Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1202/18.9T8BGC-A.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PROCESSO EXECUTIVO
DECISÃO SURPRESA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A proibição das decisões surpresa é decorrência do princípio do contraditório consagrado no art. 3º, nº 3, do CPC, princípio basilar ou estruturante do processo civil e que visa permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte por ela afetada possa pronunciar-se sobre a mesma.
II - O conceito de decisão-surpresa tem vindo a ser densificado na jurisprudência “em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos”.
III - Uma decisão que é proferida no momento processual próprio e que aprecia a existência dos pressupostos de admissibilidade da reclamação de créditos, concluindo pela sua inexistência e consequente indeferimento, independentemente do seu acerto decisório que pode ser sindicado por via de recurso, não viola o princípio do contraditório e não constitui decisão surpresa.
IV – A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar a prevalência do fundo sobre a forma, estabelecendo mecanismos que permitam que a tramitação processual tenha a maleabilidade e flexibilidade necessárias para que se consiga alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes.
V - Tendo o credor manifestado a sua vontade de reclamar o crédito na execução e não sendo a mesma admissível por falta de título exequível, o dever de gestão processual consagrado no art. 6º, do CPC, conjugado com o princípio da adequação formal consagrado no art. 547º, do CPC, e tendo ainda em conta a possibilidade de correção do meio processual utilizado prevista no art. 193º, nº 3, do CPC, impõe que se profira convite à parte para esclarecer se pretende que a sua petição de reclamação seja considerada para efeitos da tramitação prevista no art. 792º, do CPC, para o credor que não dispõe de título exequível, ordenando, em caso de resposta afirmativa, que se proceda à notificação prevista no art. 792º, nº 2, do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Por apenso à execução que X Solutions, SI moveu a Y - PERFILAGEM DO NORTE, LDA. veio o BANCO ..., S.A. apresentar reclamação de créditos pedindo que se considere verificada a existência do crédito da reclamante no montante global de € 75 393,69, acrescido dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento, em virtude da garantia real que beneficia, devendo tal crédito ser pago preferencialmente em relação aos demais credores.
Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que celebrou com a sociedade reclamada um contrato de locação financeira que teve por objeto uma linha de perfilagem dupla perfim cobertura IBR45/42.
Para segurança e garantia do bom e pontual pagamento das responsabilidades assumidas nos termos do contrato a sociedade reclamada constituiu de forma irrevogável, a favor do Banco caução na modalidade de penhor sobre as quantias em dinheiro que integram o depósito em numerário n.º ..........20 no montante de € 75.000,00, com vencimento em 27/05/2019.
Em 27 de janeiro de 2019, encontrava-se em dívida, o montante de capital de € 75 085,61, acrescido de juros de mora no montante de € 296,23 e Imposto de Selo no valor de € 11,85, sendo a reclamada devedora à reclamante da quantia global de € 75 393,69.
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Foi dado cumprimento à notificação prevista no art. 789º, nº 1, do CPC, não tendo a reclamação apresentada sido objeto de impugnação.
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Foi proferido despacho que não admitiu a reclamação de créditos deduzida pelo Banco ..., S.A. por inexistência de título executivo.
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Foi fixado ao incidente o valor de € 102 187,16.
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O reclamante não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. O Credor Reclamante desconhece por completo que factualidade o Tribunal ad quo deu como provado.
2. Pelo que, tendo em consideração os factos admitidos por acordo, a prova documental deverão ser aditados os seguintes factos:
I) No exercício da sua actividade, o ora Reclamante e a sociedade Reclamada celebraram, o Contrato de Locação Financeira n.º ......, e que teve por objecto uma linha de perfilagem dupla perfim cobertura IBR45/42, integrado por:
c) Condições Gerais e
d) Condições Particulares que se dão aqui por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos – vide doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
II) O Reclamante é dono e legítimo proprietário do bem como resulta do próprio contrato de locação financeira.
III) Nos termos do referido contrato, o Reclamante deu em locação à Reclamada, para que esta usasse o supra identificado bem, melhor descrito na factura e auto de recepção de bens, que se junta como doc. n.º 2, junto com a reclamação de créditos.
IV) Bem que o Reclamante para o efeito comprou e pagou ao fornecedor melhor identificado no doc. n.º 2, junto com a reclamação de créditos.
V) O referido contrato foi celebrado pelo prazo de 60 (sessenta) meses,
VII) Obrigando-se a locatária, a aqui Reclamada, a pagar ao aqui Reclamante:
1 (uma) renda, no valor de € 40.650,41 (quarenta mil, seiscentos e cinquenta euros e quarenta e um cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído;
59 (cinquenta e nove) rendas mensais, no valor de € 1.923,22 (mil, novecentos e vinte e três euros e vinte e dois cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído – vide cláusula 6.ª do doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
VIII) As rendas, sendo indexadas, poderiam variar ao longo do contrato, nos termos do estipulado na cláusula 12.ª das Condições Particulares do contrato junto como doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
IX) O valor residual acordado foi de € 3.000.00 (três mil euros), sem IVA à taxa legal incluído.
X) Para segurança e garantia do bom e pontual pagamento das responsabilidades assumidas nos termos do contrato supra referido, designadamente o reembolso do capital, pagamentos de juros e encargos contratuais, a sociedade ora Reclamada constituiu de forma irrevogável, a favor do Banco caução na modalidade de penhor sobre as quantias em dinheiro que integram o depósito em numerário n.º ..........20 no montante de € 75.000,00, com vencimento em 27/05/2019 – conforme cláusula 13.º das condições particulares do doc. n.º 1 e doc. n.º 3, junto com a reclamação de créditos.
XI) Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de empréstimo em causa, foi subscrita pela sociedade Y – Perfilagem do Norte, Lda. e avalizada pelos executados D. P. e J. P. uma livrança em branco, ficando o Banco autorizado a preencher a mesma pelo valor em dívida – vide cláusula 13.º das condições particulares, autorização para preenchimento da livrança e livrança, todos juntos como doc. n.º 1.
XII)Por outro lado, à data da reclamação de créditos – 19 de Fevereiro de 2019 – o contrato estava a ser pontualmente cumprido tendo a última prestação sido liquidada em 27 de Janeiro de 2019, estando em dívida, o montante de capital de € 75.085,61 (setenta e cinco mil, oitenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos).
XIII) A sociedade Executada e o Exequente apesar de notificados não impugnaram o crédito reclamado pelo Banco ..., S.A., pelo que, reconheceram a existência do crédito.
3. Nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do CPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
4. No caso dos autos pretende o Banco Reclamante que o crédito reclamado seja verificado e reconhecido, acrescido dos juros vincendos a contar da data de entrada da reclamação de créditos até efectivo e integral pagamento, em virtude da garantia real que beneficia, devendo tal crédito ser pago preferencialmente em relação aos demais credores
5. Notificados, Executado e Exequente, não impugnaram o crédito, id est, reconheceram a existência do crédito do crédito reclamado.
6. O crédito do Banco Reclamante encontra-se caucionado por uma livrança em branco, subscrita na sociedade Executada, tal livrança foi junta como o documento n.º 1 com a reclamação de créditos.
7. Pelo que, sem quebra do muito e devido respeito, estamos perante uma decisão-surpresa pois que foi dada uma solução jurídica sem que a uma das partes - ao Reclamante – lhe tenha sido data a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão jurídica.
8. Nestes termos, logo se conclui que, ocorreu a preterição de uma formalidade prescrita na lei, o que justifica a anulação de todo o processado nos termos estatuídos nos artigos 195.º, nº 1 do Código de Processo Civil

Mas, mesmo que assim não se entendesse,
9. Dispõe o nº 1 do art. 6.º do CPC, que “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”
10. Nos termos do art. 547º do mesmo Código, “o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.”
11. A satisfação desse dever pode visar, sem prejuízo do fim último da justa causa do litígio, a obtenção de ganhos de eficiência, nomeadamente, evitando que o Reclamante intente uma acção contra a sociedade Reclamada para recuperação do seu crédito.
12. Apesar de o Credor Reclamante Banco ..., S.A estar munido de título exequível (livrança em branco) e ter alegado factos conducentes à relação subjacente, a verdade, é que o Tribunal ad quo entendendo que não havia título exequível deveria ou ter notificado o Credor Reclamante para cumprir o artigo 792.º do CPC, ou oficiosamente ordenar à Secretaria que cumprisse o 792.º do CPC, ou, ainda, tendo em consideração que a sociedade executada e o Exequente reconheceram a existência do crédito do Credor Reclamante Banco ..., S.A cabia ao Tribunal verificar e graduar o mesmo.

Pelo exposto,
13. A omissão de um tal despacho, a ordenar a notificação do Credor Reclamante para cumprir o artigo 792.º do CPC, ou oficiosamente ordenar à Secretaria que cumprisse o 792.º do CPC, na medida em que esta situação contendia com o princípio da gestão processual, gerou uma nulidade processual, dado que a natureza do dever de gestão processual implica a nulidade resultante da omissão do ato de gestão.

