Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6846/23.4T8VNF-E.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO DIAS
Descritores: COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRATO DE MÚTUO
CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE DA CLÁUSULA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A reserva de propriedade é configurada pelo legislador (art. 409º do CC) como uma cláusula acessória dos contratos de alienação, isto é, dos contratos de compra e venda, em que, mediante a sua estipulação, vendedor e comprador paralisam um dos efeitos típicos decorrente da celebração desse contrato – a transmissão do direito de propriedade sobre o bem do vendedor para o comprador -, sujeitando esse efeito translativo a um evento futuro e incerto (uma condição suspensiva), mas unicamente dependente da conduta do comprador – o cumprimento pelo mesmo das obrigações contratuais que assumiu perante o vendedor e a que sujeitaram esse efeito translativo da propriedade (normalmente o pagamento do preço) -, mas em que a mera celebração do contrato com reserva de propriedade produz todos os seus restantes efeitos típicos (a obrigação do vendedor de entregar o bem ao comprador). 2- A reserva de propriedade funciona, assim, como garantia de cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo comprador perante o vendedor a que ambos subordinaram o efeito translativo da propriedade sobre o bem do vendedor para o comprador.
3- Entre o momento da celebração do contrato de compra e venda com reserva de propriedade e o cumprimento pelo comprador das obrigações a que subordinaram a transmissão da propriedade sobre o bem para si, o comprador fica investido na posse (que exerce em nome próprio) e nos direitos de uso e fruição, em termos materiais e ontológicos, sobre o bem, mas essa posse e direitos de uso e fruição não se fundam no direito de propriedade (o qual permanece na titularidade do vendedor), mas na entrega desse bem, que lhe foi feita pelo vendedor na execução do contrato celebrado. E caso o comprador não cumpra com as obrigações contratuais a que ficou subordinada a reserva de propriedade, fica conferido ao vendedor o direito a resolver o contrato e, em consequência, a reaver o bem do comprador, sobre o qual goza do direito de sequela.
4- Por sua vez, durante o referido período temporal, a posse, os direitos de uso, fruição e de disposição sobre o bem, em termos de direito de propriedade, permanecem no vendedor, mas essa posse e direitos não são próprios de quem é titular de uma propriedade plena sobre o bem, na medida em que, por força dos direitos obrigacionais e reais produzidos pelo contrato de compra e venda com reserva de propriedade celebrado, o vendedor não pode impedir que o comprador cumpra com a condição a que subordinaram a transferência de propriedade para si e, assim, adquira a propriedade sobre o bem, em relação ao qual goza do direito de sequela.
5- Durante o mencionado período de tempo, o vendedor com reserva de propriedade é titular de uma “propriedade reservada” sobre o bem objeto do contrato, enquanto o comprador é titular de uma expectativa de aquisição sobre esse bem, gozando ambos do direito de sequela sobre o mesmo.
6- É nula a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante) sobre o bem comprado pelo mutuário, mediante recurso aos meios económicos que lhe foram emprestados pelo primeiro, com a finalidade de comprar aquele bem, destinada a garantir o cumprimento das obrigações contratuais que o mutuário assumiu perante o mutuante (emergentes do contrato de mútuo celebrado), uma vez que, para além da constituição de reserva de propriedade a favor do mutuário (que nada vende, mas que se limita a emprestar os meios económicos que viabilizem o pagamento do preço do bem comprado) não ter o mínimo de correspondência verbal possível, ainda que imperfeitamente expresso, no elemento gramatical do art. 409º do CC, e da sua interpretação extensiva (de modo a nele englobar a reserva de propriedade constituída a favor do financiador – mutuante) se mostrar contrária aos elementos sistemático, histórico e teleológico daquela norma, a constituição daquela reserva pressupõe a aceitação de uma vontade negocial por parte dos contratantes que não tem assento nas suas vontades reais, bem como a aceitação de uma impossibilidade jurídica (de que, com o recebimento do preço pelo vendedor, não se extinguiu a reserva de propriedade e que seria, por isso, possível ao vendedor sub-rogar o mutuante/financiador na reserva de propriedade constituída a favor daquele) e uma violação do regime imperativo e de ordem pública do art. 694º do CC, que proíbe os pactos comissórios.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

Nos autos de insolvência que EMP01..., S.A. instaurou, em 07/11/2023, contra EMP02..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ...55-233 ..., em que, por sentença proferida em 22/02/2024, transitada em julgado, esta foi declarada insolvente, em 07/04/2024, a administradora da insolvência juntou aos autos principais o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, onde, além do mais, se lê:

“(…)
No que diz respeito ao património da insolvente resulta da informação prestada pelo Serviço de Finanças a inexistência de quaisquer bens imóveis, tendo, no entanto, registado em seu nome cinco veículos automóveis, com as matrículas ..-GR-.., ..-..-XX, ..-JG-.., ..-..-LA e ..-GX-.. (…).
(…)
Das buscas realizadas nas bases de dados públicas do registo automóvel, através da plataforma Citius lográmos apurar a existência dos seguintes veículos automóveis registados em nome da insolvente: (doc. n.º 11)
(…);
- veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.., marca ..., modelo ....
(…).
No que concerne à viatura com a matrícula ..-GX-.. informamos os presentes autos que a mesma, até à presente data, não foi localizada.
Não obstante, resulta da reclamação de créditos remetida pela “Banco 1..., S.A.” que a referida instituição de crédito detém reserva de propriedade sobre o aludido veículo automóvel, tendo, a final, peticionado que não seja o mesmo apreendido para a massa insolvente em virtude da garantia de cumprimento de que dispõe.
Pelo que, apesar de, ainda, não se ter localizado o paradeiro da viatura em apreço, não será a mesma (viatura) alvo de apreensão nos presentes autos, em virtude da existência da reserva de propriedade a favor da credora “Banco 1..., S.A.”, tendo a mesma já sido notificada de tal facto (doc. n.º 14).
(…)”.
Juntou em anexo ao dito parecer certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel em que se certifica que o veículo automóvel de matrícula ..-GX-.., da marca ...”, se encontra inscrito, desde ../../2020, em nome de EMP02..., Lda., estando onerado com reserva de propriedade, desde ../../2020, a favor do Banco 2..., S.A. –  cfr. doc. n.º 15, junto aos autos principais em anexo ao parecer a que alude o art. 155º do CIRE.
A administradora da insolvência juntou ao apenso A a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o art. 129º do CIRE.
Banco 1..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., sala ..., ... ..., impugnou a lista de créditos não reconhecidos pela administradora da insolvência, requerendo que lhe fosse reconhecido o crédito que reclamou, no montante de 1.149,50 euros, e fosse ordenada a separação da massa insolvente da viatura automóvel de marca ...”, modelo ...”, com a matrícula ..-GX-.., na eventualidade de a mesma ter sido apreendida.
Para tanto alegou, em suma, que: celebrou com a insolvente EMP02..., Lda. e com AA, este na qualidade de garante, no âmbito da sua atividade bancária, um contrato de crédito, reduzido a escrito, ao qual foi atribuído o n.º ...53, destinado à aquisição da viatura automóvel da marca ...”, modelo ...”, com a matrícula ..-GX-.., pelo valor global de 10.288,28 euros, a que corresponde um montante imputado ao consumidor de 12.007,80 euros, de que aqueles se confessaram devedores; para garantia do cumprimento do contrato de mútuo a venda da referida viatura foi feita com reserva de propriedade a favor do banco impugnante; para o efeito, este cumulou a posição de fornecedor e de financiador desse bem, adquirindo a propriedade da viatura e transferindo-a posteriormente para a mutuária; sobre o referido bem foi registada cláusula de reserva de propriedade a favor do banco impugnante – cfr. impugnação junta ao apenso A em 10/04/2024.
A administradora da insolvência contestou alegando que, apesar de dizer ter celebrado um contrato de cessão de créditos com o Banco 2..., S.A. - que lhe conferiu o direito a receber, exigir e recuperar quaisquer montantes, acessórios ou principais, bem como o direito de exercer todos os poderes do cedente em relação aos créditos objeto da transmissão -, a impugnante Banco 1... não juntou aos autos qualquer documento que comprove a alegada cessão de créditos; a Banco 1... alega que celebrou com a insolvente um contrato de crédito (contrato n.º ...53) para aquisição da viatura com a matrícula ..-GX-.., pelo valor global de 10.288,28 euros e que, para garantia do cumprimento do contrato de mútuo, a venda da viatura foi feita com reserva de propriedade a favor do banco financiador, e que cumulou a posição de fornecedor e financiador de tal bem, adquirindo a propriedade da viatura e transferindo-a posteriormente para a mutuária, mas dos documentos por ela juntos, nomeadamente, do contrato de crédito junto, não resulta que aquela tivesse adquirido a propriedade do veículo para depois o vender à insolvente; de acordo com os termos do contrato junto pelo Banco 1... este consubstancia um mero contrato de concessão de crédito, em que o banco financiou a aquisição do veículo pela insolvente a um terceiro, constando, inclusivamente, nesse contrato a identidade desse terceiro, fornecedor do veículo; entre o banco financiador e a insolvente não foi celebrado qualquer contrato de compra e venda, pois aquele não foi o alienante do veículo, mas apenas um mutuante, que permitiu à insolvente obter a quantia necessária para pagamento do preço de compra do veículo, pelo que a cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo é nula.
Concluiu pedindo que se julgasse improcedente o pedido formulado pela reclamante Banco 1... de entrega do veículo – cfr. contestação apresentada nos autos principais em 09/04/2024.
A Banco 1..., S.A. respondeu alegando que o contrato de mútuo celebrado com a devedora encontra-se funcionalmente subordinado à aquisição, por compra e venda, de um bem de consumo e que a cláusula de reserva de propriedade que o onera a favor do vendedor é oponível à massa insolvente, quando tenha sido estipulada por escrito até ao momento da entrega da coisa, como é o caso; acresce que a admissibilidade da reserva da propriedade aqui em análise é uma consequência do princípio da liberdade contratual dos contraentes e constitui uma prática social consolidada no que concerne às modalidades de contratação no âmbito da compra de veículos com recurso a crédito.
Concluiu pedindo que se julgasse improcedente o pedido de declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo, formulado pela administradora da insolvência – cfr. resposta à contestação apresentada nos autos principais em 16/04/2024.
Entretanto, por requerimento junto aos autos principais em 05/06/2024, a administradora da insolvência informou que o veículo de matrícula ..-GX-.. foi apreendido a favor da massa insolvente e que o registo da apreensão ficou provisório por natureza, por força da existência de reserva de propriedade que o onera a favor da Banco 1....
Requereu que se proferisse decisão declarando a nulidade da cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo a favor do banco financiador.
A Banco 1... respondeu, opondo-se ao requerido e mantendo a sua posição anterior.
Por decisão proferida em 05/07/2024, a 1ª Instância declarou a nulidade da cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.. a favor do Banco 2..., S.A., e julgou improcedente o pedido de separação desse veículo da massa insolvente, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:
“Assim, julgo nula a cláusula de reserva de propriedade, julgo improcedente o pedido de separação da massa do veículo de matrícula ..-GX-.. e, consequentemente, nada obsta à alienação do veículo”.

Inconformada com o decidido, a credora Banco 1..., S.A., interpôs recurso, em que formulou as conclusões que se seguem:

A- Vem a Apelante recorrer de douto despacho de 08.07.2024, com a ref.ª Citius 191608957, o qual, decide designadamente o seguinte:
“Assim, julgo nula a cláusula de reserva de propriedade, julgo improcedente o pedido de separação da massa do veículo de matrícula ..-GX-.. e, consequentemente, nada obsta à alienação do veículo.”
B- Salvo o devido respeito que é muito, a Recorrente não se pode resignar com a douta decisão recorrida pois, é seu entendimento que a interpretação feita pelo tribunal a quo da matéria de facto e de direito com significância para a decisão se reputa como incorreta.
C- De forma sintética, a questão que importa apreciar é a validade da reserva de propriedade sobre o veículo com a matrícula ..-GX-.., a favor da Recorrente.
D- Para o efeito, salvo o devido respeito pela opinião contrária, o Tribunal a quo raciocina erradamente ao não considerar a posição da Recorrente, além de financiadora no contrato de mútuo celebrado com o insolvente, como vendedora do veículo objeto da transação.
E- Isto porque, não reconhece que a aqui Recorrente adquiriu a propriedade do veículo pelo pagamento do preço ao seu fornecedor.
F- O que não se pode conceber, atendendo ao facto de estarem em causa dois contratos coligados, contrato de compra e venda e contrato de mútuo, e uma relação contratual triangular.
G- Ora, no momento em que a aqui Recorrente paga o valor total do bem ao fornecedor do mesmo, contrato de compra e venda, adquire a propriedade do bem e o seu fornecedor encerra a sua participação nesta relação contratual, pois entregou o bem e recebeu o preço do mesmo.
H- A relação contratual irá prosseguir somente entre o Financiador, agora também na posição de vendedor, e o comprador que celebra um contrato de mútuo para proceder ao pagamento do bem adquirido.
I- O Financiador, a título de garantia do pagamento do preço do bem, reserva para si a propriedade do mesmo.
J- Por todo o exposto, a cláusula de reserva de propriedade a favor da Recorrente deverá ser julgada plenamente válida e eficaz.
