Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
263/23.T8EPS.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA NO DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O conhecimento do pedido no despacho saneador só pode ocorrer quando no processo já estiverem assentes todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e já não quando apenas estiverem assentes os factos relevantes segundo a solução jurídica que o julgador perfilha e considera mais adequada.
II - Perante a existência de soluções plausíveis de direito que admitem a aquisição por usucapião, não obstante a violação de regras administrativas do território e de o prédio ter área inferior à da unidade cultura, o processo só estaria em condições de poder ter uma decisão de mérito sobre a reconvenção no despacho saneador se estivessem provados os factos atinentes à posse que os réus invocaram na contestação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE AA, representada pelo cabeça-de-casal, BB,
BB,
CC,
DD, casado com EE,
FF, casado com GG,
HH e
II, por si e na qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu marido JJ

intentaram ação de divisão de coisa comum contra

FF e mulher KK e
BB e mulher LL

pedindo que seja decretada a adjudicação ou venda do imóvel identificado na petição inicial, com repartição do respetivo valor.
Como fundamento do seu pedido alegaram, em síntese, que são comproprietários, juntamente com os réus, do prédio rústico identificado no art. 6º da p.i. e pretendem pôr fim à situação de indivisão existente, sendo que o prédio é indivisível em substância.
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Regularmente citados, os réus contestaram e deduziram reconvenção.
Impugnaram a matéria de facto alegada pelos autores, defendendo que, desde pelo menos o ano de 1999, o prédio objeto dos autos deixou de existir fisicamente em virtude de os então comproprietários terem procedido à sua divisão material em três parcelas autónomas, cada uma com entrada própria a partir da via pública e demarcada com a colocação de marcos, divisão da qual surgiram os 3 prédios identificados como A, B e C no art. 19º da contestação os quais foram adjudicados, em exclusividade, a BB, casado com LL (prédio identificado em A), AA, casada com BB (prédio identificado em B) e FF casado com KK (prédio identificado em C).
Quer o réu BB, quanto ao prédio referido em A, quer o réu FF, quanto ao prédio referido em C, desde a divisão material do prédio inicial, por si e anteriores possuidores, exercem a posse sobre tais parcelas de terreno, ali cultivando os mais variados géneros ou produtos agrícolas, ali cuidando dos seus estremos, limites e configurações, impedindo que estranhos ali entrem e permaneçam contra a sua vontade, ali praticando os mais variados factos e atos próprios de quem é o seu verdadeiro e único proprietário.
Mais alegaram que praticaram tais factos de modo continuado e sem interrupção, à vista da generalidade das pessoas, sem violência e sem oposição de ninguém e sem lesar quaisquer direitos de outrem, sempre com a convicção, a intenção e a vontade de exercerem sobre esses prédios um pleno e exclusivo direito de propriedade, invocando a aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma das parcelas de terreno em causa, por efeito de usucapião.

Deduziram reconvenção, fundamentada na matéria de facto descrita, peticionando:

1) que se julgue o réu/reconvinte BB o exclusivo dono e legítimo possuidor do prédio rústico identificado em A do art. 19º da contestação, em virtude de o ter adquirido originariamente por efeito de usucapião.
2) que se condene a autora/reconvinda, representada pelos autores/reconvindos, a reconhecer o réu/reconvinte BB como dono e legítimo possuidor do referido prédio.
3) que se julgue o réu/reconvinte FF o exclusivo dono e legitimo possuidor do prédio rústico identificado em C do art. 19º da contestação, em virtude de o ter adquirido originariamente por efeito de usucapião.
4) que se condene a autora/reconvinda, representada pelos autores/reconvindos, a reconhecer o réu/reconvinte FF como dono e legítimo possuidor do referido prédio.
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Os autores replicaram, impugnando a matéria de facto alegada pelos réus /reconvintes e defendendo a existência de compropriedade efetiva, assim como a impossibilidade jurídica de divisão do prédio.
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Por despacho de 26.6.2023:
a) determinou-se que os autos passassem a seguir a forma de processo comum;
b) admitiu-se a reconvenção deduzida e convidaram-se os réus a esclarecer se têm a competente licença administrativa que titule a operação de loteamento (material) que invocam ter realizado;
c) fixou-se à ação o valor de€ 5 000,01;
d) mandou-se registar a ação.
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Os réus declararam não ter qualquer licença administrativa e não pretenderem fazer nenhum loteamento.
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Após, considerando-se as posições das partes já expressas nos autos, entendeu-se que se mostravam reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do mérito da reconvenção e foram as partes convidadas a pronunciarem-se sobre a mesma.
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Apenas os réus se pronunciaram, defendendo a divisão material propugnada, sustentando que as parcelas de terreno ou prédios rústicos resultantes da divisão material do prédio-mãe ocorrida antes do ano de 1999 não se destinou a construção, mas antes à cultura dos mais variados géneros agrícolas.
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Foi proferido saneador-sentença o qual, entendendo que os autos reuniam já todos os pressupostos necessários ao conhecimento do mérito da reconvenção, apreciou a mesma concluindo nos termos do seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, declaro a compropriedade de autores e réus e determino o prosseguimento dos autos como divisão de coisa comum.
Custas pelos réus e entre estes em partes iguais, artigo 527º, nº 1 e 2 do CPC.”
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Os réus BB e mulher LL não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Conforme decorre da lei, os efeitos da usucapião retrotraem-se à data do início da posse (cfr. artigo 1288.º do Código Civil) sendo, por isso, a data relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos, a data do início da posse.
2. É à lei em vigor na data do início da posse, in casu, a lei em vigor antes do ano de 1999, que deve aplicar-se para determinar se o prédio foi fracionado em violação da lei e quais as consequências que decorrem dessa violação.
3. Atenta a primitiva redação do artigo 1379.º n.º 1 do Código Civil, em vigor antes do ano de 1999, data da divisão e início da posse sobre os prédios das alíneas A) e C) do art. 19.º da contestação/reconvenção, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, contra o disposto no artigo 1376º, não impedia a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião.
4. Operada há mais de 15 e 20 anos a divisão material do prédio rústico identificado sob o art. 19.º de tal articulado em três parcelas de terreno, perfeitamente delimitadas, com marcos e entradas próprias, com confrontações e áreas definidas, todas com áreas inferiores à unidade de cultura fixada pela Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da usucapião, a aquisição por essa via do direito de propriedade sobre as parcelas A) e C) deve prevalecer sobre as regras de fraccionamento dos prédios rústicos, ou seja, sobre a proibição contida no art. 1376º, nº1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº1 do art. 1379.º do Cód. Civil na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27/08.
5. Não obstante a lei interpretativa não estar sujeita ao princípio geral consagrado no artigo 12.º do Código Civil, ainda assim a retroactividade da lei interpretativa não é irrestrita, pois não atinge os efeitos já produzidos pela posse iniciada e mantida desde antes de 1999, ao abrigo da lei interpretada, pelo cumprimento das obrigações, pelo caso julgado, pela transacção ou actos de natureza análoga (cfr. 2.ª parte do n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil) e a lei interpretativa não pode estender os seus efeitos para lá do início da vigência da lei interpretada.
6. Através da divisão material ou fraccionamento em causa nos autos, os autores/reconvindos e os réus reconvintes procederam á divisão daquele prédio naqueles 3 novos prédios identificados sob o artigo 19.º da contestação/reconvenção.
7. Desde a data em que os autores/reconvindos e os réus/reconvintes realizaram aquela divisão material ou fraccionamento do prédio identificado sob o referido art. 18.º (o que acorreu antes do ano de 1999), o réu/reconvinte, ora recorrente, MM vem praticando sobre o prédio identificado sob a alínea A) do art. 19.º da contestação/reconvenção os factos alegados sob os artigos 23.º a 28.º do referido articulado, os quais devem julgar-se como provados no douto acórdão a proferir.
8. Desde a data em que os autores/reconvindos e os réus/reconvintes realizaram aquela divisão material ou fraccionamento do prédio identificado sob o referido art. 18.º (o que ocorreu antes do ano de 1999), o réu/reconvinte, NN vem praticando sobre o prédio identificado sob a alínea C) do art. 19.º da contestação/reconvenção os factos alegados sob os artigos 29.º a 34.º da contestação/reconvenção, devendo tais factos ser julgados como provados.
9. Na data da entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27/08, as referidas posses sobre os prédios das referidas alíneas A) e C) do art. 19.º da contestação/reconvenção já se tinham iniciado há mais de 15 e mantido por mais de 15 anos, de boa-fé.
10. Na data da sentença recorrida as referidas posses sobre tais prédios das referidas alíneas A) e C) do art. 19.º da contestação/reconvenção já se tinham iniciado há mais de 20 e mantido por mais de 20 anos, de boa fé.
11. Em virtude de todos esses factos, o réu/reconvinte MM adquiriu por usucapião a propriedade do prédio identificado sob a alínea A) do art. 19.º da contestação/reconvenção.
12. Tal aquisição por usucapião retrotrai-se á data do início da posse, ou seja, antes do ano de 1999.
13. Também em virtude dos respectivos factos supra referidos, o réu/reconvinte NN adquiriu por usucapião a propriedade do prédio identificado sob a alínea C) do art. 19.º da contestação/reconvenção.
14. Tal aquisição por usucapião retrotrai-se á data do início da posse, ou seja, antes do ano de 1999.
15. Ao julgar do modo como julgou na sentença recorrida, o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento, omitiu aqueles factos e questões relevantíssimas para o objeto dos autos supra referidas, não se tendo pronunciado sobre os mesmos, designadamente sobre a data do início da posse, sobre a retrotracção dos efeitos da usucapião á data do início da posse e sob a lei aplicável ao caso dos autos tendo violado, entre outros, os artigos 1287.º, 1288.º e 1296.º do Cód. Civil, não tendo aplicado aos factos e ao objeto dos autos a redação dos artigos 1376.º e 1379.º do Cod. Civil em vigor na data do inicio da posse (antes do ano de 1999) e antes aplicou, indevidamente, a redação dos citados artigos 1376.º e 1379.º do Cód. Civil dada pela Lei n.º 111/2015, de 17/08 e, finalmente, julgou em desconformidade com a jurisprudência de todos os supra citados acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, do Tribunal da Relação de Coimbra, do Tribunal da Relação de Guimarães e do Supremo Tribunal de Justiça.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se os autos contêm já todos os elementos que permitem decidir a reconvenção e concluir pela sua improcedência por as parcelas não poderem ser adquiridas por usucapião.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. As partes adquiriram o prédio rústico, composto de cultura com videiras em ramada, sito na ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica da referida União de Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...51, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...39/..., em compropriedade, no âmbito do processo de inventário suprarreferido, por óbito de OO.
2. O prédio tem uma área (máxima) total de 4.831 m2.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

A decisão recorrida, baseando-se no pressuposto de que os autos reuniam já todos os elementos necessários para o efeito, apreciou a reconvenção deduzida. Julgou-a improcedente por ter considerado que, mesmo que se provassem os factos alegados pelos réus, o tribunal sempre decidiria pela improcedência da reconvenção, visto que não seria possível a aquisição das parcelas, por usucapião, por tal violar o disposto no art. 1376º, do CC, ao implicar fracionamento em área inferior à unidade de cultura, e por violar ainda o disposto no art. 6º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16.12, que só permite o destaque para construção urbana e em duas parcelas, e no caso o prédio destina-se a cultura e foi dividido em três parcelas.

Assim, importa começar por definir em que termos e condições é que uma ação pode ser decidida em fase de saneador para, de seguida, aferir se, no caso sub judice, se encontram reunidos esses pressupostos.

Em regra, a apreciação do mérito da ação ocorre após a realização da audiência final, com a produção das provas que as partes carrearam para os autos, momento em que ocorre a prolação da sentença que aprecia a sua procedência ou improcedência.
Mas, verificadas determinadas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador, assim o permitindo a al. b) do nº 1, do art. 595º do CPC, segundo o qual o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Neste caso, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença (nº 3 do citado art. 595º).

A jurisprudência tem entendido, de forma que pensamos ser unânime ou senão, pelo menos, largamente maioritária, que o conhecimento do pedido no despacho saneador só pode ocorrer quando no processo já estiverem assentes todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e já não quando apenas estiverem assentes os factos relevantes segundo a solução jurídica que o julgador perfilha e considera mais adequada.
Neste sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt):

- acórdão da Relação de Guimarães, de 11.7.2017, P 114815/16.8YIPRT.G1

I. A exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC) deve continuar a seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
II. Nessa conformidade, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.

- acórdão do STJ, de 18.12.2012, P 1345/10.7TVLSB.L1.S1

I - Seja na selecção dos factos assentes, seja na selecção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável.
II - Assim, na fase do despacho saneador, não pode o juiz decidir de acordo com os factos então assentes e que tem por suficientes para a solução jurídica que considera correcta, desprezando factos ainda controvertidos e relevantes para uma solução jurídica diversa sustentada por parte da jurisprudência.

- acórdão da Relação de Coimbra, 5.4.2022, P 449/20.2T8LRA.C1

I – Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes quanto à questão a decidir, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e de reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito.
II – Embora o juiz se considere habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções plausíveis de direito, deve aquele abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.

- acórdão da Relação de Évora, de 14.11.2013 P 25/12.3TBFTR-A.E1

1 - Pode conhecer-se do mérito da causa em saneador-sentença sempre que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas, mas apenas nessa situação.
2 - A produção de prova será desnecessária quando inexistam factos controvertidos relevantes para a solução da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito.
3 - Existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito da causa no saneador.

- acórdão da Relação de Lisboa, de 18.1.2021, P 941/20.9T8OER-A.L1-6

3- É jurisprudência constante que a possibilidade de conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, em sede de despacho saneador/sentença, só pode ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, e não, tendo em vista apenas o entendimento do juiz da causa que, de resto, não pode cingir-se, apenas, à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema, sem antes facultar às partes a possibilidade de provarem o conjunto dos factos que alegaram e em que fundamentavam a sua posição sobre o mérito da causa.

- acórdão da Relação de Lisboa, de 3.12.2020, P 4711/18.6T8LRS-A.L1-2

IV) O conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só é legítimo se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as soluções plausíveis da questão de direito.

No caso em análise, como já supra referimos, o juiz julgou improcedente a reconvenção com base apenas em dois factos provados, atinentes à descrição do prédio e à sua área, por ter entendido que não seria possível a aquisição das parcelas, por usucapião, por tal violar o disposto no art. 1376º, do CC, ao implicar fracionamento em área inferior à unidade de cultura, e por violar ainda o disposto no art. 6º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16.12, que só permite o destaque para construção urbana e em duas parcelas, e no caso o prédio destina-se a cultura e foi dividido em três parcelas.
À luz deste entendimento jurídico, a factualidade provada permite o conhecimento do mérito da reconvenção no despacho saneador.

Não obstante, como a própria decisão recorrida reconhece, embora não perfilhe, existe jurisprudência “que aceita, aprioristicamente, a alegação de que a existência de um (mera) divisão material do prédio, sem inversão do titilo da posse, pode consubstanciar numa posse boa para usucapir, estando em causa a aquisição de parcelas de terreno cuja divisão a ordem jurídica proíbe”.
A decisão recorrida refere igualmente saber que “a questão é amplamente discutida na doutrina e jurisprudência”, porém, afirma perfilhar a solução contida em dois acórdãos, que cita, e, por isso, mesmo que “julgasse provada a matéria de facto invocada na reconvenção, este Tribunal decidiria pela improcedência da reconvenção.”

Por conseguinte, verifica-se que o tribunal recorrido, estando apenas provados factos relevantes para a decisão jurídica que perfilhou, decidiu de imediato a reconvenção no saneador, tendo desconsiderado em absoluto os demais factos, que ainda se encontram controvertidos, e que são relevantes para outras soluções jurídicas plausíveis que o próprio tribunal reconhece existirem.

Com efeito, a par dos acórdãos citados pela decisão recorrida, que não admitem a possibilidade de aquisição por usucapião de imóveis com uma área inferior à da unidade de cultura (Ac. da Relação de Évora, de 25.5.2017 e Ac. da Relação de Guimarães, de 19.12.2019, disponíveis em www.dgsi.pt), existem muitos outros acórdãos que admitem a aquisição por usucapião nessas condições, nomeadamente os invocados pelos recorrentes nas alegações e ainda os seguintes, que se cita a título meramente exemplificativo, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- acórdão do STJ, de 25.5.2023 P 681/20.9T8TMR.E1.S1

I. - A aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo — ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fraccionamento, dos prédios.
II. - O possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes tenha sido autonomizado a despeito das normas de direito do urbanismo