Mesmo que assim não fosse, saliente-se ainda que,
14. O requerimento inicial/reclamação de créditos do Reclamante Banco ..., S.A teria que ser admitido, tendo em conta que o teor do requerimento inicial (com a alegação realizada, a documentação junta e os pedidos formulados) e a operância possível da falta de contestação (791º/4 CPC) poderiam permitir vir a reconhecer, verificar e graduar o crédito reclamado.
15. Foi alegado e provado a titularidade pelo Reclamante de um direito real de garantia (penhor), nos termos do artigo 666.º do Código Civil, sustentando tal na celebração de um contrato de locação financeira, na autorização para preenchimento da livrança e na livrança junta como doc. n.º 1, bem como, na constituição de penhor junta como doc. n.º 3.
16. Por outro lado, a existência comprovada documentalmente que para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de empréstimo em causa, foi subscrita pela sociedade Y – Perfilagem do Norte, Lda. e avalizada pelos executados D. P. e J. P. uma livrança em branco, ficando o Banco autorizado a preencher a mesma pelo valor em dívida – vide cláusula 13.º das condições particulares, autorização para preenchimento da livrança e livrança junta como doc. n.º 1 – indica a possibilidade de disposição de um título executivo, previsto no artigo 703.º do CPC, ou com formação incidental, nos termos do art.792º do CPC.
17. Para tal, juntou um documento, com a epígrafe “contrato de locação financeira”, subscrito pela sociedade executada e pelo Reclamante: que definiu as condições contratualizadas (valor da prestação, prazo, taxa de juro) e formulou no seu requerimento inicial o pedido de verificação e graduação do crédito, pelo que, apesar de não ter requerido a notificação do executado para no prazo de 10 dias se pronunciar sobre a existência do crédito, o Tribunal podia e devia ter aproveitado tal articulado como pedido substancial de formação sucessiva e incidental do título executivo.
18. Destarte, e sempre com o muito respeito, o Tribunal ad quo ao não ter aproveitado tal articulado (reclamação de créditos) como pedido substancial de formação sucessiva e incidental do título executivo produziu uma nulidade processual, dado a natureza do dever de gestão processual tal implica a nulidade resultante da omissão do ato de gestão.
Caso se entenda que não ocorreram nenhuma das nulidade supra alegadas, o que apenas se concede por dever de patrocínio, nesse caso, cumpre dizer o seguinte,
19. Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de locação financeira em causa, foi subscrita pela sociedade Y – Perfilagem do Norte, Lda. e avalizada pelos executados D. P. e J. P. uma livrança em branco, ficando o Banco autorizado a preencher a mesma pelo valor em dívida – vide cláusula 13.º das condições particulares, autorização para preenchimento da livrança e livrança junta como doc. n.º 1.
20. Por outro lado, à data da reclamação de créditos – 19 de Fevereiro de 2019 – o contrato estava a ser pontualmente cumprido tendo a última prestação sido liquidada em 27 de Janeiro de 2019, estando em dívida, o montante de capital de € 75.085,61 (setenta e cinco mil, oitenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos).
21. Nesta conformidade, à data da apresentação da reclamação de créditos, o crédito reclamado não se encontrava vencido, pelo que, o Reclamante apesar de ter título executivo não poderia preencher o mesmo.
22. In casu, porque a dívida não se encontrava vencida, coloca-se a questão da suficiência de um título de crédito, desprovido dos requisitos legais para funcionar como título cambiário, para suportar a dedução de uma pretensão dirigida à efectivação em juízo de um direito de crédito tem sido essencialmente abordada a propósito da qualificação desse documento como título executivo;
23. Como bem salientado no ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, datado de 07.05.2014, processo n.º 303/2002.P1.S1, no qual foi Relator o JUIZ CONSELHEIRO LOPES DO REGO, disponivel em www.dgsi.pt “podem ainda valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU e não possam materialmente subsumir-se ao referido art. 458º do CC ( por não conterem materialmente um reconhecimento de dívida nem implicarem uma promessa de prestação, feita pelo seu subscritor) como meros quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo.”
24. Diga-se que o entendimento exposto encontra-se plasmado na alínea c) do nº1 do art. 703º do Código de Processo Civil consagrando expressamente que valem como títulos executivos os títulos de crédito, que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstracta, podem valer como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo.
25. Conforme supra se alegou para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de locação financeira em causa, foi subscrita pela sociedade Y – Perfilagem do Norte, Lda. e avalizada pelos executados D. P. e J. P. uma livrança em branco, ficando o Banco autorizado a preencher a mesma pelo valor em dívida – vide cláusula 13.º das condições particulares, autorização para preenchimento da livrança e livrança junta como doc. n.º 1
26. Nesta conformidade, a livrança em causa, deve ser considerada como um título em branco.
27. Com efeito, uma livrança em branco é uma livrança incompleta, em que falta algum dos requisitos essenciais, mas onde existe, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário.
28. Em face disso, sem quebra do muito e devido respeito, a livrança em questão poderá valer como mero quirógrafo.
29. O Banco Reclamante na reclamação de créditos, sem quebra do muito e devido respeito, aduziu os factos constitutivos essenciais da relação causal à entrega da livrança e identificou adequadamente essa relação causal subjacente, sendo que, a sociedade Reclamada notificada reconheceu tacitamente a existência do crédito.
30. Destarte, forçoso é concluir que a reclamação de créditos apresentada pelo Banco ..., S.A. teve por base um título executivo, consequentemente, deve ser julgada procedente a reclamação de créditos e, em consequência, reconhecer o direito de crédito reclamado, procedendo à sua graduação da seguinte forma:
1.º Crédito reclamado;
2.º Crédito exequendo.
31. A sentença recorrida violou os artigos 3.º, 6.º, 154.º, 547º, 590.º, 615.º, 703.º, 788.º, 791.º, 792.º, todos do Código de Processo Civil.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O tribunal a quo pronunciou-se sobre as nulidades invocadas de a decisão proferida constituir decisão surpresa e ter ocorrido violação do dever de gestão processual, considerando que as mesmas não se verificam.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se deve ocorrer aditamento à matéria de facto;
II – saber se existe nulidade decorrente da prolação de decisão surpresa;
III – na hipótese negativa, saber se existe nulidade, decorrente da omissão do dever de gestão processual, por incumprimento do disposto no art. 792º, do CPC;
IV – na hipótese negativa, saber se existe nulidade, decorrente da omissão do dever de gestão processual, por falta de aproveitamento do articulado enquanto pedido substancial de formação de título;
V – na hipótese negativa, saber se a livrança em branco pode constituir título executivo nos presentes autos.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na decisão proferida na 1ª instância não consta o elenco dos factos provados de forma descriminada, tendo sido considerados os factos descritos no relatório dessa decisão que a seguir se transcreve:

“O Banco ..., S. A., reclamando o crédito de € 75.393,69 (setenta e cinco mil, trezentos e noventa e três euros e sessenta e nove cêntimos), acrescido dos juros vincendos a contar desta data e até efectivo e integral pagamento, alegou, para o efeito, que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com a Executada Y – Perfilagem do Norte, Lda. um Contrato de Locação Financeira que teve por objecto uma linha de perfilagem dupla perfim cobertura IBR45/42, pelo prazo de 60 (sessenta) meses, obrigando-se a locatária Y a pagar-lhe uma renda, no valor de € 40.650,41 (quarenta mil, seiscentos e cinquenta euros e quarenta e um cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído e 59 (cinquenta e nove) rendas mensais, no valor de € 1.923,22 (mil, novecentos e vinte e três euros e vinte e dois cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído, tendo sido acordado o valor residual de € 3.000.00 (três mil euros), sem IVA à taxa legal incluído.
Alegou também que, para segurança e garantia do bom e pontual pagamento das responsabilidades assumidas nos termos do contrato supra referido, designadamente o reembolso do capital, pagamentos de juros e encargos contratuais, a Y constituiu de forma irrevogável, a favor do Banco ..., S. A. caução na modalidade de penhor sobre as quantias em dinheiro que integram o depósito em numerário n.º ..........20 no montante de € 75.000,00, com vencimento em 27/05/2019. – conforme cláusula 13.º das condições particulares do doc. n.º 1 e doc. n.º 3.
Alegou ainda que, em 27 de Janeiro de 2019, encontrava-se em dívida, o montante de capital de € 75.085,61 (setenta e cinco mil, oitenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos), a que acrescem os juros de mora entretanto vencidos à taxa comercial de 8% em caso de mora, no montante de € 296,23 (duzentos e noventa e seis euros e vinte e três cêntimos), sendo ainda o banco credor do Imposto de Selo sobre os referidos juros (€ 296,23), à taxa de 4%, conforme dispõe o artigo 17.2.1 da Tabela Anexa ao respectivo Código (aprovado pela Lei 150/99, de 11 de Setembro) e que importa, na presente data € 11,85 (onze euros e oitenta e cinco cêntimos).
Juntou cópia do alegado contrato.”

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

I – Aditamento à matéria de facto

O banco recorrente pretende que se adite à matéria de facto o seguinte acervo factual:
I) No exercício da sua actividade, o ora Reclamante e a sociedade Reclamada celebraram, o Contrato de Locação Financeira n.º ......, e que teve por objecto uma linha de perfilagem dupla perfim cobertura IBR45/42, integrado por:
c) Condições Gerais e
d) Condições Particulares que se dão aqui por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos – vide doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
II) O Reclamante é dono e legítimo proprietário do bem como resulta do próprio contrato de locação financeira.
III) Nos termos do referido contrato, o Reclamante deu em locação à Reclamada, para que esta usasse o supra identificado bem, melhor descrito na factura e auto de recepção de bens, que se junta como doc. n.º 2, junto com a reclamação de créditos.
IV) Bem que o Reclamante para o efeito comprou e pagou ao fornecedor melhor identificado no doc. n.º 2, junto com a reclamação de créditos.
V) O referido contrato foi celebrado pelo prazo de 60 (sessenta) meses,
VII) Obrigando-se a locatária, a aqui Reclamada, a pagar ao aqui Reclamante:
1 (uma) renda, no valor de € 40.650,41 (quarenta mil, seiscentos e cinquenta euros e quarenta e um cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído;
59 (cinquenta e nove) rendas mensais, no valor de € 1.923,22 (mil, novecentos e vinte e três euros e vinte e dois cêntimos), sem IVA à taxa legal incluído – vide cláusula 6.ª do doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
VIII) As rendas, sendo indexadas, poderiam variar ao longo do contrato, nos termos do estipulado na cláusula 12.ª das Condições Particulares do contrato junto como doc. n.º 1, junto com a reclamação de créditos.
IX) O valor residual acordado foi de € 3.000.00 (três mil euros), sem IVA à taxa legal incluído.
X) Para segurança e garantia do bom e pontual pagamento das responsabilidades assumidas nos termos do contrato supra referido, designadamente o reembolso do capital, pagamentos de juros e encargos contratuais, a sociedade ora Reclamada constituiu de forma irrevogável, a favor do Banco caução na modalidade de penhor sobre as quantias em dinheiro que integram o depósito em numerário n.º ..........20 no montante de € 75.000,00, com vencimento em 27/05/2019 – conforme cláusula 13.º das condições particulares do doc. n.º 1 e doc. n.º 3, junto com a reclamação de créditos.
XI) Para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de empréstimo em causa, foi subscrita pela sociedade Y – Perfilagem do Norte, Lda. e avalizada pelos executados D. P. e J. P. uma livrança em branco, ficando o Banco autorizado a preencher a mesma pelo valor em dívida – vide cláusula 13.º das condições particulares, autorização para preenchimento da livrança e livrança, todos juntos como doc. n.º 1.
XII) Por outro lado, à data da reclamação de créditos – 19 de Fevereiro de 2019 – o contrato estava a ser pontualmente cumprido tendo a última prestação sido liquidada em 27 de Janeiro de 2019, estando em dívida, o montante de capital de € 75.085,61 (setenta e cinco mil, oitenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos).
XIII) A sociedade Executada e o Exequente apesar de notificados não impugnaram o crédito reclamado pelo Banco ..., S.A., pelo que, reconheceram a existência do crédito.”

Como já referido anteriormente, a decisão recorrida não contém o elenco dos factos provados de forma descriminada, tendo-se baseado a nível factual no que consta do relatório que supra transcrevemos.
Da leitura desse relatório resulta que foram considerados os factos referidos em I) a X). Como tal, não se justifica aditar esta matéria posto que a mesma já foi considerada na decisão recorrida.
A matéria referida em XIII) relativa à inexistência de impugnação do crédito não integra um facto, consistindo antes na descrição de um trâmite processual que foi inclusivamente referido na decisão recorrida. Por isso, nesta parte, nada há a aditar.
Na parte restante, relativa ao reconhecimento da existência do crédito decorrente dessa falta de impugnação, também não pode ocorrer qualquer aditamento porque se trata de matéria de direito.
Resta a matéria referida em XI) e XII) relativa à existência de uma livrança em branco, assinada e avalizada, e à inexistência de incumprimento do contrato à data da reclamação de créditos.
Esta matéria não foi alegada na petição na qual o crédito foi reclamado, como resulta da sua leitura.
O banco reclamante limitou-se a invocar o que supra já se sintetizou no relatório deste acórdão e que consta também no relatório da decisão recorrida.
O banco nunca alegou que foi subscrita e avalizada uma livrança em branco.
É verdade que juntou cópia da livrança, mas nada alegou quanto à mesma. Ora, a mera junção de documentos não supre a falta de alegação dos factos que esses documentos comprovam.
Como decorre do disposto no art. 5º, nº 1, do CPC, que acolhe o princípio do dispositivo, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Para além destes, o juiz pode ainda considerar, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, os factos notórios e os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 5º, nº 2, als. a) a c), do CPC).
Ora, a matéria referida em XI) e XII) integra factos essenciais, pois é à luz desta matéria que a recorrente pretende que seja declarada a existência de título executivo. Tal matéria não foi alegada e não pode ser considerada ao abrigo do disposto no nº 2, do art. 5º, do CPC, por não se enquadrar na categoria de factos aí elencados.
Portanto, os factos XI) e XII) que a recorrente pretende que sejam aditados não fazem parte daqueles que é lícito ao juiz conhecer, já que se trata de factos essenciais que não foram tempestivamente articulados e não são subsumíveis ao conceito de factos instrumentais, nem de factos complementares ou concretizadores, pelo que esta matéria factual não pode ser objeto de aditamento.

Conclui-se, assim, que não há qualquer matéria de facto a aditar, improcedendo o recurso nesta parte.

II – Nulidade decorrente da prolação de decisão surpresa

A recorrente considera que a decisão recorrida, que não admitiu a reclamação de créditos deduzida por falta de título exequível, constituiu uma decisão surpresa, pois, o credor reclamante não pôde intervir e acompanhar o desenvolvimento processual normal, nomeadamente não se pôde pronunciar sobre se tinha ou não título exequível.

