facto de ter procedido desse modo.
Estando o medicamento esgotado no mercado, não era possível aos doentes, aviarem o mesmo, pelo que teriam de agendar novas consultas para que o médico lhes prescrevesse um outro que estivesse disponível.
Como também resultou provado atualmente a prescrição dos medicamentos é eletrónica e efetuada por princípio ativo e não pela marca do medicamento, o que evita que o médico prescreva medicamentos esgotados no mercado, e que também permite uma maior liberdade de escolha ao utente de obter a medicação que necessita, entre as várias marcas que existam no mercado, não se colocando assim neste momento o conflito de deveres com que se deparou o arguido.
Perante o cenário que se lhe deparava e que impedia o arguido de cumprir com ambos os deveres, não se pode considerar que tenha optado por um dever de menor valor.
Ora, o fundamento primeiro da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres encontra-se na impossibilidade de cumprimento, tempestivo ou simultâneo, de deveres de agir que se mostram em conflito — ad impossibilita nemo tenetur — e na consequente necessidade de dar prevalência a um e sacrificar o outro.
Acrescente-se que também não se pode olvidar que a farmácia ...” se situa em ... e não numa grande urbe urbana, que neste caso, poderia facilitar aos doentes procurarem noutras variadas farmácias o medicamento que necessitassem e que porventura elas ainda tivessem algum em stock, ou também facilitar obter uma outra consulta, ainda que num outro médico para passar uma nova receita do medicamento.
Como elucida Figueiredo Dias   “Para além disto, cumpre acentuar que - tal como no direito de necessidade do art. 34.° - também no conflito de deveres o resultado da ponderação (igualdade dos deveres, superioridade ou inferioridade do dever cumprido) não deve resultar simplesmente da hierarquia dos bens jurídicos em colisão, mas da ponderação concreta dos interesses em conflito no quadro da situação global”.
No caso em apreço considero que o intuito levado a cabo pelo arguido de não interromper terapêuticas dos doentes que se dirigiram à sua farmácia, tem uma base factual e traduz o motivo pelo qual o arguido agiu desse modo e a escolha que fez ao vender um outro medicamento com o mesmo princípio ativo, cumprindo assim o dever de acautelar a saúde dos doentes.
Aliás foi essa matéria, dada como provada, e não alterada, nem eliminada neste tribunal de recurso, que levou o tribunal recorrido a proceder à atenuação especial da pena, embora pudesse e devesse ter ido mais longe e considerar que tal implicaria a exclusão da ilicitude.
Considero deste modo, que face à matéria de facto dada como provada, o arguido por si e em representação da sociedade arguida, agiu numa situação de conflito de deveres, que exclui a ilicitude da conduta, nos termos previstos no artigo 36º nº 1 do Código Penal, que acarretaria necessariamente a absolvição dos crimes pelos quais foram condenados na 1ª instância.

Pedro Freitas Pinto


[1] Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3ª edição, 2019, pág. 547/549.
[2] Direito Criminal, II, Almedina, Reimpressão 1988, págs. 92 e 93
[3]  “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 283.
[4] Cfr. Joana Inês Roque da Silva in “Do conflito de deveres ao estado de necessidade no Direito Penal Tributário”, Dissertação de Mestrado em Direito Criminal, Universidade Católica, Centro Regional do Porto.
[5] Obra citada, pág. 550.