Nestes termos e nos melhores em Direito, sempre com mui suprimento de Vossas Excelência, deverá o douto despacho ser revogado e ser substituído por outro em que tenha como consequência a declaração de validade da cláusula de reserva de propriedade a favor da recorrente que incide sobre a viatura com a matrícula ..-GX-.. e, consequentemente, julgue procedente o pedido de separação do veículo em causa da massa insolvente, com todas as consequências daí decorrentes.
Juntou em anexo às alegações do recurso um documento consubstanciado num requerimento de registo automóvel, apresentado na Conservatória do Registo Automóvel, em 11/09/2020, solicitando que a propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.. seja inscrita a favor de Banco 2..., S.A..
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar duas questões:
a- Se é legalmente admissível à recorrente juntar aos autos o documento que apresenta em anexo às alegações de recurso?
b- Se a decisão de mérito constante da decisão recorrida (que declarou nula a cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco 2..., S.A., que onera o veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.. e, em consequência, julgou improcedente o pedido de separação daquele da massa insolvente e que declarou nada obstar à sua venda no âmbito do presente processo de insolvência em que é devedora EMP02..., Lda.) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e declarar a validade daquela cláusula de reserva de propriedade e julgar procedente o pedido de separação do veículo da massa insolvente.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na decisão sob sindicância o julgador a quo não discriminou os factos que julgou provados, nem declarou os que julgou provados e não provados, com o que incumpriu os comandos dos arts. 607º, n.º s 2 e 3 e 154º do CPC (a que se referem todas as disposições legais a que se venha a fazer referência sem menção em contrário), pelo que se impõe ao tribunal ad quem, no uso dos poderes de substituição que lhe são conferidos pelo 662º, n.º 2, suprir essa omissão, discriminando e indicando os factos julgados provados e indicando os julgados não provados.
Deste modo, tendo em consideração a prova documental que se encontra junta aos autos, julga-se provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir no âmbito do presente recurso:
A- A devedora EMP02..., Lda. foi declarada insolvente, por sentença proferida em 22/02/2024, transitada em julgada – cfr. sentença de insolvência proferida no processo principal em 22/02/2024.
B- Entre o Banco 2...., S.A., a devedora EMP02..., Lda., esta como “Cliente”, e EMP03..., este enquanto “Garante”, foi celebrado um acordo escrito, datado de 14/08/2020, intitulado de “Contrato de Crédito, Contrato n.º ...53”, em cujas “Condições Particulares” se lê, além do mais, o seguinte:

TIPO DE BEM E/OU SERVIÇO FINANCIADO
Tipo de bem e/ou serviço: Auto
Uso do bem: Profissional
Marca e Modelo: ...
Matrícula: ..-GX-..
Preço de venda a pronto de Bem/Serviço: 9.200,00 euros
Designação do Fornecedor: EMP03...
Número de Contribuinte do Fornecedor: ...03
CONDIÇÕES DO CRÉDITO
Financiamento relativo ao Bem/Serviço: 9.200,00 euros
Comissão de abertura (inclui os impostos legalmente devidos): 380,00 euros.
Despesas de registo de propriedade: 120,00 euros
Seguros facultativos: 537,09 euros
Imposto do selo pela utilização de crédito: 51,19 euros
Montante total financiado: 10.288,28 euros
Valor indicativo da prestação (inclui comissão de processamento): 333,55 euros
Comissão de processamento de prestação (inclui impostos legalmente devidos): 4,16 euros
Tipo de crédito: Crédito/auto
Tipo de prestações: Postecipado
Dia de vencimento de prestações: 8
Duração/n.º de prestações: 38
Periodicidade das prestações: Mensal
Montante total imputado ao consumidor (MTIC): 12.007,80 euros
Taxa anual efetiva (TAE): 14,9%
Taxa anual nominal (TAN): 9,100% - Mista
Spread: 9,476%
Tipo de variação: fixa nos primeiros 24 meses e variável a partir desse período.
(…)
Indexante: Euribor a 3 meses
GARANTIAS
Livrança em branco subscrita pelo(s) Cliente(s) avalizada pelo(s) Garante(s) caso existam: Sim
Reserva de propriedade sobre o bem acima identificado: Sim
Hipoteca sobre o bem acima identificado: Não
Fiança prestada pelo(s) Garante(s): Sim – cfr. documento junto ao presente apenso de recurso em 10/10/2024.
C- Nas “Condições Gerais” daquele contrato lê-se, além do mais, o seguinte:
2. Objeto
Através do presente contrato, o Banco 2..., com ou sem intervenção de Intermediário de Crédito, concede ao(s) Cliente(s), que aceita(m), o empréstimo pelo montante total financiado especificado nas condições particulares destinado a financiar a aquisição de um bem ou serviço para uso ou consumo do(s) Cliente(s), de modo a satisfazer as suas necessidades ou a dos seus familiares, caso aplicável.
(…)
8- Utilização do crédito
8.1- O crédito concedido ao(s) Cliente(s) ao abrigo do contrato é objeto de uma única utilização e é entregue, em nome e por conta do(s) Cliente(s), diretamente ao Fornecedor, na data em que o contrato se torna efetivo em definitivo, nos termos da cláusula 3 acima.
8.2- A entrega ao Fornecedor, para pagamento do preço do bem/serviço indicado nas condições particulares, deduzido do desembolso inicial e de eventuais encargos da responsabilidade do(s) cliente(s)/Fornecedor, configura a utilização do crédito pelo(s) Cliente(s).
9- Confissão de dívida
Com a assinatura do presente contrato o(s) Cliente(s) e o(s) Garante(s), caso exista(m), confessa(m)-se devedor(es) da quantia mutuada pelo Banco 2..., obrigando-se a reembolsá-la ao Banco 2..., acrescida dos respetivos juros remuneratórios, encargos, comissões e despesas, bem como dos juros moratórios e indemnizações, a que nos termos do contrato e da legislação aplicável, haja lugar.
(…)
18- Garantias
(…)
18.6- Caso a reserva de propriedade esteja prevista nas condições particulares, o(s) Cliente(s) declara(m) expressamente, que a quantia mutuada através do contrato se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas condições particulares ao Fornecedor, transmitindo-se para o Banco 2... todas as garantias e acessórios do crédito do Fornecedor, designadamente, a reserva da propriedade estipulada sobre o bem alienado até ao integral cumprimento do contrato, adquirindo dessa forma o Banco 2..., todos os poderes que competiam ao Fornecedor.
(…)”- cfr. documento junto ao presente apenso de recurso em 10/10/2024
D- Por documento escrito datado de 02/01/2023, intitulado de “Contrato de Cessão de Créditos”, entre Banco 2..., S.A., doravante designado por “Cedente”, e Banco 1..., S.A., doravante designada por “Cessionária”, foi acordado, além do mais, o seguinte:
Cláusula Segunda
Objeto
1- Nos termos e condições do presente contrato, a cedente cede à cessionária, que os adquire, os contratos de mútuo e, em consequência, os créditos que subsistam a favor da cedente no momento da conclusão da operação.
2- A cedência referida no número anterior é realizada com todos os direitos e benefícios a eles associados.
Cláusula Terceira
Contrapartida
1- (…).
(…)
4- Como contrapartida pela cessão dos créditos e demais ativos e passivos cedidos na presente data à cessionária, a cedente recebe ...91 novas ações com o valor nominal de 0,01 euros cada.
Cláusula Quarta
Reservas de propriedade
1- Relativamente às reservas de propriedade registadas a favor da cedente nos contratos de mútuo as partes acordam que, mediante solicitação expressa da cessionária, a cedente se compromete (i) a assinar a documentação disponibilizada pela cessionária para efeitos de registo da transmissão, a favor da cessionária ou de quem esta indicar, das reservas de propriedade que se encontrem registadas a seu favor e (ii) a assinar as declarações de extinção das reservas de propriedade que se encontrem registadas a seu favor, obrigando-se a cessionária a preparar tais declarações” – cfr. documento junto ao apenso A em 19/04/2024.
E- Em anexo ao acordo referido na alínea anterior encontra-se uma listagem com a discriminação dos contratos cedidos, de cujo elenco faz parte o contrato com o n.º ...53, a que se alude em B) e C) – cfr. doc. junto ao apenso A em 19/04/2024.
F- Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Automóvel, desde ../../2020, o veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.., da marca ..., em nome de EMP02..., Lda., estando esse veículo onerado com reserva de propriedade, desde ../../2020, a favor de Banco 2..., S.A. – cfr. certidão do registo automóvel, junta aos autos principais em anexo ao parecer a que alude o art. 155º do CIRE.             
G- Em 25/03/2024, a administradora da insolvência apreendeu o veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.. a favor da massa insolvente – cfr. auto de apreensão junto ao apenso C em 02/05/2024.
H- Essa apreensão foi registada na Conservatória do Registo Automóvel a favor da massa insolvente em 24/05/2024, tendo o registo sido lavrado provisoriamente por natureza devido ao facto do veículo se encontrar onerado com reserva de propriedade a favor do Banco 2..., S.A. – cfr. certidão junta ao apenso C em 11/06/2024.
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Não se provaram quaisquer factos que tenham sido alegados pelas partes e que assumam relevância para a decisão de mérito a proferir no âmbito do presente recurso.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA             

A- Da admissibilidade legal da junção aos autos do documento apresentado pela recorrente em anexo às alegações
A recorrente junta em anexo às alegações de recurso um documento que se consubstancia num requerimento de registo automóvel, apresentado na Conservatória do Registo Automóvel, em 11/09/2020, em que é requerido que a propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.. seja inscrita a favor de Banco 2..., S.A., justificando a  sua junção na presente fase de recurso no facto do referido documento “se revelar fundamental para a posição expressa pela recorrente no presente recurso e já invocada no tribunal a quo”, confirmando o teor do mesmo “que a propriedade do veículo com a matrícula ..-GX-.., foi transferida da esfera jurídica do financiador, para a esfera do comprador, fazendo assim prova bastante que a recorrente tinha legitimidade para reservar para si a propriedade do veículo, como garantia do pagamento do crédito”.
Vejamos se assiste fundamento legal para a recorrente juntar ao processo o dito documento na presente fase de recurso.
Lê-se no n.º 1 do art. 651º que: “As partes só podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância”.
No âmbito da ação declarativa, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, ou seja, os documentos destinados a fazer prova da facticidade alegada pelo autor na petição inicial devem ser juntos com esse articulado inicial, enquanto os destinados a fazer prova dos factos alegados na contestação devem ser juntos pelo réu com este articulado (art. 423º, n.º 1).
Em sede de ação declarativa a prova documental pode ainda ser junta até ao 20º dia anterior à data em que se realize a audiência final, ou comportando esta várias sessões, em que tenha início a sua realização (data da realização efetiva da primeira sessão de julgamento), mas, nesse caso, o apresentante ficará sujeito a multa, exceto se provar que não pôde oferecer o documento com o articulado (n.º 2 do art. 423º).
Posteriormente ao vigésimo dia que antecede o início efetivo da audiência final e até ao encerramento da discussão em 1ª Instância[2] podem ainda ser juntos documentos ao processo desde que se verifique uma das seguintes situações: a) se a apresentação não foi possível até ao vigésimo dia que antecede o início efetivo da audiência final, ou b) se a junção se tiver tornado necessária em consequência de ocorrência posterior (n.º 3 do art. 423º).
No que toca à primeira das identificadas situações, a impossibilidade da parte de apresentar o documento até ao vigésimo dia que antecede a realização efetiva da audiência final (ou, no caso desta comportar várias sessões, até ao início efetivo da primeira sessão de julgamento) pode ser objetiva ou subjetiva. Ocorre uma situação de impossibilidade objetiva quando não for possível, em termos práticos, materiais ou ontológicos, ao apresentante juntar o documento ao processo até à referida data limite por o documento respeitar a factos ocorridos historicamente após o decurso dessa data limite. E ocorre uma situação de impossibilidade subjetiva quando, apesar do documento respeitar a factos ocorridos historicamente antes do decurso daquela data limite, o apresentante não o pôde juntar ao processo até essa data limite por facto que não lhe seja imputável a título de culpa, nomeadamente, negligência (v.g. a parte desconhecia, sem culpa, a existência do documento, vindo apenas a ter conhecimento do mesmo já após o decurso daquela data limite, ou o documento refere-se a factos ocorridos historicamente próximo desse data limite, mas apesar da parte ter prontamente requerido a sua emissão à entidade pública competente, esta apenas o veio a emitir já após o decurso do vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final).
Note-se que na impossibilidade objetiva, essa impossibilidade resulta demonstrada pelo próprio teor do documento, pelo que, aquando da sua junção ao processo, não é necessário que o apresentante alegue e prove o motivo justificativo para a junção tardia. Porém, tratando-se de uma situação de impossibilidade subjetiva, o apresentante terá de alegar e provar factos de onde decorram que a junção intempestiva do documento não lhe é imputável a título de culpa[3]. Acresce que, quer na impossibilidade objetiva, quer na subjetiva, a parte tem de requerer a junção ao processo do documento logo que isso se lhe torne possível, sem aguardar qualquer dilação[4].
Quanto à outra situação excecional em que o n.º 3 do art. 423º consente que o documento seja junto ao processo após o decurso da data limite do vigésimo dia que antecede o início efetivo da audiência final e até ao encerramento da discussão em 1ª Instância (“a apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”), o elemento legitimador da junção tardia assenta na “ocorrência posterior” ao decurso daquele prazo limite, isto é, o documento tem de se destinar a fazer prova ou contraprova de factos ocorridos após o vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final[5].
Após o encerramento da discussão em 1ª Instância não é consentida, por norma, a junção de documentos ao processo, exceto se for interposto recurso e nos termos limitados dos arts. 425º e 651º, n.º 1.
Com efeito, no caso de recurso, as disposições legais acabadas de referir consentem que recorrente e recorrido juntem ao processo, com as alegações ou contra-alegações, respetivamente, documento em duas situações excecionalíssimas: a) a junção não ter “sido possível até àquele momento”, isto é, até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, por impossibilidade objetiva ou subjetiva[6], com o sentido e o alcance já acima sobejamente enunciados; ou b) a junção “se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância”.
No que respeita a esta última situação em que excecionalmente se admite a junção de documento com as alegações ou as contra-alegações de recurso, essa possibilidade tem como pressuposto que a decisão proferida pela 1ª Instância se revele de todo surpreendente para as partes relativamente ao que lhes era expectável em face dos elementos do processo, em termos de julgamento da matéria de facto e/ou de julgamento da matéria de direito, ou seja: é necessário que a decisão se tenha baseado em meio de prova não esperado, designadamente, em meio probatório oficiosamente junto ao processo, quando já não era possível ao apresentante munir-se do documento que intenta juntar na fase de recurso com o propósito de fazer contraprova da facticidade que o julgador julgou provada ou não provada na decisão recorrida em função do documento que requisitou oficiosamente, ou nos casos em que a decisão proferida assentou em preceito jurídico ou em interpretação de preceito jurídico com cuja invocação/interpretação as partes não podiam, legítima e justificadamente, contar[7].
Dito por outras palavras, para que a junção do documento seja permitida na fase de recurso, não basta que a junção se tenha tornado necessária em face do julgamento realizado pelo tribunal recorrido, mas exige-se que a sua junção se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento, ou seja, que a decisão proferida se tenha ancorado num elemento de cariz “inovatório” para as partes. Assim, se a junção do documento era necessária para fundamentar a ação ou a defesa antes de ser proferida a decisão pela 1ª instância, e se essa decisão se baseou em meio de prova com que as partes podiam legítima e razoavelmente contar (como é o caso de depoimentos de parte ou de testemunhas, declarações de parte, prova documental, pericial ou por inspeção judicial, respetivamente, arrolados e requeridos pelas partes ou oficiosamente determinadas pelo juiz, mas, neste último caso, em momento processual em que ainda era possível às mesmas, em termos práticos e materiais, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, carrearem para o processo o documento que se propõem juntar na fase recurso, com vista a contrariar a prova produzida por determinação oficiosa do tribunal), então a junção do documento na fase de recurso não ocorre em virtude do julgamento realizado pelo julgador a quo, na medida em que as partes tiveram oportunidade de controlar a prova produzida em que assentou a decisão proferida, e tiveram, inclusivamente, oportunidade de juntar ao processo o documento que se propõem juntar na fase de recurso. A junção de documento também não se torna necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância quando, em termos de julgamento da matéria de direito, o julgador que proferiu a decisão recorrida se moveu exclusivamente dentro da facticidade alegada pelas partes, das normas jurídicas que por elas foram invocadas e da interpretação que fizeram das mesmas, ou quando a decisão se baseou em norma de direito ou em interpretação desta com que as partes podiam e deviam ter legitimamente cogitado (v.g. ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, em que o autor fundamentou o pedido indemnizatório na culpa exclusiva do condutor do veículo seguro pela ré e o tribunal veio a decidir o litígio com fundamento no risco).
Deste modo, apenas quando a decisão da 1ª Instância se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, mas junto ao processo por iniciativa oficiosa, em momento processual em que já não lhes era possível apresentar o documento até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, ou quando a decisão proferida assentou em regra de direito ou em interpretação de regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não podiam cogitar, em obediência ao princípio do contraditório, na sua dimensão positiva de proibição de prolação de decisões-surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), é admitida a junção do documento ao processo na fase de recurso, dado o cariz inovador desta[8].
Com efeito, destinando-se os recursos a sindicar decisões judiciais por tribunal hierarquicamente superior, os mesmos têm como único objetivo o reexame da decisão recorrida e não criar decisões sobre matéria nova, pelo que, apenas quando esta apresente cariz inovatório é consentido a recorrente e recorrido juntar prova documental na fase de recurso com vista a contrariar o nela decidido.
Daí que não seja consentido juntar documentos na fase de recurso quando a decisão sob sindicância nada de novo tenha relativamente ao que era expectável para as partes em termos de elementos probatórios, de julgamento da matéria de facto e/ou de julgamento da matéria de direito. É que, na ausência de qualquer caráter inovatório que impregne a decisão recorrida quanto aos aspetos acabados de referir, a admitir-se a junção de novos documentos ao processo na fase de recurso estar-se-ia a admitir um elemento de prova ao qual o julgador a quo não teve acesso e em que, por isso, não assentou a decisão sob sindicância, em violação flagrante ao princípio do contraditório, em virtude do documento não ter sido submetido a audiência contraditória, e sobretudo contrariando-se as finalidades do instituto do recurso, que é o reexame da matéria de facto e de direito apreciada em sede de decisão recorrida e não apreciar questões novas.
Assentes nas premissas acabadas de enunciar, em 09/04/2024, a administradora da insolvência veio contestar a pretensão da recorrente para que fosse ordenada a separação do veículo automóvel de matrícula ..-GX-.. da massa insolvente, alegando que aquela não foi a vendedora dessa viatura, mas que se limitou a emprestar à devedora/insolvente EMP02..., Lda. a quantia monetária necessária ao pagamento do respetivo preço de compra ao vendedor, pelo que, na sua perspetiva, a cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo a favor da entidade financiadora (mutuante) é nula, por violar o regime jurídico do art. 409º do CC.
A recorrente respondeu à contestação, pugnando pela validade da cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo a favor da entidade bancária financiadora, sustentando, nomeadamente, que o contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, celebrado entre a instituição bancária financiadora  com a devedora EMP02... está funcionalmente subordinada à compra do veículo automóvel pela última, assistindo-se entre ambos os contratos a uma situação de coligação, na medida em que lhe emprestou a quantia mutuada com vista a que comprasse o concreto veículo onerado com a reserva de propriedade, o que, na sua perspetiva, determina a validade jurídica da dita cláusula de reserva de propriedade que onera aquele veículo e que consta do contrato de mútuo celebrado; acresce que, a validade jurídica dessa cláusula é também uma consequência ou expressão do princípio da liberdade contratual que assiste às partes contraentes no contrato de mútuo e de compra e venda que celebraram, e constitui uma prática social consolidada no que respeita às modalidades de contratação no âmbito da compra e venda de veículos com recurso a crédito.
Deste modo, em face do que se acaba de dizer, destinando-se o documento ora junto pela recorrente na fase de recurso a fazer prova da validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade que onera o veículo automóvel constante do contrato de mútuo celebrado entre o Banco 2..., S.A. e a aqui devedora EMP02..., Lda., tendo a validade sido colocada em crise pela administradora da insolvência na contestação acima referida, à qual a recorrente respondeu, pugnando pela validade jurídica da mesma, nos termos do disposto no art. 423º, n.º 1, impunha-se que tivesse junto ao processo o documento que agora intenta juntar com a resposta à contestação, tanto assim que, aquando da apresentação daquela resposta já tinha necessariamente acesso ao documento em causa, uma vez que este respeita a um requerimento de registo automóvel, apresentado na Conservatório do Registo Automóvel, em 11/09/2020, em que é solicitada a inscrição da propriedade sobre o veículo em nome do Banco 2..., S.A..
Não o tendo feito, e não apresentando a decisão recorrida qualquer cariz inovatório, em termos de prova, de julgamento da matéria de facto e/ou de julgamento da matéria de direito, na medida em que nela o julgador a quo se limitou a apreciar da validade ou invalidade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, celebrado entre o Banco 2..., S.A. e a devedora EMP02..., Lda., em 14/08/2020, em face da facticidade que fora alegada pelas partes, da prova documental por elas juntas e das considerações jurídicas por elas feitas, naturalmente que não se encontram preenchidos os pressupostos legais do art. 651º, n.º 1 que consentem que a recorrente junte o mencionado documento ao processo na fase de recurso.
Decorre do que se vem dizendo, impor-se não admitir a junção aos autos do documento apresentado pela recorrente em anexo às alegações de recurso, impondo-se antes, após trânsito, ordenar o seu desentranhamento do processo e a sua restituição à apresentante.

B- Da (in)validade da cláusula de reserva de propriedade aposta em contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, a favor da entidade financiadora (mutuante), onerando o bem adquirido pelo mutuário com o capital que lhe foi emprestado pela última.
Em 14/08/2020 foi celebrado um contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, entre o Banco 2..., S.A., enquanto mutuante, a devedora EMP02..., Lda., enquanto mutuária, e EMP03..., enquanto fiador (garante), em que a primeira emprestou à segunda (devedora/insolvente EMP02..., Lda.) a quantia de 10.288,28 euros, a fim de lhe permitir o pagamento do preço de compra do veículo automóvel de marca ...”, modelo ..., matrícula 1-GX-.., a um terceiro (o identificado EMP03...), onde foi convencionado que sobre esse veículo era constituída uma cláusula de reserva de propriedade a favor do banco mutuante, destinada a garantir o cumprimento das obrigações assumidas perante aquele pela mutuária (devedora/insolvente EMP02..., Lda.) no âmbito do mencionado contrato de mútuo.
Neste sentido lê-se na cláusula 18.6 das condições gerais do contrato de mútuo celebrado que: “caso a reserva de propriedade esteja prevista nas condições particulares”, como é o caso, “o cliente (mutuária, ora devedora/insolvente EMP02..., Lda.) declara expressamente que a quantia mutuada através do contrato se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas condições particulares ao fornecedor, transmitindo-se para o Banco 2... todas as garantias e acessórios do crédito do fornecedor, designadamente a reserva da propriedade estipulada sobre o bem alienado até ao integral cumprimento do contrato, adquirindo dessa forma o Banco 2... todos os poderes que competiam ao fornecedor”.
Como ressalta da decisão recorrida, bem como das alegações de recurso, nomeadamente da doutrina e da jurisprudência que nelas são citadas, não existe consenso doutrinal nem jurisprudencial a propósito da natureza jurídica da cláusula de reserva de propriedade, nem da validade jurídica desta quando aposta num contrato de mútuo, em que a entidade financiadora (mutuante), no exercício da sua atividade, faculta ao financiado (mutuário) os meios monetários necessários ao pagamento do preço de aquisição desse bem a um terceiro, em que estipulem que, para garantia das obrigações emergentes do contrato de mútuo para o mutuário perante o mutuante o bem comprado fica onerado com reserva de propriedade a favor do último, em face do regime jurídico do art. 409º do CC.
Com efeito, lê-se no identificado art. 409º que:
1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2- Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros”.
Como decorre do n.º 1 do art. 409º acabado de transcrever, mediante o regime jurídico nele enunciado permite-se que os contraentes, nos contrato de alienação, no exercício da sua liberdade contratual, estipulem uma cláusula (a cláusula de reserva de propriedade) mediante a qual reservam para o alienante a propriedade sobre o bem objeto do contrato enquanto o adquirente não cumprir, total ou parcialmente, com as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e que emergem do contrato celebrado (normalmente o pagamento do preço de compra do bem), afastando assim a regra geral do n.º 1 do art. 408º, segundo a qual nos contratos reais ou com eficácia real a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito de contrato.
Com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade, alienante e adquirente acordam, assim, em submeter um dos efeitos essenciais e típicos dos contratos de alienação – a transmissão da propriedade do alienante para o adquirente por mero efeito da celebração do contrato – a uma condição suspensiva  ou a um termo inicial, em que paralisam o efeito translativo da propriedade do alienante para o adquirente sobre o bem objeto do contrato para um momento futuro, subordinando essa transferência a evento futuro e de verificação incerta (reafirma-se, normalmente o pagamento do preço), mas que fica dependente exclusivamente de um ato do adquirente: a transmissão da propriedade sobre o bem para o adquirente apenas se verificará quando este cumprir com as obrigações contratuais assumidas perante o alienante no contrato a que condicionaram essa transmissão.
Mediante a estipulação da cláusula de reserva de propriedade sujeita-se, portanto, não o contrato de alienação a uma condição suspensiva, mas apenas um dos seus efeitos essenciais típicos – a transferência da propriedade sobre o bem para o adquirente. Com a cláusula de reserva de propriedade a titularidade do direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante, e apenas se transmite para a do adquirente quando este cumprir (e se cumprir) a obrigações contratuais que assumiu perante o alienante a que ambos subordinaram esse efeito translativo de propriedade para aquele.
Com exceção desse efeito típico do contrato de alienação – a transmissão do direito de propriedade sobre o bem da esfera jurídica do alienante para o adquirente -, que não se produz por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, todos os restantes efeitos jurídicos típicos desse contrato produzem-se por mero efeito da sua celebração, nomeadamente, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem objeto do contrato ao adquirente[9], passando este, com a entrega, a possuí-lo em nome próprio, a usá-lo e a fruí-lo, mas não como titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre o bem (porquanto a propriedade, com a celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante), mas por efeito de, por via da execução do contrato de alienação, o alienante lhe ter entregue o bem. Daí que entre o momento da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade e o do cumprimento pelo aquirente da condição a que ele e o alienante subordinaram a transferência do direito de propriedade para aquele, o direito de propriedade e, por conseguinte, a posse, os direitos de uso, fruição e disposição, em termos de direito de propriedade, permaneçam na titularidade do alienante, mas a posse, o uso e a fruição material e efetiva sobre o bem sejam exercidos pelo adquirente.
Acresce enfatizar que, por via da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, atento os efeitos obrigacionais e reais que emergem desse contrato, o adquirente tem direito a adquirir a propriedade sobre o bem, estando essa aquisição unicamente dependente de um ato ou comportamento futuro seu (o cumprimento das obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e de cuja satisfação fizeram depender a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para si), sem que, por sua vez, por via dos efeitos da celebração do contrato, não assista ao alienante, nem a terceiros, o direito de se oporem a que o adquirente cumpra com aquela condição e, assim, adquira o direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação. Por isso, apesar de, por via da cláusula de reserva de propriedade, o alienante continuar a ser o titular do direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato celebrado, se a posse e os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente não traduzem uma posse e o exercício dos direitos de uso e fruição inerentes a quem é titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre esse bem, também com a celebração daquela contrato o alienante  deixa de ter o direito pleno e exclusivo ao uso, fruição e disposição sobre o bem que são reconhecidos pelo art. 1305º do CC ao proprietário pleno sobre as coisas que lhe pertencem.
O fim visado por alienante e adquirente com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade sobre o bem é o de garantirem o cumprimento ao primeiro pelo adquirente das obrigações contratuais que assumiu perante si decorrentes do contrato de alienação que celebraram e a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para o último, em que a cláusula de reserva de propriedade assume, por isso, uma função de garantia do cumprimento dos direitos de crédito assumidos pelo adquirente perante o alienante emergentes da celebração do contrato de alienação.
Conforme expende Paulo Ramos de Faria, a realidade socioeconómica típica que se encontra subjacente à cláusula de reserva de propriedade no tráfego jurídico-comercial é a seguinte: “O vendedor, um profissional, interessado na comercialização das suas mercadorias (mas desconhecedor da abonação e probidade da contraparte), não está em condições de aceitar cedê-las ao comprador, que pretende adquirir o bem imediatamente, mas que não dispõe dos fundos necessários para saldar o preço, sem que este preste garantias do cumprimento futuro. Na falta de uma garantia sem desapossamento idónea, o vendedor limita o risco de incumprimento pela contraparte reservando para si a propriedade até que o pagamento ocorra. O fim visado pelas partes com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade é, como se vê, o de garantir a satisfação do crédito do vendedor ao preço. Pode, pois, afirmar-se que o direito de propriedade é aqui utilizado com função de garantia”[10].
Perante as características peculiares dos efeitos jurídicos produzidos pela cláusula de reserva de propriedade que se acabam de enunciar têm sido ensaiadas, a nível doutrinário e jurisprudencial, diversas tentativas para qualificar a sua natureza jurídica: uma corrente defende que a cláusula de reserva de propriedade confere ao alienante um direito real de garantia, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito, e assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida; uma outra corrente defende que, por via da dita cláusula, o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissário; e outra ainda que sustenta que a cláusula de reserva de propriedade, em termos substanciais, é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador, etc.[11].
A doutrina e a jurisprudência tradicionais defendem que a cláusula de reserva de propriedade configura uma condição suspensiva ou termo inicial do negócio de alienação, mediante a qual alienante e adquirente acordam que a propriedade sobre o bem se mantém na titularidade do alienante até ao cumprimento, total ou parcial, pelo adquirente das obrigações contratuais que assumiu perante o alienante no contrato celebrado e a que sujeitaram o efeito translativo típico desse tipo contratual (normalmente o pagamento do preço) para o adquirente.
Dito por outras palavras, a cláusula de reserva de propriedade não subordina o contrato de alienação - isto é, todos os efeitos típicos que decorrem da sua celebração - a uma condição suspensiva, mas apenas submete a essa condição suspensiva um dos seus efeitos típicos essenciais: a transmissão da propriedade sobre o bem objeto do contrato para o adquirente[12].
O referido entendimento é o que continua a ser o adotado pela doutrina e jurisprudência nacionais maioritárias e é o que, na nossa perspetiva, melhor explica os efeitos jurídicos produzidos  pela cláusula de reserva de propriedade em face do regime do art. 409º do CC,  no qual se concebe a mesma como uma cláusula acessória dos contratos de alienação, em que, no exercício da sua liberdade contratual, afastando o regime regra do art. 408º,  n.º 1,  alienante e adquirente subordinam a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para o adquirente (efeito típico dos contratos de transmissão e que, salvas as exceções previstas na lei, é uma consequência ou decorrência da mera celebração desse tipo contratual) a um evento futuro e incerto; mas unicamente dependente da conduta do adquirente, mais concretamente, do facto do mesmo cumprir com as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante.
Trata-se de uma cláusula atípica, mas socialmente típica, acessória dos contratos de alienação, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, que obsta a que o direito de propriedade sobre o bem se transmita para o adquirente como mero efeito da celebração do contrato de alienação, em que a transmissão desse direito apenas ocorre quando o adquirente cumprir no futuro (nas condições acordadas) as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e a que ambos subordinaram a transmissão desse direito – reafirma-se, normalmente o pagamento do preço. A reserva de propriedade desempenha, portanto, uma função de garantia dos direitos de crédito do alienante sobre o adquirente que emerge do contrato de alienação que celebraram.
Por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, na medida em que a reserva apenas suspende os efeitos translativos do direito de propriedade para o adquirente, mas não os restantes efeitos jurídicos típicos que decorrem da celebração desse contrato, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem objeto do contrato ao adquirente; e com a entrega deste é o adquirente que passa a deter a posse sobre o bem, posse essa que exerce em nome próprio, e, bem assim a usá-lo e fruí-lo. Contudo, a posse que o adquirente exerce em nome próprio sobre aquele bem, assim como o uso e fruição que sobre ele exerce, derivam da circunstância do alienante, na execução do contrato de alienação, lhe ter entregue o bem, e não do direito de propriedade, uma vez que esse direito, por via da cláusula de reserva de propriedade, permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante.
Deste modo, a posse e os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente no âmbito do contrato de alienação com reserva de propriedade não são uma posse, nem um uso e fruição que são próprios de quem é titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre o bem. Permanecendo entre o momento da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade e o cumprimento das obrigações a que alienante e adquirente subordinaram a transmissão do direito de propriedade para o último, na esfera jurídico-patrimonial do alienante[13], caso o adquirente venha a incumprir as obrigações contratuais a que ele e o alienante subordinaram a transmissão do direito de propriedade, assiste ao alienante o direito a resolver o contrato; e, em sequência desta, a obter do adquirente a restituição do bem objeto do contrato, ainda que este - no caso de móvel não sujeito a registo, ou no caso de imóvel ou móvel sujeito a registo, desde que a reserva de propriedade tenha sido registada (n.º 2 do art. 409º) -, tenha transmitido o bem em causa a um terceiro adquirente. É que permanecendo a propriedade sobre o bem na esfera jurídica do alienante, o adquirente não pode transmitir a terceiros adquirentes um direito de propriedade sobre o bem de que não dispunha[14].
Por sua vez, apesar de mediante a inserção da cláusula de reserva de propriedade no contrato de alienação o alienante continuar a ser o titular do direito de propriedade sobre o bem enquanto o adquirente não cumprir com as obrigações contratuais a que ambos subordinaram a transmissão daquele direito para o adquirente (e por isso, ser quem detém a posse e os poderes de uso e fruição que o art. 1305º do CC reconhece ao proprietário), entre o momento da celebração do contrato e o do cumprimento, o mesmo fica investido num direito real diferente da propriedade plena sobre o bem em causa, em relação ao qual passa a ser titular da denominada “propriedade reservada”: apesar de ser titular de um direito absoluto (o direito de propriedade), por natureza oponível erga omnes, a posse, o uso e a fruição que sobre ele são exercidos, em termos materiais e fácticos, são exercitados pelo adquirente. Além disso, por via da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante não pode opor-se a que o adquirente cumpra com as obrigações (condição) a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade sobre aquele bem; e o efeito translativo do direito de propriedade para a esfera jurídico-patrimonial apenas se encontra dependente de uma conduta do próprio adquirente – o cumprimento das obrigações contratuais que assumiu no contrato de alienação perante o alienante e a que ambos subordinaram a transmissão do direito de propriedade  sobre o bem para si –, sem que o alienante se possa opor a que cumpra com as referidas obrigações e assim adquira o direito de propriedade. O adquirente tem, assim, direito a adquirir a propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação com reserva de propriedade, pelo que, caso entre o momento da sua celebração e o cumprimento  dessas obrigações a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para o adquirente, o alienante transmitir este para um terceiro, e tratando-se de móvel não sujeito a registo, ou tratando-se de imóvel ou móvel sujeito a registo, se no momento daquela transmissão ao terceiro adquirente a reserva de propriedade estiver inscrita no registo – art. 409º, n.º 2 do CC -, o adquirente tem o direito de sequela sobre esse bem. Este  direito de sequela, e conforme antedito,  também se afirma a favor do alienante no caso de o adquirente não cumprir as obrigações contratuais emergentes do contrato de alienação a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade para este último, vindo então o alienante a resolver o contrato de alienação celebrado com aquele e que o alienante transmitira entretanto o direito de propriedade a um terceiro (relembra-se, de que não dispunha na sua esfera jurídica, sendo, por isso, esse contrato de alienação nulo, por incidir sobre bem alheio – art. 892º do CC).
O contrato de alienação com reserva de propriedade produz, por isso, efeitos obrigacionais e reais e, por via desses efeitos, mercê da sua mera celebração, o alienante deixa de ter o direito pleno e exclusivo ao uso, fruição e disposição sobre o bem que o art. 1305º do CC reconhece ao proprietário pleno sobre as coisas que lhe pertencem. Ou seja, por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante fica investido num direito real diferente da propriedade plena (ficando titular da denominada “propriedade reservada”, conforme já referido supra). Por sua vez, o adquirente  fica investido num “direito de expectativa real, fortemente tutelado, de aquisição do direito de propriedade plena e de um direito de gozo que inere à coisa e é oponível erga omnes[15].
A propriedade reservada corresponde a um estádio entre a propriedade plena e o direito real de garantia, em que, por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem ao adquirente, com cuja tradição lhe confere a posse (que este exerce em nome próprio) e os direitos de uso e fruição em termos materiais sobre o mesmo durante o período que medeia entre a celebração do contrato e o cumprimento pelo adquirente das obrigações contratuais a que ambos subordinaram a transferência do direito de propriedade para o último.
Durante esse período de tempo, o direito de propriedade permanece na titularidade do alienante, exercendo uma função de garantia em relação aos direitos de crédito que lhe assistem sobre o adquirente e a que subordinaram a aquisição pelo último do direito de propriedade.
Por isso, a posse, os direitos de uso e fruição sobre o bem, em termos de direito de propriedade, são exercidos pelo alienante, enquanto a posse, os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente não se fundam no direito de propriedade, mas sim na tradição do bem que o adquirente lhe fez na execução do contrato de alienação com reserva de propriedade celebrado[16].
O alienante, durante o referido período temporal, vê o seu poder de disposição sobre o bem que alienou com reserva de propriedade fortemente condicionado, na medida em que, caso o transmita a um terceiro, o adquirente com reserva de propriedade, tratando-se de móvel não sujeito a registo, ou tratando-se de imóvel ou móvel sujeito a registo, desde que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada à data em que esse bem foi transmitido ao terceiro (art. 409º, n.º 2), goza do direito de sequela sobre o mesmo. Logo, a eficácia desse ato de disposição do transmitente para o terceiro adquirente (no segundo contrato) fica dependente da resolução do primeiro contrato de alienação, com reserva de propriedade, que celebrou[17], resolução essa que, por sua vez, depende naturalmente do adquirente com reserva de propriedade ter incumprido com as obrigações contratuais para com o alienante ( a que  subordinaram a transferência do direito de propriedade para si), sem que o alienante, relembra-se, se possa opor a que este cumpra com essas obrigações (condições) e com isso adquira a propriedade plena sobre o bem.
Por sua vez, o adquirente com reserva de propriedade, durante o referido período de tempo, tem uma expectativa de aquisição da propriedade sobre o bem, assente no contrato de alienação com reserva de propriedade que celebrou com o alienante, em que a aquisição desse direito apenas depende de um ato seu (o cumprimento perante o alienante das obrigações contratuais a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade para si). Essa expectativa de aquisição é oponível ao alienante (que, por via do contrato celebrado, não pode impedir que aquele pratique o ato que o tornará proprietário) e a terceiros adquirentes, em relação a quem o adquirente com reserva de propriedade - no caso de coisa móvel não sujeita a registo ou, tratando-se de coisa imóvel ou móvel sujeita a registo, a partir da inscrição no registo da cláusula de reserva de propriedade - goza do direito de sequela sobre o bem (arts. 409º, n.º 2 e 275º, n.º 2 do CC). O adquirente com reserva de propriedade é, portanto, em suma, titular de um direito real de aquisição e de gozo sobre a coisa objeto do contrato de alienação com reserva de propriedade[18].
Feito aquele que, na nossa perspetiva, deve ser o enquadramento jurídico da cláusula de reserva de propriedade à luz do ordenamento jurídico civilístico nacional, nomeadamente, do disposto no art. 409º do CC, importa passar à analise da questão essencial ou nuclear em discussão no presente recurso: a questão da validade (ou não) da cláusula da reserva de propriedade aposta em contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, em que a instituição bancária empresta a quantia monetária ao mutuário necessária para que este pague o preço de compra de um bem - nomeadamente, (como acontece no caso dos autos), de um veículo automóvel a um terceiro -, reservando para si (mutuante), mediante acordo do mutuário, a propriedade sobre o bem comprado pelo último até que este cumpra com as obrigações contratuais emergentes do contrato de mútuo, cumprindo, assim, a cláusula de reserva de propriedade uma função de garantia do cumprimento pelo mutuário das obrigações emergentes do contrato (de mútuo) que celebrou e que assumiu perante o mutuante.
Esta questão não tem merecido uma resposta consensual ao nível da doutrina e da jurisprudência portuguesas.
Com efeito, a favor da validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador aposta no contrato de financiamento, na modalidade de  mútuo, pronunciam-se Isabel Meneres Campos[19], Nuno Pinto de Oliveira[20], e uma corrente jurisprudencial, que cremos ser minoritária[21].
Em sentido contrário pronunciam-se Paulo Ramos de Faria, Ana Maria Peralta, Luís Lima Pinheiro[22], Fernando Gravato Morais[23], Menezes Leitão[24], Paulo Duarte[25], e a corrente jurisprudencial tradicional que, a nosso ver, permanece maioritária[26].
A corrente que se pronuncia no sentido da validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador assenta essa sua posição nos seguintes argumentos: a) a cláusula de reserva da propriedade mais não é do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens adquiridos mediante acesso ao crédito desde a data em que foi consagrada a norma do art. 409º do CC, em que a reserva surgiu, historicamente, não só para garantir o pagamento do preço ao vendedor, mas também por razões sociais, pois permite o acesso à propriedade das pessoas mais desfavorecidas a bens de consumo, em que as alternativas ao dispor do mutuante exigem maiores formalismos, perdendo-se em celeridade e eficácia, o que acabará por redundar num aumento de despesas com a compra e venda de bens de consumo pela generalidade dos consumidores; b) atualmente as vendas a crédito de bens de consumo já não são configuradas como relações bilaterais, mas triangulares, nas quais o vendedor do bem recebe logo o preço de compra do bem do financiador por via do contrato de mútuo que este celebrou com o comprador (mutuante), pelo que é o financiador (mutuante) quem passa a suportar o risco do incumprimento que, nas vendas tradicionais, recaía sobre o vendedor, risco esse que, inclusivamente, é atualmente agravado pela circunstância dos contratos de consumo terem por objeto bens de consumo de elevado valor (v.g. veículos automóveis, televisores e aparelhos de som de marcas conceituadas, etc.), os quais  sofrem uma rápida desvalorização a partir do momento da sua aquisição; c) a ordem jurídica não pode ignorar que os dois contratos – compra e venda e mútuo – coexistem e estão interligados entre si, visando a consecução de uma finalidade económica comum,  que é a facilitação do consumo por recurso ao crédito, em que apesar dos dois contratos manterem a sua autonomia estrutural e formal, mantém uma interdependência de interesses entre o triângulo, em que o acordo entre as partes da relação triangular deverá ser visto como unitário, pelo que ambos os contratos devem merecer um tratamento jurídico unitário; d) esse tratamento jurídico unitário corresponde à vontade das partes contratantes (vendedor, comprador/mutuário e mutuante/financiador), pelo que a validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de mútuo a favor do mutuante, onerando o bem comprado (financiado), garantindo o cumprimento das obrigações contratuais que assumiu perante o mutuante no contrato de mútuo que celebraram, acaba por ser a expressão da liberdade contratual que assiste aos contraentes; e) as normas dos arts. 408º e 409º do CC têm natureza dispositiva, e não imperativa, não existindo, por isso, qualquer óbice legal à validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta em contrato de mútuo para aquisição de bem mediante recurso a crédito, onerando o bem adquirido, a favor do mutuante, financiador daquela compra; f) as obrigações que originam a reserva de propriedade nos contratos de consumo são as prestações concernentes ao contrato de mútuo, que correspondem, de algum modo, ao preço relativo ao contrato de compra e venda, em que, uma vez pago o preço do bem ao vendedor, este desaparece da relação contratual triangular que inicialmente existia entre vendedor, comprador e financiador, nada impedindo que o vendedor sub-rogue o financiador (mutuante) - que passa a assumir o risco do incumprimento do comprador -, nos direitos de crédito que detém sobre o comprador por via de contrato de compra e venda celebrado e nas garantias pessoais e reais que constituiu no contrato sobre aquela, incluindo, na cláusula de reserva de propriedade que constituíram sobre o bem objeto da compra e venda.
Com base nos argumentos que se acabam de referir (que são essencialmente os que foram avocados pela recorrente em sede de alegações de recurso), concluem os defensores da referida corrente doutrinal e jurisprudencial nada obstar à validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta num contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, em benefício do mutuante, onerando o bem objeto do contrato de compra e venda, cujo preço foi pago pelo mutuário, mediante o recurso à quantia monetária que aquele lhe emprestou, defendendo uma interpretação atualista do regime jurídico do art. 409º do CC, de modo a que abranja a reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante), e tanto mais que, com base na interpretação daquela norma, face à própria letra desta, que se refere a “qualquer outro evento”, nada obsta a que se considere englobada na referida expressão a reserva de propriedade sobre o bem constituída a favor do financiador.
Acontece que, analisados os argumentos que se acabam de explanar, dir-se-á que, face ao âmbito de aplicação do art. 409º da cláusula de reserva de propriedade (em que, conforme antedito, esta foi  concebida pelo legislador nacional como uma cláusula acessória dos contratos de alienação), aos efeitos jurídicos que que dela extrai (em que a cláusula em análise paralisa um dos efeito típicos decorrente da celebração dos contratos de alienação  - a transmissão da propriedade sobre o bem alienado da esfera jurídico-patrimonial do alienante para a do adquirente -, permanecendo a propriedade sobre o bem objeto do contrato na titularidade do alienante, enquanto o adquirente não cumprir com as obrigações contratuais que assumiu no contrato de alienação perante ele e a que subordinaram a transmissão daquele direito para o adquirente, em que, por isso, a reserva de propriedade funciona como garantia do cumprimento pelo adquirente dos direitos de crédito emergentes do contrato para o alienante), e aos efeitos obrigacionais e reais que decorrem da celebração desse tipo de contrato com reserva de propriedade (tudo conforme acima já se deixou enunciado), a que acrescem os argumentos que se passam a expor, prefigura-se-nos que o entendimento que melhor se adequa à figura da reserva de propriedade, tal como se encontra delineada no ordenamento jurídico nacional, é o que defende a sua invalidade jurídica quando seja estipulada a favor do financiador.
Concretizando…
O art. 409º do CC considera ser lícito ao alienante que nos contrato de alienação reserve para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento, o que significa que, de acordo com a letra da lei – elemento gramatical – o legislador reservou expressamente a estipulação de cláusula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, considerando que esta é uma cláusula acessória dos contratos de alienação,  destinando-se a garantir o cumprimento das obrigações neles assumidas pela contraparte (adquirente) perante o alienante.
O sentido corrente e natural da expressão “alienação” quando tomada numa perspetiva jurídica é de compra e venda. Por isso, de acordo com o elemento gramatical (o texto da norma do art. 409º do CC), a cláusula de reserva de propriedade é reservada pelo legislador aos “contratos de alienação”, ou seja, aos contratos de compra e venda, em que aquela funciona como garantia de cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo comprador perante o vendedor – normalmente, o pagamento do preço -, ao paralisar o efeito translativo da propriedade sobre o bem decorrente da celebração daquele contrato enquanto o comprador não cumprir com as obrigações a que subordinaram a transferência do direito de propriedade para si.
É certo que, nos termos do art. 9º do CC, na interpretação da norma o intérprete  “não deve cingir-se à letra da lei”, mas deve reconstituir “a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1 do art. 9º). Isto significa, por um lado,  que em sede interpretativa o legislador aderiu ao atualismo, em que “a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época” deve ser interpretada “da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica”[27]; e por outro, em sede de interpretação, a letra da lei (elemento gramatical) é apenas um dos elementos interpretativos a considerar, a que acrescem mais três: a) a “unidade do sistema jurídico” (elemento sistemático); b) “as circunstâncias em que a lei foi elaborada” (elemento histórico); e c) “as condições específicas do tempo em que é aplicada” (elemento racional ou teleológico).
Seguindo os ensinamentos de Baptista Machado, pelo elemento sistemático, a norma deve ser interpretada tendo em “consideração as outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei)”, mas também as que “regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos)”, tendo presente que “as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário”, pelo que a interpretação a dar a uma determinada norma jurídica deve ser de molde a obter-se uma coerência interna do ordenamento jurídico.
Pelo elemento histórico, o intérprete deve ter presente “todos os materiais relacionados com a história” da norma interpretanda, a saber: “a) A história evolutiva do instituto, tendo presente que “as mais das vezes a norma é produto de uma evolução histórica de certo regime jurídico, pelo que o conhecimento dessa evolução é suscetível de lançar luz sobre o sentido da norma, pois nos faz compreender o que pretendeu o legislador com a fórmula ou com a alteração legislativa; b) As chamadas “fontes da lei”, ou seja, os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador”, incluindo as leis de outros países “que serviram de modelo ao legislador português, em muitos pontos, ou que, pelo menos, representam as fontes em que ele foi beber a sua inspiração”; e c) Os trabalhos preparatórios,  isto é, “os estudos prévios, os anteprojetos que normalmente os acompanham, os projetos, as respostas a críticas, as propostas de alteração aos projetos, as atas das comissões encarregadas da elaboração da projeto”, etc., os quais “são de grande valia para definir a atitude final e a opção do legislador, servindo para afastar interpretações que se devem considerar rejeitadas”. 
Finalmente, pelo elemento racional ou teleológico, o intérprete deve buscar a razão de ser de o legislador ter adotado a norma interpretanda – ratio legis -, o fim visado pelo legislador ao elaborá-la, em que o conhecimento desse fim, sobretudo “quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a sua consagração/criação constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido interpretativo a ser-lhe dado, ao impor que tenha de ser interpretada de modo a transpor os objetivos prosseguidos pelo legislador com a sua consagração “para o condicionalismo atual”, e a que se ajuste o “próprio significado” da mesma  à evolução entretanto sofrida pelo ordenamento jurídico (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) “em cuja vida ela se integra”.
A interpretação da norma segundo os quatro cânones interpretativos acabados de enunciar poderá demandar que se tenha de fazer: a) uma interpretação declarativa da norma interpretanda (elegendo um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser o que correspondente ao pensamento legislativo); b) uma interpretação extensiva (quando se conclua que o elemento gramatical – texto – daquela fica aquém do espírito da lei, impondo-se então que se alargue ou estenda o seu texto, dando-lhe um alcance interpretativo conforme ao pensamento legislativo); c) uma interpretação restritiva (quando se conclua que o seu texto diz mais do que aquilo que corresponde à intenção do legislador, impondo-se então que se restrinja aquilo que se extrai do texto da norma de modo a que apenas abarque o pensamento legislativo); d) uma interpretação revogatória (quando se conclua que o texto da norma não está conforme ao pensamento legislativo e que este nem sequer consegue abranger o pensamento legislativo que com ela se quis prosseguir, impondo-se então sacrificar parte do texto ou a totalidade do texto da norma interpretanda); f) ou uma interpretação enunciativa (quando se conclua que o texto da norma apenas contém virtualmente o pensamento legislativo prosseguido pelo legislador, impondo-se então por inferências lógico-jurídicas interpretar a norma de acordo com o sentido interpretativo que lhe quis dar o legislador e que apenas nela se encontra virtualmente contido)[28].
Note-se, contudo, que, como alerta aquele mesmo autor e decorre do art. 9º, n.ºs 2 e 3, nessa tarefa interpretativa o intérprete não pode considerar um “pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2) e tem de presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3), o que significa que “a letra (o enunciado linguístico), é assim, o ponto de partida” para a interpretação da norma jurídica. “Mas não só, pois exerce uma função de um limite, nos termos do art. 9º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso””. Acresce que a letra da lei (texto) exerce ainda “uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, n.º 3, o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e direto da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo. Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”. Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz), mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo. Só que não convém exagerar a tónica objetivista, pois já vimos ser ponto assente que a nossa lei não tomou partido entre as duas correntes (a subjetivista e a objetivista)”[29] (destacado nosso).
Assentes nas premissas acabadas de referir, atento o elemento gramatical (a letra) do art. 409º - o qual, conforme antedito, é o ponto de partida da tarefa interpretativa e que leva que se tenha de rejeitar entre os sentidos interpretativos possíveis os que não tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal possível, ainda que imperfeitamente expresso, sem que se descure que se impõe presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas -, dir-se-á que nele, ao estatuir-se que:  “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade …”, o texto da norma em referência é no sentido de que a cláusula de reserva de propriedade se encontra nele prevista, única e exclusivamente, para os contratos de alienação; e apenas pode neles ser estipulada a favor do adquirente, onerando o bem objeto desse contrato, garantindo as obrigações contratuais nele assumidas pelo adquirente perante o alienante, exercendo neles uma função de garantia dos direitos de crédito assumidos pelo adquirente perante o alienante (normalmente, o pagamento do preço de venda do bem alienado). E não só o significado da expressão “contrato de alienação” corresponde ao de “contrato de compra e venda”, como esse também é o sentido natural, normal e corrente da expressão em referência.
Recorrendo ao elemento sistemático, a norma em referência insere-se no Capítulo II, que tem por epigrafe as “Fontes da Obrigações”, e integra-se na Secção I daquele capítulo, a qual versa sobre os “Contratos”.
Deste modo, o legislador previu a norma do art. 409º do CC, no capítulo relativo às fontes das obrigações, e entre estas, na Secção relativa aos contratos.
Nessa Secção, começou por consagrar os princípios gerais vigente em sede de contratos: o princípio da liberdade contratual (art. 405º do CC); o princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406º do CC); o princípio regra da preferência ou prevalência dos direitos pessoais de gozo constituídos no contrato primeiramente celebrado sobre o bem, quando sobre o mesmo forem constituídos, através de sucessivos contratos, direitos pessoais de gozo incompatíveis entre si a favor de pessoas diferentes (art. 408º do CC); e o princípio de que nos contratos constitutivos ou translativos de direito reais sobre coisa determinada, a constituição ou a transferência do direito real sobre aquela dá-se, por norma, por mero efeito da celebração do contrato (art. 408º do CC). Depois, na norma do art. 409º, permitiu aos contraentes que, nos contratos de alienação (isto é, nos contratos de compra e venda), reservassem para o “alienante” (vendedor) “a propriedade da coisa até ao cumprimento parcial das obrigações da outra parte ao até à verificação de qualquer outro evento”, isto é, até o comprador (contraparte do “alienante”) cumprir com as obrigações contratuais assumidas naquele contrato perante o “alienante” (vendedor) e a que subordinaram a transmissão da propriedade sobre o bem para o comprador.
Deste modo, entre as fontes das obrigações, o legislador começou por identificar como primeira fonte das obrigações os “contratos”. A propósito da primeira fonte das obrigações que enumerou - os contratos –, o legislador começou por enunciar o princípio fundamental vigente em sede contratual, que é o da liberdade contratual, reconhecendo aos contraentes (como é próprio de uma sociedade liberal e de mercado) o direito de celebrarem os contratos previstos e regulados pelo próprio legislador (os denominados contratos típicos ou nominados), contratos diferentes daqueles (os denominados contratos atípicos ou inominados), e de incluir nos contratos nominados as cláusulas que lhes aprouver, impondo como único limite a essa liberdade contratual os que decorram da lei.
Acresce que, não desconhecendo o legislador que entre os contratos típicos que prevê e regula, e os atípicos que permite que as partes celebrem, existem os que produzem apenas efeitos obrigacionais e aqueles outros que produzem efeitos obrigacionais e reais, o  mesmo estabeleceu como regra geral que os efeitos reais dos contratos que sejam celebrados produzem-se por mero efeito da sua celebração, “salvas as exceções previstas na lei”; e passou, de seguida, a estatuir que nos autos de alienação “é lícito” ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento  total ou parcial das obrigações da outra parte, paralisando os contraentes, mediante a inserção da cláusula da reserva de propriedade, nos contratos de alienação, o efeito translativo da propriedade sobre o bem por mero efeito da celebração do contrato enquanto o comprador não cumprir com as obrigações contratuais que assumiu no contrato perante o alienante (vendedor) a que ambos subordinaram esse efeito translativo da propriedade (reafirma-se, normalmente o pagamento do preço).
Daí que, salvo melhor opinião, o elemento gramatical (a letra da lei)  - as expressões “contratos de alienação” e “alienante” utilizadas pelo art. 409º - apenas permitir/consentir uma interpretação segundo a qual o legislador (em relação ao qual, relembra-se, o intérprete deverá presumir ter consagrado as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) apenas considerou (e considera) ser “lícito” (legalmente permitida) aos contraentes estipularem a cláusula de reserva da propriedade nos “contratos de alienação”, sendo neles estipulada a favor do “alienante” (vendedor), isto é:  essa cláusula apenas pode ser estipulada em contratos de compra e venda em que o vendedor reserve para si o direito de propriedade sobre a coisa vendida enquanto o comprador não cumprir com as obrigações que perante si assumiu no âmbito desse contrato e a que subordinaram o efeito translativo da propriedade sobre o bem para o comprador (normalmente, o pagamento do preço).
Para além do que se acaba de concluir ser o sentido interpretativo natural, normal e corrente das expressões “contratos de alienação”, “alienante” e “reservar para si a propriedade da coisa”, a circunstância de o legislado declarar naquele art. 409º, n.º 1 que “é lícito”, permite concluir a contrario sensu que apenas é “lícito”, ou seja, legalmente permitido estipular a cláusula de reserva de propriedade nos contratos de compra e venda a favor do comprador, onerando a coisa objeto desse contrato, essa também é a única interpretação possível que se retira do elemento sistemático, atento o que acima se acabou de referir.
De resto, o mutuante não transmite a propriedade sobre uma coisa, mas empresta dinheiro ao mutuário, pelo que a constituição de reserva de propriedade a favor daquele, sobre a coisa comprada, mediante a utilização dos meios económicos que lhe foram emprestados pelo primeiro, para garantir o cumprimento das obrigações que assumiu perante o mutuante emergentes do contrato de mútuo que celebraram, salvo melhor entendimento, não tem na letra da norma do art. 409º do CC um mínimo de correspondência verbal possível, ainda que imperfeitamente expresso.
Passando ao elemento histórico, é certo que à data em que a norma do art. 409º do CC foi consagrada pelo legislador a compra e venda de bens a crédito processava-se essencialmente mediante recurso ao instituto da compra e venda a prestações. Porém, já então o legislador não desconhecia que, quando o comprador pretendia comprar determinado bem e não dispunha dos meios económicos necessários ao pagamento do respetivo preço,  não recorria sempre ao instituto da compra e venda a prestações e que este não era o único instituto ou meio jurídico de que aquele se podia socorrer (e se socorria) para se financiar e adquirir o bem que pretendia comprar: já então, em 1966, existiam meios de financiamento alternativos, através dos quais obtinha os meios económicos necessários para proceder ao pagamento do preço do bem a pronto pagamento, nomeadamente, o contrato de mútuo celebrado com uma instituição bancária, ou com terceiros, mormente, familiares.
Pois bem, não ignorando essa realidade económica e social já existente em 1966, o legislador não permitiu que o comprador/mutuário, no contrato de mútuo que celebrasse com o mutuante, a fim de obter os meios necessários para proceder ao pagamento do preço de compra do bem que pretendia adquirir,  acordasse com o mutuante na constituição de uma reserva de propriedade sobre esse bem, garantido o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo que assumiu perante o mutuante: conforme antes de deixou dito, atento o elemento gramatical, o sentido natural e normal das expressões utilizadas no art. 409º do CC, e a sua inserção sistemática, a única interpretação possível do preceito em causa é o de que a cláusula de reserva de propriedade nele prevista foi reservada pelo legislador para os contratos de alienação (isto é, para os contratos de compra e venda, onerando o bem objeto desse tipo contratual, em benefício do vendedor), funcionando como garantia do cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo comprador perante o vendedor.
Acresce referir que, com a intensificação da compra de bens de consumo a crédito, no D.L. n.º 133/2009, de 02/06 (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de abril), o legislador passou a regular essas relações contratuais bipartidas (quando o comprador ou adquirente do serviço é, em simultâneo, o mutuário, e o vendedor ou prestador do serviço é, em simultâneo, o mutuante) ou tripartidas (em que comprador ou adquirente do serviço, vendedor ou prestador do serviço e mutuante são três pessoas jurídicas distintas), dando aos contratos abrangidos pelo campo objetivo e subjetivo deste diploma um tratamento jurídico unitário.
A propósito do seu campo de aplicação subjetivo, o regime jurídico daquele diploma apenas é aplicável aos contratos por ele abrangidos e que sejam celebrados por um «consumidor», considerando-se para efeitos da sua aplicação por «consumidor» a pessoa singular que celebre contratos de aquisição de bens de consumo abrangidos pelo referido diploma, que adquirisse bem(ns) destinados a objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional – cfr. art. 4º, n.º 1, al. a) do DL. n.º 133/2009.
No mencionado diploma passou a considerar-se ocorrer uma situação de «contrato de crédito coligado» quando fosse celebrado um contrato de compra e venda ou de prestação de serviço específico e o crédito concedido servisse exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos; e ambos os contratos constituíssem objetivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor  fosse financiado pelo fornecedor ou pelo prestador do serviço ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorresse ao fornecedor ou ao prestador do serviço para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou serviço específico estivessem expressamente previstos no contrato de crédito – art. 4º, n.º 1, al. o) do DL. n.º 133/2009.
Na situação de «contrato de crédito coligado» (integrado pelo contrato de compra e venda ou pelo contrato de prestação de serviços e, bem assim, pelo contrato de mútuo), no âmbito daquele diploma, essas figuras contratuais consideram-se constituírem um único contrato: em que a invalidade ou ineficácia do contrato de crédito determina a invalidade ou ineficácia da compra e venda, e vice-versa – art. 18º, n.ºs 1 e 2 -; e em que o incumprimento das obrigações contratuais assumidas no âmbito do contrato de crédito pelo consumidor, salvas as exceções previstas no diploma, confere ao financiador (mutuante) o direito a resolver o contrato de crédito coligado, reavendo para si o bem comprado pelo primeiro, além de lhe conferir o direito a ser indemnizado nos termos previstos no mesmo – art. 20º do DL. n.º 133/2009.
Acontece que o legislador, não desconhecia que após 1966 tinham ocorrido alterações profundas nas relações contratuais de compra e venda/prestação de serviços a crédito, em que estas, na grande maioria das vezes, deixaram de assentar em relações contratuais bilaterais, assentes em dois contratos típicos autónomos (por um lado, o contrato de compra e venda, celebrado entre vendedor e comprador/«consumidor» e, por outro, o contrato de mútuo, celebrado entre mutuante e mutuário/«consumidor», com o fim de que o mutuante facultasse ao mutuário os meios económicos necessários ao pagamento do preço da compra e venda do bem que pretendia adquirir, contratos esses que, apesar de substancialmente correlacionados entre si, mantêm a sua autonomia e individualidade jurídica[30]); e passaram a assentar numa relação contratual tripartida, nas quais, as mais das vezes, o vendedor recebe do comprador ou do mutuante (que, nesse caso, procede ao pagamento do preço, a mando e por conta do mutuário/comprador) imediatamente o preço da coisa comprada ou do serviço que lhe foi prestado, e que, por isso, neles passou a ser o mutuante quem suporta o risco de incumprimento que, nas vendas a prestações tradicionais, era suportado pelo vendedor.
Ora, sabendo-o, o legislador nem por isso alterou a redação do art.  409º do CC, onde limitou a cláusula de reserva de propriedade aos contratos de compra e venda; e inclusivamente, restringiu a figura jurídica do «contrato de crédito coligado» prevista no DL. n.º 133/2009, de 02/06, aos contratos abrangidos pelo seu campo objetivo de aplicação, e em que o «consumidor» (isto é, o comprador do bem/adquirente do serviço) e, em simultâneo, o mutuante fosse uma pessoa singular e desde que não destinasse o(s) bem(ns) ou o(s) serviço(s) adquiridos à sua atividade comercial ou profissional.
Tal significa que, quanto aos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços e o contrato de mútuo celebrados pelo comprador ou o adquirente de serviço (a fim de obter os meios financeiros necessários ao pagamento do preço de aquisição do bem ou do serviço que pretende adquirir), que não estejam abrangidos pelo campo de aplicação objetivo do DL. 133/2009 (cujo âmbito objetivo de aplicação não abrange os contratos previstos nos arts. 2º e 3º desse diploma, nomeadamente, os contratos em que o crédito concedido seja inferior a 200,00 euros ou superior a 75.000,00 euros), ou que estando-o, não estão abrangidos pelo seu campo subjetivo de aplicação, por o comprador (no contrato de compra e venda) ou o adquirente do serviço (no contrato de prestação de serviços), que é simultaneamente mutuário (no contrato de mútuo), ser uma pessoa coletiva (como é o caso da aqui devedora/insolvente EMP02..., Lda.) ou, apesar de ser uma pessoa singular, destinar o bem ou o serviço adquirido à sua atividade comercial ou profissional (finalidade a que a devedora/insolvente também destinou o veículo automóvel em discussão nos autos, pelo que o DL. 133/2009, nunca tem aplicação no caso sobre que versam os autos), o legislador do DL. n.º 133/2009 optou por afastar esse dois tipos contratuais da figura jurídica do «contrato de crédito coligado». O legislador, conforme antedito, nesses casos não abrangidos pela disciplina daquele diploma  deixou de considerar os contratos celebrados como constituindo um único e submetendo-os a uma disciplina jurídica unitária (a prevista naquele diploma), mantendo antes cada um deles (por um lado,  o contrato de compra e venda ou o contrato de prestação de serviços e, por outro, o contrato de mútuo) a sua individualidade jurídica; e sujeitando cada um deles à respetiva disciplina jurídica, apesar de se encontrarem entre si interligados, dado visarem a consecução de uma finalidade comum (a facilitação de aquisição de bens ou serviços por recurso ao crédito).
Destarte, salvo melhor opinião, também por apelo ao elemento histórico, o regime jurídico do art. 409º do CC - que limita a cláusula de reserva de propriedade aos “contratos de alienação”, ou seja, aos contratos de compra e venda, quando se trate de reservar para o “alienante” (vendedor) a propriedade sobre o bem objeto desse contrato até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte (comprador) ou até à verificação de qualquer outro evento - se não permite uma interpretação extensiva desse preceito, de modo a que nele se englobe a reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante).
Finalmente, ante o que se vem dizendo, também o elemento racional ou teleológico, isto é, a rato legis ou o fim visado pelo legislador ao elaborar a dita norma do art. 409º do CC, não permite, em nossa modesta opinião, semelhante interpretação extensiva. Se assim fosse, logo aquando da sua consagração, o legislador - que não desconhecia que o comprador que não dispunha de meios económicos para pagar a pronto o preço de aquisição do bem que pretendia comprar, nem sempre recorria ao instituto da compra e venda a prestações -, não teria limitado o regime jurídico do art. 409º do CC, ao contrato de compra e venda. Acresce que, quando instituiu o regime jurídico do DL n.º 133/2009, o legislador não teria restringido o âmbito objetivo e subjetivo de aplicação deste diploma nos termos já acima enunciados; ou, ao menos, teria alterado a norma do art. 409º, de modo a alargar o campo de aplicação da cláusula de reserva de propriedade nele prevista a outros tipos contratuais, que não apenas ao contrato de compra e venda.
Neste sentido escreve Paulo Faria de Ramos Faria que: “O glosador só está habilitado a interpretar atualisticamente a norma quando seja possível afirmar que ocorreu uma alteração das circunstâncias jurídico-sociais presentes no momento da sua alteração (…) e que alguma das manifestações do novo fenómeno já tenha sido merecedor de tutela legal, mediante a consagração de normas orientadas pelo ponto de vista valorativo que se pretende considerar na fixação do sentido da norma a interpretar atualisticamente, ou, ao menos, que essa nova realidade seja digna de uma (primeira) tutela com o sentido pretendido – à luz dos valores que informam o ordenamento jurídico. (…). O legislador de 1966 não desconhecia a existência de uma atividade de empréstimo sobre penhor e não desconhecia a utilidade das garantias mobiliárias sem desapossamento, revelando ainda, mesmo no Código Civil, que não desconhecia os casos em que o devedor cumpre a obrigação com dinheiro emprestado por terceiro (art. 591º). A novidade existe; só que não se trata de uma novidade do “tipo” negocial ou, muito menos, de uma evolução das opções valorativas vertidas no ordenamento jurídico, no sentido pretendido por tais defensores. Consiste ele no exponencial crescimento da concessão de crédito ao consumo, usando as financiadoras de expedientes mais ou menos criativos para evitarem ter de suportar os custos de uma negociação cautelosa, com apuramento da solvabilidade e abonação da contraparte (art. 10º do RJCC), e para obterem uma garantia mais forte do que as que já se encontram predispostas na lei. Aquilo que, para os que concebem as novas ferramentas negociais, é tido por uma maior agilização e informalismo, constitui afinal uma tentativa de contrariar o equilíbrio existente na lei positiva entre os diversos interesses em jogo, predisposto e desejado pelo legislador. Nestes casos, a lei deve reter o poder de lutar contra as conceções dominantes do comércio jurídico (ética ou moral positiva), não aceitando pautar-se ou reger-se por ela”[31].
A posição de que a expressão do art. 409º, n.º 1 do CC – “ou até à verificação de qualquer outro evento” – permite englobar na previsão daquela norma  a reserva de propriedade constituída a favor do financiador, desconsidera ou olvida a primeira parte dessa norma, onde expressamente se estabelece que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa…”, o que não se prefigura consentâneo com uma interpretação minimamente admissível, onde qualquer interpretação de uma norma não pode abstrair de todo o seu teor, além de que desconsidera tudo o quanto acima já se explanou.
Note-se que nessa primeira parte do n.º 1 do art. 409º, o legislador limita expressamente a reserva de propriedade aos “contratos de alienação”, em que essa reserva seja constituída a favor do “alienante”, onerando a coisa objeto do contrato, “até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer evento”, ou seja, aos contratos de compra e venda em que a reserva da propriedade seja constituída sobre o bem objeto daquele contrato, em benefício do vendedor, garantindo o cumprimento pelo comprador das obrigações contratuais que este assumiu perante aquele (normalmente, o pagamento do preço) a que ambos subordinaram a transferência do direito do propriedade sobre o bem  objeto da compra e venda para a esfera jurídico-patrimonial do comprador.  
Deste modo, a expressão “ou até à verificação de qualquer outro evento” tem de ser entendida no contexto do contrato de alienação, ou seja, do contrato de compra e venda, de evento relacionado com as vicissitudes desse contrato,  que o afete, não podendo exorbitar do seu âmbito[32]
No âmbito do acórdão proferido pelo STJ, em 30/09/2014 (Proc. 344/09.8TVLSB.L1.S1), expende-se que: “O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratada sob a condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (art. 589º do CC) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efetuado (art. 591º do mesmo Código)”. E sustenta-se que “a lei civil permite que, por atos celebrados simultaneamente com intervenção de todos os interessados: 1º) o vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva da propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço; 2º) o comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento da aquisição, procedendo aquele à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efetuado diretamente pela instituição de crédito junto do vendedor substituindo-se ao comprador; 3º) em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1ª hipótese referida no número anterior); ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-se a propriedade reservada, com o conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2ª hipótese referida no mesmo número)”.
A este propósito dir-se-á que a situação acabada de descrever e sobre  a qual se debruça o acórdão acabado de referir não é a situação que se verifica no âmbito dos presentes autos, uma vez que neles o fornecedor/vendedor EMP03... do veículo automóvel da marca ..., modelo ...”, com a matrícula ..-GX-.., à aqui devedora “EMP02..., Lda.” (compradora), não teve qualquer intervenção no contrato de crédito, n.º ...53, celebrado entre esta última sociedade, na qualidade de mutuária,  e a entidade financiadora, Banco 2.... S.A., na qualidade de mutuante, em 14/08/2020, onde o identificado EMP03... apenas interveio como “garante”, isto é, como fiador (e não como vendedor).  
Por isso, não tendo o vendedor do veículo automóvel sobre que versam os autos intervindo no contrato de crédito (mútuo), nem tendo nele a mutuária (EMP02..., Lda.) intervindo como compradora daquele veículo, no âmbito do contrato de financiamento, na modalidade de mútuo que celebrou com a mutuante Banco 2..., S.A., naturalmente que  o primeiro nele não declarou vender aquele veículo à compradora – devedora/insolvente EMP02..., Lda. -, reservando para si a propriedade sobre o mesmo, enquanto esta não lhe pagasse o preço de compra, nem nele a devedora/insolvente EMP02... Lda. declarou comprar ao primeiro aquele veículo,  nomeadamente, com  reserva de propriedade a favor do vendedor EMP03..., nem  o último nele declarou sub-rogar a mutuante – Banco 2..., S.A. – na reserva de propriedade constituída sobre o veículo.
Daí que a situação sobre que versa o identificado acórdão nada tenha a ver com o caso em discussão nos presentes autos.
No entanto, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se perfilha do entendimento jurídico acolhido naquele acórdão, de que é possível defender a validade da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade financeira (mutuante), onerando o bem objeto da compra e venda, através do instituto da sub-rogação legal ou convencional, quando vendedor, comprador e mutuante tenham intervenção no contrato de financiamento celebrado. Com efeito, semelhante entendimento assenta numa vontade negocial por parte de vendedor, comprador e mutuante (financiador) que não está presente nas declarações negociais que por eles são emitidas em semelhante contrato, além de que assenta numa ficção jurídica, de que com o recebimento do preço por parte do vendedor a reserva de propriedade constituída sobre o objeto da compra e venda não se extinguiria, pelo que seria possível sub-rogar-se o mutuante naquela reserva; além de que desconsidera que a constituição da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante (financiador) consubstancia uma garantia real dissimulada, assente em pressupostos e sujeita a  condições proibidos por lei, por consubstanciar um pacto comissório, que o art. 694º do CC declara nulo.
Deste modo, ainda que no contrato celebrado em ../../2008, EMP03... tivesse nele outorgado como vendedor do veículo automóvel de matrícula ..-GX-.., a devedora/insolvente EMP02..., Lda. tivesse nele outorgado como compradora do mesmo e, em simultâneo, como mutuária, e o Banco 2..., S.A. nele tivesse outorgado como mutuária, em que o primeiro tivesse nele declarado vender à devedora EMP02..., Lda. o veículo  automóvel, pelo preço de 9.200,00 euros, reservando para si o  direito de propriedade sobre o mesmo enquanto esta (compradora) não lhe pagasse o respetivo preço, e em que o Banco 2... declarasse que emprestava à compradora do veículo -  EMP02..., Lda. -, os meios necessários para que pagasse o preço de compra daquele ao vendedor EMP03..., e este último tivesse nele declarado que, mediante o recebimento do preço de venda  do veículo em causa sub-rogava o mutuante (financiador) Banco 2... na reserva de propriedade constituída sobre o veículo em causa e em seu benefício, e a vendedora e mutuária EMP02..., Lda. declarasse concordar com essa transferência da reserva de propriedade para a última (o que, reafirma-se, não é a situação que se verifica no contrato a que aludem as alíneas  B) a E) dos factos provados), não se vê como se possa defender a solução jurídica propugnada naquele aresto.
Com efeito, por um lado, se a reserva de propriedade tem por função garantir ao vendedor do veículo automóvel o pagamento do preço de compra pelo comprador; o vendedor não declarou naquele contrato vender ao Banco 2... (entidade financiadora/mutuante) o veículo em causa, mas sim à compradora EMP02..., Lda.; por sua vez, o financiador (Banco 2...) não declarou pretender comprar aquele veículo ao vendedor, nem declarou nele que, na sequência dessa compra, o vendia à compradora EMP02..., mas apenas que concedia à mutuária (compradora EMP02..., Lda.) a quantia necessária ao pagamento do preço de compra daquele veículo e que ficava constituída sobre o mesmo uma reserva de propriedade para garantir o cumprimento pela última (mutuária) das obrigações contratuais perante si assumidas emergentes do contrato de mútuo.
Acresce que, atenta a função de garantia da cláusula de reserva de propriedade do pagamento do preço de compra do veículo pelo comprador ao vendedor, com o recebimento do preço pelo último (diretamente do comprador, ou do mutuário, que nesta hipótese faria esse pagamento por conta e em nome do comprador), a reserva de propriedade que se mostrasse constituída sobre o veículo em causa a favor do vendedor extinguir-se-ia: e, por isso, a transferência da propriedade sobre o veículo, por efeito do contrato de compra e venda com reserva de propriedade celebrado, transmitir-se-ia do vendedor para o comprador (a devedora/insolvente EMP02..., Lda.), extinguindo-se a reserva da propriedade, pelo que o vendedor naturalmente que já não podia transmitir esta ao financiador/mutuante (Banco 2..., S.A.), por sub-rogação legal ou contratual, em virtude dessa reserva já não existir.
 Finalmente, a sub-rogação do mutuante na cláusula de reserva de propriedade constituiria uma garantia real dissimulada, em violação ao disposto no art. 694º do CC, que proíbe o pacto comissório, isto é, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir e que declara nula essa convenção, seja anterior ou posterior à constituição da garantia[33].
Note-se que, contrariamente ao que parece ser o entendimento da recorrente e de quem pugna pela validade da constituição de reserva de propriedade a favor do financiador, a liberdade contratual que o art. 405º do CC reconhece aos contraentes, conferindo-lhes o direito de fixarem livremente o conteúdo dos contratos, celebrarem contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluírem nestes as cláusulas que lhes aprovar, tem como limite intransponível os limites estabelecidos na lei à liberdade contratual.
Ora, como acabado de demonstrar, a constituição de uma reserva de propriedade a favor do financiador mediante o recurso ao instituto da sub-rogação, além de levar a que se tivesse que ficcionar que o financiador tinha adquirido, por sub-rogação legal do vendedor do veículo, a reserva de propriedade constituída pelo comprador em seu benefício (ou seja, teríamos de aceitar uma impossibilidade jurídica - por a garantia real conferida pela cláusula de reserva de propriedade se ter  extinguido com o recebimento pelo vendedor do preço de venda do veículo), levaria a que se tivesse  de adicionalmente de ficcionar uma vontade negocial da parte de financiador, vendedor e comprador/mutuário que não presidiu às suas declarações negociais. Com efeito, recebendo imediatamente o vendedor, por via do contrato de mútuo celebrado entre o comprador com o mutuante – financiador - o preço de venda do veículo, aquele e o comprador não têm naturalmente qualquer intenção de constituir qualquer reserva de propriedade sobre o veículo, a fim de garantir o pagamento ao vendedor do preço de venda deste; muito menos  têm intenção de transmitir essa pretensa reserva de propriedade do veículo ao mutuante, o qual, por sua vez, nunca foi proprietário do veículo, nem nunca teve intenção de o comprar ao vendedor para, imediatamente, o vender ao mutuário; nem este  último teve qualquer intenção de lho comprar, agindo apenas o mutuante com a intenção de constituir uma garantia real sobre o bem objeto da compra e venda que lhe garantisse o cumprimento pelo mutuário das obrigações contratuais que perante si assumiu no contrato de mútuo celebrado. A ser assim, como é, teríamos de aceitar que a lei consente que os contraentes, no uso da sua liberdade contratual, abstraindo dos pressupostos contidos no art. 409º, n.º 2 do CC para a reserva de propriedade, a contornem, nomeadamente, as finalidades para que o legislador a concebeu e afastando a norma imperativa e de ordem pública do art. 694º do CC, que proíbe o pacto comissório.
Decorre do excurso antecedente que, ao declarar a nulidade da cláusula de reserva de propriedade constituída sob o veículo automóvel com a matrícula ..-GX-.., a favor do Banco 2..., S.A. (financiador/mutuante) e ao julgar improcedente o pedido de separação desse veículo da massa insolvente e, bem assim, ao declarar nada obstar à alienação do mesmo no âmbito do presente processo de insolvência, a decisão recorrida não incorreu em nenhum dos erros de direito que lhe são assacados pela recorrente, impondo-se julgar o presente recurso improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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(....)

V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o presente recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Mais acordam em não admitir a junção aos autos do documento apresentado pela recorrente Banco 1..., S.A. em anexo às alegações de recurso e, em consequência, após trânsito, ordenam o desentranhamento do mesmo do processo e a sua restituição à apresentante, que vai condenada nas custas do incidente anómalo que gerou, com essa junção legalmente inadmissível, fixando em uma UC a taxa de justiça (art. 7º, n.ºs 4 e 8 do RCP e tabela II-A a ele anexa).
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Custas do recurso pela recorrente Banco 1..., S.A., uma vez que nele ficou “vencida” (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 31 de outubro de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Viana Lopes – 1ª Adjunta
Maria João Marques Pinto de Matos – 2ª Adjunta


[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Paula Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2013, Almedina, págs. 340 e 341.
No mesmo sentido de que o encerramento da discussão em 1ª Instância é o limite máximo até ao qual o art. 423º, n.º 3 do CPC, consente a junção aos autos de documentos, verificados que estejam os requisitos legais que enuncia, vide Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 352, nota 829.
Ainda Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2106, 12ª ed., pág. 320.
[3] Acs. STJ., de 13/02/2007, Proc. 06A4496 e RC., de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG-G1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venha a citar, sem menção em contrário.
[4] Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, Ediforum, pág. 515.
[5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 341.
[6] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 229.
[7] Acs. STJ., de 18/01/2005, Rev. n.º 3689/04-4ª, Sumários, jan./2005; de 18/04/2006, Proc. 06A844.
[8] Ac. RG., de 19/06/2014, Proc. 36/12.9TBEPS-A.G1, em que se expende que: “A junção de documentos apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam”; Ac. STJ., de 26/09/2012, Proc. 174/08.TTVFX.L1.S1, em que se lê que: “A possibilidade de junção de documentos com a alegação de recurso de apelação, não se tratando de documento ou facto superveniente, só existe para aqueles casos em que a necessidade de tal junção foi criada, pela primeira vez, pela sentença da primeira instância. A decisão de 1ª instância pode criar, pela primeira vez, tal necessidade quando se tenha baseado em meios probatórios não oferecidos pelas partes, ou quando se tenha fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes, justificadamente, não contavam”; Ac. RC., de 18/11/2014, Proc. 628/13.9TBGRD.C1.
[9] Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª ed., pág. 61: “A venda com reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva. Suspende o efeito translativo, mas os outros efeitos do negócio produzem-se imediatamente. O evento futuro de que depende a transferência da propriedade, será, em regra, o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte”.
[10] Paulo Ramos de Faria, “A Reserva de Propriedade Constituída a Favor de Terceiro Financiado”, Revista Julgar, n.º 16, Coimbra Editora, págs. 14 a 16.
No mesmo sentido Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 234, onde, em anotação ao art. 934º do CC, referem que, na venda a prestações, com reserva de propriedade, esta cláusula tem por função “a permanência da propriedade no património do vendedor, até ser paga a última prestação” e “tem essencialmente em vista uma função de garantia”.
[11] Ac. STJ. de uniformização de jurisprudência de 09/10/2008, Proc. 07A3965, base de dados da DGSI e DR. Iª Série, de 14/11/2008.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 376; Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª ed., pág. 61; Paulo Ramos e Faria, ob. cit., págs. 15 a 17; AUJ, de 09/10/2008, Proc. 07A3965 (DR. Iª Série, de 14/11/2008); Ac. RC., de 08/03/2016, Proc. 934/15.8LMG.C1.
No sentido de que a cláusula de reserva de propriedade é uma cláusula atípica, acessória, que funciona como garantia do alienante, se destina a regular os efeitos do contrato, limitando-os quantitativamente, e não uma condição suspensiva ou resolutiva, vide Ac. R.P., de 04/02/1971, B.M.J., 204º, pág. 196.
[13] Ana Maria Peralta, “A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade”, Almedina, 1990, pág. 77, onde defende que: “O gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se funando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato”. E adianta que “ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos o direito de propriedade, direito de que ainda é titular”.
Almeida e Costa, RLJ, ano 1985, pág. 86, onde sustenta que o adquirente, “apesar da reserva, detém a coisa em nome próprio e não a título precário e não a recebe para guardar e posteriormente restituir”
[14] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., pág. 21.
[15] Ac. STJ, de 30/09/2014, Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1.
[16] Luís Lima Pacheco, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, Coimbra Editora, pág. 115, em que se lê: “O pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica, com a configuração normativa que lhe cabe no ordenamento português é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade ergo omnes da resolução. A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta, porém, à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste na titularidade «abstrata» do direito de propriedade. O «direito de expectativa do comprador, revela-se assim não só um direito real de aquisição da propriedade ou mesmo como como um direito nos termos do direito de propriedade”.  
[17] Ac. STJ, de 01/02/1995, BMJ, 444º, pág. 609.
[18] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., págs. 17 e 18;
[19] Isabel Meneres Campos, “Algumas Reflexões em torno da Cláusula de Reserva de Propriedade a favor do Financiador”, em “Estudos em Comemoração do Décimo Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho”, Almedina, 2003, págs. 631 a 649.
[20] Nuno Pinto Oliveira, “Contrato de Compra e Venda”, Coimbra Editora, 2007, págs. 56 e 57.
[21] Acs. STJ., de 30/09/2014, Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1; R.L., de 03/12/2009, Proc. 6212/06.6TVLSB.L1-8; de 31/01/2008, Proc. 405/2208-6; de 27/06/2002, Proc. 0053286; voto de vencido no Ac. R.P., de 26/04/2010, Proc. 1710/09.2TBVCD.P1.
[22] Obras já supra identificadas.
[23] Fernando Gravato Morais, “Contratos de Crédito ao Consumo”, Coimbra Editora, 2007, págs. 297 e ss..
[24] Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. III, Coimbra Editora, 11ª ed., 2016, pág. 53.
[25] Paulo Duarte, “Contratos de Concessão de Crédito ao Consumidor: em particular as relações trilaterais resultantes da intervenção de um terceiro financiado”, Coimbra Editora, 2000, págs. 193 e ss..
[26] Acs. do STJ, de 12/07/2011, Proc. 403/07.0TVLS.L1.S1; 09/10/2009, Proc. 07A3965 (AUJ já supra identificado); de 02/10/2007, Proc. 07A2680; RG., de 11/05/2023, Proc. 1683/23.9TBRG.G1; RP., de 26/04/2010, Proc. 1710/09.2TBVCD.P1; de 30/06/2008, Proc. 0853134; RC., de 08/03/2016, Proc. 934/15.8LMG.C1; RL., de 07/12/2023, Proc. 2883/22.7T8OER-A.L1-2;  de 09/01/2020, Proc. 11755/19.9T8LSC.L1-2; e de 1/05/2012, Proc. 2261/12.3YXLSB.L1-7.
[27] J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1985, pág. 191.
[28] J. Baptista Machado, ob. cit., págs. 181 a 192.
[29] Baptista Machado, ob. cit., págs. 189 e 190.
[30] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª ed., Almedina, pág. 284, em que propugna que, na coligação de contratos “há já certa dependência entre os contratos coligados, criada pelas cláusulas acessórias (Nebenabrede) ou pela relação de correspetividade ou de motivação que afetam um deles ou ambos eles. Porém, nem as cláusulas acessórias, nem o nexo de correspetividade ou de motivação que prendem um dos contratos ao outro, destroem a sua individualidade”.
[31] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., págs. 32 e 33.
[32] Ac. R.L., de 07/12/2023, Proc. 2883/23.7T8OER-A.L1-2.
[33] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., pág. 37, em que expende: “Tendo em conta a função, a estrutura e os efeitos da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador, conclui-se sem esforço que o pacto comissório está presente nesta estipulação, pois (…) o que é decisivo é resultado económico que se pretende evitar, sendo indiferente o instrumento jurídico empregue pelas partes, que pode consistir na transmissão da propriedade sujeita à condição suspensiva do incumprimento, como na mesma transmissão sujeita à condição resolutiva do cumprimento. Mais do que sinalizar que o acordo visado pelas partes não é uma cláusula com reserva de propriedade, mas sim a estipulação de uma garantia dissimulada (arts. 240º/2 e 241º/2), assente em pressupostos e sujeita a condições proibidos por lei, importa aqui ter presente que a proibição do pacto comissório se estende a todas as demais convenções com função de garantia. Significa isto que esta cláusula de reserva de propriedade não deve ser tratada como sendo um acordo simulado – sendo nulo em razão da desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada -, devendo antes ser imediatamente confrontada com as normas que dispõem sobre os limites da liberdade negocial, em razão do seu conteúdo – sendo, então, o acordo reconhecido como nulo, porque celebrado em direta violação da proibição do pacto comissória”. A fls.  39 a 42, adianta que: “Se, em geral, a sub-rogação (por pagamento) na propriedade é de rejeitar, na hipótese que nos ocupa ela é claramente contrária à lei, sendo mesmo contrária à vontade real típica das partes. Independentemente do concreto programa contratual do mútuo – entrega do capital ao mutuário ou diretamente ao vendedor -, o financiador, ao disponibilizar o capital mutuado, não satisfaz um propósito seu de cumprir o contrato de compra e venda, estando, sim, a cumprir uma ordem de pagamento do mutuário. (…). Ao fazer inserir no contrato uma declaração da contraparte sub-rogando-a nos direitos do credor, a financiadora não ambiciona a titularidade do crédito ao preço; deseja, sim, as suas garantias acessórias. E aqui se revela a distorção que este expediente provoca no funcionamento do instituto da sub-rogação. Embora a reserva de propriedade esteja umbilicalmente ligada ao contrato de alienação, a financeira cobiça-a para servir de garantia da pontual execução do mútuo, isto é, da amortização do valor do empréstimo, e não da satisfação do valor do preço. Estas sociedades já protegem os seus créditos com um vasto arsenal de garantias, pelo que a sub-rogação se destina a obter a única garantia de que não podem beneficiar: a titularidade da propriedade. Evidencia-se, assim, que, nesta suposta sub-rogação no crédito (e na propriedade reservada), estamos perante uma conduta que vista defraudar o numerus clausus previsto nos arts. 604º, n.º 2 e 1306º., proibida por força do disposto no art. 294º”.
No mesmo sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, págs. 716 e 718, que em anotação ao art. 694º do CC, escrevem que nele “proíbe-se o pacto comissória, segundo o qual o credor faria sua a coisa onerada, no caso de o devedor não cumprir. Esta proibição aparece na generalidade das legislações e funda-se no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses. O fundamento é paralelo ao da proibição da usura. A proibição abrange também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual se convencione o direito de venda particular. A doutrina distingue entre pactos comissórios reais e obrigacionais. Pelos primeiros, a coisa transfere-se para o credor pelo não cumprimento; pelos segundos, fica o credor com o direito de crédito às transmissões. A razão da proibição abrange, sem dúvida, qualquer deles”.
Acs. STJ., de 21/12/2005, Proc. 04B4479; de 16/03/2011, Proc. 279/2002.E1.S1; de 09/07/2020, proc. 112/17.3T8PVZ.P1.S1