Como é consabido, a proibição das decisões surpresa é decorrência do princípio do contraditório consagrado no art. 3º, nº 3, do CPC, que estabelece que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O princípio do contraditório, que é o princípio basilar ou estruturante do processo civil, visa permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte por ela afetada possa pronunciar-se sobre a mesma.
O conceito de decisão-surpresa tem vindo a ser densificado na jurisprudência “em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos.
Visa-se, assim, obstar a que as partes se defrontem com uma interpretação judicial que não poderiam antecipar ou com uma tramitação processual que escape ao modelo formal aplicável e não tenha sido submetida a pronúncia.
Em tais casos, o respeito pelo contraditório impõe audição específica das partes, possibilitando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, assim trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, assim influenciando a decisão” (Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, Relatora Ana Azeredo Coelho, in www.dgsi.pt).
Como se refere no Acórdão do STJ, de 17.6.2014, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) ocorreu “um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja” (sublinhado nosso).
E o respeito pelo contraditório não implica que haja que apresentar às partes um projeto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica (Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, supra citado).
Levar a esse ponto o dever de, nos termos do artº 3º, nº 3, CPC, fazer cumprir o contraditório e de prevenir as partes da exacta interpretação normativa a empreender e dos precisos termos da sua consequente aplicação ao caso para sobre a solução, assim na prática previamente revelada, se pronunciarem, seria, por um lado, postergar o princípio da liberdade de julgamento consagrado no artº 5º, nº 3, e, por outro, antecipar uma impugnação que, de acordo com a metodologia adjectiva vigente, só deve ter lugar depois de proferida a decisão e por via do respectivo recurso” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 21.5.2020, Relator José Amaral, in www.dgsi.pt).
De referir ainda que o Tribunal Constitucional, chamado por diversas vezes a pronunciar-se sobre a questão das decisões surpresa, tem afirmado reiteradamente que “recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)” (Acórdão do TC 173/2016, de 16.3.2016, Relatora Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, in www.dgsi.pt).

Definido o conceito jurídico de decisão-surpresa, vejamos, então, se, no caso concreto, a decisão recorrida se enquadra nessa definição.

No caso em apreço, o Banco apresentou reclamação de créditos invocando a existência de um contrato de locação financeira garantido por penhor.
De acordo com o disposto no art. 788º, nºs 1 e 2, do CPC, a reclamação de créditos só pode ser deduzida por quem goze de garantia real sobre os bens penhorados e tenha um título exequível.
A decisão recorrida, depois de terminada a fase da impugnação, apreciou estes pressupostos no confronto com os factos alegados pelo banco reclamante na petição inicial da reclamação e concluiu pela falta de um deles, tendo entendido que o contrato de locação financeira invocado não constituía título exequível, razão pela qual não admitiu a reclamação apresentada.
Esta decisão, a nível de tramitação processual, nada tem de atípico pois, não havendo lugar a despacho liminar do juiz na admissão da reclamação de créditos, só após a fase dos articulados pode ser apreciada a verificação dos pressupostos de que depende a sua admissibilidade.
Por outro lado, fazendo a lei depender a admissibilidade da reclamação dos dois pressupostos enunciados atinentes à existência de título exequível e garantia real sobre os bens penhorados e tendo o tribunal, no momento processualmente adequado, aferido da verificação desses pressupostos, não proferiu nenhuma decisão com a qual a parte não pudesse antecipadamente contar. Bem pelo contrário, limitou-se a, no momento processual adequado, aferir da existência dos pressupostos legais de que depende a admissibilidade de reclamação de créditos, tendo proferido decisão com a qual a parte tinha que contar pois que a mesma se encontra expressamente prevista na lei.
Por isso não se pode afirmar como alega a recorrente que o “credor reclamante não pôde intervir e acompanhar o desenvolvimento processual normal, nomeadamente não se pôde pronunciar sobre se tinha ou não título exequível”. Na verdade, o desenvolvimento processual normal foi o seguido nos autos, como resulta da tramitação referida no relatório supra. Cabe ao reclamante na petição inicial alegar os concretos factos de onde decorre a existência do direito real de garantia e o título exequível, cabendo ao tribunal, em função dessa concreta alegação, decidir se tais pressupostos se verificam ou não, sem necessidade de prévia pronúncia sobre tal matéria por parte do reclamante.
O banco reclamante poderia não ter a expectativa de que a reclamação fosse indeferida, mas tinha que contar com a possibilidade de o tribunal apreciar a verificação dos pressupostos relativos à admissibilidade de dedução de reclamação de créditos e poder decidir sobre a sua não verificação. Por isso, não há nenhuma violação do princípio do contraditório na prolação da decisão de não admissão da reclamação de crédito que seja geradora de nulidade, sendo que a discordância quanto ao concreto conteúdo da decisão proferida é sindicável por via de recurso.
Em conclusão, uma decisão que é proferida no momento processual próprio e que aprecia a existência dos pressupostos de admissibilidade da reclamação de créditos, concluindo pela sua inexistência e consequente indeferimento, independentemente do seu acerto decisório que pode ser sindicado por via de recurso, não viola o princípio do contraditório e não constitui decisão surpresa, pelo que o recurso improcede nesta parte.
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III – Nulidade decorrente da omissão do dever de gestão processual por incumprimento do disposto no art. 792º, do CPC

A recorrente entende que deveria ter sido proferido despacho a ordenar a notificação do credor reclamante para cumprir o art. 792º do CPC, ou, oficiosamente, a ordenar à Secretaria que cumprisse o art. 792º do CPC, situação que se impunha face ao princípio da gestão processual e cuja omissão gerou uma nulidade processual.

Vejamos se assim é.

Dispõe o art. 792º, do CPC, que

1 - O credor que não esteja munido de título exequível pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta.
2 - Recebido o requerimento referido no número anterior, a secretaria notifica o executado para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a existência do crédito invocado.
3 - Se o executado reconhecer a existência do crédito, considera-se formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos do requerimento do credor, sem prejuízo da sua impugnação pelo exequente e restantes credores; o mesmo sucede quando o executado nada diga e não esteja pendente ação declarativa para a respetiva apreciação.
4 - Quando o executado negue a existência do crédito, o credor obtém na ação própria sentença exequível, reclamando seguidamente o crédito na execução.
5 - O exequente e os credores interessados são réus na ação, provocando o requerente a sua intervenção principal, nos termos dos artigos 316.º e seguintes, quando a ação esteja pendente à data do requerimento.
6 - O requerimento não obsta à venda ou adjudicação dos bens, nem à verificação dos créditos reclamados, mas o requerente é admitido a exercer no processo os mesmos direitos que competem ao credor cuja reclamação tenha sido admitida.
7 - Os efeitos do requerimento caducam se:
a) Dentro de 20 dias a contar da notificação de que o executado negou a existência do crédito, não for apresentada certidão comprovativa da pendência da ação;
b) O exequente provar que não se observou o disposto no n.º 5, que a ação foi julgada improcedente ou que esteve parada durante 30 dias, por negligência do autor, depois do requerimento a que este artigo se refere;
c) Dentro de 15 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, dela não for apresentada certidão.

Do confronto dos arts. 792º e 788º, do CPC, concluímos que o credor que esteja munido de título exequível deve reclamar os seus créditos ao abrigo do art. 788º; o credor que não disponha de título exequível deve seguir o procedimento referido no art. 792º.
Por sua vez, constituem títulos executivos apenas aqueles que se encontram taxativamente elencados no art. 703º, nº 1, als. a) a d), do CPC.
Como tal, compete ao credor verificar se o seu crédito se encontra ou não consubstanciado num título exequível e optar por um dos dois procedimentos previstos nos arts. 788º e 792º, do CPC, consoante conclua pela existência ou inexistência de título.
Como se verifica da leitura do art. 792º, do CPC, o mesmo não supõe qualquer intervenção oficiosa por parte do tribunal; pelo contrário é uma norma que estabelece qual o procedimento que a parte deve adotar quando o seu crédito não esteja titulado por título exequível.
Pretende a recorrente que o tribunal, ao concluir pela inexistência de título exequível, deveria ter notificado o reclamante para dar cumprimento a esta norma ou ter ordenado o cumprimento oficioso da mesma, ao abrigo do dever de gestão processual.

O dever de gestão processual encontra-se previsto no art. 6º, do CPC, o qual estabelece que:

1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

É sabido que a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar a prevalência do fundo sobre a forma, estabelecendo mecanismos que permitam que a tramitação processual tenha a maleabilidade e flexibilidade necessárias para que se consiga alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes.
Tal filosofia veio a ser progressivamente introduzida com a reforma operada com o DL nº 329-A/95, de 12/12, estando ainda mais reforçada no atual CPC.
Refere-se no preâmbulo do referido DL nº 329-A/95, que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; e que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; refere-se ainda o “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e afirma-se que o processo civil terá que ser perspetivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
De relembrar ainda outras vertentes do dever de gestão processual que são salientadas no Acórdão da Relação de Lisboa, de 5.7.2018, Relator José Capacete (in www.dgsi.pt), onde se escreve que “conforme refere Teixeira de Sousa, “a gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento. Tal gestão pressupõe um juiz empenhado na resolução célere e justa da causa, e traduz-se um aspeto substancial – a condução do processo – e num aspeto instrumental – a adequação formal (cf. art. 547º). O dever de gestão processual procura ajudar a solucionar a “equação processual”: uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis do caso concreto”.
Ainda de acordo com o mesmo Autor, “o aspeto substancial do dever de gestão processual expressa-se no dever de condução do processo que recai sobre o juiz, dever que é justificado pela necessidade de o juiz providenciar pelo andamento célere do processo (cf. art. 6º, nº 1). Para a obtenção desse fim, deve o juiz (...) promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 6º, nº 1); (...) pode falar-se de um poder de “direção do processo” e de um poder de “correção do processo”.
Pese embora estes objetivos e estas linhas mestras do direito processual civil, entendemos que o dever de gestão processual não pode ter um alcance tal que leve a que o tribunal se substitua às partes e defina ele próprio os trâmites processuais a seguir para que seja exercido determinado direito. No nosso sistema jurídico vigoram o princípio do dispositivo e o princípio da auto responsabilização das partes, os quais não podem ser postergados por uma amplitude exacerbada no preenchimento do conteúdo do dever de gestão processual.

Volvendo ao caso em apreço, tendo em conta os factos alegados na reclamação de créditos, concluímos que o credor reclamante tem um crédito garantido por penhor, ou seja, dispõe de garantia real, mas não dispõe de título exequível posto que o contrato de locação financeira invocado não se enquadra em nenhum dos títulos executivos previstos no art. 703º, nº 1, do CPC.
Assim, falece o requisito de existência de título exequível que é exigido pelo art. 788º, nº 2, do CPC, razão pela qual não pode ser admitida a reclamação de créditos, tal como se concluiu na decisão recorrida que decidiu acertadamente.
De relembrar que a livrança em branco não foi invocada na reclamação pelo que não se pode aferir se a livrança pode valer como título exequível enquanto quirógrafo.
Porém, não obstante a inexistência de título exequível, o credor poderia ter-se socorrido do procedimento previsto no art. 792º acima transcrito com vista a obter no próprio processo a formação do título executivo, no caso de o devedor reconhecer a existência do crédito, o que, a ocorrer, implicaria que o crédito se consideraria reclamado (nº 3, do art. 792º).
No caso de não reconhecimento do crédito pelo devedor, seguir-se-ia o procedimento referido nesse artigo com vista à obtenção do título.
Ora, tendo o credor manifestado a sua vontade de reclamar o crédito na execução e não sendo a mesma admissível por falta de título exequível, como já concluímos, impunha-se, em acréscimo à não admissão da reclamação, que, ao abrigo do dever de gestão processual consagrado no art. 6º, do CPC, conjugado com o princípio da adequação formal consagrado no art. 547º, do CPC, e tendo ainda em conta a possibilidade de correção do meio processual utilizado prevista no art. 193º, nº 3, do CPC, se convidasse a parte a esclarecer se pretendia que a sua petição de reclamação fosse considerada para efeitos da tramitação prevista no art. 792º, do CPC, para o credor que não dispõe de título exequível, ordenando, em caso de resposta afirmativa, que se procedesse à notificação prevista no art. 792º, nº 2, do CPC.
Esta solução é a que permite diminuir os custos e reduzir o dispêndio de tempo, evitando que o banco tenha que propor uma nova ação para obter um título exequível e que, de seguida, tenha de mover uma ação executiva, pois recorrendo ao procedimento do art. 792º pode conseguir obter a formação do título na própria ação executiva e, mesmo que não o consiga e tenha que intentar ação declarativa para o efeito, poderá sempre fazer valer os seus direitos na execução já instaurada quanto aos bens relativamente aos quais incide a garantia, nos moldes regulados no referido art. 792º.
Parece-nos que esta é a solução que permite garantir uma maior celeridade à resolução global do litígio, com menores custos e de uma forma mais equitativa.
Portanto, entende-se que a decisão recorrida decidiu corretamente na parte em que não admitiu a reclamação de créditos, por inexistência de título exequível, mas deve ser alterada na medida em que se quedou por este indeferimento e pôs termo ao processo, quando deveria ter determinado, ao abrigo do dever de gestão processual, que o reclamante esclarecesse se pretendia que fosse dado cumprimento ao disposto no art. 792º procedimento aplicável ao credor que não dispõe de título exequível.
Neste momento é ato inútil colocar tal questão, pois o credor já se pronunciou por via do recurso em termos que resultam ser essa a sua pretensão.
Por isso, apenas há que determinar que os autos prossigam com a notificação da executada para, em 10 dias, se pronunciar sobre a existência do crédito invocado, nos termos do art. 792º, nº 2, do CPC, seguindo-se posteriormente os demais termos previstos nesse artigo.
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Perante esta conclusão fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, perante a falta de título exequível, determinam, ao abrigo do dever de gestão processual, que seja proferido despacho a ordenar que se proceda à notificação da executada para, em 10 dias, se pronunciar sobre a existência do crédito invocado, nos termos do art. 792º, nº 2, do CPC, seguindo-se posteriormente os demais termos previstos nesse artigo.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 21 de janeiro de 2021

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos