Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | CÂNDIDA MARTINHO | ||
| Descritores: | DESPACHO DE ARQUIVAMENTO CASO JULGADO NE BIS IN IDEM | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/12/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
| Sumário: | I – A decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por isso, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos. II – Uma vez decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura de instrução, quer da intervenção hierárquica, adquire a força de “caso decidido”. III – Por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura do inquérito, se admissível, os factos dele objecto não podem ser de novo ser valorados noutro processo para o efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães. I. Relatório 1. No processo comum singular 299/20.6T9AVV que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de Arcos de Valdevez, foi proferida sentença, nos termos da qual foi decidido, para além do mais: - Absolver o arguido, J. S., da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. a) e nºs 2, al. a), 4 e 5 do C. Penal, de que vinha acusado; - Absolver o arguido, J. S., da prática, como autor material, de quatro crimes de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º e 155º, al. a), ambos do Código Penal, de que vinha acusado; - Condenar o arguido, J. S., pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos p. e p. pela al. d) e m) do nº2 do art. 3º e art. 86º, nº1, al. c), ambos da Lei nº5/2006, na pena individual de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no total de €500,00 (quinhentos euros); - Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado por M. P. contra o arguido, absolvendo-o do mesmo. 2. Não se conformando com o decidido, veio a Assistente interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): i. Na situação sub iudice, não cabia a aplicação do princípio ne bis in idem (cfr. n.º 5 do artigo 29.º da CRP). Porquanto, o arguido não foi julgado anteriormente pelos factos descritos na acusação pública e, ulteriormente, no despacho de pronúncia; ii. No processo n.º 204/19.2GBAVV não foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo e, bem assim, não ficou o arguido/recorrido sujeito ao cumprimento de qualquer injunção ou regra de conduta; iii. No âmbito do processo n.º 204/19.2GBAVV, foi proferido despacho de arquivamento, com base na falta de indícios suficientes da prática do crime (vide n.º 2 do artigo 277.º do CPP). Portanto, tal despacho não é suscetível de trânsito em julgado, porque sempre poderia ser reaberto nos termos do artigo 279.º do CPP; iv. Acresce que, o arguido requereu a abertura de instrução, por considerar estar diante da violação do princípio ne bis in idem, e invocou a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, referindo-se, no entanto, ao processo n.º 518/19.1T9PTL e aos presentes autos; v. No que concerne ao processo n.º 204/19.2GBAVV, nada foi dito por parte do arguido/recorrido, até ao encerramento do debate instrutório; vi. Idem, o despacho de saneamento do processo, não conheceu de qualquer nulidade, exceção ou questão prévia que obstasse ao conhecimento do mérito da causa; vii. E o arguido não interpôs recurso do supramencionado despacho; viii. O arguido/recorrido só veio, posteriormente, em sede de contestação, invocar a nulidade estatuída na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, tomando em linha de conta a base fática constante do processo n.º 204/19.2GBAVV, em sede de contestação. Ora, de acordo com a alínea c) do n.º 3 do artigo 120.º do CPP, a nulidade deveria ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório. Não tendo assim sucedido, a nulidade ficou sanada; ix. O Tribunal a quo, tendo sido a nulidade invocada na contestação, e constituindo uma questão que pudesse, desde logo, apreciar, não conheceu de qualquer nulidade ou questão prévia, conforme n.º 1 do artigo 338.º do CPP; x. E o Defensor do arguido, tendo-lhe sido concedida a palavra para exposições introdutórias (vide artigo 339.º do CPP), dela prescindiu; xi. Ainda, o arguido/recorrido foi confrontado com os factos descritos na acusação pública e no despacho de pronúncia, já em sede de primeiro interrogatório judicial, por isso, ficou assegurada a defesa; xii. Outrossim, verifica-se uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (vide 2.ª parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP), porque o Tribunal a quo, por um lado, exara que o despacho de arquivamento, proferido em virtude do n.º 2 do artigo 277.