Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3872/18.9T8STS.G2
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INCONSTITUCIONALIDADE DO DESPACHO RECORRIDO
PRESTAÇÃO SOCIAL PARA A INCLUSÃO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A decisão que negou uma pretensão por esta estar prejudicada por decisão prévia transitada em julgado (arts.205º da Constituição da República, arts.619º ss do C. P. Civil) não viola as normas constitucionais dos arts.13º, 18º e 71º ou 72º da Constituição da República Portuguesa.
2. A prestação social para a inclusão, prevista e regulada no DL n.º 126-A/2017, de 06 de outubro, na redação atualizada: não corresponde a um rendimento que, em abstrato, tenha sido excluído, pela sua natureza e finalidade, do rendimento passível de ser considerado disponível e a entregar ao fiduciário no período de cessão de rendimentos, como contrapartida de responsabilidade do insolvente pela exoneração do passivo restante (como o que foi feito na al. a) do nº3 do art.239º do CIRE em relação aos créditos cedidos ou dados em penhor previstos no art.115º do CIRE); pode, indiretamente, vir a considerar-se, em concreto, que o seu valor corresponde a um valor indisponível, por ser necessário para a satisfação das despesas determinadas e concretas previstas na al. b) do nº3 do art.239 do CIRE, desde que seja pedido o aumento do rendimento indisponível face à decisão anterior e seja alegada matéria nova e superveniente quanto às necessidades e despesas acrescidas em relação àquelas ponderadas na decisão que decidiu a exoneração do passivo restante e fixou o rendimento disponível a ceder ao fiduciário.
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte:

ACÓRDÃO

No processo de insolvência singular de L. C.:
1. O requerente pediu a exoneração do passivo restante na petição inicial do processo, a 01.12.2018, declarando encontrar-se a cumprir pena de prisão, beneficiar de uma pensão de reforma por invalidez e reunir todos os requisitos para essa concessão, nos termos do art.236º do CIRE.
2. Por sentença de 27.12.2018 foi declarada a insolvência do requerente e foi relegada a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para depois da assembleia para a apreciação do relatório.
3. Depois de ter sido encerrado o processo de insolvência a 18.05.2020, a 18.09.2020 foi proferido despacho de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante (face à prisão do insolvente e à impossibilidade de cumprir as exigências do período de cessão), despacho este revogado por acórdão da Relação de Guimarães de 04.03.2021 que determinou o prosseguimento dos autos, por ter entendido:
«I. Os fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração, enunciados no nº 1 do art. 238º do CIRE, são taxativos – os motivos de recusa da exoneração que acrescem aos enunciados enquanto motivo de indeferimento liminar, mormente os estabelecidos na alínea a) do nº 1 do art. 243º do CIRE não podem, em rigor, ver a sua aferição antecipada para o momento da prolação do despacho inicial. II. Ainda que fosse de aceitar a possibilidade de uma causa de recusa da exoneração poder basear o indeferimento liminar do pedido, não se justificaria o indeferimento liminar com fundamento na impossibilidade prática do insolvente cumprir as obrigações prescritas nas alíneas b) e c) do nº 4 do art. 239º do CIRE, em decorrência da sua situação de reclusão, em cumprimento de pena de prisão, ponderando que: - tal qual não constitui fundamento para recusa da exoneração a não obtenção, durante o período da cessão, de qualquer rendimento disponível para ser distribuído pelos credores, também não é fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante a inexistência de património e/ou de qualquer rendimento do devedor no momento em que se apresenta à insolvência ou em que é proferido o despacho liminar, - independentemente de curar se tal impossibilidade (decorrente da reclusão) poderia ser-lhe imputada a título de culpa ou ainda de apurar se a omissão na observância da imposição prescrita (de exercer actividade laboral ou de, activamente, procurar trabalho) determinaria a inviabilidade de satisfação dos créditos (só em tais circunstâncias ocorre motivo para recusa da exoneração), certo é que a reclusão do insolvente, em cumprimento de pena de prisão, não lhe determina qualquer impossibilidade prática ao exercício de trabalho remunerado.».
4. A 20.05.2021 foi proferido despacho a convidar o insolvente a atualizar a sua situação económica, nos seguintes termos:
«Verificando que, por decisão de 09.10.2020, foi concedida liberdade condicional ao ora Insolvente, determino se notifique este para, no prazo de dez dias, esclarecer sobre a sua actual condição pessoal e situação socioeconómica, devendo juntar documentos comprovativos dos seus rendimentos e das suas despesas.»
5. A 07.06.2021 o insolvente respondeu nos seguintes termos:
«1. O Requerente encontra-se de facto em liberdade condicional e com residência na freguesia de ... - Carrazeda de Ansiães, conforme consta dos autos, em casa da sua mãe, viúva, aposentada, contribuindo dentro das suas parcas possibilidades, para algumas das despesas da casa, nomeadamente, Luz, televisão e telecomunicações, água e gás, alimentação…
2. O Requerente é aposentado por invalidez, auferindo de uma reforma no montante de apenas € 388,22 - conforme Documento que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos.
3. Invalidez essa que se consubstancia numa incapacidade de 80%, e mediante a qual aufere da Seg. Social o Insolvente de um complemento por dependência, no montante de € 105,90 – Conforme documento que também de junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos.
4. Destes montantes, o Insolvente despende mensalmente da quantia de € 84,00 pelo apoio domiciliário/lar/centro de dia, prestado pelo Centro Social da sua área de residência e de cerca de € 200 mensais em alimentação, higiene, vestuário, medicação, telecomunicações, luz – Cf. Alguns documentos que se juntam.
5. Quantias referentes, portanto, às despesas habituais de uma pessoa média e sua habitação.
Termos em que, considerando o ora exposto V. Exa. doutamente suprirá e em conformidade decidirá,».
6. A 23.06.2021 foi proferido despacho sobre a exoneração do passivo restante, no qual consta a seguinte fundamentação de facto e a decisão de direito:
«Encontrando-se o Insolvente aposentado por invalidez, auferindo de uma reforma no montante de apenas € 388,22, a que acresce um complemento por dependência, no montante de € 105,90, por incapacidade de 80% de que padece (conforme declaração do Centro Nacional de Pensões e atestado médico de incapacidade multiusos juntos), vivendo em casa da sua mãe, viúva, aposentada, contribuindo, dentro das suas possibilidades, para algumas das despesas com consumos domésticos, como electricidade, televisão e telecomunicações (conforme facturas juntas) e, concede-se, com alimentação e despendendo mensalmente a quantia de € 84,00 pelo apoio prestado pelo Centro Social Paroquial de ... (conforme recibo junto), e não se olvidando jamais que o insolvente é um devedor e a exoneração do passivo restante é uma oportunidade que se dá àquele de começar do zero depois de ter feito, no período da cessão, todos os esforços para satisfazer os direitos dos credores, que após o referido período verão para sempre insatisfeitos os seus créditos, e salvaguardando-se sempre o mínimo indispensável para aquele viver condignamente, afigura-se adequado, atenta a ausência de despesas avultadas e incomportáveis no seu sustento (em face das únicas que foram demonstradas documentalmente), fixar a título de rendimento disponível a ceder à Fiduciária a parte dos rendimentos que o Insolvente aufere excedente à retribuição mínima mensal garantida (vulgo, salário mínimo nacional) e, naturalmente, os montantes referentes a subsídios de férias e natal na parte excedente ao referido limite, que terão de ser contabilizados juntamente com os rendimentos mensais nos meses em que aqueles forem percebidos.
Em face do exposto, tendo, ainda, o Insolvente declarado expressamente que estão preenchidos os requisitos de que depende a exoneração e que se obriga a observar todas as condições que a exoneração envolve, ao abrigo do preceituado no artigo 239.º, n.º 1, do C.I.R.E., julgo totalmente procedente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela Insolvente e, por conseguinte, decido:
a) Ordenar que se dê de imediato início ao procedimento de exoneração;
b) Nomear como fiduciária P. S. a Administradora da Insolvência já nomeada no âmbito dos presentes autos;
c) Determinar que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do Insolvente, definido nos termos do artigo 239.º, n.º 3, do C.I.R.E. e fixado em d), se considera cedido à Fiduciária nomeada;
d) Determinar que o Insolvente proceda à entrega mensal à Fiduciária, a título de rendimento disponível, a parte dos rendimentos que aufere excedente à retribuição mínima mensal garantida que, neste momento, e até 31 de Dezembro de 2021, está fixada pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31.121, em € 665,00, abrangendo os montantes referentes a subsídios de férias e natal nos meses em que os auferir2;
e) Advertir o Insolvente de que fica ainda obrigado, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração, a:
. Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufiram, por qualquer título, e a informar o Tribunal e a Fiduciária sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
. Entregar imediatamente à Fiduciária, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
. Informar o Tribunal e a Fiduciária de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência;
. Não fazer quaisquer pagamentos aos Credores da insolvência a não ser através da Fiduciária e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses Credores;
f) Determinar que, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, a cessão do rendimento disponível do Insolvente prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou, por qualquer forma, limitem a cessão de bens ou rendimentos daquele;
g) Advertir a Fiduciária ora nomeada de que, no período da cessão, fica obrigada a agir em conformidade com o preceituado nos artigos 240.º e 241.º do C.I.R.E.;
h) Advertir o Insolvente e os Credores de que a remuneração da Fiduciária nomeada e o reembolso das suas despesas constitui encargo do Insolvente, sem prejuízo do preceituado no artigo 241.º, n.º 1, alíneas b) e c), do C.I.R.E..
Notifique.».
7. A 25.03.2022 o insolvente apresentou o seguinte requerimento:
«1. Por Despacho de Exoneração do Passivo de 23.06.2021, sob a v/ Referência nº 3872/18.9T8STS foi determinado ao insolvente a entrega mensal à fiduciária, “a título de rendimento disponível, a parte dos rendimentos que aufere excedente à retribuição mínima mensal garantida…, abrangendo os montantes referentes a subsídios de férias e natal nos meses em que os auferir”.
2. O Requerente é aposentado por invalidez, dependente de terceiros, auferindo de uma reforma no montante de apenas € 402,20 (valor que já inclui o complemento de dependência) - conforme Documento 1 que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos.
3. Invalidez essa que se consubstancia numa incapacidade definitiva de 80%, e que lhe confere o direito a auferir da “Prestação social para a inclusão”, no montante de € 275,30 – Conforme documento 2 que também de junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos.
4. Destes montantes, o Insolvente despende mensalmente da quantia de € 84,00 pelo apoio domiciliário/lar/centro de dia, prestado pelo Centro Social da sua área de residência e de cerca de todas as despesas mensais em alimentação, higiene, vestuário, medicação, telecomunicações, energia…
5. Quantias referentes, portanto, às despesas habituais de uma pessoa média e sua habitação.
6. Interpelado pela Sra Administradora de Insolvência para entrega de montantes apurados para o primeiro período de cessão, tendo em conta também os montantes auferidos a título de PSI.
7. A prestação social para a inclusão (PSI) apoia pessoas com deficiência, promovendo a sua autonomia e inclusão social.
8. Para terem direito a este apoio, os beneficiários devem ter uma deficiência que resulte num grau de incapacidade igual ou superior a 60%, ou 80%, se receberem pensão de invalidez, o que é caso do aqui Insolvente.
9. Tal subsídio é atribuído aos beneficiários com deficiência para apoio nas suas necessidades especiais, que no caso do Insolvente, dada as suas limitações, são muitas, como se deverá compreender.
10. O Insolvente sofre de Metoxoplasmose cerebral (que provoca tipicamente nos pacientes alteração do estado mental, convulsões, coma, febre e, algumas vezes, deficits neurológicos focais, com perda motora ou sensorial, paralisia de par craniano, alterações visuais e convulsões focais…); sofre de duas hérnias discais e encontra-se quase totalmente paralisado da parte direita do seu corpo.
11. O Insolvente não pode conduzir nem consegue utilizar transportes públicos…
12. O Insolvente não é autónomo e necessita do apoio de terceiros para as suas necessidades básicas da vida, nomeadamente alimentação, higiene, deslocações para o centro de dia e para consultas ou quaisquer outras.
13. Ora, a componente-base de PSI destina-se precisamente a compensar os encargos adicionais que estas pessoas têm face a pessoas sem deficiência e a combater a pobreza e os suportar encargos específicos relacionados com a situação de deficiência dos seus beneficiários.
14. O PSI é um subsídio singelo, não contemplando duplicação de natal ou férias, sendo imprescindível ao Insolvente precisamente para fazer face àquelas despesas extraordinárias que não têm as pessoas ditas “normais”, ou seja, não portadoras de deficiência ou de invalidez extrema, como é o caso do insolvente.
15. Razão pela qual se entende que o valor atribuído a título de PSI ao Insolvente não deverá ser tido em conta pela Sra. Fiduciária, no cálculo do rendimento disponível.
16. Sendo que deverá ser tão somente considerada para o efeito a sua pensão de invalidez, no montante actual de apenas € 402.20 (quatrocentos e dois euros e vinte cêntimos).
17. Apesar de a lei não o dizer expressamente, ao contrário do processo executivo, que fixa o limite mínimo da penhorabilidade, em valor igual ao salário mínimo nacional, no processo de insolvência apenas se faz referência ao conceito indeterminado do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e agregado familiar (artigo 239.º, n.º 3, al. b)-(i) e (iii) do CIRE).
18. “O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…”” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2016, proferido no processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1)
19. Apela-se, portanto, ao conceito de sustento minimamente digno do devedor e ao princípio da dignidade humana, assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do insolvente L. C., nos termos supra expostos.

Termos em que, considerando o ora exposto V. Exa. doutamente suprirá e em conformidade decidirá,
A) que o valor atribuído a título de PSI ao Insolvente não deverá ser tido em conta pela Sra Fiduciária, no cálculo do rendimento disponível, devendo ser tão somente considerada para o efeito a sua pensão de invalidez, no montante actual de€ 402.20 (quatrocentos e dois euros e vinte cêntimos);
B) que sejam refeitos pela Sra Fiduciária os cálculos dos montantes que o Insolvente tem a entregar à fidúcia, pelo ultimo período de cessão calculado, tendo em conta o supra peticionado.».

8. A 01.04.2022 o credor Banco … apresentou contraditório, no qual declarou:
«2. O aqui Credor opõe-se ao pedido formulado pelo Insolvente, com os seguintes fundamentos:
3. Aquando da prolação do Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante datado de 23-06-2021, foi fixado a título de rendimento disponível “a parte dos rendimentos que aufere excedente à retribuição mínima mensal garantida que, neste momento, e até 31 de Dezembro de 2021, está fixada pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31.121, em € 665,00, abrangendo os montantes referentes a subsídios de férias e natal nos meses em que os auferir”;
4. Na fixação do rendimento disponível, o Tribunal já teve em consideração os rendimentos e despesas do Insolvente.
5. O despacho em causa não foi objeto de recurso pelo Insolvente, tendo transitado em julgado.
6. Pelos motivos supra indicados, requer-se a V. Exa. que seja indeferido o requerido pelo Insolvente.».
9. A 04.04.2022 foi proferido o seguinte despacho:
«Atento que o despacho inicial de exoneração do passivo restante datado de 23-06-2021, foi onde se fixou o rendimento disponível transitou em julgado, indefere-se o requerido.
Notifique.».
10. O insolvente recorreu do despacho referido em I, apresentando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso vem interposto do Despacho proferido pelo Tribunal a quo de Indeferimento do Requerimento do Insolvente que no qual se requer que o subsídio de que o Insolvente aufere a título prestação social para a inclusão (PSI) não seja considerado para efeitos de cálculo do rendimento disponível do Recorrente.
2. Salvo o devido respeito que nos merece a opinião e ciência jurídica do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, afigura-se ao recorrente que o referido despacho não poderá manter-se, pois que, além de ferida de inconstitucionalidade, o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da concreta e real situação ocorrida.
3. Na verdade, o despacho proferido pelo Tribunal a quo além de não apreciar os factos de forma escorreita e justa, encontra-se ferido de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos números 1 e 2 do art. 13º, do n.º 2 do art. 18.º e do nº 2 do art. 72º, todos da CRP.
4. À data da sua declaração de Insolvência, o Requerente não beneficiava daquela Prestação Social para a Inclusão (PSI), actualmente no montante de € 275,30, porque ainda não reunia o requisito de 80% de incapacidade e por se encontrar detido no E. P. de Bragança.
5. De onde saiu em Abril de 2020, tendo começado a auferir do PSI apenas no final de 2020, após junta médica que lhe atribuiu 80% de incapacidade, em 18.11.2020 – Tudo cf. Documento junto aos autos.
6. O Requerente sofre de uma doença degenerativa designada de “Metoxoplamose cerebral”, que é uma doença que provoca tipicamente nos pacientes alteração do estado mental, convulsões, coma, febre e, algumas vezes, deficits neurológicos focais, com perda motora ou sensorial, paralisia de par craniano, alterações visuais e convulsões focais…); sofre ainda de duas hérnias discais e encontra-se quase totalmente paralisado da parte direita do seu corpo.
7. O Recorrente é, como já referido, aposentado por invalidez, dependente de terceiros, auferindo de uma reforma no montante de apenas € 402,20 - valor que já inclui o complemento de dependência e foi este complemento que foi tido em conta aquando do despacho de exoneração do passivo restante e não o agora em causa PSI!
8. O Recorrente despende mensalmente da quantia de pelo menos € 84,00 pelo apoio domiciliário/lar/centro de dia, prestado pelo Centro Social da sua área de residência suportanto ainda, naturalmente, todas as restantes despesas mensais em alimentação, higiene, limpeza, vestuário, medicação, telecomunicações, energia/gás, correspondentes, portanto, às despesas habituais de uma pessoa média e sua habitação.
9. Foi o Recorrente recentemente interpelado pela Sra Administradora de Insolvência para entrega de montantes apurados para o primeiro período de cessão, tendo sido tidos em conta também os montantes auferidos a título de PSI.
10. Posição com a qual se discorda, dado que a PSI apoia pessoas com deficiência, promovendo a sua autonomia e inclusão social.
11. Para dela beneficiarem, os deve existir uma deficiência que resulte num grau de incapacidade igual ou superior a 60%, ou 80%, se receberem pensão de invalidez (caso do Recorrente), sendo-lhes atribuído para apoio nas suas necessidades especiais, que no caso, dada as suas limitações do Recorrente, são muitas, como é fácil compreender.
12. O Recorrente não pode conduzir nem consegue utilizar transportes públicos… Não é autónomo e necessita do apoio de terceiros para as suas necessidades básicas da vida, nomeadamente alimentação, higiene, deslocações para o centro de dia e para consultas ou quaisquer outras.
13. O PSI destina-se precisamente a compensar os encargos adicionais que estas pessoas têm face a pessoas sem deficiência e a combater a pobreza e os suportar encargos específicos relacionados com a situação de deficiência dos seus beneficiários.
14. Trata-se de um subsídio singelo (não contempla subsídio de Natal/férias), sendo imprescindível ao Insolvente precisamente para fazer face àquelas despesas extraordinárias que não têm as pessoas não portadoras de deficiência ou de invalidez extrema, como é o caso do insolvente.
15. Razão pela qual se entende que o valor atribuído a título de PSI ao Insolvente não deverá ser tido em conta pela Sra. Fiduciária, no cálculo do rendimento disponível.
16. Devendo ser tão somente considerada para o efeito a sua pensão de invalidez, já de si muito parca, no montante actual de apenas € 402.20 (quatrocentos e dois euros e vinte cêntimos), que já inclui o complemento de dependência.
17. No processo de insolvência apenas se faz referência ao conceito indeterminado do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e agregado familiar (artigo 239.º, n.º 3, al. b)-(i) e (iii) do CIRE).
18. No entanto, conforme refere acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2016, proferido no processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1: “O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustente minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…”
19. Devendo aqui apelar-se ao conceito de sustento minimamente digno do devedor ao princípio da dignidade humana, assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do insolvente L. C., ora Recorrente, nos termos supra expostos.
20. Afigura-se-nos assim como indubitável que o Douto Despacho do Tribunal a quo, ora em crise, está ferido de um vício na apreciação das normas supra invocada bem como dos factos concretos, e também de inconstitucionalidade, designadamente por violação dos artigos 13.º, n.º 2, parte final, 18.º, n.º 2, e 71º, n. 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
21. A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para o insolvente, quando comparada com um prejuízo muito residual ou nulo dos credores.
22. Na verdade, apenas o Estado Português poderá sair em prejuízo, muito residual, repita-se, dados os parcos rendimentos do Recorrente, uma vez que o pouco que este viesse a ter que entregar à fidúcia jamais chegaria aos credores, por se mostrar notoriamente insuficiente para assegurar as custas e despesas processuais, nomeadamente honorários da Ilustre Administradora de Insolvência.
23. Ora, se o próprio Estado Português, por intermédio do IPSS, IP., atribuiu protecção jurídica ao ora Recorrente, isentando de todos os encargos com o processo, não teria já a expectativa de ser ressarcido de tais encargos, dada a situação de reclusão à altura do Recorrente, bem como a sua situação de invalidez e rendimentos auferidos por comparação das condições existentes na altura em foi declarado Insolvente com as que passou a dispor em virtude do agravamento do seu estado de deficiência e com vista a colmatar um acréscimo de necessidades do Recorrente em virtude dessa mesma deficiência.
24. Devendo, portanto, por todo o exposto e normas invocadas, a decisão do Douto Tribunal recorrido, sem dúvida alguma, ser substituída por outra que determine que o subsídio de que o Insolvente aufere a título “prestação social para a inclusão” (PSI) não seja considerado para efeitos de cálculo do rendimento disponível pela Senhora Fiduciária.

TERMOS EM QUE DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, DEVE O DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DETERMINE QUE O SUBSÍDIO AUFERIDO A TÍTULO “PRESTAÇÃO SOCIAL PARA A INCLUSÃO” (ATRIBUÍDO EM VIRTUDE DE UM GRAU DE INCAPACIDADE DE 80%) NÃO SEJA CONSIDERADO PARA EFEITOS DE CÁLCULO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL.
ASSIM, SERÁ FEITA, COMO SEMPRE, INTEIRA E SÃ
JUSTIÇA!!!».

11. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo:
«Por despacho de 23-06-2021 o Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Cível 1, determinou que o Insolvente procedesse à entrega mensal à Fiduciária, a título de rendimento disponível, a parte dos rendimentos que aufere excedente à retribuição mínima mensal garantida que, neste momento, e até 31 de Dezembro de 2021, está fixada pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31.121, em € 665,00, abrangendo os montantes referentes a subsídios de férias e natal nos meses em que os auferir.
Apenas em 25-03-2022 veio o Recorrente requerer ao referido Tribunal que o valor atribuído a título de PSI ao Insolvente não fosse tido em conta pela Sra. Fiduciária, no cálculo do rendimento disponível, requerendo que fosse somente considerada para o efeito a sua pensão de invalidez, no montante de € 402.20 (quatrocentos e dois euros e vinte cêntimos).
Sucede que o despacho que fixou o rendimento disponível, datado de 23-06-2021, não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado e, por tal razão, fixou, com força de caso julgado, o rendimento disponível a ser cedido a fiduciário.
“O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário.
Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 231514/11.3YIPRT.C1., disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/a6d14e34dfc8bdab80257ee600388863?OpenDocument.
Assim sendo, não estando em causa, uma alteração superveniente das circunstâncias, a decisão que fixou o rendimento disponível, transitada em julgado, é imutável.
Em conclusão, atento o trânsito em julgado da decisão que fixou o rendimento disponível, o Ministério Público entende que o despacho recorrido não padece de qualquer erro de aplicação ou interpretação de normas de direito, devendo, em consequência, o recurso interposto ser considerado totalmente improcedente.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se o douto despacho recorrido, fazendo-se, assim, Justiça.».
11. Foi admitido o recurso de apelação na 1ª instância e recebido o mesmo nesta Relação.
12. Colheram-se os vistos.

II- Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.

Definem-se, como questões a decidir:
1. Se o despacho recorrido está ferido de inconstitucionalidade, nos termos dos arts.13º/1 e 2, 18º/2 e 72º da Constituição da República Portuguesa (conclusões 2, 3, 20).
2. Se é juridicamente relevante para a obtenção das pretensões do recorrente de revogação da decisão recorrida e de determinação que a «prestação social para a inclusão» não seja considerada para efeitos do cálculo do rendimento disponível» (conclusão 24 e no pedido): a apreciação do estado e das necessidades do recorrente, tal como da data da concessão da prestação social para a inclusão (conclusões 4 a 20, 23); a ponderação entre o prejuízo do recorrente e o benefício nulo ou diminuto dos credores (conclusão 21 e 22).

III. Fundamentação:

Atender-se-á, como matéria de facto provada, aos atos processuais documentados nos autos e referidos em I supra.

1. Arguições de inconstitucionalidade da decisão recorrida:

O despacho recorrido de 04.04.2022 indeferiu liminarmente o pedido do insolvente/ recorrente (de que a prestação social para a inclusão não fosse considerada no cálculo do rendimento disponível e que para este efeito fosse apenas considerada para o efeito da sua pensão de invalidez de € 402, 20), com base no trânsito em julgado do despacho de 23.06.2021 (que fixara o rendimento acima do qual se deveria entender estar disponível para entrega à fidúcia), e sem apreciar os fundamentos materiais de fundo do pedido (prejudicados face ao fundamento utilizado).
O recorrente invocou que o despacho recorrido, que estava ferido de inconstitucionalidade, nos termos dos arts.13º/1 e 2, 18º/2 e 72º da Constituição da República Portuguesa (conclusões 2, 3, 20), sem explicar em que medida estas normas e os direitos, interesses ou proibições nestas previstas estavam violadas.
Impõe-se apreciar a arguição, de acordo com o regime de direito aplicável.
Por um lado, o fundamento de indeferimento do despacho recorrido, seja ou não acertado, remete para a eficácia e a obrigatoriedade de prévia decisão judicial transitada em julgado, que prejudicaria a apreciação material pedida.
Nos termos do art.205º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «Decisões dos tribunais», prescreve-se: «1. (…) 2. As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. 3. A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.».
Por sua vez, a lei ordinária, nesta decorrência, define que a sentença que decida a relação material controvertida, que não seja passível de recurso ordinário ou de reclamação e tenha transitada em julgado (art.628º do C. P. Civil), fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do C. P. Civil para o caso julgado e a litispendência, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts.696º do C. P. Civil (art.619º do C. P. Civil) e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado (art.729º do C. P. Civil).
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)» (1), manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil:
«Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)» (2).
Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior (3).
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos.
«Entre as mesmas partes mas com objetos diferenciados, entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado). (4) »
Este efeito «admite a produção de decisões de mérito sobre objetos materiais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão» (5).
Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objeto posterior (6).
Por outro lado, o fundamento do indeferimento, que não apreciou os fundamentos materiais do pedido face ao fundamento do trânsito em julgado da decisão, não viola as normas constitucionais dos arts.13º, 18º e 72º da Constituição da República Portuguesa, cuja razão de violação também não foi explicada pelo recorrente.
De facto, a definitividade de decisões judiciais, com génese constitucional e com desenvolvido na legislação ordinária, não colide com qualquer um dos princípios gerais dos arts.13º e 18º da Constituição da República Portuguesa prescritos. Não há violação do art. 13º, sob a epígrafe «Princípio da igualdade» («1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»), pois todos os cidadãos estão sujeitos aos efeitos do caso julgado das decisões judiciais, sendo que decisão recorrida não denegou qualquer direito ao recorrente face à sua situação de deficiência (ainda que esta que se considere integrada nas proibições do art.13º/2 da CRP, face ao art.71º/1 da CRP). Não há violação do art. 18º, sob a epígrafe «Força jurídica» («1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. (…)»), uma vez que a definitividade de uma decisão, que poderia ter sido atacada pelo recorrente no prazo de recurso, não corresponde a qualquer restrição de um direito, liberdade e garantia (prescrito nos arts.24º a 57º da Constituição da República Portuguesa).
Por sua vez, a mesma decisão não é apta a violar os direitos e deveres sociais do Estado: quer o expressamente invocado no art. 72º da CRP sob a epígrafe «Terceira idade» («1. As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social. 2. A política de terceira idade engloba medidas de carácter económico, social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade.»), inaplicável desde logo ao recorrente uma vez que este nasceu em 1969 e não é idoso; quer o art.71º da CRP, sob a epígrafe «Cidadãos portadores de deficiência», caso o recorrente o tivesse querido invocar («1. Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados. 2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efetiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores. 3. O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência.»). De facto, estes deveres do Estado são essencialmente programáticos, nomeadamente no que se refere às implicações que geram na produção da legislação ordinária. Todavia, ainda que o art.71º/1 tenha uma inegável dimensão preceptiva, esta refere-se sobretudo, como refere Jorge Miranda e Rui Medeiros, à consequência «que os cidadãos portadores de deficiência não podem ser privados de direitos para cujo exercício não estejam incapacitados» (mesmo que, «sendo possível a separação entre a titularidade e o exercício do direito», a norma não exclua «que os cidadãos portadores de deficiência possam ser titulares de direitos que não sejam capazes de exercer por si, pessoal e livremente.» (7)), o que não está colocado em causa na decisão proferida e recorrida, que não admitiu a pretensão face ao trânsito em julgado de decisão prévia, em relação à qual o insolvente/recorrente não recorreu.
Assim, a decisão recorrida, face ao fundamento, não violou qualquer um dos preceitos constitucionais invocados pelo recorrente.

2. Arguições de falta de apreciação dos fundamentos de forma escorreita e justa:

O recorrente defendeu que a decisão não apreciou de forma justa e escorreita os fundamentos alegados para pedir a não consideração da prestação social de inclusão no cálculo do rendimento disponível.
Para esta apreciação, importa apreciar a decisão que concedeu a exoneração do passivo restante ao insolvente e o requerimento de 25.03.2022 indeferido na decisão recorrida.
A decisão de concessão ao insolvente de exoneração do passivo restante de 23.06.2021, proferida nos termos e com as obrigações do art.239º do CIRE, referida e parcialmente transcrita em I-6 supra:
a) Fixou, de acordo com a leitura dos seus efeitos pela negativa e pela positiva: o rendimento indisponível do insolvente no valor da retribuição mínima garantida (que em 2021 tinha o valor de € 665, 00 face ao DL nº109-A/2020, de 31.12. e que em 2022 teve o valor de € 705, 00, face à aprovação feita pelo DL nº109-B/2021); e o rendimento disponível, a entregar mensalmente ao fiduciário, no valor que excedesse essa retribuição mínima garantida («abrangendo os montantes referentes a subsídios de férias e de natal nos meses em que os auferiu»).
b) Baseou-se para o efeito, na fundamentação que ponderou os rendimentos e as despesas de facto e de direito, nos próprios factos alegados pelo previamente pelo insolvente no requerimento de 20.05.2021 referido em I-5 supra, no qual este: identificou-se como estando aposentado por invalidez e como residente com a sua mãe, viúva e aposentada; contabilizou os seus rendimentos como os de uma pensão mensal de € 388, 22 e um complemente de dependência de € 105, 90; contabilizou as suas despesas apenas no valor global de cerca de € 284, 00 mensais (€ 84, 00 de remuneração do apoio domiciliário/lar/centro de dia da sua área de residência e de cerca € 200, 00 mensais de contributo para a sua alimentação, higiene, vestuário, medicação, telecomunicações, luz).
Esta decisão, não tendo sido impugnada por recurso e tendo transitado em julgado, tornou-se imodificável face aos pressupostos julgados, nos termos do art.619º/1 do C. P. Civil («1 - Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. »), explicados em III-1. supra, e sem prejuízo das possibilidades de revisão do valor de rendimento indisponível e disponível por alteração de circunstâncias, nos termos do art.619º/2 do C. P. Civil («2 - Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.»), conjugado com o art.239º/3-b)-iii) do CIRE, referidas infra.
Perante esta decisão, importa analisar o requerimento de 25.03.2022, referido em I-7 supra, e decidido na decisão recorrida de I-8 supra, no que se refere ao pedido e seus fundamentos.
Numa primeira ordem de análise do requerimento de 25.03.2022, verifica-se que o insolvente/recorrente não pediu a revisão do valor do “rendimento indisponível” e do valor do “rendimento disponível” a entregar ao fiduciário, com base em alteração superveniente das circunstâncias, como seria o meio apropriado de revisão da decisão.
De facto, e por um lado, de acordo com as regras gerais e especiais, o insolvente poderia ter suscitado a revisão do rendimento necessário para satisfazer as despesas protegidas pela lei no art.239º/3 do CIR e com o limite na mesma previsto, o que não fez.
Na decisão de exoneração do passivo restante, é relevante para achar o “rendimento indisponível”, a excluir do rendimento disponível a entregar ao fiduciário no período de cessão de rendimentos, nos termos do art.239º/3-b) do CIRE, o «que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.».
Ora, de acordo com as regras gerais, os efeitos do trânsito em julgado de uma decisão não prejudicam a sua alteração, nos casos previstos e mediante alteração de circunstâncias: no capítulo dos efeitos da sentença e na norma sobre o valor da sentença transitada em julgado, prescreve-se « (…) se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação» (art.619º/2 do C. P. Civil); no capítulo sobre a extinção da instância e na norma específica da renovação da instância prescreve-se «1. Quando haja lugar a cessação ou alteração da obrigação alimentar judicialmente fixada, é o respetivo pedido deduzido como dependência da causa principal, seguindo-se, com as adaptações necessárias, os termos desta, e considerando-se renovada a instância.2 O disposto no número anterior é aplicável aos casos análogos, em que a decisão proferida acerca de uma obrigação duradoura possa ser alterada em função de circunstâncias supervenientes ao trânsito em julgado que careçam de ser judicialmente apreciadas.»
Por sua vez, de acordo com o regime específico da exoneração do passivo restante, o art.239º/3-b)- iii) do CIRE, quando refere as despesas atendíveis a satisfazer pelo rendimento indisponível, prevê a possibilidade de revisão das mesmas e, nessa medida, consequentemente, admite implicitamente a revisão daquele rendimento, quando prescreve «Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.».
Todavia, por outro lado, ainda que o insolvente tivesse pedido essa revisão do rendimento disponível e indisponível no requerimento de 25.03.2022, referido em I- 7 supra, não alegou factos de ocorrência superveniente à decisão de 23.06.2021, baseada em factos de 07.06.2021, tendo em conta:
a) Que manteve a alegação: da disponibilidade de rendimentos decorrente da aposentação por invalidez e do complemento, embora tenha realizado uma contabilização diferente da soma dos valores dos mesmos (considerou que ambos os valores somavam o valor de € 402, 20), em relação à realizada na decisão de 23.06.2021 (que considerou que dispunha do valor de € 388, 22 de pensão, acrescido do valor de € 105, 90 de complemento), que não impugnou e transitou em julgado; das despesas qualitativas alegadas no requerimento de 07.06.2021 e da quantificação do valor da remuneração de € 84, 00 do centro de dia.
b) Que, em referência à sua incapacidade de 80% já alegada a 07.06.2021, limitou-se: a explicitar as suas consequências, sem alegar necessidades e despesas novas em relação àquelas que existiam a 07.06.2021; a alegar, pela primeira vez, que recebe desde o final do ano de 2020 uma prestação social para a inclusão, atualmente no valor mensal de € 275, 30, após lhe ter sido atribuída 80% de incapacidade na junta médica de 18.11.2020, prestação esta que corresponde a matéria de facto anterior à decisão de 23.06.2021 e não posterior à mesma.
Por fim, ainda que tivesse pedido a revisão com base em factos supervenientes, os factos especiais que poderiam determinar o aumento do rendimento indisponível para satisfação das despesas previstas pela lei e a redução do rendimento disponível a entregar ao fiduciário, seriam o aumento das suas despesas e do seu agregado familiar, não invocadas no seu requerimento. De facto, nos termos do art.239º/3-b) do CIRE, são relevantes para achar o “rendimento indisponível”, que deve ser excluído daquele que se determinar dever ser entregue ao fiduciário como rendimento disponível, necessidades e despesas previstas por lei (o «que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»).
Numa segunda ordem de análise do requerimento de 25.03.2022, verifica-se que o insolvente/aqui recorrente pediu apenas que não se considerasse no rendimento disponível a prestação social para a inclusão recebida desde o final de 2020.
Ora, este requerimento, com este estrito fundamento abstrato, não tem qualquer fundamento legal para ser satisfeito.

Por um lado, no regime especial do art.239º do CIRE o nº3 prevê que se incluem no rendimento disponível todos os rendimentos à exceção daqueles taxativamente tipificados na respetiva norma. De facto, nos termos desta norma:
«3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.» (sublinhado nosso).
Ora, a prestação social para a inclusão, prevista e regulada no DL n.º 126-A/2017, de 06 de outubro, na redação atualizada (que, define e regulamenta: a proteção na eventualidade de encargos no domínio da deficiência, no âmbito do subsistema de proteção familiar, visando compensar os encargos acrescidos no domínio da deficiência, com vista a promover a autonomia e inclusão social da pessoa com deficiência, nos termos do art.1º/2-a) e art.2º/1 do diploma; a eventualidade de insuficiência de recursos das pessoas com deficiência, no âmbito do subsistema de solidariedade, visando combater a pobreza das pessoas com deficiência, , nos termos do art.1º/2-b) e art.2º/2 do diploma):
a) Não corresponde a um rendimento que, em abstrato, tenha sido excluído, pela sua natureza e finalidade, do rendimento passível de ser considerado disponível e a entregar ao fiduciário no período de cessão de rendimentos, como contrapartida de responsabilidade do insolvente pela exoneração do passivo restante. Esta exclusão em abstrato foi feita apenas em relação aos créditos cedidos ou dados em penhor previstos no art.115º do CIRE, ex vi da al. a) do nº3 do art.239º do CIRE).
b) Poderia, indiretamente, vir a considerar-se, em concreto, que o seu valor corresponderia a um valor indisponível, por ser necessário para a satisfação das despesas determinadas e concretas previstas na al. b) do nº3 do art.239 do CIRE. Todavia, esta matéria nova e superveniente (das necessidades e despesas acrescidas àquelas ponderadas na decisão de 23.06.2021) não foi alegada pelo insolvente, conforme se referiu na primeira abordagem e análise do requerimento de 25.03.2022 (em que se constatou que não foi feito pedido de revisão do rendimento, com base em necessidades e despesas supervenientes às atendidas na decisão de 23.06.2021).
Desta forma, a matéria alegada a 25.03.2022 não se revela relevante, numa parte, e suficiente, noutra parte, para satisfazer a pretensão do insolvente/recorrente.
Também, por último: a onerosidade do insolvente na disponibilização ao fiduciário do rendimento que exceder o valor mensal do rendimento mínimo garantido (de € 665, 00 em 2021 e de € 705, 00 em 2022) não se encontra provada, nem se pode presumir judicialmente, face ao valor do rendimento global do insolvente/recorrente (quer na versão de 25.03.2022, quer versão de 23.06.2022), residente com a mãe, e às despesas por si alegadas e contabilizadas (em valor não superior a cerca de € 284, 00); a pequena vantagem do valor da cessão mensal para a satisfação dos interesses da massa insolvente não corresponde a qualquer fundamento que permita, de acordo com a lei, excluir um rendimento da liquidação do valor que deve ser entregue ao fiduciário.
Desta forma, improcede o recurso de apelação, ainda que por razões distintas da enunciada pelo Tribunal a quo.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam julgar improcedente o recurso e manter indeferido o requerimento de 25.03.2022, embora com fundamentos distintos daquele enunciado pelo Tribunal a quo.
*
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, nos termos do art.527º do C. P. Civil.
*
Guimarães, 22 de setembro de 2022
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade


1. Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
2. Lebre de Freitas, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
3. Ac. RG de 07.08.2014, relatado por Jorge Teixeira no processo nº600/14.TBFLG.G1.
4. Lebre de Freitas, in artigo citado in ii, pág.693
5. Rui Pinto, in obra citada in i, nota 2- II ao art.619, pág.186.
6. Ac. RG de 07.08.2014, referido supra.
7. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, Universidade Católica Portuguesa, , 2ª Edição Revista, fevereiro de 2017, notas ao art.71 (sobretudo III e IV), págs.1005 e 1007.