Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
10/21.4GBPTL-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DECLARAÇÃO DE PERDA DO VEÍCULO A FAVOR DO ESTADO
REQUISITOS LEGAIS
BEM DE TERCEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, nºs 1 e 2 do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o motociclo conduzido pelo arguido não pode ser considerado como instrumenta sceleris, nem como instrumento objectivamente perigoso para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas e que oferece sério risco se ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos, pois que tal motociclo constitui um dos elementos objectivos daquele ilícito criminal.
II - Estando o dito motociclo apreendido à ordem dos autos em virtude de se indiciar que o mesmo se encontrava “adulterado, tendo o número de chassi sido falsificado”, mas tendo-se apurado em inquérito autónomo pela não verificação de qualquer crime de falsificação, mostra-se inadequada a declaração de perda do mesmo a favor do Estado.
III - Além do mais, indiciando-se que o dito motociclo não pertence ao arguido, mas sim a terceiro, a ocorrer fundamento válido para a declaração de perda do dito motociclo, sempre o tribunal a quo deveria apurar previamente da propriedade do mesmo e, caso se constatasse que pertencia a terceiro, deveria ordenar a sua notificação, nos termos e para efeitos do artigo 178.º, n.º 9, do Código de Processo Penal, após decidindo em conformidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 10/21.4GBPTL, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Ponte de Lima, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, o Ministério Público, em consonância com as disposições conjugadas dos Artºs. 392º e 394º do C.P.Penal, formulou o seguinte requerimento, cuja cópia consta de fls. 2 / 4 Vº (transcrição (1)):
(...)

B. DO PROCESSO ESPECIAL:

Nos termos do artigo 392º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público requer a aplicação de uma pena de multa, em processo sumaríssimo, relativamente ao arguido R. G. filho de G. M. e de C. G. natural de: Viana do Castelo (…) [Viana do Castelo]; nacional de Portugal nascido em ..-09-1996 estado civil: Solteiro, profissão: serralheiro Mecânico (desempregado), Documento(s) de identificação: NIF - ………, CC – ……, domicílio: Rua …, Ponte de Lima

O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes, dado os autos de inquérito indiciarem suficientemente que:

1. No dia 16/02/21, 18H30M, na Rua ..., Ponte de Lima, o arguido R. G. conduzia o motociclo não matriculado com o nº chassis ...................88, não sendo titular de licença de condução ou de outro documento que o habilitasse a conduzir aquele veículo.
2. Sabia o arguido que não era titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir o referido veículo e, não obstante, quis conduzir o veículo acima mencionado nas referidas circunstâncias.
3. O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Pelo exposto, incorreu o arguido R. G., como autor material, na prática de um crime consumado de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, números 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao artigo 47º, do Decreto-Lei n.º 209/98, de 15/07.
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PROVA:
Os indícios resultaram da totalidade da prova produzida nos autos, a saber:

DOCUMENTAL:

- O certificado de registo criminal do arguido;
- informação SIMP;
- auto de notícia.

TESTEMUNHAL:
- L. M., Autuante, com domicílio profissional na Guarda Nacional Republicana – Posto Territorial de Freixo.

MEDIDA COAÇÃO:
Termo de identidade e residência já prestado, revela-se, em concreto, necessário, adequado e proporcional.
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Estabelece o n.º 2, do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro que “Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 – Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”.

- ELEMENTO OBJECTIVO DO TIPO.
O exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito, na via pública ou equiparada, constitui conduta que reveste acentuada perigosidade para a segurança rodoviária, pelo que funda o tipo objectivo da presente incriminação.

- ELEMENTO SUBJECTIVO DO TIPO.
Quanto ao nexo psicológico entre o facto e o agente, este delito assume a forma de dolo (artigo 14.º, do Código Penal), isto é, o evento lesivo corresponde à intenção do sujeito actuante, que conhece a danosidade do facto praticado.
Assim sendo, o arguido agiu com conhecimento das características do veículo e do local onde conduzia, sabendo também que não era titular de carta de condução, porém, teve vontade de conduzir e conduziu o veículo nas mencionadas circunstâncias.
tento os elementos de facto recolhidos, é indubitável que existem sérios indícios de que o arguido terá preenchido os elementos do tipo de crime previsto e punido pelo artigo 3º, números 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

- MOLDURA PENAL ABSTRACTA APLICÁVEL.
Ao crime imputado ao arguido corresponde uma moldura penal abstracta de pena de prisão de 30 (trinta) dias até 2 ano ou pena de multa de 10 (dez) a 240 dias, encontrando-se preenchido o pressuposto referido no n.º 1, do artigo 392.º, do Código de Processo Penal.

- CONDIÇÃO PROCESSUAL.
Não foi requerida a constituição de assistente.

- DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO.
O direito enquanto síntese da ideia de justiça e o direito positivo, determina a propósito do critério de escolha da pena, que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” (artigo 70.º, do Código Penal).
Ainda em nome da natureza da pessoa humana na sua relação com o Estado, a pena deve ser necessária a satisfazer as exigências da prevenção, geral e especial, e adequada à protecção dos bens jurídicos, ao restabelecimento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens jurídicos fundamentais e à reintegração e ressocialização do agente na sociedade.
Perante o quadro legal definido, entendemos que in casu deve ser aplicada pena não privativa da liberdade, pois esta ainda permite de forma proporcional, adequada, necessária e bastante as finalidades da punição.
Com efeito, importa ter presente os factores relevantes para avaliar da medida da pena da culpa.

- DOS FACTOS RELATIVOS AO FACTO.
São aqueles “capazes de fornecerem a medida da sua gravidade, são, assim, factores atinentes ao ilícito (típico) e à culpa do facto. Capazes de medir a gravidade da violação jurídica serão pois uma multiplicidade de factores pertencentes ao tipo-de-ilícito objectivo e subjectivo.” (vide Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1995, pág. 660).
Do crime consumado não resultaram consequências gravosas a nível de bens jurídicos atinentes à vida e integridade física.

- OS FACTORES RELATIVOS AO AGENTE.
É importante considerar as “circunstâncias atípicas ou extratípicas, cujo fundamento de relevância para a medida da pena de prevenção advirá de poderem ligar-se à necessidade da pena.” (vide Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1995, pág. 671).
Do certificado de registo criminal do arguido não consta condenação anterior.
Resulta ainda dos autos que o arguido no âmbito do NUIPC 66/20.7GBPTL, Processo sumário - fase preliminar, pelo crime de Condução sem habilitação legal, com início da proibição, em 15-10-2020 e seu Termo (da proibição), em 15-04-2021.
O arguido é serralheiro mecânico, mas encontra-se desempregado já há cerca de dois anos. Vai fazendo uns biscates quando aparecem, obtendo rendimento mensal que estima de 300 euros.
Acrescenta que são os seus pais e os pais da sua companheira quem o ajudam. É solteiro, tem três filhos, de 2 anos, outro de quatro anos e outro de sete anos de idade. Vive com uma companheira, a qual é empregada de balcão (no … de …, Viana do Castelo) auferindo 600 euros mensais, porém atualmente encontra-se de baixa médica. Não possui veículos automóveis. O ciclomotor dos autos é pertença do seu irmão. Vive em casa arrendada pagando 250 euros mensais, juntamente com a companheira e os três filhos. Não tem outros rendimentos, nem outros encargos.
Reunidos estes elementos, é ainda possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao respeito pelas normas jurídico-penais.
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No que respeita aos critérios de determinação da medida da pena rege o disposto no artigo 71º, do Código Penal.
Tendo presente este parâmetro legislativo, a medida da pena a aplicar deve ser determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele, não excedendo o limite da culpa.
O arguido encontra-se inserido na sociedade, em termos familiares, pelo que se encontram atenuadas maiores exigências de prevenção especial no caso concreto.
Nestes termos, entendemos que o pagamento de uma multa pelo arguido será, ainda por esta vez, suficiente para o afastar da prática futura de crimes de idêntica natureza, assim como julgamos ficarem satisfeitas dessa forma as necessidades de prevenção geral.
Face ao exposto, e nos termos dos artigos 71º e 47º, números 1 e 2, do Código Penal, temos por ajustada a aplicação ao arguido da pena de multa de 50 (cinquenta) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor total de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, números 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Nestes termos, requer-se a aplicação ao arguido R. G., em processo sumaríssimo, de uma pena de 50 (cinquenta) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor total de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, números 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
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(...)
Informe o NUIPC 66/20.7GBPTL, Processo sumário - fase preliminar, para os fins tidos por convenientes.
Em concreto, importa proceder à separação de processos, na medida em que a investigação do eventual crime de falsificação importará a realização de um plano diverso e de execução previsivelmente mais demorado. Nestes termos, extraia certidão integral e Registe e Autue como crime falsificação: bo. Após conclua no novo NUIPC.
Oportunamente, remeta os autos à distribuição.
(...)”.
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2. Remetidos os autos à distribuição [Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo], pelo despacho de 23/02/2021, cuja cópia consta de fls. 5, foi admitido tal requerimento formulado pelo Ministério Público, tendo-se determinado, além do mais, a notificação do arguido para, no prazo de 15 dias, deduzir, querendo, oposição.
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3. Regular e pessoalmente notificado, o arguido nada disse.
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4. Nessa sequência, em 17/11/2021 foi proferida a sentença cuja cópia consta de fls. 8/9, depositada no dia 18/11/2021, com o seguinte teor (transcrição):

I- RELATÓRIO
O Ministério Público requereu, nos presentes autos de processo especial sumaríssimo, a aplicação ao arguido, R. G., solteiro, nascido a 18.09.1996, filho de G. M. e de C. G. e residente na Rua do …, Ponte de Lima, da pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, no total de €250,00, imputando-lhe a prática de factos integradores de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03.01 (fls. 33 e ss.).

II – SANEAMENTO
Esse requerimento foi oportunamente recebido (fls. 41), o arguido foi notificado pessoalmente para a ele se opor (fls.3333211), querendo, no prazo e termos legais, nada tendo vindo declarar.

III – DECISÃO

Nestes termos, e atento o disposto no art. 397º, nº1 e 2 do C.P.Penal, decide-se:
a) Aplicar ao arguido, R. G., pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03.01, a pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a pena global de €250,00 (duzentos e cinquenta euros);
b) Proceder ao desconto de um dia de detenção sofrido pelo arguido, liquidando-se a pena em 49 (quarenta e nove) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a pena global de €245,00 (duzentos e quarenta e cinco euros) (cfr. art. 80º, nº2 do C.Penal);
c) Condenar o arguido em custas, que se fixam em 01 (uma) UC de taxa de justiça (art. 513º, nº1 do C.P.Penal; e art. 8º, nº9 do RCP e Tabela III a esta anexa).
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Determina o artigo 109.º, n.º 1, do C. Penal, que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
A perda de bens a favor do Estado é ainda declarada mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (n.º 2), competindo ao juiz, se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos, ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio (n.º 3).
Conforme se apreende da leitura do citado preceito, a perda de objectos a favor do Estado não é uma pena, nem um efeito desta, consubstanciando antes uma medida autónoma, de carácter preventivo. Como tal, não depende da efectiva condenação do arguido, como resulta do disposto no nº 2 do citado preceito.
Importante é que se observem os pressupostos taxados na norma, como sejam, ter servido para a prática de um facto ilícito típico; quando, pela sua natureza, ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. Desta forma, não sendo tal perda de aplicação automática, haverá a mesma que ser devidamente fundamentada e estribada em factos donde se extraia, desde logo, o referido “sério risco”.
Subjaz ao referido artigo 109.º do C. Penal a ideia segundo a qual a perda de objectos, assim como a sua destruição ou retirada do mercado, se funda num de dois motivos: (i) a sua utilização no cometimento dos factos qualificados como ilícito ou (ii) no risco da sua utilização em factos de idêntica natureza.

São requisitos legais da declaração de perda:
- que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de facto ilícito ou típico ou; que tenha, sido o produto, isto é, o efeito do facto ilícito típico;
- a perigosidade dos objectos.
Compulsados os autos, verificamos que se encontra apreendido à ordem destes autos um motociclo encontrado na posse do arguido. Esse veículo encontra-se adulterado, tendo o número de chassi sido falsificado. Assim, e porque tal veículo é fruto de um ilícito, declara-se o mesmo perdido a favor do Estado.
Nos termos e para os efeitos previstos no art. 236º da Lei nº75-B/2020, de 31.12, determina-se, após trânsito, a remessa ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), para efeitos de administração, do veículo apreendido à ordem dos presentes autos.
Deverá ser dado conhecimento a essa entidade do auto de apreensão do veículo, do auto de notícia, do auto de apreensão e da declaração de perda favor do Estado de tal bem, agora proferida, com a nota de que tal decisão ainda não transitou em julgado.
**
Após trânsito, remeta-se boletim aos Serviços de Identificação Criminal (artigo 6º, al. a) e 7º, nº1, al. a) da Lei nº 37/2015, de 05 de Maio).
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Vai proceder-se ao depósito da presente sentença, nos termos do disposto no nº5 do art. 372º e no nº 2 do artigo 373º do C.P.Penal.
(...)”.
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5. Notificado dessa sentença, pelo requerimento cuja cópia consta de fls. 9 Vº / 12, invocou o arguido a nulidade da mesma, por excesso de pronúncia e violação do Artº 397º, nº 3, do C.P.Penal, por falta de fundamentação legal, nos termos dos Artºs. 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), e por preterição do contraditório, no que tange à declaração de perda a favor do Estado do veículo automóvel aprendido nos autos.
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6. Sobre esse requerimento do arguido recaiu o despacho proferido em 07/12/2021, cuja cópia consta de fls. 18 Vº, com o seguinte teor (transcrição):