º do CPP, não admite trânsito em julgado, mas não se coíbe de absolver o arguido/recorrido, por considerar violado o princípio ne bis in idem e a congénita exceção de caso julgado; xiii. Sem prescindir, não cumpria a aplicação do princípio in dubio pro reo, por existir prova cabal da prática dos factos descritos na acusação pública e no despacho de pronúncia, pelo arguido; xiv. Assim, os factos descritos de 3) a 24) do despacho de pronúncia deveriam ter sido dados como provados. E, consequentemente, deveria o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, conforme configurado no despacho de pronúncia; xv. Implicativamente, e porque ficaram provados os danos sofridos pela recorrente, em virtude da conduta ilícita do arguido/recorrido, como o nexo de causalidade, deveria o arguido/recorrido ter sido condenado no pagamento do pedido de indemnização civil; xvi. Não o tendo sido, deverá esta decisão ser substituída por outra que condene o arguido/recorrido pelos factos perpetrados e vertidos de 3) a 24) do despacho de pronúncia, e que se subsumem num crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a), n.º 4 e n.º 5 do CP; xvii. E, bem assim, que condene o arguido/recorrido no pagamento do pedido de indemnização civil deduzida pela recorrente; xviii. A recorrente não se pode conformar com o juízo feito pelo Tribunal a quo, com a fundamentação e decisão proferida. Por ser assim, e porque só agora o logrou obter, requer a junção ao processo de documento, que comprova a falsidade das declarações prestadas pelo arguido, no que respeita ao destino do dinheiro do casal, e que muito influíram na sentença ora emanada. Fá-lo, ainda que o mesmo não seja aceite, em defesa da sua honra, do seu bom nome, da sua integridade, pelo menos, perante V. Exas. E, igualmente, para demonstrar que, com o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo, quando decidiu absolver o arguido da prática dos factos e arrolou a justificação que consta da sentença; xix. Apela-se, por último, ao elevado grau das exigências de prevenção geral e de prevenção especial. Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, fazendo-se assim a acostumada e TÃO NECESSÁRIA JUSTIÇA!» 3. A Exma. Procuradora República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência, nos seguintes termos: 1. A questão da aplicação do princípio ne bis in idem à fase de inquérito, e, mais propriamente, ao despacho de arquivamento proferido nos termos do artigo 277.º, do CPP, está relacionada com o valor e efeitos a atribuir ao despacho de arquivamento, e com a questão do sentido e extensão da paz jurídica que o arguido deve beneficiar com tal despacho. 2. Deverá ser reconhecido que o objeto ou tema do arquivamento tem o efeito de vincular não só o MP como também o Tribunal - entendimento que nos é dado pelo regime da reabertura do inquérito, previsto no artigo 279.º do CPP, que impõe que o MP não pode reabrir o inquérito sem observar os requisitos ali previstos, o que pressupõe a fixação prévia de um objeto do processo. 3. A figura da reabertura do inquérito reconhece que o arguido deve gozar de paz jurídica depois de o inquérito ter sido arquivado; devendo, assim, ser reconhecida força de caso julgado (ou efeito análogo a este) ao despacho de arquivamento proferido pelo MP; força essa que tem subjacente uma evidente intenção política de garantia ao arguido de que não será mais perseguido pelo sistema penal. 4. E sendo certo que a perturbação da paz jurídica do cidadão começa logo na fase de inquérito, então aquele princípio constitucional deverá ser assegurado logo nessa fase. 5. Sem prejuízo do instituto processual previsto no artigo 279.º, n.º 1, do CPP: a reabertura do inquérito, figura jurídica de recurso excecional, em razão dos valores jurídicos já enunciados, e com um regime vinculativo. 6. Não poderia admitir-se que, depois do arquivamento proferido nos autos precedentes n.º 204/19.2GBAVV, e no caso de existir prova idónea a fundar uma reabertura, o MP pudesse prosseguir paralelamente investigações sobre os mesmos factos, iniciando e abrindo um novo inquérito (o que deu origem aos presentes autos) - 299/20.6T9AVV –, sem observância do regime vinculativo do artigo 279.º, n.º 2, do CPP, desde logo, sem fundamentar a reabertura, proferindo despacho com tal finalidade. 7. A exigência de despacho do MP a fundamentar a reabertura do inquérito, impõe-se como garantia de defesa do arguido que, ao ver-se afetado pelo inquérito reaberto, e novamente perseguido, pode reclamar hierarquicamente dessa decisão do MP, nos termos do artigo 279.º, n.º 2, do CPP, para obstar, desde logo, à continuidade da ação penal. 8. O vício da nulidade relativa à violação do princípio ne bis in idem, está sujeito ao regime das nulidades insanáveis, regime previsto no artigo 119.º, do Código de Processo Penal (e não ao regime das nulidades dependentes de arguição, previsto no artigo 120.º, do CPP), pelo que pode e deve ser conhecido oficiosamente, e, até, deve ser oficiosamente investigado (no caso de os autos colocarem à luz do julgador tal questão). 9. Tanto se impunha que o tribunal a quo o fez, em fase de julgamento. 10. E não se invoque que os factos do n.º 204/19.2GBAVV e dos presentes autos 299/20.6T9AVV configuram uma unidade criminosa, para justificar a impossibilidade de fragmentação do mesmo pedaço de vida, impondo que o segundo inquérito absorvesse os factos do primeiramente arquivado; isto porque – entendemos nós – a resolução criminosa subjacente aos dois inquéritos é diferenciada. 11. O despacho tabelar proferido nos termos do artigo 311.º, do CPP não fez caso julgado; tal despacho não é suscetível de vedar uma outra, e subsequente, apreciação do assunto, desde que justificada - e, desta feita, fundamentada e dirigida a uma concreta questão. 12. De resto, o vício da nulidade relativa à violação do princípio ne bis in idem, está sujeito ao regime das nulidades insanáveis, regime previsto no artigo 119.º, do Código de Processo Penal, pelo que pode ser conhecido a todo o tempo, oficiosamente (como vimos), até ao trânsito em julgado da decisão final. (…)”. 4. O arguido não apresentou qualquer resposta ao recurso. 5. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. 6. Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., não vou apresentada qualquer resposta. 7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado. II. Fundamentação Sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam, no caso vertente, a questão a decidir é de direito e consiste em saber se tendo os factos 3) a 19) da pronúncia já sido objeto dos autos de inquérito nº204/19.2GBAVV que correu termos no DIAP – Secção de Ponte de Lima - com vista à sua averiguação, os quais terminaram com o seu arquivamento, nos termos do art.277º,nº2, do CPP, por falta de indícios suficientes do crime de violência doméstica por banda do arguido, o tribunal podia ou não considerá-los nos presentes autos. Ora, entendeu-se na sentença recorrida não proceder à consideração/apreciação dos mencionados pontos da factualidade vertida na pronúncia, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”. A tal respeito, consta da sentença recorrida a seguinte argumentação: A matéria constante dos factos descritos na decisão de pronúncia sob os pontos 3) a 19) não foram por nós tomados em consideração na medida em que, tendo tal realidade já sido objecto de análise no âmbito do inquérito com o NUIPC nº204/19.2GBAVV, que correu termos junto do Departamento de Investigação e Acção Penal – Secção de Ponte de Lima, a sua apreciação nos presentes autos configura uma violação do princípio do ne bis in idem. Senão vejamos. No inquérito com o NUIPC nº204/19.2GBAVV, após a denúncia de factos passíveis de integrar a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, que vitimara a sua esposa, aqui assistente, foi, em 17.07.2019, proferido despacho de arquivamento por não terem sido recolhidos elementos de prova que sustentassem a prática, por este, do referido crime. Nesse inquérito investigou-se a prática de factos compreendidos no período temporal que vai desde o início do casamento do casal até à data do despacho de arquivamento (cfr. fls. 652 e ss.). A realidade apreciada nesse inquérito e vivenciada no referido lapso temporal foi vertida nos pontos 3) a 19) do despacho de pronúncia proferido nestes autos, sem prévio despacho de reabertura do inquérito. Cumpre, desde logo, apurar o que se considera caso julgado – violação do princípio ne bis in idem. O Código de Processo Penal não define ou consagra, de forma explícita, a figura do caso julgado nem da litispendência, que assentam no mesmo pressuposto da repetição da mesma causa relativa aos mesmos sujeitos processuais. A proibição de repetição de processos/julgamentos sobre os mesmos factos, relativamente ao mesmo agente, para além de elementares razões de economia processual resulta desde logo do princípio referido, consagrado no nº5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. O “ne bis in idem” tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado (vide HENRIQUE SALINAS “Os limites objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento – Fevereiro de 2012)”). Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal, a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez. Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como uma proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal, mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa (neste sentido, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2006, in www.dgsi.pt). Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Na verdade, como refere HENRIQUE SALINAS (OB. CIT.), “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto”. O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado. Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica (assim, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2006 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.04.2011). Por outro lado, como refere FREDERICO ISASCA (Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, almedina, 1992, pág.229), “o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados. Quer porque enquanto isoladamente considerados não seriam susceptíveis de se consubstanciarem como objecto de um processo. Quer porque a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado. Quer ainda porque, fornecendo o Código, como se demonstrou, todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e portanto a possibilidade de se alcançar a verdade material e consequentemente uma justa decisão do caso concreto, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por frustrar totalmente as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade da pessoa humana”. O que releva para efeitos de consideração do caso julgado é, portanto, não o conceito normativo de crime mas antes uma certa conduta efectivamente levada a cabo, um acontecimento naturalístico vivenciado, em suma, real e historicamente ocorrido. Nesta ordem de ideias, não custa considerar que o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hão-de considerar-se englobados no recorte de vida anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido. Vale dizer, portanto, que o efeito consuntivo dar-se-á mesmo naquelas situações em que os factos integradores da conduta criminosa tenham mas não deveriam ter permanecido totalmente estranhas ao conhecimento do juiz que primeiramente dela conheceu (vide acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2014 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.05.2008, in www.dgsi.pt). E assim é tanto no caso da continuação criminosa como também, por maioria de razão, nos casos em que parte da conduta não foi conhecida pelo juiz mas, com a que foi, está coberta pelo mesmo e único dolo do agente, como acontece no caso aqui em análise. Referindo-se o art. 29º, nº5 da Constituição da República Portuguesa apenas a julgamento, poderia considerar-se que a questão do caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nessa fase, e não também relativamente às proferidas em fases processuais anteriores. Porém impõe-se a sua aplicação não só à sentença, como a outras decisões finais. Com efeito, vigorando o princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo (cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1974, pág.33) e o princípio da adequação da lei adjectiva ao direito substantivo, da proibição do duplo julgamento decorre a impossibilidade de duplo processo com o mesmo objecto. Até porque, além de por em causa elementares princípios de segurança jurídica, constituiria um acto inútil abrir um segundo processo precisamente com o mesmo objecto de um outro, anterior, quer esteja ainda a correr termos, quer tenha já sido objecto de decisão final. Assim, o citado art. 29º, nº5, ao proibir o mais – duplo julgamento – proíbe o menos, ou seja, a existência de um duplo processo, uma dupla acusação ou pronúncia do mesmo arguido, pelos mesmos factos. A proibição de “ne bis in idem” tem uma intenção de garantia do arguido exactamente como proibição do “duplo processo” (sobre o mesmo facto) – cfr. DAMIÃO DA CUNHA, em “O Caso Julgado Parcial, Publicações da UC, 2002, pág. 485-486). A proibição do duplo julgamento envolve a proibição do duplo processo, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença, mas como também pelo despacho de arquivamento que se pronuncie que se pronuncie sobre o objecto do processo, rebus sic stantibus. O caso julgado pressupõe assim que o tribunal tenha que se pronunciar de novo sobre uma questão idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Ou seja, quando o tribunal tenha que apreciar de novo a mesma questão, relativa à mesma pessoa, com os mesmos fundamentos visando evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. O mesmo é dizer, evitar que o tribunal tenha de repetir o mesmo juízo ou possa, no limite, tomar posições distintas sobre a mesma coisa. Cumprindo ainda um elementar escopo de economia e segurança jurídicas e de defesa dos cidadãos. Tendo em vista a garantia e salvaguarda dos direitos do cidadão que não poderá ser submetido a novo processo e julgamento com os mesmos fundamentos – ne bis in idem material e processual ou da posição de arguido. Sempre no pressuposto da verificação do binómio da identidade da questão e dos seus fundamentos. Até porque só assim pode haver, em abstracto, contradição de julgados. Com efeito, a repetição da causa pressupõe, para além da identidade de sujeitos da relação jurídica, a identidade dos fundamentos em que assenta e a identidade do efeito pretendido ou da pretensão formulada com base naquele fundamento. Assim, para que se verifique a existência de caso julgado, impõe-se que o tribunal tenha apreciado efectivamente a mesma questão com os mesmos fundamentos, ou que os mesmos fundamentos sejam submetidos à sua apreciação tendo em vista o mesmo efeito jurídico. Focando no caso concreto dos autos, verifica-se que o Ministério Público, e depois o Juiz de Instrução Criminal, deduziram aqui acusação e decisão de pronúncia, respectivamente, contra o arguido pelos factos constantes do despacho de arquivamento já referido. Ora, compulsada a decisão de pronúncia proferida nestes autos, não restam dúvidas que os factos pelos quais o arguido se encontra pronunciado são parcialmente coincidentes com aqueles que constavam do inquérito com o NUIPC nº204/19.2GBAVV – factos 3) a 19) -, que foi objecto de arquivamento, não constando dos nossos autos despacho de reabertura nos termos aludidos no art. 279º, nº1 e 2 do C. P. Penal. E a solução desta questão além do acima já exposto reconduz-nos também à análise do objecto do processo penal, ou seja à matéria sobre a qual versa. O objecto do processo penal é o facto humano de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, ou seja, o crime na definição dada pelo art. 1º, nº1, al. a) do C. P. Penal. O processo, nas suas fases declarativas, recai também sobre a qualificação jurídica dos factos. A valoração ou qualificação jurídica vai-se progressivamente elaborando no decurso do procedimento, sendo algum tanto fluida até à acusação, mas devendo estabilizar-se nesta (cfr. arts. 283º a 285º) – ou no despacho de pronúncia quando tiver lugar a instrução. O objecto do processo penal é, pois, delimitado nas suas dimensões quantitativa e qualitativa a partir da acusação ou do despacho de pronúncia. O objecto do processo pode também ser delimitado pela pretensão do queixoso, mesmo na fase do inquérito. O simples facto de se fixar o objecto do processo e fixá-lo para o futuro, é uma exigência do princípio do contraditório. Daí que só uma perspectiva teleológica permita evitar, que se caiam em soluções que acabem por perder de vista o interesse da defesa. O facto criminoso é o mesmo, se a desaprovação social for a mesma, pese embora se tenham multiplicado, eventualmente, os juízos de censura jurídico penal. A investigação dos factos, e para tal devem no inquérito praticar-se todas as diligências que forem tidas por indispensáveis para o seu pleno esclarecimento, para a descoberta da verdade. Se o facto noticiado constituir crime público – como sucede neste caso -, entre o crime noticiado e o esclarecido no inquérito pode verificar-se profunda alteração, quer no que respeita aos factos, quer à sua qualificação jurídica, quer aos seus agentes sendo que em qualquer caso, o Ministério Público terá sempre legitimidade para prosseguir o processo, pois tem legitimidade para proceder por qualquer crime público. De igual modo, se no decurso do inquérito sobre o crime se vierem a descobrir indícios de outro crime público, e entre ambos existir uma relação de conexão processualmente relevante, o objecto do inquérito pode alargar-se aos novos crimes mas pressupondo-se que esse outro crime não foi investigado e objeto de arquivamento em diferente processo pois mesmo a competência determinada pela existência de conexão pressupõe que todos os factos não foram ainda objecto de outro inquérito que haja sido, como sucedeu no caso aqui em estudo, arquivado. Na verdade, em caso de hipótese de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277º do C. P. Penal, pode manter-se ainda numa certa indefinição, quanto ao objecto do processo, que tem como consequência que em caso de reabertura do inquérito os factos podem ser ampliados, restringidos ou ser qualificados diversamente. Assim pode concluir-se que o arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277º do C. P. Penal, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto, nos termos do art. 279º, nº1 desse mesmo diploma legal; o que pode suceder em dois casos, caso surjam novos factos, ou caso surjam elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial. A decisão em causa não é, pois, jurisdicional e consequentemente não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado. Em termos conceptuais, entende-se que o despacho de arquivamento produz efeitos extraprocessuais (ao contrário do que sucede com a acusação que produz efeitos endoprocessuais), pois, decorridos os prazos peremptórios para a sua impugnação/revogação (através da abertura da instrução ou intervenção hierárquica), tem a força de caso decidido, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo. Na linha de EDUARDO CORREIA, CASTANHEIRA NEVES e FIGUEIREDO DIAS, entendemos que, depois do arquivamento, é ilegítimo e inaceitável que a lei possa permitir a pendência ad eternum de uma espécie de espada de Dâmocles sobre o arguido, consistente na hipótese de reiteração da acção penal e eventual acusação com base nos mesmos factos que, num primeiro momento, conduziram ao arquivamento. Entendemos que a situação daquele que foi objecto de perseguição criminal deverá permanecer estável, e tendencialmente imperturbável, depois de proferido o despacho de arquivamento. É por esse motivo que só em condições muito apertadas poderá lançar-se mão do mecanismo de reabertura do inquérito previsto no art. 279º do C. P. Penal. A reabertura do inquérito, colocando potencialmente em causa a paz jurídica do cidadão que foi criminalmente perseguido, tem de ser entendida como um mecanismo de natureza excepcional. Neste sentido, os requisitos desta figura, plasmados no art. 279º do C. P. Penal, devem ser interpretados de modo restritivo, exigindo-se, designadamente, que os elementos de prova aptos a desencadear a reabertura do inquérito revistam valor reforçado e impondo-se, ademais, a adopção de um conceito de novidade da prova que não reconheça idoneidade para reabrir o inquérito - àqueles elementos probatórios cujo desconhecimento, aquando do arquivamento do inquérito primitivo, seja de alguma forma imputável ao Ministério Público, designadamente por negligência ou incompetência deste na condução da investigação. Daqui avulta a ideia de que pode e deve arvorar-se como referencial interpretativo da reabertura do inquérito, de uma verdadeira proibição geral de repetição da acção penal, constituindo o regime consagrado no art. 279º do C. P. Penal, aplicado nos seus apertados limites, excepção residual a uma tal proibição de carácter genérico. Cremos ser possível, a esta luz, construir um modelo de decisão das hipóteses de reabertura do inquérito que, responsabilizado o Ministério Público pela decisão tomada no final da fase de investigação, salvaguarda ao máximo, sem com isso corromper a letra ou o espírito da lei, a paz jurídica de que todos os cidadãos que foram objecto de perseguição penal devem poder beneficiar depois do arquivamento. Ora, atento o carácter excepcional da reabertura do inquérito, não nos parece admissível que a acção penal possa ser recomeçada tantas vezes quantas as necessárias – no entender do Ministério Público – para se fazer justiça. Volvendo ao caso aqui em análise, verificamos que, tendo havido despacho de arquivamento, o Ministério Público, sem prévio despacho de reabertura do inquérito, decidiu fazer ressurgir aquele pedaço de vida que tinha sido já apreciado no inquérito NUIPC nº204/19.2GBAVV, sem que ao arguido fosse possibilitada qualquer defesa, através, nomeadamente, de eventual reclamação hierárquica. Ao pretender prosseguir a acção penal contra o arguido pelos factos já objecto de apreciação, deveria o Ministério Público, através de despacho de reabertura de inquérito, devidamente fundamentado, dar a conhecer tal intenção àquele para, querendo, exercer o contraditório. Não o tendo feito, verificamos que não existiu qualquer reabertura de inquérito. Ademais, a consideração dos factos nestes autos viola claramente o princípio do “ne bis in idem”, não podendo ser aqui objecto de julgamento factos sobre os quais já antes recaiu uma decisão – o arquivamento. Assim, estando nós na presença de uma única unidade resolutiva, já apreciada no citado inquérito, não poderemos sujeitar os factos elencados nos pontos 3) a 19) a uma nova apreciação judiciária, considerando-se como não escritos. Uma nota para referir que, não obstante no ponto 19) da decisão de pronúncia, não obstante aí se descrever o facto como ocorrido em meados de 2019, considera-se o mesmo como não escrito, por recurso ao princípio do in dubio pro reo. Desconhecendo-se se tal facto se enquadra antes ou após o despacho de arquivamento já referenciado, deverá, decidindo-se a favor do arguido, julgá-lo como não provado. (…)”. Não pondo a assistente em causa que a factualidade vertida nos mencionados pontos da pronúncia já haviam sido objeto de apreciação nos autos de inquérito referenciados, defende, porém, que, no caso vertente, não cabia a aplicação do princípio “ne bis idem”, porquanto o arguido nunca foi julgado por tais factos, sendo que o despacho de arquivamento não é suscetível de transito em julgado, sempre podendo ser reaberto nos termos do artigo 279º, do CPP. Aduziu ainda o assistente, ora recorrente, que o arguido nada disse a respeito do inquérito 204/19.2GBAVV até ao encerramento do debate instrutório, que o despacho de saneamento não conheceu de qualquer nulidade, exceção ou questão prévia que obstasse ao conhecimento do mérito da causa e que de tal despacho não recorreu o arguido e que se limitou a invocar na contestação a nulidade estatuída na alínea d), do nº2, do artigo 120º, do CPP, tomando em linha de conta a base fáctica constante do inquérito 204/19.2, nulidade que por não ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório tem de considerar-se sanada. Adiantando a nossa conclusão, bem andou o tribunal recorrido, na senda da argumentação doutrinal e jurisprudencial citada, a não tomar em consideração a factualidade vertida nos pontos 3º a 19º da pronúncia, não assistindo qualquer razão ao recorrente nos argumentos invocados face ao que de seguida iremos referir. Como resulta dos autos, a factualidade vertida nos pontos 3) a 19) da pronúncia, já anteriormente vertida na acusação, foi objeto dos autos de inquérito 204/19.2GBAVV, nos quais foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277º, nº2, do CPP, ou seja, por falta de prova. Estabelece o artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.: «1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. 2 - O inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.» Por sua vez, dispõe o artigo 278.º, sob a epígrafe “intervenção hierárquica”: «1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento. 2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.» Por fim, estabelece o artigo 279.º, sobre “reabertura do inquérito”: «1 - Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. 2 - Do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato.» Ora, não sendo apropriado falar-se de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público, mas apenas em relação às decisões judiciais, e dai que um inquérito arquivado possa ser “reaberto”, o certo é também que tal reabertura apenas pode ocorrer se surgirem novos elementos de prova. Como salienta o Juiz Conselheiro Maia Costa, in Código de Processo Penal, Comentado, 2014, pág.973, em anotação ao artigo 277º “o despacho de arquivamento proferido nos termos do n.º1 do artigo 277.º que não seja impugnado pelas formas indicadas, ou que seja confirmado, “consolida-se” na ordem jurídica, não podendo em caso algum ser “reaberto”. Trata-se não propriamente de “caso julgado” que se reporta exclusivamente a decisões de natureza jurisdicional (carácter de que carecem as decisões do Ministério Público), mas de um instituto paralelo, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no artigo 282º,nº3 e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (art.29º,nº5, da Constituição). O inquérito arquivado ao abrigo do n.º2 pode ser reaberto, mas apenas quando surjam novos elementos de prova (art. 279.º). Forma-se, pois, também “caso decidido” sobre o despacho de arquivamento, mas “apenas relativamente à matéria probatória apreciada nesse despacho”. Acrescenta o mesmo autor, em comentário ao artigo 279.º, que: «1. O despacho de arquivamento que não seja objecto de intervenção hierárquica, ao abrigo do art. 278.º, nem dê lugar a requerimento de abertura de instrução, consolida-se na ordem jurídica. Não se trata propriamente de “caso julgado, que é restrito às decisões jurisdicionais, mas de paralelo instituto de “caso decidido”, ou “quase caso julgado”, das decisões do Ministério Público, a que subjazem os mesmos interesses de salvaguarda da paz jurídica e do princípio ne bis in idem (art. 29.º, n.º5, da Constituição). Daí que aquelas decisões não revistam natureza administrativa. 2. O inquérito só poderá ser reaberto se, tendo sido arquivado nos termos do nº2, do artigo 277º, ou seja, por insuficiência da prova quanto à verificação de crime ou da identidade dos seus autores, surgirem novos elementos de prova, como tal devendo ser entendidos todos os que não tiverem sido juntos aos autos, ainda que fossem já do conhecimento do requerente. No entanto, só serão pertinentes aqueles que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento, o que significa que, à semelhança do que acontece com o recurso de revisão – art.449º,nº1,al.d) – os novos elementos de prova devem pôr seriamente em dúvida a justeza da decisão proferida, sob pena de violação dos interesses acima mencionados”. Feitas estas considerações, volvendo-nos no caso concreto, tendo os mencionados factos vertidos na pronúncia sido objeto de apreciação nos autos de inquérito 204/19.2GBAVV, que terminaram com um despacho de arquivamento por falta de indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, não tendo a assistente submetido tal despacho à apreciação do superior hierárquico através de reclamação, nem à apreciação jurisdicional através da abertura da instrução, a sua reabertura apenas poderia ocorrer se tivessem surgido novos elementos de prova que invalidassem os fundamentos invocados pelo Ministério Público. Porém, como igualmente evola dos autos, tal inquérito não foi reaberto. Deste modo, formou-se “caso decidido” sobre o despacho de arquivamento, o qual, não sendo definitivo, como já referimos, sempre implicaria, para ser revertido, um despacho de reabertura do inquérito por parte do Ministério Público, nos termos expressos no mencionado artigo 279.º, com verificação dos pressupostos necessários a tal reabertura, sujeito ele próprio a apreciação através de reclamação para o superior hierárquico. Na mesma linha de entendimento, os acórdãos da Relação do Porto, de 10/01/2018, processo n.º 821/16.2T9GDM.P1 e da Relação de Lisboa de 19/1/2021, processo 751/18.3PGLRS, nos quais se defendeu que a decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura da instrução, quer da intervenção hierárquica, tem a força de “caso decidido” e, por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura do inquérito, se admissível, os factos dele objeto não podem ser de novo valorados noutro processo para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente Nos termos expostos, defendendo-se então como na decisão recorrida a não verificação de caso julgado no caso em apreço, não podemos igualmente deixar de concordar com a posição aí expressa no sentido de que a consideração de tais factos incluídos na pronúncia configuraria uma violação do princípio ne bis in idem, tendo em conta o valor que se deve atribuir à estabilidade, segurança e paz jurídica do cidadão que foi objeto de uma investigação criminal. A propósito de tal princípio, evola do Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de março de 2018, processo 38/16.6PBFVN, in dgsi.pt, que o princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado (art.29º,nº5 da CRP), traduzindo-se em ninguém poder ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, não se bastará, porém, tendo em vista conseguir a segurança e paz jurídica do cidadão, com a fase da condenação, havendo necessidade de o fazer vigorar na fase de inquérito, pois é nesta fase que o constrangimento daqueles valores e respetivos direitos, liberdades e garantia, começam a fazer-se sentir. Deste modo, tal significará que o Ministério Público, perante um despacho de arquivamento, não poderá deduzir com base nos mesmos factos e objeto processual, uma acusação, ou substituindo uma anterior por outra diferente, sob pena de perturbar a paz jurídica daquele que é (ou foi) perseguido pelo sistema penal. Do ne bis in idem assim entendido resulta, numa palavra, que o Ministério Público não poderá alterar ou reiterar a sua anterior posição (de arquivamento) quanto ao mesmo conjunto de factos e de provas. Deste modo, na senda do que vimos aduzindo, não merece qualquer censura a decisão recorrida, quando entendeu não tomar em consideração os mencionados factos incluídos na pronúncia, sob pena de violação de tal princípio, carecendo também de qualquer sentido a invocada contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, assente no facto de o tribunal recorrido ter feito constar que o despacho de arquivamento, proferido nos termos do artigo 277º,nº2, do CPP, não admite transito em julgado, vindo depois a considerar violado o princípio ne bis in idem. Por fim, importa referir que não configurando a questão levantada nestes autos qualquer nulidade, mas antes uma exceção que pode e deve ser conhecida em qualquer momento, e não fazendo caso julgado o despacho judicial (tabelar) proferido ao abrigo do disposto no artigo 311º do CPP, nenhum obstáculo existia à apreciação da questão em apreço por parte do tribunal recorrido. III. Dispositivo Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela Assistente M. P., confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três)UC. (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.) Guimarães, 12 de setembro de 2022 A Juiz Desembargadora Relatora Cândida Martinho O Juiz Desembargador Adjunto António Teixeira O Juiz Desembargador Adjunto Paulo Serafim |