Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE | ||
Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO "POSSE OU QUALQUER DIREITO INCOMPATÍVEL” CONTRATO DE ARRENDAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Em sede de acção executiva para entrega de coisa certa, a “posse ou qualquer direito incompatível”, constitutivos da causa de pedir de embargos de terceiro, são posse ou direito licitamente oponíveis. II - A licitude dessa oponibilidade apenas pode ser avaliada pelo direito material, pelo que a incompatibilidade é a qualidade de oponibilidade material do próprio direito ofendido, que cause um desvalor de ilicitude à entrega da coisa. III – Não é oponível à entrega da coisa, um contrato de arrendamento celebrado pelo executado, que não era, nem nunca foi, proprietário da coisa. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES 1. Relatório AA e BB [entretanto falecido, tendo, por sentença de .../.../2016, proferida no apenso “G, sido julgados habilitados na posição do mesmo AA, CC, DD e EE] intentaram acção executiva para entrega de coisa certa contra, entre outros, T... – Peças Auto, Ldª e FF, pedindo a entrega do prédio rústico, denominado Bouça das ..., sito no lugar ... ou ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...32 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...77. A 02/02/2022 foi junto aos autos “Auto de Entrega“ onde consta, além do mais, que “O ocupante dos pavilhões designados por A4 e A5, GG, embora não sendo Executado, entregou (…) voluntariamente os mesmos.” Por apenso à referida execução, GG deduziu embargos de terceiro contra os exequentes AA, CC, DD e EE e os executados T... – Peças Auto, Ldª e FF, pedindo que se reconheça a prevalência do seu direito ao arrendamento e a legitimidade do mesmo em fruir e permanecer nos pavilhões identificados, derrogando a ordem e tomada de posse das fracções pelos embargados/exequentes. Invocou para tanto que por contrato datado de 31.12.2005, com início a 01.01.2006, o embargante tomou de arrendamento do embargado T... – Peças Auto, Lda., um pavilhão sito no Parque Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., designado pelo Lote ..., destinado a depósito, manutenção e reparação de veículos automóveis sem carácter comercial, pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, excepto se qualquer das partes se opusesse à renovação, pela renda anual de 2.040,00€; desde a referida data, o Embargante entrou na posse do imóvel, dele fruindo e dispondo de acordo com os direitos conferidos por via do descrito contrato. Mais alegou que a 1 de Fevereiro de 2012, por contrato verbal, tomou de arrendamento do embargado FF, o pavilhão existente no mesmo local, designado pelo lote ..., pelo renda anual de € 2.040,00, sem estipulação de prazo, entrando na posse desse imóvel desde essa data. Alegou também que a 02/02/2022, encontrando-se num dos pavilhões, foi abordado pela Sra. Agente de execução que lhe transmitiu que ali se havia deslocado em cumprimento do ordenado nos autos de execução, para tomar posse do imóvel onde estão inseridos os pavilhões, para que o embargante reconhecesse e respeitasse o direito dos exequentes e para que o embargante removesse, no prazo de 30 dias a contar daquele dia, todos os bens móveis que se encontrassem nos pavilhões locados , sob pena de os mesmos serem considerados abandonados; a Sra. Agente de Execução procedeu à substituição da fechadura dos pavilhões ocupados pelo embargante, com os bens móveis pertencentes a este no seu interior. Alegou ainda que o embargante dispõe de um direito enquanto arrendatário sobre os dois pavilhões que integram o imóvel, celebrou os contratos com os executados, aqui embargados, em data anterior à execução, desconhecendo a existência de qualquer litigio entre os exequentes e executados, bem como a acção declarativa que a antecedeu, circunstância que demonstra a boa-fé do embargante, tendo acreditado estar a celebrar um negócio jurídico inteiramente válido com os legítimos proprietários dos imóveis, convicção reforçada pelo facto de sempre ter gozado do seu direito com pleno conhecimento dos exequentes, ora embargados. Finalmente e em sede de Direito alega que os exequentes/embargados sucedem nas obrigações dos executados/embargados enquanto locadores. A fim de proferir despacho liminar foi determinada a inquirição das testemunhas arroladas pelo embargante, após a qual foi proferido despacho que decidiu: “ (…) defiro liminarmente e parcialmente os presentes embargos de terceiro, no que respeita ao Lote ... e determino a suspensão da execução quanto a tal bem, indeferindo relativamente ao lote ....” Notificados os embargados para contestar, apenas contestaram os embargados/exequentes AA, CC, DD e EE, dizendo não haver qualquer probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante, por já estar definitivamente provado pelo Acórdão dado à execução e do que foi decidido nos embargos de executado, que os executados T... – Peças Auto, Ldª e FF, indicados como pretensos locadores, nunca detiveram quaisquer direitos de propriedade ou posse, sobre os pavilhões pretensamente locados, que permitisse dá-los de locação. E pediram a condenação do embargante como litigante de má-fé. Foi proferido despacho com o seguinte teor: Ao abrigo do artigo 547º do CPC, admito no processo um 3.º articulado, para que o(a/s) Embargante (s) se pronuncie, desde já, sobre as excepções invocadas pelo(a/s) Embargado(a/s), incluindo sobre o pedido de condenação como litigante de má fé. O embargante respondeu às ”excepções deduzidas pelas embargadas /exequentes” e ao pedido de condenação como litigante de má-fé. Considerando que “o estado do processo permite a apreciação do pedido, passamos a conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos do artigo 595º, nº 1, al. b), do CPC”, foi proferido saneador/sentença, que decidiu: “Pelo exposto, julgo os embargos de terceiro improcedentes, por não provados.” Interpôs o embargante recurso, pedindo seja dado provimento ao recurso e os embargos de terceiro sejam julgados procedentes, reconhecendo o direito do Recorrente à livre fruição e gozo do imóvel, fundada em direito de arrendamento legalmente estabelecido, com prevalência sobre a tomada de posse do imóvel pelos Embargados/Exequentes, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: 1º. A 31 de Dezembro de 2005, o Recorrente celebrou com o Embargado T...-PEÇAS AUTO LDA., um contrato de arrendamento, pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, e com uma renda anual acordada em 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros), relativo ao pavilhão localizado no Parque Industrial ..., na freguesia ..., concelho ..., designado pelo Lote ..., para depósito, manutenção e reparação de veículos pelo Recorrente, sem caráter comercial. 2º. A referida T... sempre pautou a sua conduta como titular de um direito próprio, dispondo da faculdade de dar o referido pavilhão de arrendamento, designadamente recebendo rendas e cedendo ao Embargante o gozo e fruição do prédio, sem qualquer limitação, criando no Embargante a convicção de ter adquirido um direito legal ao arrendamento dos pavilhões, pelo que passou a exercer a posse do pavilhão à vista de todos, sem qualquer oposição ao gozo dos seus direitos – incluindo pelos Embargados Exequentes, que da posse do Embargante sempre conheceram -, e sempre zelando pelo cumprimento integral das suas obrigações. 3º. No dia 02 de Fevereiro de 2022, quando se encontrava num dos pavilhões já descritos, o Recorrente foi abordado pela Exma. Srª Agente de Execução, Drª HH, acompanhada de Srs. Guardas da GNR ... e um serralheiro, onde foi informado da tomada de posse do imóvel referente aos pavilhões arrendados por força do cumprimento do ordenado pelo Mmo. Juíz de Direito do tribunal onde corre termo os autos de n.º 916/13...., ainda que ao Recorrente não tenha sido entregue qualquer documento comprovativo da diligência em curso, ou do processo tramitado nos autos de execução. 4º. Subsequentemente, veio o Recorrente intentar, por apenso à execução identificada, os presentes Embargos de terceiro, contando que nunca foi parte no processo executivo de n.º 916/13...., mas possui um direito legítimo de arrendamento dos pavilhões referidos e que foi grosseiramente violado, adquirido anteriormente à instauração do processo executivo referenciado, pugnando pela conservação do gozo e fruição do prédio que, de boa-fé, adquiriu. 5º. O despacho liminar determinou a suspensão da execução relativamente ao pavilhão ora discutido, por considerar provado que, desde a data do contrato celebrado relativo ao pavilhão A5, o aqui Recorrente dele frui e dispõe, à vista de todos, sem que recebesse oposição ao gozo do seu direito por quem quer que fosse, não descortinando o Recorrente o motivo ou caminho percorrido pelo Douto Tribunal recorrido para, a final, julgar os presentes embargos totalmente improcedentes, por não provados, e, consequentemente, determinar o prosseguimento da execução, condenando o Embargante Recorrente nas custas do processo. 6º. Ao adoptar o referido dispositivo, a douta sentença recorrida descurou, na totalidade, a boa-fé do Recorrente, o desconhecimento absoluto deste sobre a eventual ilegitimidade do proprietário do imóvel no momento da celebração do contrato de arrendamento, e fundamentalmente o facto de a relação de arrendamento entre o Recorrente e a T... se ter estabelecido em momento bem anterior à instauração da execução principal e ao acórdão a que os Embargados/Exequentes fazem persistentemente apelo. 7º. O contrato de arrendamento ora em crise foi realizado em momento anterior ao registo de qualquer penhora ou apreensão do imóvel, e, por isso, na senda do Douto Acórdão da Relação de Évora de 05-12-2019, no proc. 5809/13.2TBSTR-C.E1, “É certo que o arrendamento de bens penhorados não é oponível à execução (artº 819º do CC), mas o arrendamento constituído antes da penhora, em princípio, é oponível à execução, no sentido em que subsiste após a venda executiva, transferindo-se para o adquirente os direitos e obrigações do locador (artº 1057º do CC)”, pelo que os Embargados/Exequentes se encontram obrigados a reconhecer o direito do Recorrente. 8º. Secundando-se no Douto Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, de 05/07/2021, o direito de posse detido pelo Recorrente é incompatível com a penhora ou apreensão do prédio e, como tal, constitui fundamento para a dedução, inclusive preventiva, dos Embargos de terceiro. 9º. Os Embargos de terceiro são também um meio de defesa de que os meros detentores e possuidores em nome alheio podem socorrer-se, ou seja, não é exclusivo dos possuidores, vindo facultada ao aqui Recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 1037º, n.º 2 do CC, a possibilidade de lançar mão dos meios de defesa da posse previstos no art.º 1276º e ss., do CC, quando seja privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos, vindo legitimado o recurso ao embargos de terceiro no art.º 1285º do referido diploma. 10º. Por conseguinte, o Recorrente é titular de um direito legítimo de arrendamento sobre o pavilhão identificado, prevalecendo o seu direito sobre o direito dos Embargados/Exequentes, sendo a apreensão efectuada ineficaz perante o Recorrente, pelo que deve a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a prevalência do direito do Recorrente de gozo e fruição do imóvel. Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações 2. Questões a apreciar O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida. O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida). A única questão que cumpre apreciar é a de saber se ocorreu erro de julgamento de direito dos embargos de terceiro. 3. Fundamentação de facto O tribunal a quo considerou: Factos provados Face aos documentos juntos aos autos e por acordo das partes, e com interesse à boa decisão da causa, o tribunal considera provados os seguintes factos provados: 1. No dia 02-02-2022, no âmbito dos autos de execução com o nº 916/13...., a que os presentes autos se encontram apensos, em que são exequentes AA, CC, EE e DD, e executados, entre outros, T... Peças Auto, Lda. a Sr. agente de execução procedeu à investidura das exequentes da posse dos Lotes ..., entre outros. 2. Por contrato escrito datado de 31 de Dezembro de 2005, com início a 1 de Janeiro de 2006, o Embargante tomou de arrendamento do executada T... – PEÇAS AUTO, LDA., um pavilhão sito no Parque Industrial ..., na freguesia ..., concelho ..., designado pelo Lote ..., 3. para que aquele o destinasse a depósito, manutenção e reparação de veículos automóveis sem carácter comercial. 4. pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, excepto se qualquer das partes se opusesse à renovação, 5. pela renda anual de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros). 6. Foi dado à execução o acórdão da Relação de Guimarães, com data de 27 de março de 2012, constando do seu dispositivo: 7. a) “Reconhecer que a autora é dona do prédio rústico dentificado no artigo 1.º da petição inicial” 8. b) “Restituir aos autores o prédio acima identificado (…) livre e devoluto.” 9. Consta dos factos provados, entre o mais: 10. “O prédio rústico denominado Bouça das ..., sito no lugar ... ou ..., freguesia ... (…)” foi adquirido pela autora AA “por escritura de compra e venda celebrada em 8/4/1981, na Secretaria Notarial de ... 1.º Cartório, mediante o pagamento do seu preço (…)”. 11. “5. No dia 24 de novembro de 1992, por escrito particular os AA. e o 1.º R. marido celebraram entre si um contrato de promessa de permuta”. 12. “6. Através do qual os AA. prometeram permutar com o 1.º R. marido a referida Bouça das ..., que se obrigaram a transmitir-lhe.” 13. “7. Tendo o 1.º R. assumido o compromisso de adquirir a terceiros para aos AA. entregar, fazendo-os ingressar o seu património os apartamentos adiante referidos e nos termos daí também constantes” 14. “19. O 1.º R. marido e essas 2.ª e 3.ª RR. procederam, depois à terraplanagem do prédio e à sua transformação nele construindo 7 pavilhões industriais destinados a uso próprio e a revenda, pavilhões esses que transmitiram, por contrato de arrendamento à R. M..., Lda., e por contratos promessa de compra e venda aos 4.º 5.º 6.º e 8.º RR. e a A..., Lda., recebendo deles valores pecuniários” 15. “28. Por seu turno, a 6.ª Ré (T..., Lda.) em 27 de dezembro de 1994 celebrou com a 3.ª Ré (…) o contrato promessa de compra e venda de um pavilhão construído por esta no lote n.º ... pelo preço de 15.000.000$00 e nas condições e pagamento aí estabelecidas (…)” 16. “29. A 6.ª Ré instalou no supramencionado pavilhão uma oficina de reparação automóvel e continua à espera da celebração do contrato definitivo de compra e venda deste pavilhão.” 17. “35. A Ré A..., Lda., em 31/7/1998, apresentou na Repartição de Finanças competente, 12 declarações 8 modelo 129 para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na matriz, assinalando nas mesmas que o número do artigo em que o prédio ou parte do prédio se encontrava inscrito na matriz era o artigo ...32 rústico” 18. “36. Na mesma data – 31-7-1998 - a mesma entregou na referida Repartição de Finanças 3 declarações mod. 129 a participar construções já concluídas nesses mesmos lotes de terreno, identificando o loteamento como o n.º 183 de 28/12/1993, dos quais resultaram novas inscrições matriciais para os pavilhões e estaleiro;” 19. “37. Passando desde então a dita A... a comportar-se como dona dos pavilhões e estaleiro.” 20.“39. Nas datas estipuladas no contrato (promessa de permuta) o 1.º R. não adquiriu os apartamentos identificados (…)” 21. “48. Os AA. perderam definitivamente o interesse na prestação do 1.º R.” 22.“53. O 1.º R. nunca celebrou com qualquer dos seus atuais co-Réus ou com outra pessoa, singular ou coletiva, qualquer contrato promessa de compra e venda ou outro negócio jurídico tendo por objetivo os imóveis que são referidos e identificados na Petição Inicial. * Factos não provadosNão se provaram, com relevância para a decisão da causa, mais nenhum dos factos alegados, designadamente que o embargante tem a posse do imóvel. 4. Fundamentação de direito O tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos: “Vistos os factos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico. Segundo o artigo 342º, nº 1 do NCPC, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte da causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. Como resulta da redacção daquele preceito, este permite a defesa não só da posse como de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, v. g., o direito de propriedade. Nos presentes autos, o embargante veio dizer que é detentor do pavilhão em virtude da celebração de um contrato de arrendamento. É certo que o embargante é terceiro, pois não é executado na execução apensa. Todavia, o mesmo não logrou provar que detém a posse sobre o referido imóvel, sendo unicamente detentor precário do mesmo. Concretizando. A execução apensa consubstancia uma execução para entrega de coisa certa. Em princípio, o uso dos embargos de terceiro só é facultado ao possuidor em nome próprio, sendo excepcional a concessão desse poder ao possuidor em nome alheio, que é mero detentor. Ora, uma das referidas excepções ao uso dos embargos de terceiro pelo possuidor, precário, em nome alheio, consta do nº2 do artigo 1037º do Código Civil que permite ao locatário usar, mesmo contra o locador, os meios de defesa da posse. Mas, é necessário que esteja demonstrada a existência do contrato que, nos termos do artigo 1037º do CC, permite a defesa da posse. O embargante invocou um contrato de arrendamento como causal da posse, que lhe permitia deduzir embargos de terceiro. Uma vez que está em causa a existência de um título, cumpre verificar da celebração do contrato de arrendamento que lhe permita a defesa da posse do dito pavilhão. Sucede que, como consta dos factos provados, tal contrato não foi celebrado pelo proprietário do imóvel, nem por quem tinha legitimidade para o efeito, tratando-se de um arrendamento de coisa alheia, ou seja, um caso em que o locador não tem qualquer direito respeitante ao imóvel, nem poderes de administração, dando-o de arrendamento como se fosse titular desses poderes de disposição, sendo este contrato nulo. Como defende o “saudoso Professor Pereira Coelho, Arrendamento, pág.105, o arrendamento de bens alheios “é nulo por falta de legitimidade do locador, embora este seja obrigado a sanar a nulidade do contrato, que se torna válido logo que o locador adquira direito (propriedade, usufruto, etc.) que lhe dê legitimidade para arrendar – artigos 895.º e 897.º do C. Civil, aplicável por analogia” (…) – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.07.2020, in www.dgsi.pt. Assim, o embargante não é arrendatário do pavilhão. Ora, não resultando demonstrada a posse do embargante, mas apenas uma detenção do imóvel, uma vez que é desligada de qualquer direito real, a detenção não subsiste à venda executiva, ela não pode fundamentar a sua defesa através de embargos de terceiro. Deste modo, como, apesar do silêncio da lei, os direitos pessoais de gozo sobre os bens penhorados, por não serem oponíveis à execução, se extinguem, em regra, com a venda executiva, qualquer desses direitos é insuscetível de fundamentar embargos de terceiro (artº 824 nº 2 do Código Civil) – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.03.2010, in www.dgsi.pt. E assim, terão de improceder os presentes embargos.” Vejamos em primeiro lugar e sucintamente o enquadramento jurídico. Dispõe o n.º 1 do art.º 342º do CPC: Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. Refere Rui Pinto, in Acção Executiva, AAFDL, 2018, pág. 700 (sublinhados nossos), que os embargos de terceiro são o incidente pelo qual quem não é parte no processo executivo, ou seja, não é exequente, nem executado, pede a extinção da penhora, apreensão ou entrega judiciais ofensivas de posse ou direitos seus. A “ofensa” traduz-se no seguinte: não é possível ao terceiro manter a plena afectação do bem jurídico nos termos do seu direito, em simultâneo com o acto de apreensão executiva, a qual produz a indisponibilidade material, a perda da posse efectiva sobre a coisa apreendida (aut. e ob. cit. pág. 707). Relativamente à “posse ou qualquer direito incompatível”, importa não olvidar que estamos perante uma acção executiva para entrega de coisa certa, a qual tem uma modelação própria, no sentido em que tem em vista a entrega de uma coisa e não a penhora de bens para proceder à sua venda e com o produto da mesma, dar pagamento ao exequente, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 824º do CC, o qual tem única e exclusivamente em vista a venda executiva. Neste sentido e como refere Rui Pinto, in ob. cit. pág. 713, o “direito incompatível” não pode ser apurado com relação com os direitos que se extinguem com a venda executiva, porque “na apreensão para entrega de coisa certa (…) os efeitos translativos e extintivos do art.º 824 n.ºs 1 e 2 do CC estão ausentes necessariamente. Portanto, pelo menos aí, o critério de apuramento de direito incompatível terá de ser procurado fora de uma (funcionalmente inexistente) venda.” E defende (pág. 713) e acompanhamos que “posse ou qualquer direito incompatível”, são posse ou direito licitamente oponíveis. A licitude dessa oponibilidade apenas pode ser avaliada pelo direito material, pelo que a incompatibilidade é a qualidade de oponibilidade material do próprio direito ofendido que cause um desvalor de ilicitude, neste caso, à entrega da coisa. E por isso o embargante deverá alegar e provar a titularidade da posse ou do direito ofendido, a qual determina, ao mesmo tempo, a legitimidade e a causa de pedir nos embargos de terceiro (aut. e ob. cit. pág. 710). Vejamos agora e em síntese a factualidade provada. Resulta da factualidade provada – decorre do ponto 6 a 10 – que o Acórdão desta RG de 27 de março de 2012, reconheceu a exequente AA como dona do prédio rústico denominado Bouça das ..., sito no lugar ... ou ..., freguesia ... (…)”, o qual foi adquirido por aquela “por escritura de compra e venda celebrada em 8/4/1981, na Secretaria Notarial de ... 1.º Cartório, mediante o pagamento do seu preço (…)” e ordenou a restituição do referido prédio, livre e devoluto, a AA e BB. Estes últimos intentaram a acção executiva (de que os presentes são apenso) para entrega daquele imóvel. Decorre do ponto 1 dos factos provados que no dia 02-02-2022, no âmbito dos autos de execução com o nº 916/13...., a que os presentes autos se encontram apensos, em que são exequentes AA, CC, EE e DD, e executados, entre outros, T... Peças Auto, Lda. a Sr. AE procedeu à investidura das exequentes da posse do Lotes ... [por lapso manifesto consta B-5]. Finalmente está provado que a 31 de Dezembro de 2005, o Recorrente celebrou com o Embargado T...-PEÇAS AUTO LDA., um contrato de arrendamento, pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, e com uma renda anual acordada em 2.040,00€), relativo ao pavilhão localizado no Parque Industrial ..., na freguesia ..., concelho ..., designado pelo Lote ..., para depósito, manutenção e reparação de veículos pelo Recorrente, sem caráter comercial, porque isto mesmo consta dos pontos 2, 3, 4 e 5 dos factos provados. Apreciação Não há dúvidas que o embargante não é exequente, nem executado, tendo, portanto, a qualidade de terceiro. Não há dúvidas que a entrega efectiva do Lote ... aos seus legítimos proprietários ofende o direito de gozo do embargante, porque aquela implica a impossibilidade de o embargante continuar a fazer uso da coisa, priva-o de poder manter o gozo da coisa. Porém, à luz do direito material, o direito de gozo, fundado no contrato de arrendamento referido, não é incompatível com a execução e, concretamente, com a entrega da coisa, na medida em que, como ficou referido, não é licitamente oponível à execução, ou, mais concretamente, à entrega da coisa. E isto porque o arrendamento foi celebrado, na qualidade de locadora, pela T... LDA., que não era, nem nunca foi, a proprietária do imóvel e, como tal, não tinha legitimidade material para dar de arrendamento. Embora o tenha feito, tal arrendamento é absolutamente ineficaz relativamente à sua legítima proprietária, AA que, na execução de que os presentes são apenso e na sequência de Acórdão proferido numa acção de reivindicação, pede a entrega do imóvel. E, sendo assim e em consequência, tal arrendamento é absolutamente inoponível à execução e, concretamente à entrega da coisa. É totalmente irrelevante para os presentes embargos de terceiro se a referida T... sempre pautou a sua conduta como titular de um direito próprio e se o embargante tinha a convicção de ter adquirido um direito legal ao arrendamento dos pavilhões (conclusões 2ª e 6ª). O que releva é saber se o arrendamento é, ou não, oponível à entrega. E já ficou dito e explicado que não Finalmente não se pode deixar referir a perplexidade que causa as conclusões 6ª, 7ª e 8ª do recorrente, em que se invoca que a relação de arrendamento entre o Recorrente e a T... estabeleceu-se em momento anterior à instauração da execução principal e ao acórdão a que os Embargados/Exequentes fazem apelo, aplica-se o art.º 1057º do CC e se citam dois Ac.s: um da Relação de Évora de 05-12-2019, no proc. 5809/13.2TBSTR-C.E1 e outro do Supremo Tribunal de Justiça, proc. 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, de 05/07/2021. O art.º 1057º do CC dispõe que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo. Sucede que a situação dos autos não tem qualquer enquadramento em tal normativo. Tal só sucederia se estivesse em causa uma acção executiva para pagamento de quantia certa, tivesse sido penhorado um imóvel (livre de ónus ou encargos), antes da penhora tivesse sido celebrado um arrendamento, o imóvel fosse vendido, situação em que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de arrendamento sucedia nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo. Sucede que, como o embargante sabe, a acção executiva de que os presentes são apenso é para entrega de uma coisa de que a exequente foi reconhecida proprietária e que se encontra na posse de terceiros não legitimados e não uma acção executiva para pagamento de quantia, não tendo havido qualquer transmissão, por via dos mecanismos da acção executiva, do imóvel. Relativamente aos Ac’s citados também não têm qualquer aplicação aos autos porquanto no Ac. da RE estava em causa uma acção executiva para pagamento de quantia certa, foi penhorado um imóvel, sobre o qual incidia uma hipoteca, invocando os embargantes ter tomado o mesmo de arrendamento antes da penhora e no Ac. do STJ estava em causa a venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, colocando-se a questão de saber se tal arrendamento caducava com a venda. Em face de tudo o exposto, a decisão recorrida deve manter-se e, assim, o recurso deve ser julgado improcedente. As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, por vencido – art.º 527º. n.ºs 1 e 2 do CPC. 5. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção desta Relação em manter a decisão recorrida e em consequência julgar improcedente o recurso. * Custas pelo recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC* Notifique-se* Guimarães, 12/10/2023 (O presente acórdão é assinado electronicamente) Relator: José Carlos Pereira Duarte Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais Gonçalo Oliveira Magalhães |