- acórdão da relação de Guimarães, de 21.5.2020, P 1050/18.6T8PTL.G1

I. A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, que surgem ex novo na titularidade do sujeito unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo por isso absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios (de natureza formal ou substancial) que afectem o acto ou negócio gerador da posse.
II. Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, adquirindo-se o direito no momento em que aquela se iniciou, será pela lei então em vigor que se apreciará as condições de validade aplicáveis ao objecto do direito que se pretende usucapir (nomeadamente, as relativas ao fraccionamento de prédio rústico apto para cultivo).
III. Na interpretação da lei, não se deve atender apenas à sua letra, intervindo ainda elementos lógicos, nomeadamente de ordem sistemática (impondo a consideração da unidade do sistema jurídico), de ordem racional/teleológica (impondo a consideração da razão de ser da lei, sustentada na respectiva justificação e no objectivo pretendido com a sua criação), de ordem histórica (impondo o reconhecimento e consideração dos acontecimentos que a determinaram, nomeadamente toda a realidade social que envolveu o seu aparecimento), e de ordem actualista (impondo a consideração das condições específicas do tempo em que é aplicada).
IV. Até à alteração da redacção do art. 1379.º, n.º 1 do CC, operada pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto (que passou a cominar como nulos, e já não meramente como anuláveis, os actos de fraccionamento de prédios rústicos contrários ao disposto no art. 1376.º do CC), a interpretação mais correcta daquele preceito coincide com a que admite a aquisição originária, por usucapião, de parcela de prédio rústico apto para cultura, ainda que com área inferior à unidade de cultura legal, desde que se verifiquem os seus pressupostos próprios.

- acórdão da Relação de Guimarães, de 16.9.2021, P 1960/20.0T8VCT.G1

I- A data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fracionamento de prédios rústicos é a do início da posse.
II- Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. art. 1288º do CC do CC), será a lei vigente nessa data que indicará se pode haver fracionamento do prédio e se o mesmo for fracionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem.
III- À luz da lei vigente no início da década de 80 o fracionamento de prédios rústicos em área inferir à unidade de cultura não seria nulo, quando muito anulável, a arguir no prazo de 3 (três) anos, sob pena de caducidade da ação de anulação (primitiva redação dos n.ºs 1 e 3 do art. 1379º do CC).
IV- Estando em causa uma divisão material de prédios rústicos e não se verificando qualquer questão de natureza urbanística, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, em violação do disposto no art. 1376º do CC, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião.

Ora, perante a existência de outras soluções plausíveis de direito que admitem a aquisição por usucapião, não obstante a violação de regras administrativas do território e de o prédio ter área inferior à da unidade cultura, o processo só estaria em condições de poder haver uma decisão de mérito da reconvenção no despacho saneador se estivessem provados os factos atinentes à posse que os réus invocaram na contestação.
Tais factos não se encontram provados na decisão recorrida, sendo que os mesmos foram objeto de impugnação por parte dos autores na réplica, os quais referiram que impugnam integralmente toda a reconvenção apresentada pelos réus e, concretamente o vertido nos arts. 35º a 46º, onde se refere a matéria atinente à posse, por remissão feita no art. 35º para o alegado nos arts 1º a 34º.

Não constando da decisão recorrida a matéria factual atinente à posse exercida pelos réus sobre as parcelas de terreno que pretendem usucapir e sendo esta factualidade relevante à luz de uma das soluções plausíveis de direito, resta concluir que o processo não contém todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da reconvenção, sendo prematura a decisão proferida quanto à reconvenção, uma vez que os elementos constantes do processo não justificavam a antecipação do juízo sobre o mérito, por existirem outras soluções plausíveis da questão de direito.

Da antecedente conclusão decorre, consequencialmente, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas, de acordo com o critério do proveito, em conformidade com a disposição legal citada., uma vez que os autores não sustentaram no processo a posição sufragada quanto à existência de elementos para conhecimento imediato do mérito da reconvenção, não podendo ser considerados parte vencida, isto sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que os réus beneficiam.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador-sentença recorrido e, em sua substituição, determinam a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Custas pelos recorrentes, atento o critério do proveito, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Guimarães, 20 de março de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) José Alberto Martins Moreira Dias
(2º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade