Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | EVA ALMEIDA | ||
Descritores: | INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INTERESSE PROCESSUAL EM AGIR UNIÃO DE FACTO AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/01/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Ocorre contradição entre a causa de pedir e o pedido, quando não existe entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão. II - No caso em apreço não ocorre qualquer contradição, pois, a causa de pedir é a coabitação entre os autores, como marido e mulher, desde 2011, recentemente formalizada através do casamento, celebrado no ano corrente da propositura desta acção (2022), e os autores pedem apenas que se reconheça tal união de facto, visto que o casamento não carece de ser reconhecido judicialmente. III - A ratio legis do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, concretamente dos nºs. 1 e 2 do art.º 14º, transcritos no texto, é a da atribuição da nacionalidade portuguesa ao estrangeiro que mantenha uma união estável, coabitando como marido e mulher, com cidadão nacional. IV- Se, mantendo a mera união de facto, poderia a autora mulher obter a nacionalidade do autor marido, por para tal reunir os requisitos, optando por com ele se casar, a ratio da norma impõe que não tenha a autora de aguardar por mais três anos para obter a nacionalidade do companheiro, agora marido. V - De qualquer forma, tal interpretação (se o tempo da união de facto se soma ao do casamento que se lhe segue, ou se releva quando é formalizada através do casamento) é questão que não compete aos Tribunais Judiciais decidir, pois o contencioso da nacionalidade é da competência dos tribunais administrativos e fiscais (artºs 61º a 63º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa). VI - Aos Tribunais Judiciais compete apenas o reconhecimento da existência da união de facto e, em nosso entender, produzida a pertinente prova, o Tribunal pode reconhecer, como peticionado, a existência da união de facto a partir de 2011 até à data da sua formalização através do casamento. VII - Pelo exposto, a P.I. não é inepta, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem se evidencia a falta de interesse em agir dos autores. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I – RELATÓRIO AA e BB, casados entre si, ele de nacionalidade portuguesa e ela natural da ... e de nacionalidade ..., ambos residentes na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., instauraram acção declarativa de reconhecimento da União de Facto (nos termos dos arts. 14º, n.º 2 e 4 do DL nº 237-A/2006), formulando o seguinte pedido: – Lhes seja reconhecida a existência de União de Facto entre ambos, desde o ano de 2011, para efeitos de obtenção da nacionalidade Portuguesa da Autora. Alegaram os seguintes factos: «1. O autor, nasceu em Portugal a .../.../1956, tem nacionalidade portuguesa, contudo emigrou para os ... quando era jovem. – cfr. Doc. ..., certidão de nascimento que se anexa. 2. A autora, nasceu em ..., ... a .../.../1967 e tem nacionalidade .... – cfr. Doc. ..., certidão de nascimento que se anexa. 3. No início do ano de 2011 os autores conheceram-se nos ..., e desde então viveram em condições análogas aos dos cônjuges, até abril de 2022, altura em que contraíram matrimónio civil. 4. Desde então, os autores vivem em comunhão de cama, mesa e habitação, como marido e mulher, mantendo uma relação familiar, social, afetiva e sexual em comum. 5. Os autores são considerados pelos vizinhos, familiares, amigos e outras pessoas que com eles se relacionam, como se de marido e mulher se tratassem. 6. Tendo-se dedicado um ao outro, trabalhando juntos, vivendo juntos, partilhando cama, mesa e habitação, contribuindo ambos para as despesas domésticas, permanecendo, cuidando-se, passeando como marido e mulher se tratassem. 7. Amparam-se e protegem-se um ao outro na sua vida quotidiana, auxiliam-se e assistem-se mutuamente em caso de doença. 8. Em tudo agem e comportam-se reciprocamente como se fossem marido e mulher, 9. Em 2018, ambos voltaram para Portugal, e começaram a residir na residência atual, como pode comprovar o pároco da freguesia ..., o Padre CC e o Presidente da Junta de freguesia ..., DD. – cfr. Doc. ... e ..., que se anexam. 10. Apesar de esporadicamente se deslocarem aos ..., onde viveram ao longo de anos e ainda têm alguns pertences móveis e imóveis. 11. Desde 31.08.2011 ambos têm uma conta de depósitos à ordem, e 12. Desde 25.08.2016 ambos têm contas poupança – por todos cfr. Doc. ..., que se anexa. 13. No dia 26.01.2018, compraram, os dois, um imóvel, sito em ..., onde habitualmente passam férias – cfr. Doc. ..., que se anexa. 14. A 22 de abril de 2022, os autores casaram-se na Conservatória do Registo Civil ... – cfr. Doc. ..., certidão de casamento que se anexa. 15. Ambos continuam a viver na Rua ..., dito lugar e freguesia ..., ..., que ambos compraram em regime de compropriedade, através de contrato compra e venda no dia 26.01.2022. – cfr. Doc. ... e ..., que se anexam. De Direito 16. O que os autores pretendem com a presente ação é o reconhecimento judicial da união de facto, conforme exigência da Lei da Nacionalidade – Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (atualizada por último pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 5 de julho, designadamente do artigo 3º, n.º 3. “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.” 17. E conforme o artigo 14º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 237-A/2006 de 14 de dezembro. “O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.” 18. Como refere o artigo 1º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio: “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.” 19. A prova da união de facto faz-se, de acordo, com o artigo 2º-A, n.º 2 da Lei n.º 7/2001, por: a. Declaração emitida pela junta de freguesia, conforme, Doc. ... já que se alude supra; b. Acompanhado de declaração sob compromisso de honra de ambos os membros da união de facto, de que vivem efetivamente em união de facto há mais de dois anos, que se anexa como Doc. ...0; c. E ainda, de cópia das certidões de nascimento de cada um dos unidos de facto, conforme, Doc. ... e ... a que se alude supra. 20. Efetivamente os autores já vivem em união de facto, como já se disse, há muito mais de três anos, mais precisamente vivem há 11 anos de forma ininterrupta. 21. A Autora pretende obter a nacionalidade Portuguesa e crê, s.m.o., reunir os pressupostos que a lei exige para obter tal nacionalidade.» * O Mº Pº foi citado em representação do Estado e não apresentou contestação. * Foi proferido o seguinte despacho:«Devidamente analisada a Petição Inicial, resulta da mesma que a alegada situação de união de facto entre os AA. já terá cessado, na medida em que os AA. terão casado. Porém, peticiona-se, a final, que seja reconhecido que os AA. vivem em união de facto desde o ano de 2011. Neste contexto, a fim de evitar que seja proferida qualquer decisão surpresa, decide-se convidar as partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de dez dias, sobre a eventual ineptidão da Petição Inicial, com fundamento no preceituado no artigo 186.º, n.º1 e 2, al. a) e b) do CPC. Notifique.» * Os autores vieram requerer:«(…) Nestes termos e no mais de direito sempre com o douto suprimento de V. Exª que desde já se invoca e agradece, deverá ser reconhecida a existência de União de Facto entre AA e BB, aqui autores, desde o ano de 2011 até à celebração do seu casamento, em 22 de abril de 2022, para efeitos de obtenção da nacionalidade Portuguesa da Autora.» * Proferiu-se despacho determinando a notificação ao Ministério Público deste requerimento, a fim de, querendo, se pronunciar, no prazo de dez dias.Nada disse. * No seguimento proferiu-se o seguinte despacho:– « Pelo exposto, decide-se julgar verificada a exceção dilatória de nulidade de todo o processado, por ineptidão da Petição Inicial (artigos 186.º, n.º1 e n.º2, al. a) e b), 577.º, al. b), 578.º e 590.º, n.º1 do CPC) e, em consequência, absolver da instância o R. Estado Português. Custas a cargo dos AA. (artigo 527.º, n.º1 e 2 do CPC), fixando-se o valor da causa em 30.000,01 euros, ao abrigo do disposto nos artigos 303.º, n.º1, 305.º e 306.º do CPC...» Da respectiva fundamentação consta: «Na sequência do convite que lhes foi dirigido, vieram os AA. requerer a retificação do pedido, com fundamento em manifesto lapso de escrita. O Ministério Público, notificado para o efeito, não se pronunciou a este propósito. Apreciando, importa salientar, em primeira linha, que decorre do preceituado no artigo 130.º do CPC que não é lícito realizar, no processo, atos inúteis. Neste pressuposto, considera-se que, ainda que fosse admissível a requerida retificação, em virtude de o lapso de escrita ser evidente, nos termos alegados, a presente ação não poderia prosseguir os seus ulteriores e regulares termos, com fundamento na falta de interesse em agir dos Autores. Efetivamente, a obtenção da nacionalidade portuguesa, em conformidade com o preceituado no artigo 14.º do DL n.º 26/2022, de 18 de março, depende da verificação de um dos pressupostos alternativos ali previstos. No caso de cidadão estrangeiro e nacional casados, a aquisição da nacionalidade depende de que se trate de casamento que dure há mais de três anos. Diversamente, quando o cidadão estrangeiro pretenda obter a nacionalidade com fundamento na união de facto com cidadão português, tal união de facto tem que ser atual, por referência à data em que é requerida a obtenção da nacionalidade, e perdurar há mais de três anos. Esta é a única interpretação compatível, desde logo, com o teor literal do artigo 14.º, n.º2 do DL n.º 26/2022, de 18 de março, e com o preceituado no artigo 12.º, n.º4 do DL n.º 26/2022, de 18 de março, norma na qual se impõe que o pedido de obtenção da nacionalidade seja instruído com uma declaração prestada pelo cidadão português, há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto. Ora, neste caso, faltará sempre esta último pressuposto. Os AA. não poderão declarar que se mantém a união de facto, pois a mesma cessou na data em que aqueles celebraram casamento entre si, e não está legalmente prevista a possibilidade de ser requerida a aquisição da nacionalidade com fundamento numa situação de união de facto que não seja atual. Em suma, a declarar-se que a Petição Inicial pudesse não ser inepta, admitindo-se a requerida retificação do pedido, tal ato constituiria seria inútil, pois sempre a presente ação naufragaria, por falta de interesse em agir dos AA., na medida em que o reconhecimento, neste momento, da união de facto que alegadamente existiu no passado, nos termos peticionados, não permitiria à A. obter a nacionalidade portuguesa, ao abrigo do disposto no artigo 12.º, n.º4 do DL n.º 26/2022, de 18 de março. Resta, portanto, manter inalterada a causa de pedir alegada e o pedido formulado e, nessa sequência, dispõe o artigo 186.º, n.º1 e 2 do CPC que “1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.2 - Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”. Ora, na Petição Inicial, os AA. alegam toda a factualidade que consta da Petição Inicial, relativa à sua vivência em comunhão de mesa, leito e habitação, como se tais factos fossem atuais, mas posteriormente acabam por clarificar que celebraram entre si casamento, em 22 de abril de 2022. Ainda assim, peticionam, a final, que se declare que os mesmos vivem atualmente em união de facto, desde o ano de 2011, para efeitos de obtenção de nacionalidade portuguesa da Autora. Julga-se, portanto, que o pedido formulado pelos AA. está em manifesta contradição com a causa de pedir, pois da causa de pedir decorre que, pelo menos desde 22 de abril de 2022, cessou a alegada situação de união de facto dos AA., que entre si celebraram casamento, o que inviabiliza que se declare que os AA. se encontram unidos de facto desde 2011, como peticionado.» * Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:«A) A presente acção destinava-se a que o tribunal reconhecesse a existência de uma união de facto (prévia ao casamento dos autores), para fins de obtenção, por parte da autora, da nacionalidade portuguesa. B) O tribunal julgou verificada a exceção dilatória de nulidade de todo o processado, por ineptidão da Petição Inicial (artigos 186.º, n.º1 e n.º2, al. a) e b), 577.º, al. b), 578.º e 590.º, n.º1 do CPC) e, em consequência, absolveu da instância o R. Estado Português. C) A pretensão dos autores é a de que seja reconhecida a existência de uma situação de união de facto desde o ano de 2011 e até 22 de Abril de 2022, por forma a que, juntando este período de vida em comum ao casamento actual, possa a Autora, ter como verificados os pressupostos de que depende a aquisição de nacionalidade Portuguesa, nos termos do artigo 3º n.º 3 da lei da Nacionalidade e que refere o seguinte: O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível. D) Foi esta a questão que de forma que nos parece cristalina, foi colocada ao Tribunal, não se conseguindo vislumbrar onde é que o tribunal conseguiu descortinar uma contradição entre o pedido e a causa de pedir e, consequentemente, julgar verificada a excepção de ineptidão da petição Inicial. E) Os autores alegaram factos que procuram demonstrar que, desde o ano de 2011, vivem em união de facto, como se de marido e mulher se tratasse, invocam existência de relação social, familiar, afectiva e sexual. F) Invocam ainda partilha de mesa e habitação e contribuição mútua para as despesas comuns de vida como casal e a aquisição de património comum, a assistência mútua e o facto de agirem em publico como qualquer casal. G) Referem ainda que, em Abril de 2022 decidiram casar, ou seja, formalizar algo já existente há cerca de 11 anos. H) O Ministério Publico, devidamente citado, não deduziu oposição, pelo que todos os factos alegados se devem ter como provados, dada a falta de oposição no prazo legal e a junção dos elementos documentais de que depende parte da prova. I) O reconhecimento da união de facto desde 2011 até Abril de 2022 será a conclusão logica dos factos alegados e que devem ser dados como provados. J) Sendo certo que, no caso, a relação não terminou em Abril de 2022, acabou foi por evoluir no sentido da formalização pela via do casamento civil. K) Não cremos que exista como contornar o facto de o pedido ser uma conclusão logica da causa de pedir invocada e, como tal, não ser possível ter como verificada qualquer contradição. L) No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelos autores, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido. M) No caso em apreço há nexo lógico entre o pedido e a causa de pedir invocada pelos recorrentes, o que poderia ocorrer, mas não se concede, é uma situação de improcedência e não uma situação de oposição entre o pedido e a causa de pedir. N) Se para efeitos de obtenção da nacionalidade Portuguesa, é necessário o casamento ou união de facto com mais de três anos com cidadão Português, a questão que se coloca é a da prova dessa situação. O) Se o casamento se comprova por efeitos da verificação do assento do casamento, já a união de facto apenas se comprova por decisão judicial que a reconheça. P) Se quer o casamento quer a união de facto com mais de 3 anos permitem cumprir o requisito de obtenção da nacionalidade, por maioria de razão, a conjugação dos dois também o permitirá, já que na prática ambas representam o mesmo. Q) No caso dos autos, e porque à actual situação de casamento, com menos de um ano, se deve juntar 11 anos de união de facto e que ambas, juntas, ultrapassam largamente o requisito, é fundamental o reconhecimento da situação de união de facto anterior ao casamento. R) Sob pena de, por força da celebração do casamento, se ter por interrompida a contagem do prazo de três anos, necessária à aquisição da nacionalidade e assim ter a autora que aguardar mais de dois anos para voltar a reunir as condições que já dispunha, se não tivesse casado. S) Esta interpretação, para além de injusta e ilegal, seria claramente violadora do princípio da protecção da confiança, da igualdade e da não discriminação, subjacentes à equiparação entre união de facto e casamento. T) Por tudo o exposto, consideramos que a decisão recorrida é ilegal, faz uma interpretação absurda dos factos e do direito aplicável e, como tal, deve ser revogada. Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, por força dessa procedência ser revogada a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos, tendo em vista a decisão de reconhecimento de união de facto pretendida.» * O Ministério Público respondeu, pugnando no sentido de que “o recurso deve ser julgado totalmente procedente e, por força dessa procedência ser revogada a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos, tendo em vista a decisão de reconhecimento de união de facto pretendida “. * A Mmª Sra. Juiz “a quo” pronunciou-se no sentido de que, “no que concerne à invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, não se tendo identificando qualquer questão que não tenha sido devidamente apreciada pelo Tribunal no âmbito da decisão concretamente proferida nestes autos, julga-se não verificada a invocada nulidade da sentença”.O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, foi-nos distribuído e por nós admitido o recurso. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC). As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que se resumem a apreciar: – Se a petição é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir. – Não o sendo, se os autores carecem de interesse em agir. III - FUNDAMENTOS DE FACTO Os factos com interesse para a apreciação do mérito do presente recurso são os que constam do relatório supra. IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO Na decisão recorrida entendeu-se, que, apesar de ser rectificável o lapso de escrita ou erro material constante do pedido, mesmo com tal rectificação a presente acção não poderia prosseguir os seus ulteriores e regulares termos, com fundamento na falta de interesse em agir dos Autores. Por isso, decidiu-se não proceder à requerida rectificação e que “(…) o pedido formulado pelos AA. está em manifesta contradição com a causa de pedir, pois da causa de pedir decorre que, pelo menos desde 22 de abril de 2022, cessou a alegada situação de união de facto dos AA., que entre si celebraram casamento, o que inviabiliza que se declare que os AA. se encontram unidos de facto desde 2011, como peticionado”. Apreciando. Nos termos do art.º 186º do CPC a ineptidão da petição inicial torna nulo todo o processado. Esclarece o nº 2 do citado normativo que a petição é inepta: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. No caso em apreço, o vício assacado é a contradição entre a causa de pedir e o pedido, na medida em que, embora os autores tenham alegado a união de facto desde 2011, também alegaram que casaram um com o outro no ano corrente da propositura da acção, por isso não seria possível declarar que vivem em união de facto desde 2011. A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, direito que não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir – o acto ou facto jurídico concreto em que o autor se baseia para formular o seu pedido, de que emerge o direito que se propõe fazer declarar. Tal como se refere no Ac. do STJ de 27-04-2017 (proc. nº 685/03.6TBPRG.G1.S1), in dgsi.pt., “(…) como elemento identificador da ação, o pedido é, na terminologia do artigo 581º, nº 3, do CPC, “o efeito jurídico que se pretende obter com a ação” Ocorre contradição entre a causa de pedir e o pedido, quando não existe entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão. Não gera a ineptidão da petição inicial a circunstância de a alegada causa de pedir, conexionada logicamente com o pedido, não ser bastante para alicerçar este, pois o que então se coloca é um problema de improcedência (cfr. entre muitos outros, os Acs. do S.T.J de 7-7-88 in BMJ 379º-592 e de 14-3-90 in A.J. 2º.-90; o Ac. do TRE de 7-4-83 in BMJ 328º.- 656)” e Ac do TCAS de 24-2-2005, proc. 06656/02, in www.dgsi.pt. No caso em apreço não ocorre qualquer contradição. Está alegado como causa de pedir a coabitação, como marido e mulher, desde 2011, recentemente formalizada através do casamento, celebrado no ano corrente da propositura desta acção (2022). Os autores pedem apenas que se reconheça a união de facto, pois o casamento não carece de ser reconhecido. Era até desnecessária a rectificação do pedido (união de facto desde 2011 até à data do casamento), pois o mesmo depreendia-se logicamente de texto que o antecede. Inexistindo qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir resta-nos o que na decisão recorrida se refere subsidiariamente, ou seja, a falta de interesse em agir, “na medida em que o reconhecimento, neste momento, da união de facto que alegadamente existiu no passado, nos termos peticionados, não permitiria à A. obter a nacionalidade portuguesa, ao abrigo do disposto no artigo 12.º, n.º4 do DL n.º 26/2022, de 18 de março”. Apreciando. O Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 43/2013, de 1 de Abril, 30-A/2015, de 27 de Fevereiro, e 71/2017, de 21 de Junho, na versão introduzida pelo referido DL n.º 26/2022, estabelece, no seu art.º 14º: Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade 1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com português, se, na constância do matrimónio, quiser adquirir a nacionalidade, deve declará-lo. 2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto. 3 - A declaração prevista no n.º 1 é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º 4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto. 5 - A declaração prevista na parte final do número anterior pode: a) Ser prestada presencial e verbalmente na Conservatória dos Registos Centrais, nas extensões desta conservatória, e, ainda, nas conservatórias do registo civil ou nos serviços consulares portugueses, sendo neste caso vertida em auto, sempre que possível em suporte eletrónico; ou b) Constar de documento assinado pelo membro da união de facto que seja português, contendo a indicação do número, data e entidade emitente do respetivo cartão de cidadão ou bilhete de identidade. Pretendeu o legislador que a aquisição da nacionalidade fosse obtida pelo cidadão estrangeiro que mantenha uma união conjugal estável com cidadão nacional (três anos de casamento) ou a tal equiparável (união de facto). A união de facto, tal como vem definida no art.º 1º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos. A ratio legis do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, concretamente dos nºs. 1 e 2 do art.º 14º, acima transcritos, é a da atribuição da nacionalidade ao estrangeiro que mantenha uma união estável, coabitando como marido e mulher, com cidadão nacional. Se essa união estável, num quadro que integre o conceito de união de facto, é formalizada através do casamento e se antes dessa formalização (casamento) já decorrera tempo suficiente para que a união de facto fosse reconhecida e permitisse a aquisição da nacionalidade, exigir agora que o casamento persista por três anos para que tal pedido de nacionalidade possa ser formalizado, não só contraria o fim prosseguido por tal Lei, como seria inconstitucional, na medida em que, neste caso, se estaria a discriminar quem optasse por se casar (artºs 13º e 36º da Constituição) – ou seja, mantendo a mera união de facto poderia a autora mulher obter a nacionalidade do companheiro, mas optando por com ele casar, mantendo em tudo a convivência anterior, deixaria de ter tal direito e teria de aguardar por mais três anos para obter a nacionalidade do companheiro, agora marido!. De qualquer forma, tal interpretação (se o tempo da união de facto se soma ao do casamento, que se lhe segue, ou se releva quando é formalizada através do casamento) é questão que não compete aos Tribunais Judiciais apreciar. Com efeito, a declaração de que se pretende adquirir a nacionalidade portuguesa ao abrigo do citado art.º 14º, nº 5, al. a), “é prestada presencial e verbalmente na Conservatória dos Registos Centrais, nas extensões desta conservatória, e, ainda, nas conservatórias do registo civil ou nos serviços consulares portugueses”, e o contencioso da nacionalidade é da competência dos tribunais administrativos e fiscais (artºs 61º a 63º). Aos Tribunais Judiciais compete apenas o reconhecimento da existência da união de facto. Em nosso entender, produzida a pertinente prova, o Tribunal pode reconhecer a existência da união de facto a partir de 2011 (ou outra data que resulte da factualidade provada), desde que mantida por mais de dois anos como estabelecido no art.º 1º nº2 da Lei de protecção da União de Facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio). Note-se, aliás, que o art.º 8º desta mesma Lei, que respeita à dissolução da união de facto, não contempla a hipótese do casamento entre os unidos de facto. Pelo exposto, não se evidencia a falta de interesse em agir dos autores. Consequentemente, não se verificando a ineptidão da Petição Inicial, nem a falta de interesse em agir dos autores, impõe-se revogar o decidido. V - DELIBERAÇÃO Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o despacho saneador na parte em que absolveu da instância o Réu Estado, determinando-se o prosseguimento da acção. Sem custas, já que nem os recorrentes nem o réu Estado deram causa à decisão revogada. Guimarães, 01-06-2023 Eva Almeida Ana Cristina Duarte Alexandra Rolim Mendes |