“Tendo sido proferida decisão de perda a favor do Estado do veículo automóvel apreendido nos autos, veio o arguido invocar a nulidade da sentença, por, em seu entendimento, ter existido excesso de pronúncia do julgador, na medida em que não foi pelo Ministério Público requerida essa perda.
A propósito da declaração de perda de bens a favor do Estado, estatui a al. c) do nº3 do art. 374º do C.P.Penal que, na sentença o Tribunal pronuncia-se sobre o destino a conferir aos bens apreendidos nos autos.
O destino a conferir aos bens que se encontrem apreendidos nos autos é uma decisão a tomar pelo julgador, independentemente de tal ser ou não solicitado pelo Ministério Público ou por qualquer outro sujeito processual. Impende sobre o julgador a obrigatoriedade da pronúncia sobre essa questão.
Ao contrário do alegado pelo arguido, o conhecimento do destino a conferir aos objectos apreendidos nos autos é uma imposição legal que terá de ser cumprida pelo julgador.
Ademais, tendo sido determinado o destino a conferir ao objecto, encontra-se esgotado o poder jurisdicional quanto a essa matéria, não podendo mais ser por nós apreciada.
Pelo exposto, e por a sentença não padecer de qualquer nulidade, indefere-se o requerido.
Notifique.”.
*
7. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o presente recurso, através da peça processual que consta de fls. 12 Vº / 17 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. Vem o presente recurso do despacho que indefere as invocadas nulidades processuais do despacho proferido nos termos do 397º do CPP.
2. O aqui recorrente veio aqui acusado da prática material do crime de condução de veículo sem habilitação, prescrito no Art. 3º, n.º2 do Decreto-Lei 2/98, de 03 de Janeiro.
3. Em momento algum, surgem mencionados na promoção/despacho do ministério público, quer a perda de veículo a favor do estado, quer a menção à perigosidade do veículo utilizado na prática do crime imputado.
4. O número 3 do artigo 397º penaliza como nulo o despacho que aplique pena diferente da proposta e da fixada.
5. Após a fixação dos factos, não havendo factos provados ou assentes quanto à perigosidade do objeto, há nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
6. Assim sendo, é o presente despacho nulo, uma vez que aplica pena diferente da proposta/fixada e bem assim peca por excesso de pronúncia por factos não constantes da acusação /provados nos termos da alínea b) e c) do número 1 do artigo 379º CPP e nº 3 do artigo 397º CPP.
7. Por outro lado é ao despacho final em processo sumaríssimo aplicável as exigências do artigo 374º, sendo nula a sentença/despacho que pretira os formalismos impostos (374º/2 e 379º/1 a) ).
8. A fundamentação da sentença no que tange aos objetos perdidos centra-se em crime que não é objeto dos presentes autos.
9. Não se pode declarar perdido a favor do Estado objeto num processo, com fundamento em processo distinto. Assim se entendendo, deveria tal questão ser levantada no processo de falsificação, não havendo fundamentação para a presente decisão.
10. Mas mais grave reverte-se o facto, do crime de falsificação ter sido ARQUIVADO antes de ter sido proferido despacho/sentença nos autos.
11. Salvo o devido e merecido respeito, só se entende tal despacho como grosseiro lapso, pelo que deve ser declarada nula a decisão nos termos dos artigos 374º/2 e 379º/1 a).
12. Cumpre ainda destacar que não foi dado o contraditório ao recorrente.
13. Diz-nos ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (...) “O conteúdo essencial do princípio do contraditório é que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar.”
14. O recorrente opor-se-ia ao processo sumaríssimo caso equacionasse a perda a favor do estado do veículo estando em causa um crime de condução sem habilitação, pelo que em causa está a omissão de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (cfr. art. 195º do CPC).

Assim, por todos os motivos explanados, entende-se como nula a presente decisão, nos termos expostos e com os fundamentos legais explanados, devendo ser declarado NULO o despacho e dando-se sem efeito a decisão proferida,

Assim se fazendo a já acostumada JUSTIÇA!!!!!”.
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8. Na 1ª instância respondeu ao recurso o Ministério Público, nos termos constantes de fls. 25/28, pugnando pela sua improcedência, terminando a Exma. Magistrada subscritora a sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1. Nos termos do artigo 379º, nº 1, do Código Processo Penal, o excesso de pronúncia ocorre quando o Tribunal conheça de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do processo.
2. O tema da nulidade suscitada terá que ser encarado na perspectiva da pretensão punitiva do Estado, delimitada pela douta sentença oportunamente proferida.
3. Com efeito, cada vez mais o direito penal que deixou de ser um mero exercício do ius puniedi e, cada vez mais, considera os interesses do portador concreto dos bens jurídicos violados (em nome de quem afinal foi construído), assim se legitimando comunitariamente.
4. A decisão final é o momento ideal para demonstrar que o crime não compensa, desencadeando um efeito preventivo máximo, tal como neste caso, não se nos afigurando a ocorrência da apontada nulidade, o mais grave dos vícios processuais.”.
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9. O Exmo. Procurador-Geral Ajunto junto deste tribunal da Relação emitiu o douto parecer que consta de fls. 31 / 31 Vº, pronunciando-se pela procedência do recurso, o qual termina nos seguintes moldes (transcrição):
“Somos, por conseguinte, de parecer que o recurso proceda, por não se verificarem, de todo, os pressupostos legais da declarada perda o veículo a favor do Estado, que, salvo melhor opinião, deve ser entregue ao proprietário (...), se outro motivo não existir para a manutenção da sua apreensão, ficando, assim, prejudicado o conhecimento dos demais segmentos do recurso.”.
*
10. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
11. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal.

No caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, este coloca a este Tribunal as seguintes questões essenciais que importa decidir:

- Saber enferma de nulidade [por excesso de pronúncia e violação do Artº 397º, nº 3, do C.P.Penal, por falta de fundamentação legal, nos termos dos Artºs. 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), e por preterição do contraditório] a decisão que decretou a perda a favor do Estado do motociclo não matriculado com o nº de chassis ...................88, conduzido pelo arguido no dia 16/02/2021, pelas 18H30, na Rua ..., Ponte de Lima, que esteve subjacente à sua condenação pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo Artº 3º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro e, concomitantemente;
- Saber se estão reunidos os requisitos da declaração de perda a favor do Estado de tal motociclo, como decidiu o tribunal a quo.
*
2. Porém, para uma melhor compreensão das questões colocadas, e uma visão exacta do que está em causa, para além das incidências processuais descritas no relatório que antecede, há que atentar, ainda, no teor do despacho final proferido pelo Ministério Público no âmbito do Inquérito nº 93/21.7T9PTL, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Ponte de Lima, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, que teve origem na certidão extraída em consonância com a parte final da peça processual referida em I.1, cuja cópia consta de fls. 21 / 24Vº, que ora se transcreve:

“I. Do Objeto do Inquérito
Os presentes autos tiveram origem na certidão extraída do processo nº 10/21.4GBPTL, ínsita a fls. 12 a 38, o qual culminou com a prolação de um despacho de acusação em processo sumaríssimo pelo crime de condução sem habilitação legal, imputado ao arguido R. G., tendo em vista, nos nossos autos, a investigação do eventual cometimento, pelo mesmo arguido, do crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto pelo artigo 256º, nº 1, alíneas b) e e), e nº 3, por referência ao artigo 255º, alínea a), ambos do Código Penal e artigo 117º, n.ºs 1 e 8, do Código da Estrada e punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de sessenta a seiscentos dias.
Para tanto e em síntese, dos documentos inclusos na antedita certidão, mormente do auto de notícia de fls. 19 a 20v., resulta que o arguido R. G., no dia - de fevereiro de 2021, pelas 18h30, na Rua do …, da Associação de Freguesias do … (…), conduzia uma viatura a motor, com o chassi n.º ...................88, não matriculada.
***
II. Em sede de inquérito, em abono da descoberta da verdade material e ao abrigo do artigo 262º, nº 1, do Código de Processo Penal, foram desenvolvidas diligências investigatórias, que aqui se expõe em modo de súmula, em harmonia com a Recomendação nº 3/2018, datada de 26-03-2018, da Comarca de Viana do Castelo – Coordenação:

a. Ouvidos os militares autuantes, L. M. e F. P., a fls. 74/75 e 78/79 respetivamente, os próprios corroboraram a comunicação vertida em auto de notícia, dando conta ainda das características da viatura utilizada pelo arguido no dia e local em apreço nos autos, assumindo a configuração de motociclo, de tamanho médio, “com tons de cor plásticos brancos e com o acento em cor preto e sem qualquer tipo de iluminação” (sic), não possuindo matrícula, seguro de responsabilidade civil, nem qualquer outro documento de identificação do veículo;
b. Inquirição da testemunha N. J., a fls. 82/83, na qualidade de legal representante da sociedade «R. S., Lda.», o qual confirmou, a partir do número de chassi ...................88 da viatura em causa, ter sido uma viatura vendida por aquela sociedade, não ao aqui arguido R. G., mas ao «Stand ...» de A. C., apresentando comprovativo dessa venda [cfr. fls. 84].

Do depoimento desta testemunha resulta que este tipo de viatura é vulgarmente conhecida como «Moto...», não possui matrícula, não tem registo de propriedade nem necessita de seguro, visto que se destina ao uso doméstico, em recintos fechados, sendo vendida e entregue ao comprador acompanhada de um Manual de Usuário, ínsito nos autos a fls. 85 e 86, do qual constam as advertências necessárias à sua utilização;
c. Houve lugar à constituição de arguido de R. G., a fls. 93 a 103, devidamente validada por despacho de fls. 106, e nessa qualidade interrogado, o qual declarou não desejar prestar declarações relativas à matéria fatual em investigação;
d. Ao abrigo do artigo 274.º do Código de Processo Penal, foram juntos aos autos:
– Relativamente ao arguido R. G.: Certificado Registo Criminal [com um averbamento pelo crime de condução sem habilitação legal] a fls. 121/122; informação SIMP [com dois averbamentos pelos crimes de condução sem habilitação legal e falsificação de documentos, cunhos, marcas, chancelas, pesos e medidas] a fls. 123 a 128; relação de pendências de 130; e pesquisas sobre a sua situação socioeconómica a fls. 114 a 116 e 117-A;
– Certidão Permanente da sociedade «R. S., Lda.», a fls. 60 a 65, empresa que terá comercializado a viatura em causa nos autos.
e. Constam ainda dos autos:
– Certidão integral proveniente do processo n.º 10/21.4GBPTL, a fls. 12 a 38, contendo, entre o mais, por esta ordem: auto de notícia com comunicação da detenção em flagrante delito, auto de apreensão, nomeação de fiel depositário, suporte fotográfico, constituição de arguido, despacho a validar a constituição como arguido e a validar a apreensão, interrogatório de arguido, e acusação em processo sumaríssimo;
– Fotografias da viatura em causa a fls. 68.
f. Solicitada informação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., a fls. 42, 49, 136 e 138, esta entidade fez saber não estar habilitada a proferir parecer nos termos solicitados, porquanto “as características técnicas da viatura apenas podem ser dadas de forma segura pelo fornecedor do veículo”, informando, contudo, que não fora emitida homologação nem matrícula para a viatura com o chassi nº ...................88, na medida em que não se acha registada.
Não obstante a antedita informação do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., consigna-se que não se procedeu à solicitação das características técnicas da viatura ao fornecedor do veículo, mormente diretamente à marca, uma vez que nos autos já se encontra documentação atinente às características específicas da viatura em questão, fornecidas por quem a comercializou, a fls. 84 a 86v., as quais haviam sido igualmente remetidas àquele Instituto.
Por não se vislumbrarem outras diligências com efeito útil para o apuramento da verdade e perante os elementos acima descritos ínsitos nos autos, nenhuma outra foi realizada.
Inexistem nos autos objetos que importem destinação, atendendo a que a viatura em apreço se mostra apreendida à ordem do processo nº 10/21.4GBPTL, conforme se extrai do auto de fls. 21, não existindo ordem posterior a determinar o contrário.
***
III. Em face deste circunstancialismo, importa analisar o tipo de ilícito criminal em questão e o seus elementos objetivos e subjetivos, revertidos ao caso concreto, não olvidando que, de acordo com o preceituado no artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público deduzirá acusação quando, no decurso do inquérito, hajam sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, aferindo-se a suficiência de indícios segundo um juízo de prognose de maior probabilidade de condenação do arguido em julgamento do que a sua absolvição, atento o n.º 2 do mesmo preceito legal.

No que tange ao crime de falsificação ou contrafação de documento, dispõe o art. 256.º, n.º 1, alíneas b) e e), do Código Penal que:

Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
[b)] Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
[e)] Usar documento a que se referem as alíneas anteriores,
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”,

Sendo que, nº 3, “se os factos referidos no nº 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”.
Isto por referência ao artigo 255º, alínea a), do mesmo diploma legal: “Para efeito do disposto no presente capítulo considera-se: a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
A previsão do ilícito criminal em referência visa tutelar o bem jurídico protegido atinente à segurança e credibilidade do tráfico jurídico-probatório [Paulo Pinto de Albuquerque, em «Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», 3.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, p. 931].
A par dos seus elementos objetivos, descritos nas diversas modalidades inscritas nas alíneas do citado normativo, assumindo-se como crime de perigo abstrato nas circunstâncias das alíneas a) a d) e de crime de dano nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 256.º, para a sua consumação, exige-se ainda, um dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer modalidade prevista no artigo 14º do Código Penal, cumulado com um dolo específico, “intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
A chapa de matrícula de veículo nele aposta, seja um veículo automóvel, motociclo ou ciclomotor, é um sinal equiparado a documento, na medida em que materializa um ato administrativo de registo de veículo destinado a circular na via pública, efetivado por entidade competente, pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., identificando o respetivo veículo e as suas condições de circulação, sem o qual o veículo não é admitido a circular, em consonância com o preceituado nos artigos 2º, alínea d), 4º, nº 2, e 5º do Decreto-Lei nº 128/2006, de 5 de julho, na redação conferida pelo Decreto-Lei nº 152-A/2017, de 11 de dezembro, e artigo 117º, nº 1, do Código da Estrada [neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 29-01-2014, no processo n.º 55/13.8GBFVN.C1, relator: Sr. Juiz Desembargador Vasques Osório].
A isto cresce a jurisprudência fixada pelo Assento nº 3/98, publicado em Diário da República nº 294/1998, Série I-A de 1998-12-22, relativamente ao crime de falsificação qualificado, atribuindo à chapa de matrícula aposta em veículo automóvel a qualificação de documento com igual força à de um documento autêntico.
Consubstanciando a falsificação de documento uma falsificação da declaração incorporada no documento, o mesmo concretiza-se, no caso das chapas de matrícula, mediante, nomeadamente: i) fabrico de raiz, ex novo, de uma chapa com inscrição de dígitos aleatórios (alínea a) do nº 1 do artigo 256º, do Código Penal), ou de ii) falsificação material, através do qual o agente apõe uma chapa de matrícula de um outro veículo; adultera, ainda que de forma parcial, a inscrição de uma chapa de origem já pertencente ao mesmo veículo ou a simplesmente remove da viatura, de modo a não permitir a sua identificação e controlo policial aquando da sua utilização em via pública (alíneas b) e e) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal).
Ora, no caso sub judice, resulta, desde logo da informação do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., a fls. 138, que o chassi nº ...................88 da viatura conduzida pelo arguido R. G. não se mostra registada, pelo que não fora emitida homologação nem matrícula para o mesmo, o que vai ao encontro da documentação de fls. 84 a 86v., junta pelo legal representante da sociedade «R. S., Lda.», empresa que vendeu a viatura, e, bem assim, das declarações por si proferidas a fls. 82/83, no sentido de que se está perante uma viatura que foi concebida para uma utilização doméstica, em recintos fechados, fora das vias públicas, motivo pelo qual não é registada, nem tão-pouco matriculada.
Desta feita, subsequentemente, uma vez que nunca chegou a ser emitida matrícula para a sobredita viatura, conclui-se que o arguido R. G. não retirou da viatura que conduzia, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, a respetiva matrícula, que nunca existiu, frise-se, e, portanto, não cometeu a prática do crime de falsificação ou contrafação de documento nas modalidades previstas nas alíneas b) e e) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal.
Diferente questão se coloca no tocante à utilização da viatura em via pública, quando a mesma não se mostra matriculada precisamente pela circunstância de se estar destinada a um uso meramente doméstico. No entanto, tal conduta não tem enquadramento penal, podendo, porém, consubstanciar a prática de um ilícito contraordenacional, por violação das regras estradais, em particular do disposto no artigo 117º, n.ºs 1 e 8, do Código da Estrada.
Assim, pelo exposto, determino o arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, relativamente ao arguido R. G., por se ter recolhido prova bastante da não verificação do crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas b) e e), e n.º 3, e artigo 255º, alínea a), ambos do Código Penal.
(...)
Extraia certidão de todo o processado, inclusive do presente despacho, e comunique ao órgão de polícia criminal competente para eventual instauração de procedimento contraordenacional.
***
Comunique o teor do presente despacho ao processo nº 10/21.4GBPTL, para os fins tidos por convenientes e, em particular, para efeitos de destinação da viatura que se mostra apreendida à ordem do dito processo.
(...)”.
*
3. Posto isto, passemos, então, à análise das concretas questões suscitadas pelo recorrente, começando obviamente pela questão de fundo, que é a de saber se estão reunidos os requisitos da declaração de perda a favor do Estado do motociclo conduzido pelo arguido naquele dia 16/02/2021.

Ora, como emerge da sentença proferida pelo tribunal a quo, a Mmª Juíza, trazendo à liça o disposto no Artº 109º, do Código Penal, sustentou essa declaração de perda com o facto de o dito motociclo se encontrar “adulterado, tendo o número de chassis sido falsificado”, sendo “tal veículo fruto de um ilícito”.
Salvo o devido respeito, e adiantando já a nossa aposição, não podemos concordar com esse entendimento.

Vejamos.

Sob a epígrafe “Perda de instrumentos”, dispõe o Artº 109º do Código Penal:

“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
(...)”.

De acordo com o transcrito preceito legal, são requisitos para a declaração da perda:

- a prática de um facto ilícito típico;
- os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados à sua prática, estarem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris);
- pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco se ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.

Como refere o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves, in “Código Penal Português” Anotado e Comentado, 14ª edição, Almedina, 2001, pág. 369, a perda de objectos “(...) é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos ilícitos através do mesmo instrumento.”.
Acrescentando que “(...) O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso.”.
No mesmo sentido pronuncia-se o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 621/622, quando sustenta que a finalidade atribuída pela lei vigente à perda dos instrumentos e do produto do crime é exclusivamente preventiva e que só devem ser declarados perdidos “(…) aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos.”.
Sendo que o ponto de vista objectivo deve ser o ponto de partida para a avaliação da perigosidade do objecto, e não o ponto de vista subjectivo do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito.
Pois - diz - “O objecto mais anódino (um lençol, uma meia de seda, um lápis ou uma caneta) pode tornar-se em objecto hoc sensu «perigoso» quando detido por um indivíduo perigoso. Declarar a perda nestes casos, porém, significaria procurar atalhar a perigosidade do agente, não – como a finalidade do instituto – a perigosidade do objecto: para atalhar a perigosidade do agente dispõe a lei de outros recursos e de outros institutos que nada têm a ver com perda dos instrumenta e dos producta sceleris. Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém – o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc - que justifica, em perspectiva político-criminal, a perda.”.

Ora, na situação em apreço, como bem nota o Exmo. PGA no seu douto parecer, a “perda do veículo («Moto...») que vem questionada não teve, nem poderia ter, por base a condenação do recorrente pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, que constituía o objeto do processo sumaríssimo”, decorrendo claramente da sentença recorrida que tal declaração de perda teve subjacente a circunstância de o dito veículo se encontrar “adulterado, tendo o número de chassi sido falsificado”.
Na verdade, quanto ao primeiro aspecto, na esteira do que se referiu no acórdão deste TRG, de 17/12/2018, proferido no âmbito do Proc. nº 183/18.0GACBT.G1, disponível in www.dgsi.pt, no qual o ora relator interveio como adjunto, no crime em apreço, o motociclo não poderá, sequer, ser considerado como instrumenta sceleris, nem como instrumento objetivamente perigoso para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas e que oferece sério risco se ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos.
E não é instrumento do crime porque, na verdade, tal motociclo conduzido pelo arguido constitui um dos elementos objectivos do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo Artº 3º, nºs. 1 e 2, do Dec.-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, pelo qual foi condenado.
Como se sublinhou em tal aresto, “Sem a utilização/condução do veículo não existe crime.
E daí que sendo pressuposto da perda, como vem defendendo a jurisprudência do nosso mais alto tribunal, a existência de uma relação funcional e instrumental entre o objecto/instrumento e a infracção, de modo que a execução não teria sido possível ou teria sido essencialmente diferente, sem a utilização ou intervenção do objecto, tal relação inexista no caso em apreço, porquanto o crime consiste na utilização do próprio veículo (...)”.
E no que tange à invocada adulteração e/ou falsificação do chassis, há que dizer, como bem sublinha o Exmo. PGA, que a mesma “não tem, nem teve, qualquer tradução real” nos autos.
Na verdade, como supra se referiu, a questão de uma eventual falsificação foi autonomamente investigada pelo Ministério Público, no âmbito do Inquérito nº 93/21.7T9PTL, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Ponte de Lima, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, no qual foi constituído arguido R. G., o ora recorrente.
Sucede que, tal inquérito terminou com a prolação, em 05/11/2021, do despacho de arquivamento cuja cópia consta de fls. 21 / 24 Vº, em virtude de, em síntese, “relativamente ao arguido R. G. (...) se ter recolhido prova bastante da não verificação do crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas b) e e), e n.º 3, e artigo 255º, alínea a), ambos do Código Penal.”.
Mencionando-se expressamente, em tal despacho, que “(...) uma vez que nunca chegou a ser emitida matrícula para a sobredita viatura, conclui-se que o arguido R. G. não retirou da viatura que conduzia, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, a respetiva matrícula, que nunca existiu, frise-se, e, portanto, não cometeu a prática do crime de falsificação ou contrafação de documento nas modalidades previstas nas alíneas b) e e) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal.”.
E que “Diferente questão se coloca no tocante à utilização da viatura em via pública, quando a mesma não se mostra matriculada precisamente pela circunstância de se estar destinada a um uso meramente doméstico. No entanto, tal conduta não tem enquadramento penal, podendo, porém, consubstanciar a prática de um ilícito contraordenacional, por violação das regras estradais, em particular do disposto no artigo 117º, n.ºs 1 e 8, do Código da Estrada.”.
Nestas circunstâncias, cai por terra o argumento da falsificação utilizado pela Mmª Juíza, não se compreendendo, aliás, que em 17/11/2021 tenha declarado a perda do motociclo a favor do Estado com base numa pretensa falsificação quando já havia nos autos, desde o dia 10/11/2021 [como tivemos oportunidade de constatar através da consulta electrónica do processo principal] comunicação electrónica emanada pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Ponte de Lima, a dar conta do teor do despacho final de arquivamento proferido no âmbito do dito Inquérito nº 93/21.7T9PTL.
Ademais, convém não olvidar que, aparentemente, não está devidamente comprovado nos autos quem é o efectivo proprietário do dito motociclo, tudo indiciando que o mesmo não pertence ao recorrente, mas sim ao seu irmão, como se refere no despacho do Ministério Público, que impulsionou a aplicação do processo sumaríssimo, a fls. 3 Vº.

Pelo que, nesse circunstancialismo, sempre haveria que apurar previamente a quem pertence, efectivamente, o dito motociclo e, caso se constatasse que pertencia a terceiro, dever-se-ia tomar em consideração o que a propósito estatui o Artº 110º do Código Penal, sob a epígrafe “Objectos pertencentes a terceiro”:

“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
2 - Ainda que os objectos pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens; ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência.
(...)”.

Efectivamente, resulta deste preceito legal, que, a apurar-se que o dito motociclo pertencia a terceiro, a respectiva perda, verificados que fossem os pressupostos do Artº 109º, do Código Penal, só deveria ter lugar se esse terceiro tivesse concorrido de forma censurável para a sua utilização ou para a produção do resultado, ou tivesse retirado vantagens da prática do facto típico, ou, finalmente, tivesse adquirido o bem após a prática do facto, conhecendo a sua proveniência.
Caso em que seria ainda necessário operacionalizar o que a propósito estatui o Artº 178º, nº 9, do C.P.Penal, segundo o qual, “Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos forem susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o.”.
É que, na esteira do Acórdão da Relação do Porto, de 24/05/2006, proferido no âmbito do Proc. nº 051692, in www.dgsi.pt, também entendemos que, só após essa audição ou notificação é que o titular desse bem está em condições de defender os seus direitos, enquanto terceiro de boa-fé. Pois, proceder de modo contrário, é adoptar um entendimento manifestamente arbitrário e atentatório da segurança que qualquer cidadão deve ter para a defesa da sua propriedade.
Pelo que, a ocorrer fundamento válido para a declaração de perda do dito motociclo (o que, como se viu, não se verifica), sempre o tribunal a quo deveria apurar previamente da propriedade do mesmo e, caso se constatasse que pertencia a terceiro, deveria ordenar a sua notificação, nos termos e para efeitos do citado Artº 178º, nº 9, do C.P.Penal, após decidindo em conformidade.
Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, deverá proceder o recurso do arguido, neste segmento, impondo-se a revogação da declaração de perda do motociclo apreendido à ordem dos autos, o qual deverá ser entregue a quem demonstrar ser seu proprietário, se outro motivo não existir para a manutenção da sua apreensão, ficando prejudicada a apreciação dos demais segmentos do recurso, aliás intimamente conexionados com esta questão.

II. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido R. G. e, em consequência, revogam a declaração de perda a favor do Estado do motociclo apreendido à ordem dos autos, o qual deverá ser entregue a quem demonstrar ser seu proprietário, se outro motivo não existir para a manutenção da sua apreensão.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 21 de Março de 2022

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)
Fernando Chaves (Juiz Desembargador Presidente da Secção)


1 - Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.