Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
40855/23.9YIPRT.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: COMPRA E VENDA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONVENÇÃO DE LUGANO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, a qual se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, importando aferir se a situação em análise está abrangida por qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional que vincule o Estado Português, caso em que as respetivas disposições prevalecerão no âmbito dos critérios determinativos da competência internacional.
II - No âmbito das relações contratuais emergentes de contrato de compra e venda celebrado entre pessoas domiciliadas em território de Estados vinculados pela Convenção, o artigo 5.º, n.º 1, als. a), b) e c) da Convenção de Lugano - Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (de 30-10-2007) - prevê como critério especial determinativo da competência internacional, na falta de convenção em contrário, o local do cumprimento da obrigação, correspondendo este ao lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, relevando para o efeito o momento em que o comprador adquire o poder de dispor efetivamente dos bens.
III - Se, atendendo ao objeto da ação, na configuração dada pela requerente [domiciliada em Portugal] a respetiva obrigação foi cumprida em Portugal, lugar onde foram/seriam efetivamente entregues os bens diretamente à requerida [domiciliada em território Suíço] em face do pagamento prévio das correspondentes faturas, conforme alegadamente acordado pelas partes, nada resultando alegado que permita consubstanciar qualquer convenção em contrário quanto ao lugar de cumprimento da obrigação, podia a requerida ser demandada pela requerente em Portugal, uma vez que a competência internacional dos tribunais portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

EMP01..., Lda., com sede no Lugar ..., ..., ..., ... Guimarães, instaurou providência de injunção contra EMP02..., com sede na Av. ..., ... - ..., ... 1213 ..., Suíça, para exigir o pagamento por esta da quantia de 11.175,91 € a título de capital, acrescida de juros de mora e outras quantias.
Para tal alegou, em síntese, que se dedica à comercialização de pavimentos e, no âmbito dessa atividade, vendeu bens à requerida (representada pelo seu sócio, de nacionalidade portuguesa) no valor de 11.175,91 €, os quais se encontram melhor identificados nas faturas n.ºs ...10, ...31, ...75 e ...76, não tendo esta procedido ao respetivo pagamento, apesar de ter para o efeito entregue um comprovativo de transferência que se veio a verificar ter sido por esta ilicitamente cancelado.
Em sede de oposição, veio a requerida arguir, além do mais, a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, alegando que as partes convencionaram que os bens fornecidos pela autora seriam entregues na Suíça.
Pronunciando-se quanto à exceção arguida, pugnou a autora pelo seu indeferimento, por considerar que o lugar onde devia ser cumprida a obrigação era Portugal, tendo os bens sido entregues pela requerente à requerida em Portugal, conforme confessado por esta.
A requerente foi convidada a aperfeiçoar o requerimento inicial, o que fez nos termos do articulado apresentado em 26-10-2023, alegando, entre o mais, que a autora vendeu à ré os bens constantes das faturas emitidas, respeitantes, em resumo a réguas de madeira de pavimento (cujas caraterísticas e dimensões aí constam); que, relativamente à fatura nº ...10, a autora, procedeu à produção do material e informou a ré que o mesmo se encontrava pronto para levantamento no dia 13-03-2023, data em que remetera a fatura para pagamento antecipado, conforme tinha sido previamente acordado pelas partes; que, o representante da ré, em nome desta, se comprometeu a efetuar o pagamento e após isso, a levantar o material no dia 14-03-2023, tendo comparecido no local e data acordados para proceder ao levantamento do material (sede da autora), mas sem que tivesse efetuado o pagamento da fatura; no entanto, não tendo outra opção, entregou à requerente o comprovativo que se encontra junto com o requerimento de injunção como doc. ..., transferência que a ré veio a cancelar de imediato após o levantamento da encomenda, tendo indicado à autora, via telefone, que apenas faria o pagamento após a aplicação de todo o material; além do material que já havia levantado nas instalações da autora, a ré requisitou um adicional de 18m2, material que a autora produziu, faturou e reservou, desde ../../2023 até à presente data, nas suas instalações, aguardando que a ré proceda ao seu pagamento prévio e posterior levantamento, tendo para o efeito emitido a fatura ...31; o material foi produzido e ainda se encontra nas instalações da autora à espera que a ré proceda ao seu levantamento pois, dada a situação anterior, a autora não autorizou o seu levantamento sem que a ré efetuasse os pagamentos em falta e o pagamento do acréscimo da encomenda.
Após contraditório, foi proferida decisão que apreciou a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, julgando-a verificada, em consequência do que absolveu a ré da instância, com custas pela autora.
Inconformada com tal decisão, dela apelou o requerente, pugnando pela revogação da decisão recorrida.
Termina as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«A. Recorrente e Recorrida celebraram um contrato de compra e venda de soalho em réguas de madeira.
B. Aquando da celebração de cada contrato de compra e venda foi acordado, verbalmente, que os bens vendidos seriam entregues à Recorrida em Portugal, na sede da Recorrente, mais propriamente, em Guimarães.
C. Por sua vez, a Recorrida levantou os bens na sede da Recorrente, tendo entregue um documento comprovativo de pagamento à Requerente efetuado por transferência bancária.  
D. Pois bem sabia a Recorrida que apenas poderia levantar os bens na sede da Recorrente após pagamento.   
E. No entanto, a Recorrida deu ordem de cancelamento da transferência assim que teve autorização para levantar tais bens nas instalações da Recorrente.    
F. Consta das faturas emitidas pela Recorrente que os bens teriam que ser levantados no prazo de sete dias, sob pena de ser cobrada uma taxa de aluguer pelo espaço ocupado pelos bens vendidos.    
G. Resulta claro da prova junta aos autos e, bem assim da confissão da Recorrida que os bens deviam ser entregues na sede da Recorrente, como efetivamente foram.    
H. Resulta do art.º 5º nº 1 alíneas a) e b) da Convenção de Lugano que, no caso de venda de bens, é competente o Tribunal do lugar onde os bens foram ou devam ser entregues.
I. Assim, se os bens foram entregues em Portugal, mais propriamente, em Guimarães, sendo este um facto consumado pela própria Recorrida, conforme, repita-se, confessado pela própria, encontra-se preenchido o pressuposto contido em tal disposição legal: “lugar onde os bens foram entregues”.
J. Ora, perante tudo quanto foi exposto, deverá proceder o recurso aqui apresentado pela Recorrente e, em consequência, revogar a procedência da exceção dilatória e, em consequência, ser declarado competente o Juízo Local Cível de Guimarães para apreciar a matéria e os pedidos deduzidos».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, importa aferir se, atenta a natureza da relação material controvertida, a competência internacional para tramitar e decidir a ação em referência deve ser deferida aos tribunais portugueses, como sustenta a requerente/apelante, ou se o Tribunal recorrido é internacionalmente incompetente para apreciar o pedido formulado, conforme entendeu a decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais com interesse para a decisão da questão enunciada são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
Conforme determina o artigo 37.º, n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08), a lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, decorrendo do artigo 38.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
A competência internacional dos tribunais portugueses encontra-se, no caso, regulada no artigo 59.º do CPC, ao prever que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
Deste modo, em face do disposto no artigo 59.º do CPC, importa aferir se a situação em análise está abrangida por qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional que vincule o Estado Português, caso em que as respetivas disposições prevalecerão no âmbito dos critérios determinativos da competência internacional - cf. ainda o disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, perante o que resulta das concretas ocorrências e elementos processuais que os autos revelam, não minimamente postos em causa pelas partes, não subsistem quaisquer dúvidas de que a autora/recorrente e a ré/recorrida estão domiciliadas, respetivamente, em Portugal e na Suíça.
Como - bem - salienta o Tribunal a quo na fundamentação da decisão recorrida, «partindo da relação jurídica em litígio, tal como foi configurada pela autora, verificamos que a acção foi proposta por uma sociedade comercial portuguesa contra uma sociedade comercial sediada na Suíça, estando em causa o incumprimento de obrigação de pagamento do preço de um contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a ré, acrescido dos respectivos juros de mora e outras quantias atinentes à cobrança da alegada dívida.
Estamos, pois, perante uma situação que apresenta conexão com duas ordens jurídicas, a portuguesa e a suíça, sendo certo que, não sendo a Suíça um país membro da União Europeia, não é aplicável ao caso dos autos o Regulamento (CE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, mas a (Nova) Convenção de Lugano, de 27 de Novembro de 2008, relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (à qual se vincularam Portugal e Suíça).
O âmbito de aplicação da mencionada Convenção está definido no seu artigo 1.º, aplicando-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição, não abrangendo as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas e estando excluídas as matérias constantes das diversas alíneas previstas no n.º 2 do artigo 1.º.
No caso em apreço, a matéria em causa é indiscutivelmente de natureza civil, não se tratando no caso dos autos de nenhuma das excepções à aplicação da Convenção, sendo certo que o vertente litígio tem conexão com o território de dois dos Estados que estão vinculados pela mesma Convenção (Portugal e Suíça).
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, da citada Convenção, “Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”, só podendo ser demandadas perante os tribunais de outro Estado vinculado pela mesma Convenção por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 (cfr. artigo 3.º, n.º 1).
Entre essas regras (diga-se, facultativas) relativas à competência releva, para o caso concreto, o artigo 5.º da segunda secção da Convenção, de acordo com o qual “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção pode ser demandada noutro Estado vinculado pela presente convenção:
1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se a alínea b) não se aplicar, será aplicável a alínea a)”.
No caso dos autos está em causa, como assinalámos já, um contrato de compra e venda de réguas de madeira de pavimento, sendo-lhe aplicável, por conseguinte, a regra (facultativa) da alínea b), primeira parte do artigo 5.º, uma vez que a alínea a) só releva se não for aplicável qualquer uma das situações da alínea b).
Como assinalámos supra, resulta do teor do normativo vindo de referir que “Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: - no caso da venda de bens, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”».
Revertendo ao caso, entendeu-se na decisão recorrida que o lugar da entrega dos bens deve corresponder ao destino final dos bens/mercadorias objeto do contrato, para concluir que «estando a ré sediada na Suíça, país que era também o destino final dos bens vendidos pela autora, destino esse que a autora não nega e que resulta inequívoco do teor das facturas juntas aos autos a que respeitam os fornecimentos em questão (cfr. fls. 22 - verso a 24), concluímos que só pode a autora demandar a ré nos tribunais suíços».
Contra este último segmento da fundamentação da decisão recorrida insurge-se a recorrente, sustentando no essencial que, aquando da celebração de cada contrato de compra e venda, foi acordado, verbalmente, que os bens vendidos seriam entregues à recorrida em Portugal, na sede da recorrente, mais propriamente, em Guimarães; que, por sua vez, a recorrida levantou os bens na sede da recorrente, tendo entregue um documento comprovativo de pagamento à requerente efetuado por transferência bancária, pois bem sabia a recorrida que apenas poderia levantar os bens na sede da recorrente após pagamento.
Conclui a recorrente que, se os bens foram entregues em Portugal, mais propriamente, em Guimarães, sendo este um facto consumado pela própria recorrida, conforme confessado pela própria, encontra-se preenchido o pressuposto contido em tal disposição legal: “lugar onde os bens foram entregues”.
Apreciando, importa desde já salientar que a competência internacional dos tribunais portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida[1].
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-02-2023, antes referenciado, «em sede de aferição dos pressuposto para a atribuição da competência, não há lugar a qualquer apreciação sobre o mérito da causa nem tão pouco sobre a (in)suficiência do que tenha sido alegado pelo A., importa sim atentar aos contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na estrita medida do necessário para aferir da existência do fator legal de atribuição de competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa».
 Ou seja, a (in)competência do tribunal é aferida em função dos factos alegados na petição inicial, considerando o pedido do autor, não interessando quaisquer outros pressupostos processuais, ou os termos da contestação ou oposição deduzida[2], por isso, sem necessidade de produção de prova sobre os correspondentes factos.
Por outro lado, ainda que as decisões jurisprudenciais citadas na decisão recorrida versem sobre a matéria em análise, as circunstâncias dos respetivos casos concretos são diferentes da presente, debruçando-se algumas sobre casos em que se pretende afastar a definição da competência em função do local da entrega dos bens pelo vendedor a um transportador, caso em que, de acordo com entendimento jurisprudencial consolidado, não releva por si só o critério da entrega dos bens ao transportador, visto que a entrega só se concretiza quando o comprador adquire o poder de dispor efetivamente dos bens.
Daí que o Supremo Tribunal de Justiça venha decidindo que «[o] critério a considerar, na falta de estipulação em contrário, para determinação do local de entrega dos bens objeto de venda a que alude o artigo 5.º /1, alínea b), primeiro travessão da Convenção de Lugano de 2007, é o do lugar da entrega material dos bens ao comprador através do qual este adquire o poder de dispor efetivamente dos bens, não sendo de adotar o critério da entrega dos bens ao transportador»[3].
Sucede que o Tribunal recorrido fundamentou o seu entendimento com a suposição de que o local do destino final dos bens vendidos pela requerente corresponde ao da sede da requerida, na Suíça, quando tal não resulta suficientemente consubstanciado pelos termos em que a requerente configurou a relação jurídica controvertida.
Neste domínio, entendemos seguir de perto a fundamentação contida no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 21-11-2019[4], ainda que por referência a regime previsto no artigo 7.º, n.º 1, als. a) e b), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12/12, em tudo idêntico ao previsto no artigo 5.º, n.º1, al. b), primeiro travessão, da Convenção de Lugano de 2007, do qual se destaca o seguinte: «os efeitos do contrato de compra e venda tal como previstos no artº. 879º do Código Civil (C.C.), são a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa (efeito real que se dá com e no momento da celebração do contrato - artº. 408º, nº. 1, do C.C.), a entrega da coisa e o pagamento do preço (efeitos obrigacionais); são efeitos independentes entre si e que podem ocorrer em momentos diferentes. O efeito real operado pela transmissão da coisa tem consequências sobre o risco - artº. 796º, do C.C.
O facto de o transporte para efeitos de concretização da entrega ser a cargo de vendedor ou comprador não interfere com o momento em que se considera operado o efeito real.
Mas já pode interferir com o momento em que se cumpre a obrigação de entrega, a qual coincide sempre com o momento a partir do qual o comprador pode dispor materialmente sobre a coisa.
Ora, se a Autora entrega a mercadoria à Ré ou a transportador por esta contratado nas suas instalações, desvinculando-se a partir desse momento do destino que a Ré vai dar aos bens, pensamos que nesta particular situação a entrega verifica-se nesse local e momento, precisamente porque é a Ré quem, a partir do mesmo, dispõe sobre o destino a dar aos bens. Ou seja, o “destino final” nesse caso tem de corresponder ao momento em que fica “nas mãos” da Ré, e não àquele que a Ré ainda lhe possa dar (e que pode ser a sua sede ou outro qualquer - distribuição para clientes seus), situação que é alheia à Autora.
(…) A Autora não diz que os bens foram para a sede da R., a A. apenas diz que os entregou à R. nas suas instalações sendo o posterior transporte a cargo da R.. Portanto, na versão da A., a que é determinante, estes são os termos do contrato; e não resulta alegada qualquer convenção em contrário no sentido de, não obstante ser esse o local de entrega, ser outro o lugar de cumprimento da obrigação - essa é a exigência e interpretação do artº. 7º.
(…)
O que caracteriza a entrega é o momento e local da transferência do domínio efetivo da coisa para as mãos do comprador, pelo que coincide, nesta medida, com o momento e local de receção da mercadoria pelo comprador (momento a partir do qual dispõe quanto ao seu destino).
(…)
Esta nossa posição respeita o alcance que a norma pretende ter, e a interpretação feita no âmbito comunitário, uma vez que o elemento de proximidade com a jurisdição portuguesa existe e é algo previsível para a Ré no âmbito deste concreto contexto».
Ora, atendendo ao objeto da presente ação, na configuração dada pela requerente na petição inicial, a obrigação da recorrente foi cumprida em Portugal, lugar onde foram/seriam efetivamente entregues os bens diretamente à requerida em face do pagamento prévio das correspondentes faturas, conforme acordado pelas partes, nada resultando alegado que permita consubstanciar qualquer convenção em contrário relativamente ao lugar de cumprimento da obrigação.
Assim sendo, resta concluir que a requerida podia ser demandada pela requerente em Portugal.
Nestes termos e com os fundamentos expostos, diversamente do decidido pelo Tribunal recorrido, importa julgar improcedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Procedem, assim, as conclusões da apelação, impondo-se revogar a decisão recorrida e, em consequência, declarar o Tribunal recorrido competente em razão da nacionalidade para apreciar o pedido formulado na ação em referência.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada totalmente procedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrida, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando improcedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, declarando-se o Tribunal recorrido competente em razão da nacionalidade para apreciar o pedido formulado na ação em referência.
Custas da apelação pela requerida/apelada.
Guimarães, 23 de maio de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Joaquim Boavida (Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
Maria dos Anjos Melo Nogueira (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



[1] Cf. por todos, os Acs. do STJ de 15-02-2023 (relatora: Ana Resende), p. 4239/20.4T8STB.E1. S1; de 07-06-2022 (relator: Fernando Baptista), p. 24974/19.9T8LSB.L1. S1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[2] Cf. o Ac. TRP de 04-05-2023 (relatora: Isoleta de Almeida Costa), p. 7962/21.2T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. o Ac. do STJ de 22-09-2016 (relator: Salazar Casanova), p. 2561/14.8T8BRG.G1. S1, acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2016:2561.14.8T8BRG.G1.S1.12.
[4] Relatora Lígia Venade, p. 19210/18.8T8PRT.G1, disponível em www.dgsi.pt.