Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2838/17.0T8BCL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: DOAÇÃO MODAL
INCUMPRIMENTO DO ENCARGO
DIREITOS DO DOADOR
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. É válida a cláusula modal que consagra o encargo dos donatários tratarem da doadora, na saúde e na doença, fornecendo esta os meios necessários a tal enquanto os seus proventos forem suficientes e, uma vez esgotados, serem aqueles suportados pelos donatários.

2. Se não for respeitado esse encargo, pode o doador exigir judicialmente o seu respeito ou, pedir a resolução da doação fundada no não cumprimento do encargo, esta, apenas, no caso desse direito lhe ser conferido, expressis verbis, pelo contrato (art. 966º, do Código Civil), podendo, ainda, desde que verificados os requisitos necessários - a provar pelo doador -, exercer o direito à revogação da doação, por ingratidão do donatário (cfr. art. 970º, 974º, 2034º e 2166º, todos daquele diploma legal).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

B. C., viúva, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra A. S., e M. R., todos com os sinais dos autos.

Peticiona a Autora que se declare anulada por revogação e de nenhum efeito a escritura de doação transcrita no ponto 16º da petição inicial e, consequentemente, que se ordene o cancelamento dos seguintes registos de aquisição: a favor do Réu A. S. e da Ré M. R., a que se refere a Ap. 2311 de 2016/06/16 da descrição nº 999/..., a favor da Ré M. R. a que se refere a Ap. 2312 de 2016/06/16 da descrição 1000/... e a favor da Ré M. R. a que se refere a Ap. 2312 de 2016/06/16 da descrição 840/....

Alegou, para o efeito, que após o óbito do marido, ficou sozinha, com 93 anos de idade, restando-lhe, como familiares próximos os seus sobrinhos, de entre os quais J. F. divorciado da aqui 2ª ré M. R., e pai do aqui 1º réu A. S..

Referiu que após o óbito do seu marido, o 1º réu começou a visitá-la com certa regularidade mostrando-se afectuoso para com esta, passando a levá-la a vários passeios, almoços e lanches. Com esta aproximação a Autora questionou o 1º réu se queria tomar conta de si, tratando dela em tudo que ela viesse a necessitar, o que este aceitou, diligenciando por acomodar a Autora na sua casa, e pela marcação da escritura de doação.

Assim, no dia 1 de Junho de 2016, os réus, levaram a Autora, ao Cartório Notarial, onde lavraram a escritura de doação cuja cópia se encontra junta a fls. 9vs a 11 dos autos.

Arguiu, de seguida, que em acto contínuo ao da escritura o comportamento do 1º réu e sua esposa mudou radicalmente, o afecto que até então exibira pela Autora, foi substituído por desprezo. Os passeios e saídas que eram antes frequentes, passaram a inexistir, ficando sempre a Autora em casa fechada. Chegou mesmo a ser expulsa de casa pelo 1º réu, e ainda pediu a este os € 40.000 em dinheiro que tinha levado consigo, recusando-se este, em tom agressivo e ameaçador, a entregar-lhe o dinheiro.

Assim, depois de expulsa da casa do 1º réu, sem as economias de uma vida de trabalho regressou a casa, passando a viver sozinha, de forma desumana.

Diz, ainda, que a referida escritura de doação não lhe foi lida, nem explicada, sendo-lhe entregue apenas a folha onde tinha de assinar. Se lhe fosse lida a escritura, a Autora nunca iria assinar, porque jamais queria dar os seus bens à 2ª ré, que já nem da sua família era.
*
Devidamente citados, os Réus contestaram.

Realizou-se a audiência de julgamento, e a final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, e absolveu os Réus dos pedidos contra si formulados.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a), 647º,1 todos do Código de Processo Civil.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

1º- A factualidade considerada assente pela Mm.ª Juiz a quo é suficiente para se verificar que a condição modal, expressamente consagrada na escritura de doação foi nitidamente violada, podendo a Recorrente revogar a doação então feita (vd. artigo 963º, 965º e 966º do CC).
2º- Os Recorridos abandonaram nitidamente a Recorrente, nunca mais tendo procurado a mesma depois de a Recorrente ter “saído” da casa dos Recorridos, consubstanciando acto de ingratidão tutelado legalmente (vd. artigo 970º e 974º).
3º- Urge dar cobro ao enriquecimento que os Recorridos gozarão por efeito do abandono da Recorrente ficando com os seus bens, mesmo estando obrigados a dele tratar na saúde e na doença até ao último dia de vida desta, o que não cumprem.

Os recorridos contra-alegaram, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª- A recorrente dispôs de determinados bens a favor dos Réus, para que estes dela cuidassem na saúde e na doença, mas com custos a cargo da mesma autora e na sua falta a cargo dos Réus.
2ª- Estes cumpriram a sua obrigação, tratando a Autora com o devido respeito e cuidados.
3ª- A mesma recorrente abandonou a casa dos Réus, onde se instalara, por sua própria vontade e sem motivo que o justificasse.
4ª- Apesar disso, o Réu A. S. ainda enviou duas cartas à Recorrente nas quadras festivas – juntas aos autos.
5ª- Aos Réus não era, nem poderia ser, exigida outra conduta, para além daquela que sempre tiveram para com a recorrente, a qual, frisa-se, nunca foi abandonada, maltratada e muito menos expulsa de casa.
6ª- Constando do art. 970º do Código Civil os factos ou motivos que permitem a cessação da doação, por revogação, em ponto nenhum dos autos e mais concretamente do que foi provado, se pode concluir ou ver que algum comportamento dos Réus integre tal situação.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir consiste em saber se os factos provados permitem a solução de direito pretendida pela autora/recorrente.

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1- A Autora foi casada com J. G. durante 65 anos, sendo que, desse matrimónio, não resultaram filhos.
2- O aludido matrimónio dissolveu-se em 15 de Julho de 2015, com o óbito de J. G..
3- A Autora viu-se desamparada e sozinha, com 93 anos de idade, sendo que apenas lhe restavam como familiares próximos os seus sobrinhos, de entre os quais J. F., divorciado da Ré M. R. e pai do Réu A. S..
4- Durante toda a vida conjugal da Autora com o seu falecido marido, estes verbalizaram vezes sem conta, perante familiares, amigos e vizinhos, que o seu património era destinado ao familiar que deles se ocupasse na sua velhice.
5- Enquanto o marido da Autora era vivo nunca nenhum sobrinho se disponibilizou a tomar conta dos tios, que já eram pessoas de idade avançada.
6- A Autora questionou o Réu A. S. se queria tomar conta de si, tratando-a em tudo que viesse necessitar, o que este acabou por aceitar.
7- A Autora impôs que na referida escritura de doação ficasse consignado que a doação era feita com a obrigação dos Réus tratarem dela, na saúde e na doença, fornecendo-lhe os meios necessários, por meio dos seus proventos enquanto suficientes, e uma vez esgotados seriam suportados pelos Réus.
8- No dia 1 de Junho de 2016, no Cartório Notarial do Lic. J. S., foi outorgada, pela Autora, na qualidade de primeira outorgantes, pela Ré M. R., na qualidade de segunda outorgante, e pelo Réu A. S., na qualidade de terceiro outorgante, uma escritura, denominada “Doações”, com o seguinte teor:

“(…)
Declarou a primeira outorgante:
Que, com reserva de usufruto pela doadora, pela presente escritura, faz as seguintes doações:

a) Aos segunda e terceiro outorgantes, doa em comum e partes iguais, o prédio urbano composto por casa de habitação de dois pavimentos, com logradouro, situado no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … (…) descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número … (…).
b) Á segunda outorgante, M. R., doa ainda os seguintes bens:

Número Um: Prédio rústico, composto pelo Terreno de cultura e ramada denominado “…”, situado no lugar ..., ..., Barcelos, inscrito na matriz predial sob o artigo … (…) e descrito na Conservatório do Registo Predial sob o número … (…).
Número Dois: prédio rústico composto pelo terreno de pinhal, eucaliptal e mato denominado de “Bouça da …”, situado no lugar ..., ..., Barcelos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … (…).

Que faz estas doações com a obrigação dos donatários tratarem dela doadora, na saúde e na doença, fornecendo a doadora os meios necessários para tal, enquanto os seus proventos forem suficientes, e uma vez esgotados serão suportados pelos donatários.
Declararam os segunda e terceira outorgantes:

Que aceitam estas doações, na parte qua a cada um diz respeito, nos termos exarados.(…).

9- Desde que regressou à sua casa, a Autora tem sido auxiliada por uma sobrinha, que dela cuida diariamente.
10- Desde que a Autora saiu da casa dos Réus, o Réu A. S. nunca mais a procurou para saber como esta estava, nem para a levar novamente para sua casa.
11- O Réu A. S. enviou, por duas vezes, cartas à Autora, em datas de festividades.
12- A Autora abandonou a casa dos Réus por vontade própria.
*
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

a) Logo após a Autora ficar sozinha, o 1º réu começou a visitar a Autora com certa regularidade mostrando-se afectuoso para com esta, passando a levar a Autora a vários passeios, almoços e lanches.
b) O 1º Réu imediatamente diligenciou por acomodar a Autora na sua casa e pela marcação da escritura de doação.
c) Quando a Autora se mudou para a casa do 1º réu, levou consigo uma elevada quantia em dinheiro, que guardava em casa - € 40.000 (quarenta mil euros).
d) A Autora estranhou a presença da Ré M. R. na referida escritura.
e) Em acto contínuo ao da escritura o comportamento do Réu A. S. e sua esposa mudou radicalmente, o afecto que até então exibira pela Autora, foi substituído por desprezo.
f) Sempre que falavam com a Autora era em tom de agressividade, fazendo a Autora sentir-se um estorvo na casa destes.
g) Cada vez que a Autora falava aos réus eles bruscamente respondiam que “se não tivesse bem que se pusesse”, ou “a porta da rua é serventia da casa” e “pra se por andar dali que tinha casa”.
h) Os passeios e saídas que eram antes frequentes, passaram a inexistir, ficando sempre a Autora em casa fechada.
i) A Autora sentia-se cada vez mais sozinha, passando os dias fechada no quarto a chorar, saindo só para fazer as refeições, para as quais era chamada pelo Réu A. S. ou sua esposa em tom rude e bruto.
j) A Autora viu-se assim envolvida em sentimentos de desilusão, solidão, tristeza, angustia, por ser tratada daquela forma pelo Réu A. S. e seus familiares.
m) Foi perante estes comportamentos contínuos de ingratidão do Réu A. S. e seus familiares, que a Autora numa das vezes que este a expulsou viu-se, de facto, obrigada a sair da casa deste.
n) Pelo que “fez as malas” e pediu ao Réu A. S. o seu dinheiro, que este tinha guardado em “local seguro” e que a Autora tinha levado consigo para cumprir a sua parte, de assegurar com os seus provimentos as despesas que esta viesse a necessitar.
o) Ao que este terá dito em tom bastante agressivo: “que dinheiro sua velha, não trouxe dinheiro nenhum e se dizes isso outra vez atiro-a por essas escadas abaixo”.
p) A Autora foi expulsa da casa do Réu A. S., sem as economias de uma vida de trabalho regressando para sua casa, passando a viver de forma desumana.
q) Foi nessas condições que uma sobrinha da Autora a encontrou em casa, apresentando sinais de fome, sujidade e até desorientação.
r) Foi já recomposta destes acontecimentos, que a Autora se apercebeu que a referida doação que tinha feito, não destinava os seus bens apenas ao Réu A. S., mas também à Ré M. R..
s) Este facto estarreceu-a por completo, porque nunca foi intenção da Autora doar à Ré M. R. nada que fosse seu, e também porque não era esta que ia tomar conta de si, mas sim o Réu A. S. e sua família.
t) A referida escritura de doação não foi lida, nem explicada à Autora, sendo-lhe entregue apenas a folha onde tinha de assinar.
u) Se lhe fosse lida a escritura, a Autora nunca iria assinar, porque jamais queria dar os seus bens à Ré M. R., que já nem da sua família era.
v) Depois de sair da casa dos Réus, estes procuraram que a Autora arrepiasse caminho, procurando saber do seu estado, passando com frequência frente à sua casa, inteirando-se da situação.

IV
Conhecendo do recurso.

A questão central a decidir é a de saber se a autora, com base nos factos provados, tem direito a obter a “declaração de anulação, por revogação, da escritura de doação pela qual transmitiu os seus bens aos réus.

A sentença do Tribunal de primeira instância decidiu que não, por considerar que, atentos os factos provados, nenhum comportamento dos Réus se apurou susceptível de integrar a situação que, ao abrigo do artigo 970º, do Código Civil, permite a cessação do contrato de doação por revogação.

A recorrente tem entendimento contrário, e pergunta a esta Relação se o facto nº 10 dado como provado: “desde que a autora saiu de casa dos réus, o réu A. S. nunca mais a procurou para saber como esta estava, nem para a levar novamente para a sua casa”, é ou não motivo para se operar a resolução da doação pela doadora, com base na condição (modal) expressa no contrato / escritura de doação.

Vejamos.

Sabemos que no contrato de doação outorgado entre a autora, enquanto doadora, e os réus, enquanto donatários, consta a seguinte cláusula:

que (a autora) faz estas doações com a obrigação dos donatários tratarem dela doadora, na saúde e na doença, fornecendo a doadora os meios necessários para tal, enquanto os seus proventos forem suficientes, e uma vez esgotados serão suportados pelos donatários”.

E declararam os segundo e terceira outorgantes: “que aceitam estas doações, na parte que a cada um diz respeito, nos termos exarados (…)”.

Ora, vamos começar pelo óbvio: nos termos do art. 940º,1 CC, “Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.

Retenhamos que, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (em anotação a este artigo), são 3 os requisitos exigidos no art. 940º para que exista uma doação: a) disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja a atribuição patrimonial sem correspectivo; b) diminuição do património do doador; c) espírito de liberalidade”.

E, mais adiante, explicando este regime: “forçoso é que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspectivo de natureza patrimonial. Pode existir, porém, um correspectivo de natureza moral, sem que o acto perca a sua gratuitidade, assim como podem existir encargos impostos ao donatário (cláusulas modais), que limitem o valor da liberalidade”.

E ainda: “exige-se, por último, o espírito de liberalidade por parte do disponente. A liberalidade implica, em regra, a ideia de generosidade ou espontaneidade, oposta à de necessidade ou de dever. Aquele que cumpre, por exemplo, uma obrigação natural, não faz uma doação. (…) O espírito de liberalidade é um elemento subjectivo, sempre dependente do estado psicológico do doador, ao contrário da gratuitidade que depende da estrutura típica de cada um dos negócios jurídicos, tal como aparecem regulados na lei”.

No caso em apreço, da leitura do contrato é possível surpreender todos os elementos essenciais do contrato de doação, e nada foi alegado em sentido contrário por qualquer das parte. Podemos pois prosseguir na certeza que o contrato celebrado entre as partes foi mesmo uma doação, feita pela autora, portanto, com espírito de liberalidade.

E será compatível com o referido espírito de liberalidade a cláusula supra referida, segundo a qual a autora “faz estas doações com a obrigação dos donatários tratarem dela doadora, na saúde e na doença, fornecendo a doadora os meios necessários para tal, enquanto os seus proventos forem suficientes, e uma vez esgotados serão suportados pelos donatários” ?

Temos de ir procurar a resposta ao art. 963º CC: as doações podem ser oneradas com encargos (nº 1). Mas o donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado (nº 2).

Mais uma vez recorrendo ao auxílio dos autores supra citados: “entende-se por cláusula modal a que impõe ao donatário um ónus ou encargo. As doações modais tinham o nome, no Código de 1867, de onerosas (art. 1454, § 3), designação infeliz, pela confusão a que podia dar lugar. Sugeria na verdade que o encargo transformava em oneroso o contrato gratuito, quando o modo é, por conceito, incompatível com a ideia de onerosidade. Afirmando explicitamente que as doações podem ser oneradas com encargos, o art. 963º, nº 1 quer precisamente realçar o facto de a atribuição donativa não deixar de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir o encargo de certa prestação”.

Temos pois que é válida a supra referida cláusula modal, que consagra a obrigação dos donatários tratarem da doadora, na saúde e na doença, fornecendo a doadora os meios necessários para tal, enquanto os seus proventos forem suficientes, e uma vez esgotados serão suportados pelos donatários. Trata-se cláusula modal de conteúdo misto, ou seja, que combina um elemento moral (o tratar da doadora) com um elemento patrimonial (suportando as despesas, se necessário).

E, ainda em abstracto, quid iuris quando os encargos modais não foram cumpridos pelo donatário a eles obrigado ?

Responde em primeiro lugar o art. 965º: “Na doação modal, tanto o doador, ou os seus herdeiros, como quaisquer interessados têm legitimidade para exigir do donatário, ou dos seus herdeiros, o cumprimento dos encargos”.

Mas pode ainda o doador, ou os seus herdeiros, pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato (art. 966º CC).

Ao doador que considera que os donatários incumpriram os encargos inseridos no contrato sob a forma de cláusula modal, abre-se assim uma alternativa: exigir do donatário o cumprimento dos encargos, ou então, pedir a resolução da doação, com fundamento no não cumprimento dos encargos.

Já vimos que no caso destes autos a doadora optou pela segunda alternativa. Porém, este direito de pedir a resolução, nos termos da lei, tem de estar previsto no contrato. Esta exigência legal é incontroversa: só pode o doador exigir a resolução do contrato de doação se essa possibilidade lhe for atribuída, expressis verbis, pelo contrato. E da leitura do mesmo (escritura de fls. 9v a 11) verifica-se que nenhuma referência é feita a essa possibilidade de resolução do contrato.

Assim, e independentemente de saber se dos factos provados se pode extrair ou não a conclusão de que o encargo foi incumprido pelos réus, podemos dar como adquirido que à autora não assiste o direito à resolução do contrato. Mas mesmo que tivesse ficado previsto no contrato esse mesmo direito à resolução por incumprimento dos encargos, a verdade é que atentos os factos provados e não provados, não se poderia decidir nesse sentido: o facto que a autora erige em demonstrativo do incumprimento do encargo, só por si não chega, porque ficou igualmente provado que a autora saiu de casa dos réus por vontade própria. E nada se apurou sobre que circunstâncias teriam levado a autora a ter essa vontade, a qual em si mesma é incompreensível para alguém com a idade da autora e com as suas necessárias debilidades.

A esta solução legal não é certamente alheia a ideia de liberalidade que permeia e justifica esta figura contratual: não faria sentido que houvesse um verdadeiro sinalagma entre a prestação do doador (disposição gratuita de bens ou direitos) e a do donatário (encargo modal), pois isso poderia conflituar com a essência da figura da doação. Existe essa possibilidade, mas tem de ser expressamente clausulada por ambas as partes.

Assim por esta via não assiste à autora o direito de revogação que ela veio pretender exercer.

Poder-se-ia olhar também para o que dispõe o art. 970º CC: “as doações são revogáveis por ingratidão do donatário”.

E acrescenta o art. 974º: “a doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação”.

O legislador faz aqui uma remissão para os artigos 2034º e 2166º CC.

Nos termos do primeiro, “carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade:

a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado;
b) O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
c) O que por meio de dolo ou coacção induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu;
d) O que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos”.

Basta olhar de relance para os factos provados para perceber que nenhuma destas circunstâncias que geram indignidade se verificam in casu.

E sobre a figura da deserdação, reza assim o art. 2166º:

“1. O autor da sucessão pode em testamento, com expressa declaração da causa, deserdar o herdeiro legitimário, privando-o da legítima, quando se verifique alguma das seguintes ocorrências:

a) Ter sido o sucessível condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;
b) Ter sido o sucessível condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;
c) Ter o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos”.

Também é pacífico que nada disto se verifica no caso dos autos.

Se formos ler com atenção as alegações de recurso da recorrente, verificamos que ela vem de novo alegar um conjunto de factos que em seu entender significaria que a obrigação de cuidar não foi cumprida pelos recorridos, afirmando coisas como “desde que a recorrente passou a morar com os recorridos o comportamento destes alterou-se bruscamente, passando a tratar a recorrente com desdém e desprezo”, e “para as refeições era chamada com tom rude e áspero”.

Não é imediatamente perceptível o que pretende a recorrente com esta nova alegação. Ela sabe que todos esses factos (e outros do mesmo jaez) que ela tinha alegado na primeira instância foram dados como não provados, e não reagiu contra isso, uma vez que não impugnou a decisão da matéria de facto. Vir agora alegar esses factos não provados, como se os mesmos pudessem ser tidos em conta na decisão, é no mínimo, peculiar.

Assim, e para terminar, numa breve síntese: à autora não assiste o direito a resolver o contrato de doação com fundamento na alegação de incumprimento pelos donatários dos encargos que ficaram a constar do contrato, pois esse direito à resolução não ficou expressamente previsto no contrato. E atentos os factos provados, é pacífico que não ficaram demonstradas nestes autos nenhuma das circunstâncias que poderiam levar à indignidade ou deserdação dos donatários, e daí, por remissão legal, à revogação da doação por ingratidão.

Assim, bem andou a sentença recorrida quando, fazendo esta mesma análise, concluiu que a autora não tinha demonstrado ter o direito a que se arrogara.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 17/1/2019

Relator (Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)