Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2194/20.0T8VNF.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: DEFEITOS
REPARAÇÃO
MORA DO CREDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A mora do credor (artigo 813º) tem consequências legalmente previstas (artºs 814º a 816º, do C. Civil), mas não a de extinguir a obrigação do devedor.
II. Subsistindo esta e verificando-se recusa, julgada ilegítima, da prestação oferecida integrante daquela mas nenhum efeito excepcional (impeditivo, modificativo ou extintivo) se tendo extraído na sentença proferida, que culminou na condenação, ainda assim, do devedor na referida prestação (realização de obras de eliminação de defeitos em empreitada), não procede o apelo deste no sentido de o desobrigar fundado apenas na dita recusa e na alegada persistência desta, uma vez que não impugna própria, directa e fundamentadamente aquele juízo condenatório.
III. Muito menos pode ter acolhimento a pretensão recursiva de que seja o credor judicialmente obrigado a aceitar a realização das obras sem observância das condições por ele exigidas e que a sentença entendeu ilegítimas e não justificativas da recusa.
IV. Não havendo também qualquer relação entre a não realização da prestação recusada e os danos em cuja indemnização a devedora foi condenada (resultantes de outros defeitos entretanto reparados), a invocação da persistência da recusa não fundamenta a revogação de tal condenação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO [[1]]

O autor AA intentou, em 21-04-2020, no Tribunal de ..., com Apoio Judiciário, acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum, contra a ré E... Unipessoal, Lda.

Formulou o pedido de que, na respectiva procedência, seja esta Sociedade condenada a:

“I- Realizar todas as obras necessárias, tendentes a reparar e eliminar os defeitos e/ou erros de construção descritos em 17, 19, 24, 28 e 29 da petição, para dotar o prédio do Autor da idoneidade e aptidão para o seu uso ordinário.
II- Eliminar os defeitos de construção elencados na petição, nomeadamente, realizar as obras que se vier a apurar serem necessárias na sequência de um plano de ação que a Ré deverá apresentar, elaborado por técnico especializado em reabilitação de edifícios, acompanhado por termo de responsabilidade passado por engenheiro civil, devidamente habilitado para tal, devendo ser conferido ao Autor o direito de indicar um fiscal de obra, que acompanhe e fiscalize as obras a realizar pelo Ré para a eliminação dos defeitos.
III- Substituir as madeiras do chão e rodapés danificados, pintar todo o interior da habitação, reparar o gesso danificado dos tetos;
IV- Realizar todas as obras de eliminação dos defeitos e reparação dos danos no prazo de 90 dias;
V- Indemnizar o Autor pela importância mensal de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) por cada mês de atraso para além do prazo fixado para a eliminação dos defeitos;
VI- Pagar ao Autor a importância de 5.000,00€ (cinco mil euros) para ressarcimento dos danos morais já sofridos;
VII- Pagar ao Autor a importância de 200,00€ (duzentos euros) por cada mês, desde a entrada desta petição e até a eliminação dos defeitos da moradia.
VIII- Pagar ao Autor todas as despesas que este venha a suportar no decorrer das obras, nomeadamente alojamento para si e agregado familiar, transporte de bens e despesas com peritos contratados, valor este cuja liquidação se relega para execução de Sentença.”

Invocou, como causa de pedir: incumprimento, pela ré, da obrigação de eliminar os defeitos surgidos, no exterior e no interior da sua casa de habitação, edificada por aquela, no âmbito de um contrato de empreitada.

Alegou, como fundamentos, que, não obstante terem sido reciprocamente cumpridas as obrigações contratuais principais (a construção foi concluída em Maio de 2015; o autor pagou integralmente o preço acordado) e a ré ter feito algumas reparações com vista a eliminar a humidade no interior, tais infiltrações agravaram-se, danificaram e inutilizaram pinturas, madeiras do chão e rodapés, criaram bolores e cheiros e afectaram a habitabilidade. Comunicados estes problemas, a ré prometeu repará-los mas foi adiando e só no final de 2019/princípio de 2020 interveio. Mesmo assim, em Janeiro desse ano, continuava a pingar água, havia superfícies pretas, bolores, madeiras danificadas e quedas de gesso do tecto, tudo devido a deficiências construtivas e ineficácia das reparações, sobretudo no acabamento e pintura das paredes exteriores. Face a nova denúncia efectuada por carta de 31-01-2020, a ré, após 03-02-2020, fez nova intervenção mas sem resultado.
Assim, subsistiam, no interior da moradia, aquando da propositura da acção, humidades nos tectos e paredes de todos os compartimentos (nas zonas mais próximas das fachadas exteriores), degradação dos acabamentos, estanhados, pinturas e madeiras. O autor solicitou a duas empresas orçamentos para eliminar estas deficiências e evitar o seu reaparecimento e das de outras que as intervenções realizadas não impediram.
A falta de salubridade da habitação tem colocado a saúde dos seus habitantes (autor, companheira e filha) em risco, dada a elevada humidade, cheiro a bolor, ar irrespirável no interior, paredes e tectos negros, aspecto desagradável, levando a que não convidem familiares e amigos para convívio, o que tem causado e continuará a causar profundo desgosto.
Juntou documentos.

A ré, contestando, impugnou parte da factualidade alegada, acrescentou que executou a construção em conformidade com o contrato e sem deficiências e sempre procedeu às reparações exigidas. Uma vez concluídas as levadas a cabo no exterior, informou o autor da sua intenção de reparar também o interior aplicando aí, para o efeito, todos os materiais necessários e finalizando com a pintura total.
Porém, o autor “recusou veementemente”, informou que o assunto estava entregue ao seu advogado e “não autorizava mais nenhum trabalho na habitação”. Disse ainda que a ré teria que “colocar uma habitação à disposição do autor” enquanto decorressem os trabalhos, sendo certo que, do orçamento e do caderno de encargos, nunca fizeram parte a colocação de pladur, soalho flutuante, ventilação no WC e outros.
Em suma, nunca se recusou a reparar quaisquer vícios e só resta reparar o interior, o que o autor lhe recusou fazer, pelo que deve ser absolvida do pedido.

Em resposta, o autor impugnou a versão da ré e salientou que as intervenções não resolveram completamente os problemas. Acrescentou que nunca impediu que aquela reparasse o interior da habitação, nem exigiu qualquer tipo de intervenção para o efeito. O que “pretendeu e pretende é a reparação do interior da habitação, como expressou à ré, face às condições em que habitava o prédio e o risco para a saúde do autor, da sua companheira e filha de 6 anos.”

Foi dispensada a audiência prévia, fixado o valor da causa, saneados tabelarmente os autos, identificado o objecto do processo (neste âmbito se referindo, além das reparações e indemnização: “…excecionando a ré que aqueles vícios resultam da circunstância da habitação estar exposta ao tempo e ter sido construída a uma cota elevada, sendo certo, ademais, que partes desses defeitos já se mostram reparados, ao passo que a reparação dos restantes, com o uso dos materiais e métodos acordados para a empreitada, foi rejeitada pelo autor”), enunciados os temas da prova (entre eles, “Recusa do autor em receber os trabalhos de reparação do interior que a ré se prontificou a executar, fazendo uso dos materiais e métodos acordados para a execução inicial da obra segundo o caderno de encargos”), apreciados os requerimentos probatórios e ordenada perícia.

Realizada a audiência final nos termos e com as formalidades narradas na acta, foi proferida, em 06-06-2022, a sentença que culminou na seguinte decisão:

“Por tudo o exposto, o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e, por consequência:
a) Condena a ré E... Unipessoal, Lda. a realizar as obras referidas em 36 e 37 dos factos provados, para eliminação dos defeitos a que se alude em 24 dos factos provados, de modo a dotar o prédio do autor da idoneidade e aptidão para o seu uso ordinário;
b) Mais condena a ré a realizar as obras referidas na alínea antecedente no prazo de 90 dias;
c) Condena, ainda a ré a pagar ao autor AA, a quantia de 5.000,00€ a título de ressarcimento dos danos morais sofridos;
d) Absolve a ré do demais peticionado.
Custas por autor e ré, na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 para o primeiro e 2/3 para a segunda.”

A ré apelou a que este Tribunal a revogue, alegando [[2]] e concluindo assim:
Conclusões [[3]]
15. O Autor intentou ação judicial para ver reparados os defeitos da sua habitação.
16. A R. por diversas vezes e sempre por sua iniciativa pretendeu proceder à reparação do interior da habitação.
17. O Autor nunca aceitou a reparação pois ainda hoje exige que a Ré lhe arrende uma casa para este morar enquanto as obras se realizam.
18. Assim entendemos que com esta atitude do Autor estamos perante Mora do credor nos termos do 813 do Código Civil, “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica atos necessários ao cumprimento da obrigação.”
Termos em que deve a sentença do Tribunal de 1ª Instancia ser revogada.
Nomeadamente na parte em que determina condenação do pagamento da indemnização por parte do Réu ao Autor.
Ainda ser considerado que estamos perante mora do credor e desta forma o Réu seja obrigado judicialmente a aceitar a realização das obras no interior da habitação por fases, sem necessidade de se ausentar da habitação.
Assim se fará justiça.”.

O autor não respondeu.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos autos, com efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.
Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.
O ponto de partida do recurso, por princípio, é sempre a própria decisão recorrida.
Com efeito, no nosso modelo (de reponderação e não de reexame da causa), por meio daquele reapreciam-se questões já julgadas na instância inferior e visa-se alterar o decidido, se e na medida em que afectado por invalidade ou por erro de julgamento.
As que, apesar de invocadas, aí não tenham sido apreciadas permanecerão fora do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem [[4]]. Tal como as que sejam suscitadas como novidade. [[5]]

Ora, no caso, importa apurar se:
a) Por haver mora do credor, deve ser revogada a sentença, nomeadamente a condenação no pagamento da indemnização.
b) O autor deve ser obrigado a aceitar as obras no interior por fases e sem necessidade de se ausentar da habitação.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Estão assentes, por não impugnada a respectiva decisão de 1ª Instância, os seguintes factos provados:
“1. A Ré é uma empresa que se dedica à construção de edifícios.
2. Em finais de 2011 o autor projetou construir um prédio urbano, em terreno a desanexar do prédio descrito sob o nº. número 799/2091030 – ....
3. Mostra-se descrito sob o n.º ...02, uma casa de habitação de ... e andar, com anexo destinado a garagem, prédio com a área total de 236,5 m2, que se encontra definitivamente registado a favor do autor, por doação.
4. Em 2012 o autor celebrou com a ré um contrato de empreitada para a construção de uma habitação, de ... e andar, a implantar na parcela de terreno que lhe foi doada.
5. Para tal o autor apresentou à ré um projeto elaborado para o efeito, tendo-se a ré comprometido a executar tal projeto, através dos trabalhos necessários e com perfeição e segurança.
6. Por tal contrato de empreitada a ré acordou com o autor construir, pelo preço de 65.000,00€, uma habitação de raiz, incluindo:
a) Movimentação de terras;
b) Colocação de sapatas, pilares e vigas em betão armado;
c) Tubo de dreno com manta glotextil e camada de brita;
d) Pilares de piso térreo e de teto;
e) Paredes exteriores em tijolo de 11, com caixa-de-ar e divisões em tijolo de 11;
f) Caixa-de-ar com isolamento em roofmate de 3cm;
isto quanto à estrutura;
7. Sendo que os acabamentos são os constantes do orçamento, constante do doc. ... junto com a petição inicial.
8. O orçamento está em nome da mãe do autor, com quem este vivia à data.
9. Sendo que o prédio construído pela ré foi pago pelo autor, através de 13 cheques de 5.000,00€ (cinco mil euros), emitidos sobre a conta número ...02 do antigo Banco 1....
10. Para o efeito, o autor contraiu empréstimo bancário de 55.000,00€, hipotecando a parcela de terreno que lhe fora doada.
11. A ré concluiu a habitação constante do contrato de empreitada em maio de 2015.
12. O prédio encontra-se inscrito nos Serviços de Finanças de ... sob o artigo urbano ...04, da freguesia ..., tendo por titular o autor.
13. Desde data não concretamente apurada mas anterior a 2018 começaram a aparecer algumas infiltrações e humidades no interior da habitação construída pela ré.
14. O autor informou a ré destas infiltrações, sendo que esta procedeu a algumas reparações, com vista à sua eliminação.
15. Porém, em data não concretamente apurada, as infiltrações agravaram-se.
16. Por carta datada de 03/05/2018, recebida pela ré em 04/05/2018, o mandatário do autor comunicou à ré que o prédio sofreu infiltrações, que a humidade estava a danificar e inutilizar pinturas, bem como as madeiras do chão e rodapé. Mais comunicou a existência de bolores e cheiros a afetar a habitabilidade do prédio, requerendo a urgência na eliminação dos defeitos.
17. A ré, verbalmente, prometeu reparar os defeitos, mas adiou sucessivamente a intervenção.
18. Só intervindo no final de 2019/início de 2020.
19. Não obstante a intervenção referida em 18, em janeiro de 2020 ainda pingava água em diversos cómodos, as paredes e tetos estavam pretos pela humidade, com bolores, as madeiras danificadas e parte o gesso do teto do ... caiu.
20. O mandatário do autor enviou carta registada à ré, datada de 31/01/2020, recebida por esta em 03/02/2020 a denunciar a situação referida em 19 e a sugerir a constituição de uma equipa técnica de 2 elementos para elaborar relatório com boas técnicas para a irradicação dos defeitos.
21. As patologias referidas em 19 são consequência de deficientes técnicas construtivas, em especial no acabamento das paredes exteriores (ceresite e rebocos) e da pintura com tintas inadequadas à exposição em que se encontram as fachadas.
22. Após 03/02/2020 a ré reabilitou todo o exterior da moradia, aplicando massa de vedação nos locais de fissuração, regularizando as superfícies areadas e procedendo à sua pintura total.
23. A intervenção referida em 22 fez cessar as infiltrações no interior da moradia.
24. Atualmente o interior da moradia apresenta humidades nos tetos e paredes de todos os compartimentos da habitação, nas zonais mais próximas das fachadas exteriores, com degradação dos materiais de acabamento, estanhados, pinturas e madeiras.
25. No seu exterior existe nova fissuração, em pequena escala.
26. O autor solicitou a duas empresas de construção que vistoriassem a sua habitação e que elaborassem uma descrição dos trabalhos técnicos a realizar para eliminar os danos já existentes e evitar o seu reaparecimento, apresentando montante dos custos e prazo para tal intervenção.
27. Uma dessas empresas, C..., Ldª., sediada na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., identificou que para a eliminação duradoura dos defeitos da habitação do autor, era necessário:
a) Aplicação de sistema de capoto, na versão de custo reduzido, incluindo sistema de fixação e colagem, barramento com rede de fibra e pintura nas fachadas lateral direita, fachada principal (fachadas, varanda e teto), fachada posterior e fachada lateral esquerda;
b) Execução de paredes e tetos interiores em pladur nos diferentes compartimentos dos dois pisos;
c) Substituição de apainelados de vão de portas e janelas, substituição do rodapé;
d) Substituição do soalho flutuante nos quartos;
e) Trabalhos de eletricista;
f) Pintura;
g) Execução de ventilação em WC;
h) Substituição de rufos;
i) Reparação de fissuras;
Apresentando um custo de reparação de 25.476,03€.
28. Também a empresa A... Sociedade Unipessoal, Ldª., sita em ... apresentou orçamento para o rol de intervenções para eliminar os defeitos da moradia do autor, com um custo de 24.900,00€.
29. O referido em 24 priva o autor de convidar familiares e amigos para convívio na habitação.
30. Tais factos causam desgosto ao autor.
31. A ré construiu a moradia com respeito pelo projeto de construção e pelo caderno de encargos.
32. O terreno onde foi edificada a moradia tem uma cota elevada.
33. Está exposta ao sol e às intempéries.
34. A fissuração exterior da moradia procede de assentamentos diferenciais do terreno de fundação.
35. A fissuração referida em 25 poderá vir a originar a entrada de humidade no interior da moradia, o que pode ser evitado se a tinta aplicada na pintura tiver características de elasticidade adequada.
36. Para a reparação do interior da moradia as partes danificadas dos revestimentos interiores das paredes e tetos deverão ser demolidas e reposto o acabamento estanhado, para levar a pintura final.
37. As partes compostas de madeira, apainelados, rodapés e pisos flutuantes que foram afetados pelas humidades, deverão ser substituídos e ou reparados, para adquirir a forma inicial.
38. Para a realização dos trabalhos referidos em 36 e 37 será necessário a intervenção das artes de trolha, eletricista e pintor.
39. Tais obras podem ser realizadas com a presença do agregado familiar do autor na moradia.
40. O custo dos trabalhos a realizar ronda os 10.000,00 € a 12.500,00 € (IVA incluído).
41. O sistema de capoto não fez parte do orçamentado, nem consta do caderno de encargos.
42. A colocação de tetos falsos em pladur não fez parte do orçamentado, nem consta do caderno de encargos.
43. Após a conclusão dos trabalhos exteriores referidos em 22 a ré propôs-se reparar o interior.
44. Proposta que o autor recusou.”

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Sustenta a apelante, resumindo-se as alegações por ela apresentadas, que há mora do credor, nos termos do artº 813º, do CC, pois, tendo querido e continuando a querer – já que “ainda presentemente tentou…”, diz ela – proceder à reparação do interior da moradia, “nunca tal lhe foi permitido” pelo autor, este “nunca aceitou” e “ainda hoje exige que a ré lhe arrende uma casa para morar enquanto as obras se realizam” e, além disso, “queria novamente a reparação do exterior”, pelo que “mais uma vez recusou”.

Como consequência dessa alegada mora, pretende:

a) A revogação da sentença, nomeadamente quanto à condenação no pagamento da indemnização;
b) Que o réu seja obrigado judicialmente a aceitar a realização das obras por fases, sem necessidade de se ausentar da habitação.

Ora bem.
O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação – artº 813º, CC.
Consequências daquela recusa da aceitação ou desta falta de colaboração, quando injustificadas e violadoras do dever de cooperação que sobre o credor impende (o de facilitar ao devedor o cumprimento pontual da prestação a seu cargo), são:
i) Atenuação da responsabilidade do devedor – artº 814º;
ii) Especial oneração do credor, em matéria de risco – artº 815º;
iii) Direito do devedor a indemnização pelos encargos e despesas a mais que a mora do credor lhe acarrete – artº 816º [[6]].
A mora do credor não extingue, portanto, a obrigação do devedor, a menos que, entretanto, esta se tenha tornado impossível, designadamente nos termos do nº 1, do artº 790º.
Ora, na contestação a ré excepcionou precisamente a recusa, pelo autor, da reparação, que alegou ter-lhe proposto, do interior da moradia.
Por isso mesmo, a questão foi – nos termos acima transcritos – incluída no objecto do processo oportunamente identificado e a respectiva factualidade enunciada entre os temas da prova pertinentemente selecionados.
Resultou efectivamente provado que, uma vez reabilitado todo o exterior da moradia (ponto 22), cessaram as infiltrações no seu interior (23).
Restou, neste, o problema persistente das humidades nos tectos e paredes de todos os compartimentos e estragos consequentes, cuja origem e produção obviamente remontam a período anterior à dita reabilitação (ponto 24).
A sentença, por isso, apenas reconheceu que, tendo até então, ou seja, até Fevereiro de 2020, a ré cumprido, maxime por via da reabilitação referida (22), a restante obrigação de reparação, “o autor tem direito à eliminação das patologias que perduram no interior” – precisamente as descritas no ponto 24.
Daí que, como referiu, “o direito à eliminação dos defeitos circunscreve-se, atualmente, à reparação do interior da moradia, direito esse que deverá ser reconhecido ao autor, devendo a ré ser condenada a realizar os trabalhos necessários à sua remoção, que sabemos ser[em] os elencados em 36 e 37 dos factos provados”, a saber:
“36. Para a reparação do interior da moradia as partes danificadas dos revestimentos interiores das paredes e tetos deverão ser demolidas e reposto o acabamento estanhado, para levar a pintura final.
37. As partes compostas de madeira, apainelados, rodapés e pisos flutuantes que foram afetados pelas humidades, deverão ser substituídos e ou reparados, para adquirir a forma inicial.”
Como epílogo, pronunciou a condenação da ré que, no dispositivo da sentença, consta das alíneas a) e b), acima transcritas: a realizar as obras referidas em 36 e 37 dos factos provados, para eliminação dos defeitos elencados no ponto 24, no prazo de 90 dias.
Significa isto que, não obstante o Tribunal a quo ter julgado provado que, realmente, “Após a conclusão dos trabalhos exteriores referidos em 22 a ré propôs-se reparar o interior” (ponto provado 43) mas “Proposta que o autor recusou” (44), nenhum efeito excepcional (impeditivo, modificativo ou, muito menos, extintivo), foi, na sentença, extraído de tal factualidade, à luz dos artigos 813º e seguintes, do CC, quanto a tal obrigação da empreiteira.
Isto apesar de também nela se ter considerado, por referência aos termos legais (Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril [[7]]), que o direito à eliminação de defeitos, circunscrito, no caso, à reparação do interior da moradia, “reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material (excluindo-se dele outras despesas como as reclamadas pelo autor a título de alojamento fora da moradia, transporte de bens e honorários de peritos contratados, que, ao demais, não se justificam, posto que demonstrado ficou que a reparação pode ser realizada com a presença do autor e dos seu agregado familiar na moradia”, conforme deflui do ponto provado 39.
Embora, julgando-se, assim, infundadas as condições pelo autor exigidas à ré para o cumprimento da prestação e, portanto, ilegítima a sua recusa em recebê-la sem que aquelas lhe fossem satisfeitas, o certo é que o Tribunal não deixou de condenar a sociedade empreiteira a realizar as obras de eliminação dos defeitos.
Ora, apesar de, na apelação, a recorrente continuar a esgrimir com a referida recusa, a invocar a esse propósito a norma relativa à mora (artº 813º) e a apelar genericamente à revogação in totum da sentença, o certo é que ela não ataca as premissas em que se baseou a condenação.
 Na verdade, nenhum fundamento, concreta e especificamente referido àqueles segmentos, ela construiu e alegou com vista a inverter o juízo subjacente à condenação proferida. Tendo-se decidido que a ré, apesar de ser injustificada a postura exigente do autor, ainda assim, está obrigada à reparação, nenhum efeito daquela ora se conexiona sequer com o modo ou o tempo de cumprimento desta nem nenhum pedido recursivo se formula como reflexo dela capaz de sustentar qualquer alteração da sentença a tal propósito.
 De resto, a atitude do autor não obsta, como parece pressupor-se, à persistência da obrigação da ré, nem esta sustenta – nem se vê que tal seja possível – como possa ela ser capaz de a eximir, definitivamente, dela.
É que, entre os apontados efeitos da mora do credor, nenhum existe que a desobrigue e liberte.
Como já se viu e se reitera, v.g., no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012 [[8]] “A mora do credor, traduzida na recusa de recebimento da prestação efectivamente devida, oferecida pelo devedor, não acarreta a extinção da obrigação correspondente, desencadeando apenas as consequências previstas nos artigos 814º a 816º do CC, designadamente o não vencimento de juros (artigo 814º, nº 2 do CC)”.
De resto, não tem qualquer sentido a pretensão de que, nesta sede recursiva, o autor “seja obrigado judicialmente a aceitar a realização das obras no interior da habitação por fases, sem necessidade de se ausentar da habitação”.
Como se expôs, a sentença negou-lhe tal pretensão. Aquele não reagiu.
Não tendo, pois, sido acolhidas as condições exigidas e, portanto, não tendo à ré sido imposta obrigação alguma com aquela relacionada, limitar-se-á ela a oferecer o cumprimento, nos termos decididos, sem necessidade de quaisquer cautelas a declarar positivamente pelo Tribunal – de resto, descabidas nesta sede – e a extrair e a invocar, na devida oportunidade, as respectivas consequências caso o autor persista em não aceitar a prestação ou em não cooperar para a sua realização.
Para além disso, avança a recorrente que a sentença deve ser revogada, “nomeadamente” quanto à condenação no pagamento da indemnização.
De facto, na alínea c) do Dispositivo, condenou-se a ré a pagar ao autor 5.000,00€ a título de ressarcimento dos danos morais sofridos.
Sucede que aí foi contemplada, nos termos que a seguir se poderão ver, a questão da mora do credor – termos estes, saliente-se, que a recorrente não afronta nem censura e de que, afinal de contas, resulta nada ter a ver a decidida compensação com a recusa, seja quanto à obrigação seja quanto ao seu montante, uma vez que o dano subjacente nem sequer se mostra relacionado com a concreta prestação ainda em falta.
Vejamos:
“Por fim, pretende o autor a condenação da ré no pagamento dos danos morais, passados e futuros, até à reparação.
Como se disse, o artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor confere o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo aplicáveis as regras gerais quanto à determinação da indemnização.
A este propósito, ficou demonstrado que o interior da moradia apresenta humidades nos tetos e paredes de todos os compartimentos da habitação, nas zonais mais próximas das fachadas exteriores, com degradação dos materiais de acabamento, estanhados, pinturas e madeiras (24). Por via disso, está o autor privado de convidar familiares e amigos para convívio na habitação, factos que lhe causam desgosto (29 e 30).
Perante a noção que de danos não patrimoniais é dada no artigo 496.º nº 1 do Código Civil, teremos de concluir que os sentimentos experienciados pelo autor não configuram simples incómodos ou contrariedades (que não justificariam a atribuição de uma indemnização). Como se escreveu no Acórdão do S. T. J., de 25/5/2007, Proc. n.º nº07A1187, disponível em www.dgsi.pt/jstj, “dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excecional”, mas também aquele que “sai da mediania que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade de uma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”.
Daí que, entendemos que os danos sofridos pelo autor merecem a tutela do direito.
[…]
Vertendo ao caso concreto, temos as anomalias no interior da habitação do autor como causa necessária e adequada dos danos não patrimoniais descritos, donde se conclui pela verificação do nexo de causalidade e, consequentemente, pela afirmação da obrigação de indemnizar a cargo da ré.
Tal indemnização, ou melhor dizendo, compensação, relativa aos danos não patrimoniais será fixada equitativamente pelo Tribunal nos termos previstos no artigo 496.º, n.º 3 do mesmo diploma (tendo em atenção, designadamente, as circunstâncias previstas no artigo 494.º do mesmo diploma).
Porém, ao contrário do peticionado pelo autor, cremos que apenas os danos morais sofridos desde o agravamento das infiltrações (ocorrido em data não concretamente apurada mas próxima de 2018) até à reparação do exterior da moradia (ocorrida em data não concretamente apurada do ano de 2020, após 03 de fevereiro) devem ser indemnizados.
Com efeito, demonstrou-se que a ré, após a reparação do exterior da fração, propôs-se reparar o interior, o que apenas não ocorreu, porquanto o autor recusou tal proposta (44 e 45).
Por conseguinte, não pode afastar-se a culpa do autor na produção dos referidos danos (cfr. artigo 570.º do CC), que, por comportamento seu – recusando a reparação – motivou a sua perduração.
Neste contexto, atendendo aos vícios da moradia, à respetiva duração até à recusa do autor da reparação do interior, ao tipo de privação a que o autor foi sujeito e à sua essencialidade para a vida humana, ao desgosto demonstrado, entendemos ser adequado e equitativo fixar a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor no valor de € 5.000,00.
Pelas razões supra aduzidas (culpa do lesado na produção do dano) entendemos não serem indemnizáveis os danos morais futuros peticionados.”
Deste enquadramento e face à exposta subsunção, resulta que a indemnização devida apenas foi considerada até ao momento em que a ré se propôs reparar o interior. Nenhuma relação ela tem com o interior nem, portanto, com o cumprimento, mais ou menos pontual, mais ou menos demorado, desta.
A circunstância de, então, o autor se ter recusado foi considerada justificativa, outrossim, de, a partir desse momento e em consequência da sua conduta, nenhuma responsabilidade pelos danos morais subsequentes poder ele exigir à ré.
Daí que não tendo sido considerados os danos sofridos a partir da ora brandida mora do autor/credor relativa à recusa da intervenção oferecida pela ré/apelante/devedora no interior da moradia, não tem esta razão para, com base no citado instituto, se livrar da obrigação em causa, no todo ou em parte.
Com o que e dado nenhum outro fundamento vir invocado em ordem a modificar a sentença, deverá esta ser confirmada e improceder o apelo à sua revogação.

 V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 30 de Novembro de 2022

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias


[1] Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
[2] Requerimento de interposição identificado no Citius como “Articulado superveniente”.
[3] Subsequentes, na peça, aos 14 parágrafos de alegações.
[4] Caso não seja arguida a nulidade com base em tal omissão de pronúncia e se não trate de matéria de conhecimento oficioso.
[5] Isto mesmo foi lembrado no Acórdão desta Relação de 07-10-2021, proferido no processo nº 886/19.5T8BRG.G1 (Vera Sottomayor).
[6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, 1990, páginas 154 e 155.
[7] Diploma que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.
[8] Processo nº 1207/09.0TBVIS.C1 (Teles Pereira).