Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
37/18.3T8GMR.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
NOVAÇÃO OBJETIVA DA DÍVIDA
JUROS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A novação é regulada no Código Civil como uma das causas de extinção das obrigações e consiste “na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela”.
II - A novação objetiva dá-se quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (artigo 857º do Código Civil).
III - A novação não se presume pois tem de ser expressamente manifestada a vontade de a realizar, ou seja, tem de haver uma declaração com essa finalidade, feita por meio de palavras, escrito ou outro modo direto de manifestação da vontade (artigos 859º e 217º n.º 1, ambos do Código Civil).
IV - Só em casos excecionais ou de limite deverá ser configurado o abuso de direito na invocação de nulidade por inobservância da forma legal de um negócio jurídico.
V - Quando a causa petendi assenta no pressuposto da nulidade do negócio jurídico celebrado, por falta de forma, não faz sentido, sustentar o abuso de direito, e violação da boa-fé contratual, uma vez que foi o próprio Autor, mutuante, que guisou a ação, sustentando a nulidade do mútuo, por falta de forma.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A. T., residente na avenida …, n.º …, …, Fafe, intentou contra A. M. e mulher R. S., com domicílio profissional no largo …, Guimarães a presente ação declarativa, sob a forma comum, pedindo que se declare a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre aquele e os Réus e que, em consequência, estes sejam condenados a restituir-lhe a quantia de €290.532,50, acrescida de juros contratualizados à taxa de 6% ao ano, vencidos e vincendos, ascendendo os vencidos a €21.252,65.
Para tanto, alegou, em síntese, que por documento particular de 14/08/2013, o Autor declarou ter emprestado aos Réus, que aceitaram ter recebido daquele, a quantia de €290.532,50, acrescida de juros à taxa contratual de 6% ao ano, não tendo sido acordado qualquer prazo para que os Réus restituíssem a mencionada quantia;
Mais alega que o Autor já instou os Réus para que lhe fizessem essa restituição, mas sem sucesso e que o empréstimo de dinheiro que fez aos Réus não foi celebrado através de escritura pública, sendo, por isso, nulo.
Tendo vindo ao processo o conhecimento sobre o falecimento do Réu A. M., foram habilitados, como seus sucessores, F. M., residente na rua …, Guimarães, e C. A., residente na rua …, Guimarães.
Os Habilitados e a Ré mulher contestaram, defendendo-se por exceção e impugnação e deduzindo reconvenção.
Em síntese, impugnaram a generalidade dos factos alegados pelo Autor, embora tenham admitido a existência de um empréstimo e a celebração de duas escrituras públicas de compra e venda, mediante o qual os Réus transmitiram para aquele as frações designadas pela letra B, correspondente a um ginásio, I, J, O, P, Q e R, estas correspondentes a dois apartamentos e duas garagens, de prédios constituídos em regime de propriedade horizontal, que identificaram, para garantia da obrigação de restituição.
Mais alegaram o pagamento parcial da dívida, de modo que ela se cifra, hoje, no montante de €83.961,00, que reconheceram.
Mais referiram que, não obstante as entregas parcelares efetuadas, o Autor emitiu sucessivas declarações de dívida, em que esta foi aumentando, explorando a necessidade da Ré e do seu falecido marido e aproveitando-se da inexperiência dos mesmos, excecionando, assim, a sua anulabilidade por dolo e usura.
Invocaram também a nulidade das convenções celebradas quanto a juros, por dolo, usura e anatocismo, sustentando que o valor constante da declaração de dívida junta aos autos pelo Autor contém juros capitalizados, à taxa de 7% ao ano e, por isso, usurários, e que os Réus nunca convencionaram com o Autor que os juros vencidos venciam, por sua vez, juros, não tendo sido notificados pelo último para que lhes pagasse os juros alegadamente vencidos, sob pena da respetiva capitalização.
Bem assim, arguiram a nulidade das declarações de dívida, incluindo da junta aos autos, por vício de forma, por terem subjacente um contrato de mútuo em relação ao qual não foi observada a forma legal e prevaleceram-se da exceção da falta de prazo para a restituição da quantia emprestada ao Autor, sustentando que, não tendo sido convencionado prazo entre o último e os Réus para a restituição, impõe-se que esse prazo seja fixado judicialmente.
Por fim, invocaram a exceção da prescrição quanto aos juros vencidos há mais de cinco anos por referência à data da sua citação para os termos da presente ação.
Concluíram pedindo que: a) sejam absolvidos do pedido; b) se proceda à redução do pedido à quantia de €83.961,18; e c) seja o Autor condenado como litigante de má-fé.
Deduziram ainda reconvenção, pedindo a condenação do Autor-reconvindo a restituir as frações objeto das escrituras públicas, com fundamento em dolo e em simulação.
O Autor replicou sustentando que a reconvenção deduzida é legalmente inadmissível, dado que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação, sequer tende a conseguir, em benefício dos Réus-reconvintes, o mesmo efeito jurídico que o Autor-reconvindo se propõe obter.
Subsidiariamente, invocou a exceção da prescrição do direito dos Réus-reconvintes em obterem a declaração da invalidade daquelas escrituras públicas com fundamento em dolo e usura.
Impugnou ainda parte da matéria alegada pelos Réus em sede de exceção (admitindo, contudo, a existência de entregas anteriores de dinheiro do Autor à Ré e ao falecido marido e destes em relação àquele), invocou o abuso de direito quanto à pretensão de aqueles verem imputadas no capital as quantias por si pagas e concluiu pela sua improcedência, pedindo ainda a condenação dos Réus como litigantes de má fé.
Os Réus deduziram incidente de intervenção principal provocada da sociedade A. M. & Filhos, Lda., como Ré-reconvinte e associada daqueles.
Em 1.ª Instância, o incidente de intervenção de terceiros foi admitido, tendo essa decisão sido revogada em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Foi deduzido o incidente de oposição pela sociedade A. M. & Filhos, Lda, com sede no largo …, s/n.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, não tendo sido admitida a reconvenção, nem o incidente de oposição.
Foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha havido reclamação das partes.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Nos termos expostos:
1.º- Julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se os Réus na restituição ao Autor da quantia de € 95.080,30 (noventa e cinco mil e oitenta euros e trinta cêntimos), sobre a qual incidem juros de mora sobre a citação até integral pagamento, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de ulterior alteração legislativa;
2.º- Julga-se improcedente o pedido de condenação das partes como litigantes de má-fé.
As custas da presente ação são da responsabilidade de ambas as partes, na proporção do seu decaimento (cfr. artigo 527º/1/2, do CPCiv).
Valor da ação: o fixado a fls. 267/verso.
Registe, notifique e dê baixa.”

Inconformado, apelou o Autor da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1. Na fixação da matéria de facto provada, não pode o Julgador atender apenas aos factos que suportam a versão que considera aplicável, mas sim a todos os factos relevantes, para a boa decisão da causa.
2. A douta sentença recorrida viola o art.º 607.º, n.º 4 do CPC, na medida em que não dá resposta (nem de provado, nem de não provado) a inúmera matéria de facto alegada na réplica, mormente os artigos 28.º a 115.º da Réplica, a respeito da “novação objetiva” da obrigação dos RR. e do “abuso de direito” destes ao pretender imputar no capital mutuado os pagamentos que, ao longo de mais de 18 anos, fizeram para abater aos juros convencionados e vencidos, a qual é relevante atentas todas as soluções de direitos plausíveis;
3. De outra forma, não está garantido e nem salvaguardado o direito, o pleno direito ao recurso pois, se de acordo com o disposto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC, a parte que impugne em recurso a decisão da matéria de facto, tem de especificar os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados, não lhe é sequer possível cumprir tal ónus quando a matéria por si alegada e carreada para os autos não consta sequer dos factos não provados;
4. A interpretação do art.º 607.º, n.º 4 do CPC no sentido de que a sentença só é obrigada a conter os factos essenciais e fundamentais à decisão a proferir, não carecendo de conter, sequer nos factos não provados, os demais factos alegados pelas partes, ainda que relevante de acordo com todas as soluções de direito plausíveis, é claramente violadora do artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, da tutela dos direitos humanos, decorrente dos artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos:
5. Sem prescindir, o Autor impugna a decisão da matéria de facto da alínea q) dos factos provados e dos pontos 1 e 2 dos factos não provados, na medida em que a prova produzida foi abundante, segura e conclusiva no sentido de impor que a sua redação fosse a seguinte:
q-) PROVADO QUE, nas declarações aludidas em a) e d) a p), o A., a Ré e o autor da Herança, M. M., incluíram no capital mutuado (capitalizaram) os juros que consideravam se terem vencido e que não foram pagos.
1. PROVADO QUE, em 14/08/2013, através do escrito que consta de fls. 5/verso, o A., a Ré e o autor da Herança, M. M., acordaram em fixar em €290.532,50 o valor do capital mutuado pelo A., no qual foram incluídos (capitalizados) os juros vencidos e não pagos ao longo dos autos.
“2. PROVADO QUE por carta registada com aviso de receção enviada pela mandatária do A. e recebida pelos RR. em 12/10/2015, o A. solicitou aos RR. o pagamento da quantia de €290.537,50, titulada pelo documento particular (declaração) descrito em a) dos factos provados.”
6. A prova do ponto 2 emana do documento junto pelo A. na petição inicial sob o n.º 2, porquanto não há nos autos alegação ou sequer indício de que, entre o A. e os RR. existisse outra pendência que não fosse a do empréstimo titulado pelas inúmeras declarações cujos teores se encontram plasmadas nos factos provados, donde, atentas as regras da experiência e da normalidade, não há qualquer dúvida de que o A., através daquela carta, solicitava aos RR. a restituição da quantia mutuada, acrescida dos juros, titulada pelas preditas declarações, cuja última é datada de 14/08/2013;
7. A impugnação da decisão da matéria de facto, no que concerne à alínea q) dos factos provados e ponto 1 dos factos julgados não provados, sofre as limitações resultantes da nulidade supra alegada nas conclusões 1.ª a 4.ª;
8. Porém e sem prescindir, a prova produzida, quer testemunhal, quer documental (mencionada nas conclusões 9.ª a 16.ª), é segura e conclusiva no sentido de que o A. e os RR. quiseram, de livre e espontânea vontade, efetuar a novação da sua obrigação pela declaração datada de 14/08/2013, como de resto sucedeu nas anteriores declarações de dívida, estando esta questão (que é simultaneamente de facto e de direito) intrinsecamente ligada com a problemática do “anatocismo”, que é versada ao pormenor, em termos que reputamos adequados, na réplica;
9. A capitalização de juros corresponde a uma operação, de coloração predominantemente económica, através da qual os juros, ao invés de serem pagos pelo devedor, passam a integrar-se no capital por este devido;
10. Este incremento do capital traduz-se, por sua vez, no aumento do valor da obrigação de reembolso;
11. O aumento do capital mutuado, operado pela capitalização de juros traduz-se numa novação objetiva da obrigação de reembolso;
12. Nas declarações de 8 de Abril de 1998, de 19 de Julho de 1999, de 05 de Outubro de 2000, de 23 de Agosto de 2004, de 29 de Agosto de 2006, de 04 de Setembro de 2007, de 16 de Agosto de 2010, de 16 de Agosto de 2011, de 13 de Agosto de 2012 e de 14 de Agosto de 2013, o comportamento adotado pelo A., pela Ré e falecido marido desta, é absolutamente conclusivo no sentido da vontade de, em cada momento, capitalizarem os juros, isto é, “integrar” no capital mutuado as quantias que se venceram a título de juros e que a Ré e falecido marido não restituíram;
13. São inúmeros os comportamentos concludentes nesse sentido, senão vejamos:
a. Os RR. procederam ao pagamento de diversas quantias para abater precisamente aos juros;
b. O A. e os RR. davam sem efeito as declarações anteriores ao emitirem nova declaração de dívida;
c. O A. e os RR., com frequência anual, atualizavam o valor do capital em dívida, nele incluindo os juros vencidos;
d. O A. e os RR. alteravam a taxa de juros convencionada;
e. Os RR. confessavam-se devedores das referidas quantias, em cada momento;
14.É ainda particularmente relevante o escrito de fls. 89/verso, onde o autor da Herança reconhece dever ao A. a quantia mencionada na declaração de fls. 5/verso;
15. De resto, o réu C. M., afirmou claramente que o seu pai não assinava nada de ânimo leve e que, se o que consta daqueles documentos está assinado pelo seu pai é porque o respetivo teor corresponde à verdade;
16. Outrossim, a testemunha F. T., confirmou com clarividência o acordo havido entre o A., a Ré e o seu falecido marido, de capitalização dos juros e de novação da obrigação ao longo dos anos (quer quanto ao valor do capital mutuado, quer quanto aos juros a vencer), sendo o último de 2013;
17. Pese embora não haja dúvida que o Autor emprestou à Ré e ao seu falecido marido as quantias de “ESC. 16.900.000$00, em julho de 1995”. “ESC. 12.300.000$00, entre fevereiro e junho de 1996”, “ESC. 14.700.000$00, em 08.04.1998” e “ESC. – 5.300.000$00, em 15.04.1998”, não é menos verdade que, de comum acordo, o Autor, a Ré e o seu falecido marido, acordaram em capitalizar, com frequência essencialmente anual, os juros que se venciam e que a Ré e o seu falecido marido não pagaram;
18. Isto é, por acordo expresso de todos, o A. colocava anualmente à disposição da Ré e do seu falecido marido as quantias vencidas a título de juros que estes deveriam ter pago e não pagaram, integrando-se aquelas quantias no capital inicialmente emprestado;
19. No caso dos autos, estamos claramente perante o “anatocismo complexo”, na medida em que, como emerge das diversas declarações, o A., a Ré e o seu falecido marido convencionaram que os juros vencidos integravam o capital originariamente devido e esta soma global (capital + juros) gerava novos juros que se voltam a somar e acumulam juros e assim sucessivamente, até que fosse paga a dívida;
20. No nosso ordenamento jurídico, bem como nos restantes ordenamentos de influência católica, já são ténues os vestígios do juízo de desvalor que em tempos justificara a qualificação de toda a cobrança de juros como usurária, e sua consequente proibição (pecunia non potest pecuniam parere), que atualmente ainda encontramos, designadamente, nos sistemas de direito islâmico (cf. Margarida Lima Rego, obra e p. citadas).
21. Há que analisar a figura do anatocismo sem o anátema de proibição antiga e a unilateralidade da visão exclusiva do princípio favor debitoris, devendo ser colocada no outro prato da balança a perda simétrica que a mora dos juros gera na esfera do credor;
22. Se, como afirma o Tribunal a quo, o Autor, a Ré e o seu falecido marido quisessem fazer um simples “apuramento do valor atual em dívida”, jamais capitalizariam os juros vencidos;
23. Se, como afirma o Tribunal a quo, o A., a Ré e o seu falecido marido, apenas faziam “operações aritméticas” para “apuramento o capital em dívida”, não fazia nenhum sentido “dar sem efeito” os “apuramentos” anteriores, os quais explicam as ditas “operações aritméticas”;
24. No caso dos autos, “dar sem efeito as declarações anteriores”, aliado à capitalização de juros e às alterações da taxas de juros remuneratórios, significa precisamente extinguir uma obrigação anterior para a substituir por outra;
25. Não tendo a nova obrigação assumida em substituição das anteriores, respeitado a existência da forma legal, verifica-se a sua nulidade, com a consequente obrigação de restituição do capital mutuado, que no caso corresponde a €290.532,50;
26. Existe um comportamento anterior e reiterado da Ré mulher e do autor da Herança, durante cerca de 18 anos, adequada a criar no A. (como criou) uma situação objectiva de confiança, no sentido de que a Ré o falecido marido iriam cumprir o acordado, pagando os juros estabelecidos até ao momento em que procedesse à restituição do capital mutuado, e no sentido de se confessarem devedores de todas as quantias, incluindo dos juros vencidos e não pagos, que de comum acordo aceitaram capitalizar.
27. Investido nessa confiança, o A. permitiu à Ré e ao seu falecido marido a disponibilidade do capital mutuado (incluindo os juros vencidos e não pagos) durante tanto tempo (hoje já mais de 20 anos) e que se dispôs a aceitar que tal capital não lhe proporcionasse os rendimentos que poderia auferir caso estivesse na sua disponibilidade.
28. Concomitantemente, a Ré e o autor da Herança pagaram parte dos juros convencionados, durante cerca de 18 anos, sem nunca questionarem essa obrigação e nem a validade do contrato, aliás, assinaram sucessivas declarações de dívida onde se confessavam devedores ao A. das quantias mutuadas, acrescidas dos juros vencidos, que aceitaram capitalizar para acrescer ao capital mutuado;
29. existe um comportamento anterior e reiterado da Ré mulher e do autor da Herança, durante cerca de 18 anos, adequada de criar no A. (como criou) uma situação objetiva de confiança, no sentido de que a Ré o falecido marido iriam cumprir o acordado, pagando os juros estabelecidos até ao momento em que procedesse à restituição do capital mutuado;
30. E no sentido de se confessarem devedores de todas as quantias, incluindo dos juros vencidos e não pagos, que de comum acordo aceitaram capitalizar.
31. Aliás, o Autor investiu na supra descrita confiança, tendo sido nesse pressuposto que permitiu à Ré e ao seu falecido marido a disponibilidade do capital mutuado (incluindo os juros vencidos e não pagos) durante tanto tempo (hoje já mais de 20 anos) e que se dispôs a aceitar que tal capital não lhe proporcionasse os rendimentos que poderia auferir caso estivesse na sua disponibilidade.
32. Com efeito, a Ré e o autor da Herança pagaram parte dos juros convencionados, durante cerca de 18 anos, sem nunca questionarem essa obrigação e nem a validade do contrato;
33. Aliás, assinaram sucessivas declarações de dívida onde se confessavam devedores ao A. das quantias mutuadas, acrescidas dos juros vencidos, que aceitaram capitalizar para acrescer ao capital mutuado;
34.Ou seja, o contrato de mútuo celebrado entre as partes produziu o efeito que aproveitava à Ré e ao autor da Herança (a disponibilidade do capital durante cerca de 20 anos);
35. Mas estes agora pretendem que não se produzam os efeitos que aproveitam ao A. (a respetiva remuneração) durante o período em que tal efeito foi aceite e foi cumprido pela Ré e falecido marido, sem nunca questionarem essa obrigação e sem questionar a validade do contrato;
36. Tal pretensão dos RR., assim apreciada, está-lhes vedada pelo abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium;
37. Como decidido no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30/06/2015, no proc. 2943/13.2TBLRA.C1 (www.dgsi.pt), “estando em causa um mútuo em que, não obstante a sua nulidade, o mutuário pagou os juros convencionados, durante cerca de sete anos, sem nunca questionar essa obrigação e a validade do contrato, será abusivo o exercício da pretensão de restituição desses juros, por força da nulidade que veio a ser declarada, por corresponder a um venire contra factum propium e defraudar a legítima expectativa do mutuante e a confiança que lhe mereceu o anterior comportamento do mutuário;
38. Num caso como o dos autos, a restituição das prestações que é imposta pelo art.º 289.º do Código Civil não tem a virtualidade de eliminar todos os efeitos que o contrato produziu enquanto foi cumprido pelas partes e não tem total idoneidade para repor a situação que existia anteriormente, porquanto, enquanto o contrato foi cumprido (no caso, durante mais de 18 anos), ele produziu o efeito que aproveitava à Ré e falecido marido (a disponibilidade do capital), surgindo por isso como claramente injusto que não se aceite também a produção do efeito que aproveitava ao Autor (a respetiva remuneração) durante o período em que tal efeito foi aceite e foi cumprido pelo Réu, sem questionar essa obrigação e sem questionar a validade do contrato;
39. Em síntese, deveria a ação ter sido julgada procedente, por provada, e os RR. condenados a pagar / restituir ao A. a quantia de €290.532,50, acrescida de juros de mora à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
40. Assim não decidindo, a douta sentença recorrida viola os art.os 289.º, 334.º, 560.º e 857.º do Código Civil e o art.º 607.º, n.º 4 do CPC”.
Pugna o Recorrente pela integral procedência do recurso, e pela revogação da sentença na parte recorrida, a qual deve ser substituída por acórdão que condene os Réus a pagar ao Autor a quantia de €290.532,50, acrescida de juros de mora à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências.
Os Réus contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.

Pelo tribunal a quo foi admitido o recurso e proferido o seguinte despacho:
“- Quanto à nulidade arguida:
Invoca o Recorrente de que a sentença proferida é nula, por violação do disposto no artigo 607º/4, do CPCiv.
Dispõe o artigo 607º/4, do CPCiv, que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
A violação dessa disposição não se encontra, por remissão expressa, contemplada nas hipóteses previstas nas als. a) a e), do artigo 615º/1, do CPCiv, sobre as quais o Tribunal recorrido deve pronunciar-se no despacho de admissão do recurso (cfr. artigo 617º/1, do CPCiv).
No entanto, para o caso de se entender que a nulidade invocada se subsume a alguma dessas hipóteses legais, consigna-se que a matéria de facto provada e não provada está em relação com os temas da prova selecionados no despacho de fls. 267/verso a 268. Com efeito, nos factos provados e não provados estão contempladas quer as entregas efetuadas/não, efetuadas pelo Réu falecido e pela Ré mulher ao longo do tempo [als. c. e 3.], quer os sucessivos escritos firmados entre as partes [al. c. a p.], matérias sobre as quais, aliás, houve acordo parcial na fase dos articulados, conforme se discorre em sede de motivação.
Sendo que o núcleo factual respondido é o suficiente, salvo melhor opinião, para a apreciação das questões que faziam parte do objeto do litígio, tal como foram delineadas no despacho de fls. 267/verso.
Neste seguimento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 617º/1, CPCiv, entende-se que não ocorre a nulidade invocada.
Porém, Vossas Excelências, apreciando e decidindo o recurso, farão, como sempre, a melhor Justiça.
Notifique”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:
1 - Saber se a sentença é nula;
2 - Saber se há erro no julgamento da matéria de facto, concretamente quanto aos pontos q) dos factos provados e os pontos 1) e 2) dos factos não provados;
3 - Saber se há erro na subsunção jurídica dos factos.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

a. Em 14.08.2013, o Autor, a Ré mulher e o seu falecido marido subscreveram a declaração de fls. 5/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 290.532,50 € (duzentos e noventa mil quinhentos e trinta e dois euros e cinquenta cêntimos), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é 6% ao ano.”
b. O Autor emprestou à Ré mulher e ao seu falecido marido as seguintes quantias:
- ESC. 16.900.000$00, em julho de 1995;
- ESC. 12.300.000$00, entre fevereiro e junho de 1996;
- ESC. 14.700.000$00, em 08.04.1998;
- ESC. 5.300.000$00, em 15.04.1998.
c. Desde as datas indicadas em b., a Ré e o seu falecido marido entregaram ao Autor as quantias de € 518,75, de € 6.729,14, de € 17.876,90, de € 99.758,48, de € 8.000,00, de € 1.000,00, de € 8.220,00 e de € 8.225,00.
d. Em 08.04.1998, o Autor, a Ré mulher e o seu falecido marido subscreveram a declaração de fls. 48 e 48/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e esposa R. S. são devedores da importância de 50.200 contos (…).
As importâncias acima referidas consideram-se como empréstimo e estão asseguradas através das seguintes compras-vendas (…).
Os valores em débito na presente declaração vencem a taxa de juro de 7% ao ano.”
e. Em 19.07.1999, o Autor e o seu falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 56/verso a 57, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e família (R. S.) e C. M. e F. M. são devedores da importância de 51.000.000$00 (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado foi de 7% ao ano.”
f. Em 05.08.2000, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 57/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e família (R. S.) e C. M. e F. M. são devedores da importância de 51.000.000$00 (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado foi de 7% ao ano.”
g. Em 11.12.2001, o Autor subscreveu a declaração de fls. 90 e 90/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e família (R. S.) e C. M. e F. M. são devedores da importância (equivalente) a 183.108 EUROS, (…), após conclusão de contas até esta data.”
h. Em 23.08.2004, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 59 e 59/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 192.000 Euros (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é de 7% ao ano.”
i. Em 29.08.2006, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 60/verso a 61, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 204.000 Euros (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é de 6% ao ano.”
j. Em 04.09.2007, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 62, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 220.000,00 € (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é de 6% ao ano.”
k. Em 15.08.2008, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 62/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 231.000,00 €, após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é de 6% ao ano.”
l. Em 15.08.2009, o Autor, a Ré mulher e o seu falecido marido subscreveram a declaração de fls. 126/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 244.860,00 euro, após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é 6% ao ano.”
m. Em 16.08.2010, o Autor e o falecido marido da Ré mulher subscreveram a declaração de fls. 92/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 259.488,00 euro (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é de 6% ao ano.”
n. Em 16.08.2011, o Autor, a Ré mulher e o seu falecido marido subscreveram a declaração de fls. 64, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 275.087,28 €, após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado é 6% ao ano.”
o. Em 13.08.2012, a Ré mulher e o seu falecido marido subscreveram a declaração de fls. 64/verso, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual consta o seguinte:
“(…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de 174.087,28 € (…), após conclusão de contas até esta data.
(…) O juro acordado foi de 6% ao ano.”
p. Na data indicada na al. anterior, o Autor e o falecido marido subscreveram a declaração que consta de fls. 65/verso a 66, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, do qual consta que o valor da dívida e o juro eram iguais ao referido no escrito mencionado em o..
q. Nas declarações aludidas em a. e d. a p., o Autor incluiu no capital em dívida os juros que considerava se terem vencido.
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1. O Autor emprestou e declarou ter emprestado à Ré e ao seu falecido marido o montante de € 290.532,50 em 14.08.2013, através do escrito que consta de fls. 5/verso.
2. O Autor, por carta enviada em 12.10.2015 à Ré e ao seu falecido marido, solicitou a estes o pagamento da quantia aludida em 1..
3. Para além das quantias referidas em c., a Ré e o falecido marido entregaram ao Autor a quantia de € 13.440,00.
4. A Ré e o seu falecido marido nunca acordaram que os juros venciam, por sua vez, juros.
5. O Autor induziu em erro os Réus, ao longo de todos estes anos volvidos, já que lhes fez crer que o valor em dívida era aquele que constava das declarações de dívida que fazia os Réus assinar, com o fim de se locupletar às custas daqueles Réus que, por inexperiência e crentes da “boa-fé” cristã do Autor, nunca questionaram.
***
3.2. Da nulidade da sentença

O Recorrente veio alegar que a sentença recorrida viola o artigo 607º n.º 4 do Código de Processo Civil (de ora em diante designado por CPC) na medida em que não dá resposta (nem de provado, nem de não provado) a inúmera matéria de facto alegada na réplica, mormente os artigos 28º a 115º, a qual é relevante atentas todas as soluções de direitos plausíveis, e que, por isso, é nula.
Dispõe o artigo 607º n.º 4 do CPC, que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; que o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Tal como refere o tribunal a quo a violação desta disposição não se encontra, por remissão expressa, contemplada nas hipóteses previstas nas alíneas a) a e), do artigo 615º n.º 1, do CPC.
Na verdade, o Recorrente também nada invoca por referência a este preceito.

Dispõe o n.º 1 do referido artigo 615º que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017 (Processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1, Relator Conselheiro Alexandre Reis, disponível em www.dgsi.pt), “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
As decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
As nulidades da sentença não se confundem, por isso, com o chamado erro de julgamento.
Ora, o Recorrente, não obstante arguir a nulidade da sentença, refere apenas a violação do n.º 4 do artigo 607º e o facto de, em seu entender, a sentença recorrida não dar resposta (nem de provado, nem de não provado) a inúmera matéria de facto alegada na réplica, mormente os artigos 28º a 115º, que considera relevante, atentas todas as soluções de direitos plausíveis.
No entanto, e não estando agora em causa apreciar se deve ser ampliada a matéria de facto, o vicio de deficiência de matéria de facto, que pode até ser conhecido oficiosamente pela Relação (cfr. artigo 662º n.º 2, alínea c) do CPC), podendo implicar a anulação do julgamento quando não constam do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, não determina a nulidade da sentença.
A eventual omissão da decisão de factos que fossem relevantes para a boa decisão da causa segundo as possíveis soluções jurídicas da causa poderia implicar uma necessidade de ampliação e até uma anulação da decisão da matéria de facto, e repetição do julgamento, mas já não a nulidade da sentença, pois trata-se de circunstâncias, de vícios e de regime completamente diversos da nulidade da sentença.
O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem na nulidade da sentença, designadamente em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º n.º 2, do CPC, mas a erros de julgamento (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2017, Processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1, Relator Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, como já referimos, as nulidades da sentença não se confundem com o chamado erro de julgamento, não padecendo a sentença recorrida da apontada nulidade.
***
3.3. Da modificabilidade da decisão de facto

Sustenta o Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto q) dos factos provados e quanto aos pontos 1) e 2) dos factos não provados.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Analisemos então os motivos da discordância dos Recorrentes quanto aos diversos pontos impugnados.

O ponto q) e os pontos 1) e 2) têm a seguinte redação:
“q. Nas declarações aludidas em a. e d. a p., o Autor incluiu no capital em dívida os juros que considerava se terem vencido.
1. O Autor emprestou e declarou ter emprestado à Ré e ao seu falecido marido o montante de €290.532,50 em 14.08.2013, através do escrito que consta de fls. 5/verso.
2. O Autor, por carta enviada em 12.10.2015 à Ré e ao seu falecido marido, solicitou a estes o pagamento da quantia aludida em 1.”.

Sustenta o Recorrente que devem ser julgados provados com a seguinte redação:
“q-) PROVADO QUE, nas declarações aludidas em a) e d) a p), o A., a Ré e o autor da Herança, M. M., incluíram no capital mutuado (capitalizaram) os juros que consideravam se terem vencido e que não foram pagos.
1. PROVADO QUE, em 14/08/2013, através do escrito que consta de fls. 5/verso, o A., a Ré e o autor da Herança, M. M., acordaram em fixar em €290.532,50 o valor do capital mutuado pelo A., no qual foram incluídos (capitalizados) os juros vencidos e não pagos ao longo dos autos.
2. PROVADO QUE por carta registada com aviso de receção enviada pela mandatária do A. e recebida pelos RR. em 12/10/2015, o A. solicitou aos RR. o pagamento da quantia de €290.537,50, titulada pelo documento particular (declaração) descrito em a) dos factos provados.”
Vejamos se lhe assiste razão.
Quanto ao ponto 2) dos factos provados entende o Recorrente que a sua prova emana do documento junto pelo Autor sob o n.º 2, uma carta enviada pelo Autor, através do seu mandatário.
Porém, analisado tal documento não vemos como afirmar que “atentas as regras da experiência e da normalidade, não há qualquer dúvida de que o A., através daquela carta, solicitava aos RR. A restituição da quantia mutuada”.
De facto, o que consta da referida carta é a notificação do Réu para “passar, querendo, pelo n/escritório”, “para resolver a pendência que os opõe e que já se arrasta há muito anos” e para a resolver definitivamente” e que caso o Réu não comparecesse, o Autor recorreria às vias judiciais. Tal como se salienta na decisão recorrida, na carta “não se alude à restituição de qualquer quantia em dinheiro, sendo que, para além dos empréstimos, as partes tinham a separá-los a questão relativa à transmissão das frações para garantia daqueles”.
A carta registada a que alude o Recorrente não permite concluir que através da mesma o Autor solicitou aos Réus o pagamento da quantia de €290.537,50, titulada pelo documento particular (declaração) descrito em a) dos factos provados.
Quanto à alínea q) dos factos provados, a alteração da redação pretendida pelo Recorrente prende-se desde logo com a menção à Ré e ao falecido A. M., no sentido de passar a constar que nas declarações aludidas em a) e d) a p) dos factos provados, quer o Autor, quer a Ré e o autor da Herança, M. M., incluíram os juros que consideravam terem-se vencido.
Na verdade, não resulta questionado pelo tribunal a quo, em face da prova produzida nos autos, que a Ré e o falecido A. M. subscreveram as referidas declarações; aliás, foi julgado não provado que a Ré e o seu falecido marido nunca acordaram que os juros venciam, por sua vez, juros (ponto 4) e que o Autor induziu em erro os Réus, ao longo de todos estes anos volvidos, já que lhes fez crer que o valor em dívida era aquele que constava das declarações de dívida que fazia os Réus assinar, com o fim de se locupletar às custas daqueles Réus que, por inexperiência e crentes da “boa-fé” cristã do Autor, nunca questionaram (ponto 5), matéria que não foi impugnada.
Contudo, se atentarmos nos documentos em causa, nas referidas declarações, o que das mesmas consta é que foi o Autor, ora Recorrente, a emitir a declaração onde consta a quantia em divida.
Das referidas declarações consta “Eu abaixo assinado, A. T. (…) declaro para os devidos efeitos, o seguinte: (…) O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de (…) após conclusão de contas até esta data (…)”.
Assim, considerando o teor das declarações a que se reporta o ponto q) dos factos provados não vemos justificação para alterar a redação do mesmo, devendo manter-se que o Autor nelas incluiu no capital em divida os juros que considerava vencidos, sendo certo que o conjunto da prova produzida permite concluir, como consta da sentença recorrida, pela contabilização de juros sobre juros, sendo que os juros vencidos foram, anualmente, incluídos na dívida de capital: “A realização desse procedimento (contabilização de juros sobre juros) foi referida pelos irmãos do Autor F. T. e, sobretudo, por M. T., que foi procuradora daquele em Portugal e que conhecia o seu modo de atuar no que respeita a esta dívida. Aludiram que, em regra na deslocação anual que aquele fazia a Portugal, fazia a imputação do que lhe era pago nos juros e os que estavam em dívida acresciam à parcela de capital em débito.
As testemunhas demonstraram sinceridade, sendo que o próprio Autor na réplica não negou que assim atuava (cfr. maxime artigo 79º, da réplica); por outro lado, esse procedimento encontra eco nas sucessivas declarações de reconhecimento de dívida que constam do processo”.
Quanto à menção a “e que não foram pagos”, também não vemos fundamento para que o Recorrente pretenda tal referência; de facto, para incluir os juros vencidos é porque os mesmos não estariam pagos, e se estivessem competiria aos Réus demonstrar esse pagamento.
Relativamente ao ponto 1) dos factos não provados reflete a matéria alegada pelo Recorrente no artigo 1º da petição inicial onde consta que por documento particular celebrado em Guimarães no dia 14 de agosto de 2013 o Autor declarou ter emprestado aos Réus, que aceitaram ter recebido daquele a quantia de €290.532,50, acrescida de juros à taxa contratual de 6% ao ano, conforme documento n.º 1 junto com a petição inicial.

Consta deste documento o seguinte:

“Eu abaixo assinado, A. T. (…) declarado para os devidos efeitos, o seguinte:
1- O senhor A. M. e R. S. são devedores da importância de € 290.532,50 (….), após conclusão de contas até esta data.
2- O valor acima referido está garantido pelo seguinte:
a) Um apartamento (…) e três garagens (…);
b) Um ginásio (…).
3- A dívida acima pode ser desbloqueada pela venda das frações supra citadas, com entrega de valores correspondentes à mesma, ou seja o débito global constituído por 136.543,64 € (…) e a parte restante para completar o pagamento 137.543,64 (…) em dívida referente ao ginásio.
4- O juro acordado é 6% ao ano.
E, por ser verdade, redigi a presente que vai ser assinada por ambas as partes.”
Tal como é afirmado pelo tribunal a quo, este documento, “não tem a virtualidade probatória de que o Autor se pretende prevalecer”, pois efetivamente não documenta a realização de um empréstimo na data em que se encontra subscrito.
O que o mesmo retrata é o reconhecimento da existência de uma dívida, por parte dos Réus, no montante de €290.532,50, ainda que nele não seja referida a sua origem.

Deve, pois, manter-se o ponto 1) dos factos não provados.
Contudo, tal como consta da motivação da sentença recorrida, da prova produzida em audiência de julgamento (quer da audição dos depoentes de parte, quer da audição das testemunhas, que nisso foram confluentes), “foi possível apurar que o reconhecimento da existência da dívida, através dos escritos de fls. 5/verso e 89/verso, tem a anteceder-lhe várias relações de empréstimo entre o Autor e os Réus, cuja génese é bem anterior a 14.08.2013 (data que vem referida no mencionado documento de fls. 5/verso)”.
(…) As imprecisões dos depoimentos de parte e testemunhais quanto ao número de empréstimos e aos valores mutuados estão dissipadas nos próprios articulados. Na verdade, da ponderação conjugada dos artigos 6º e 11º, da contestação, por um lado, com os artigos 25º e 46º e 48º, da réplica, por outro lado, resulta que as partes admitiram, nas respetivas peças processuais, de forma concordante, que o Autor emprestou à Ré e ao seu falecido marido as quantias de ESC. 16.900.000$00, em julho de 1995, ESC. 12.300.000$00, entre fevereiro e junho de 1996, ESC. 14.700.000$00, em 08.04.1998, ESC. 5.300.000$00, em 15.04.1998, o que perfaz a quantia global de ESC. 49.200.000$00 (o que corresponde a € 245.408,571).
De igual modo, nos articulados (cfr., em particular, de forma articulada, os artigos 16º a 18º, 21º, 24º, 31º e 46º, da contestação, e dos artigos 25º, 58º, 59º, 65º e 72º, da réplica), as partes aceitaram que a Ré e o seu falecido marido entregaram as quantias de € 518,75, de € 6.729,14, de € 17.876,90, de € 99.758,48, de € 8.000,00, de € 1.000,00, de € 8.220,00 e de € 8.225,00, o que perfaz a quantia global de € 150.328,27, para liquidação dos valores emprestados pelo Autor.
(…) Daqui decorre que, embora não se tenha provado que o Autor entregou, como empréstimo, a quantia de € 290.532,50 [al. 1., dos factos não provados]; provou-se, isso, sim que aquele mutuou aos Réus diversas quantias parcelares, em diferentes momentos do tempo.
O montante de € 290.532,50, contudo, apresenta relação com esses empréstimos anteriores, pois que, do conjunto da produção de prova, apurou-se que aquela cifra corresponde ao capital emprestado acrescido de juros vencidos, os quais, anualmente, foram incluídos na dívida de capital, do que resultou no montante aludido no documento de fls. 5/verso”.
Assim, tal como decorre da motivação exposta pelo tribunal a quo, que traduz a prova produzida nos autos, o montante de €290.532,50 constante do documento de fls. 5/verso, corresponde ao valor do capital emprestado pelo Autor em momentos anteriores, acrescido de juros vencidos, que anualmente foram sendo incluídos na divida.
Sustenta o Recorrente que tal se traduz na novação da obrigação, à semelhança do que ocorreu nas anteriores declarações de divida, entendendo que está em causa uma questão simultaneamente de facto e de direito, pelo que a sua argumentação, fazendo apelo aos documentos juntos aos autos e às declarações de C. M. (filho do falecido A. M.) e de F. T., irmão do Autor, é também de direito.

A este propósito o tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:

“A dado passo, na réplica, os Réus sustentaram que a sucessiva existência de novas declarações de dívida consubstancia a novação do empréstimo inicial, sendo demonstrativas da nova vontade de contrair uma nova obrigação (cfr., maxime, artigos 108º a 113º, da réplica).
Constitui matéria de direito saber se o conteúdo dessas declarações expressa, ou não, a constituição de uma nova dívida, mas, de uma perspetiva factual, rejeita-se que aquelas declarações, e em particular a de fls. 5/verso, traduza a constituição de uma nova relação de empréstimo, disruptiva dos mútuos parcelares que a antecedem, suscetível de levar à demonstração do alegado em 1º, da petição inicial.
É que, com a subscrição das declarações, não existiu qualquer entrega adicional de quantias em dinheiro à Ré e ao seu falecido marido; nessas declarações, nem todas subscritas pela Ré mulher, apenas se atualizou o valor da dívida, em função de entregas parcelares que iam sendo realizadas e nos termos do cálculo que acima se enunciou (imputação do restituído pelos devedores aos juros vencidos e adição dos juros não totalmente pagos ao valor do capital em dívida, incindindo os novos juros sobre essa soma). A menção que consta numa delas (cfr. fls. 56/verso) no sentido de que as anteriores ficavam sem efeito apenas significa que, por força de terem levado em conta as entregas parcelares entretanto realizadas pela Ré e pelo seu falecido marido, há um novo montante em dívida a ser considerado pelos devedores.
Donde, salvo o devido respeito por melhor opinião, a existência das declarações não permite inferir uma vontade renovada em substituição da anterior dívida. Aliás, a invocação da novação é, em certa medida, contraditória com a alegação simultânea efetuada pelo Autor, mormente no artigo 44º, da réplica, de que as sucessivas declarações “titulavam simples operações aritméticas relativas a quantia em dívida aos juros vencidos em cada um dos momentos.”
É esta também a nossa convicção; analisados os documentos juntos aos autos, em particular as declarações em causa, dos mesmos não se infere a vontade das partes, designadamente da Ré e de seu falecido marido, em substituírem no momento de cada declaração a divida anterior, em assumirem uma nova divida perante o Autor em substituição da anterior.
Da mesma forma, as declarações de C. M. e da testemunha F. T., designadamente na parte transcrita pelo Recorrente, também não permitem retirar tal conclusão. O primeiro refere que se os documentos estão assinados pelo pai é porque corresponde à verdade; contudo, dos documentos o que se retira é que o reconhecimento de que o montante em divida era de €290.532,50 e não a vontade de assumir uma nova divida, aliás no documento de fls. 89 vº é feita referência a pagamentos anteriores.
Quanto às declarações da testemunha F. T. também não se extrai a vontade de assumir uma nova divida, mas ao acerto de contas que era efetuado e à acumulação no ano de 2013 de uma divida na ordem dos 290 mil euros, mais qualquer coisa.
De facto, não resulta da prova que com a subscrição das referidas declarações, tivesse existido qualquer entrega de dinheiro à Ré e ao seu falecido marido, mas apenas uma atualização do valor da dívida, considerando a entrega de quantias ao Autor, que foram imputadas a juros vencidos e a soma do valor dos juros não totalmente pagos ao valor do capital em dívida, passando os novos juros a incidir sobre o montante decorrente dessa soma.
Aliás, é o Recorrente que alega expressamente no artigo 43º da réplica, que o teor das “sucessivas declarações de divida representa a exata vontade dos outorgantes tanto mais que titulavam simples operações aritméticas relativas a quantia em dívida aos juros vencidos em cada um dos momentos”.

Assim, e face ao exposto, iremos aditar aos factos provados um novo ponto, ainda que não com a redação pretendida pelo Recorrente, e que será o ponto r):

“r. O montante de €290.532,50, constante da declaração referida em a. corresponde ao capital emprestado pelo Autor à Ré mulher e ao seu falecido marido, acrescido de juros vencidos ao longo dos anos e que anualmente foram sendo incluídos na divida.
O Recorrente veio ainda sustentar, arguindo a nulidade da sentença, que esta não dá resposta nem de provado, nem de não provado, a inúmera matéria de facto relevante por si alegada na réplica, mormente os artigos 28º a 115º da réplica.
Conforme já decidimos supra, não está em causa a nulidade da sentença, mas um eventual vicio de deficiência de matéria de facto, que importa agora apreciar.
Vejamos.
O primeiro ponto que urge salientar é que o Recorrente se refere de forma genérica a “inúmera matéria de facto relevante por si alegada na réplica”, sem especificar os factos concretos a que não é feita referência na matéria de facto fixada pelo tribunal a quo e que, para si, se apresentam como relevantes segundo todas as soluções de direito plausíveis, sendo certo que a referência aos artigos 28º a 115º da réplica também nada tem de concreto, tanto mais que parte dos factos ai alegados têm efetivamente tradução na matéria de facto provada, como é o caso dos valores emprestados pelo Autor a que o mesmo alude nos artigos 46 e 48 da réplica e que têm correspondência no ponto b) dos factos provados, ou as diversas declarações a que se refere nos artigos 47 a 73 da réplica, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido nos pontos a. e d. a p. dos factos provados; também o facto do capital considerado em divida nas declarações em causa, subscritas pela Ré e pelo seu falecido marido ou só por este, ser o capital atualizado com inclusão de juros vencidos até cada momento, é o que ressalta da alínea q. dos factos provados.
Por outro lado, nos artigos a que se refere o Recorrente constam diversos onde, em vez de factos, se mostra alegada matéria de direito e conclusiva e, por isso, insuscetível de ser levada à matéria de facto, como ocorre, designadamente com os artigos 83 a 114.
Por último, importa referir que os factos alegados e relevantes para a decisão a proferir, segundo as várias soluções plausíveis, em conformidade com os temas da prova elaborados (v. despacho proferido em 07/11/2019), segundo entendemos, constam da matéria de facto, inexistindo, por isso, qualquer interpretação do artigo 607º n.º 4 do CPC desconforme com o artigo 20º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis ou do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Tendo-se mantido a matéria de facto, com exceção do aditamento do ponto r), tal como decidida pelo tribunal a quo, importa agora decidir se deve ou não manter-se a decisão de mérito que julgando a ação parcialmente procedente condenou os Réus na restituição ao Autor da quantia de €95.080,30, acrescida de juros de mora a contar da citação à taxa legal de 4% (sem prejuízo de ulterior alteração legislativa).
O tribunal a quo considerou que os factos provados não demonstram o empréstimo da quantia de €290.532,50 em 14 de outubro de 2013, nos termos alegados pelo Autor na petição inicial, mas a existência de empréstimos anteriores no valor global de €245.408,57, que configuram contratos de mutuo nulos por inobservância da forma legal, cuja nulidade afeta a convenção respeitante aos juros (seja quanto à capitalização de juros seja quanto aos juros remuneratórios), concluindo pela inexistência de novação da divida, bem como pela inexistência de abuso de direito no comportamento dos Réus.
O Recorrente insurge-se contra tal entendimento sustentando a validade da capitalização de juros e a novação objetiva da divida (com a extinção das obrigações anteriores e sua substituição por outra), mas também o abuso de direito por parte dos Réus em pretenderem que as quantias pagas sejam imputadas ao capital e não a juros.
Vejamos se lhe assiste razão.
O Autor veio peticionar nos presentes autos a declaração de nulidade do contrato de mútuo, alegadamente celebrado com a Ré e seu falecido marido em - de agosto de 2013, no montante de €290.532,50, sem prazo acordado quanto à restituição da quantia mutuada (cfr. artigos 1º e 2º da petição inicial), e a condenação na restituição daquela quantia acrescida dos juros contratualizados à taxa de 6% ao ano.
Tal como se refere na sentença recorrida o Autor estruturou a presente ação, e o pedido de restituição da quantia alegadamente mutuada, na nulidade de um contrato de mútuo por vício de forma.
Como é consabido o contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1142º do Código Civil), sendo considerado um contrato real quoad constitutionem, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa (neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª Edição, Revista e Atualizada, Coimbra Editora, p. 680).
In casu, não resulta da matéria de facto provada que o Autor, por documento particular celebrado em Guimarães, emprestou à Ré e ao seu falecido marido em 14/10/2013, a quantia de €290.532,50.
O que resulta demonstrado é que o Autor lhes emprestou em momentos anteriores determinadas quantias em dinheiro: 16.900.000$00 em julho de 1995, 12.300.000$00 entre fevereiro e junho de 1996, 14.700.000$00 em 8 de abril de 1998 e 5.300.000$00 em 15 de abril de 1998, no valor global de 49.200.000$00 (correspondente a €245.408,57).
Ressalta ainda da matéria de facto provada a existência de diversas declarações, subscritas pela Ré e pelo seu falecido marido, ou apenas por este, sendo a última (em termos temporais) o documento junto a fls. 5 vº, datado de 14/08/2013 (ponto a. dos factos provados) e a que se refere o Autor no artigo 1º da petição inicial.
Sustenta o Recorrente que aqueles empréstimos foram substituídos, de forma a que, ao serem emitidas e subscritas as sucessivas declarações de divida, estamos perante a denominada “novação objetiva”, tendo a Ré e seu falecido marido contraído uma nova obrigação em substituição da anterior, em conformidade com o disposto no artigo 857º do Código Civil, e, desta forma, o documento de fls. 5 verso consistiu na novação das dívidas dos empréstimos anteriores, e na assunção de uma nova obrigação em substituição das anteriores a qual, não tendo respeitado a forma legal, é nula determinando a obrigação de restituição do capital mutuado correspondente ao valor de €290.532,50.
O tribunal a quo entendeu inexistir a novação das dívidas, não tendo havido a constituição de uma nova obrigação, antes resultando dos autos a existência de mútuos anteriores, nulos por falta de forma.
Vejamos então se estamos perante uma novação objetiva da divida como pretende o Recorrente.
É inequívoco que a novação é regulada no Código Civil como uma das causas de extinção das obrigações.
A novação, enquanto causa de extinção das obrigações, consiste “na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela” (v. Antunes Varela, Obrigações Em Geral, Vol. II, 7.ª Edição, Reimpressão da 7ª Edição, p. 230).
Conforme se estabelece no artigo 857º do Código Civil “[D]á-se a novação objetiva quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga”.
Já o artigo 858º do Código Civil regula a novação subjetiva estabelecendo que “[A] novação por substituição do credor dá-se quando um novo credor é substituído ao antigo, vinculando-se o devedor para com ele por uma nova obrigação; e a novação por substituição do devedor, quando um novo devedor, contraindo nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor”.
In casu, importa apenas considerar a novação objetiva.
Devemos, pois, ter como assente que a novação se dá quando se constitui uma nova obrigação em substituição de um vínculo anterior, e se for objetiva significa que o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga.
A novação não se presume pois, conforme decorre do preceituado no artigo 859º do Código Civil, tem de ser expressamente manifestada a vontade de a realizar, ou seja, tem de haver uma declaração com essa finalidade, feita por meio de palavras, escrito ou outro modo direto de manifestação da vontade (cfr. artigo 217º n.º 1 do Código Civil).
O animus novandi tem de ser exteriorizado pelas partes de forma expressa, não podendo ser presumido nem extraído, tacitamente, de outras declarações contratuais.
Uma vez constituída a nova obrigação, a antiga extingue-se imediatamente, surgindo a novação como “um verdadeiro contrato extintivo-constitutivo de obrigações, pelo qual as partes visam expressamente substituir uma obrigação originária, que se extingue, por uma obrigação nova, que se constitui” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, 3ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, p. 152).
De qualquer forma, para que haja novação deve ter por objeto um elemento essencial da relação obrigacional: só é nova a obrigação quando haja uma alteração substancial nos seus elementos constitutivos, não bastando que seja alterada ou modificada a obrigação nalgum dos seus elementos acessórios; e terá que haver sempre a intenção das partes de extinguir a anterior obrigação, criando uma nova em sua substituição, pois se assim não for, se a ideia das partes for a de manter a obrigação, alterando apenas um ou alguns dos elementos, não há novação mas simples modificação ou alteração da obrigação (v. Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, p. 231 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II – Transmissão e Extinção das Obrigações. Não cumprimento e Garantias do Crédito”, 3.ª Edição, p. 204).
Como afirma Antunes Varela (ob. cit., Vol. II, p. 233), se a alteração resultante da convenção das partes se reflete apenas em elementos acessórios da relação creditória (prorrogação, encurtamento, aditamento ou supressão dum prazo; mudança do lugar de cumprimento; estipulação, modificação ou supressão de juros; agravamento ou atenuação de cláusula penal, etc.) nenhumas dúvidas se levantarão, em regra, acerca da persistência da obrigação e da manutenção dos seus elementos não alterados; quando, pelo contrário, a alteração convencionada atinja elementos essenciais da relação obrigacional (o objeto, a causa, os sujeitos), o seu sentido pode já ser radicalmente distinto.
No caso concreto, temos de concordar com a posição plasmada na sentença recorrida no sentido de que “a sucessiva subscrição de declarações de dívida teve sempre como antecedente os mútuos iniciais, consubstanciando meras operações aritméticas destinadas ao apuramento do valor atual da dívida (que refletia os pagamentos parciais realizados pelos mutuários e a adição ao capital dos juros não integralmente pagos). A menção que consta numa delas (cfr. fls. 56/verso) no sentido de que as anteriores ficavam sem efeito apenas significa que, por força de terem levado em conta as entregas parcelares entretanto realizadas pela Ré e pelo seu falecido marido, há um novo montante em dívida a ser considerado pelos devedores”.
De facto, não conseguimos apreender da matéria de facto provada, em particular das declarações referidas nos factos provados, o necessário animus novandi, a vontade expressa das partes em constituir uma nova obrigação em substituição da anterior, extinguindo-se esta; o que ressalta é efetivamente que as mesmas traduzem o apuramento da quantia considerada em divida em cada momento, tendo em atenção os pagamentos feitos e a soma ao capital dos juros não integralmente pagos, consubstanciando meras operações aritméticas tal como alegado pelo Recorrente no artigo 43º da réplica.
Temos, por isso, de concluir não existir novação objetiva da divida, não se tendo constituído uma nova obrigação, um novo empréstimo à Ré e falecido marido, com a declaração de fls. 5 verso; não se constituindo, por essa via a obrigação de restituição do capital mutuado correspondente ao valor de €290.532,50, improcedendo nesta parte o recurso.
Por outro lado, tal como decidido pelo tribunal a quo, e não vem questionado no presente recurso, estão em causa nos presentes autos contratos de mutuo (nos montantes de 16.900.000$00 em julho de 1995, 12.300.000$00 entre fevereiro e junho de 1996, 14.700.000$00 em 8 de abril de 1998 e 5.300.000$00 em 15 de abril de 1998, no valor global de 49.200.000$00, correspondente a €245.408,57), nulos por inobservância da forma legal, nos termos do disposto no artigo 220º do Código Civil, uma vez que não foram acompanhados da outorga de escritura pública, conforme era imposto pela lei em vigor à data em que foram celebrados (v. artigo 1143º do Código Civil, nas versões introduzidas pelos Decreto-Lei n.º 190/85, de 14/06 e do Decreto-Lei n.º 163/95, de 13/07).
Nos termos previstos no artigo 289º n.º 1 do Código Civil, a nulidade determina a obrigação de restituir tudo quanto tiver sido prestado, retroagindo os seus efeitos à data de celebração do negócio, devendo a restituição ser feita pelo valor nominal que a moeda tinha, não havendo lugar a qualquer atualização (v. acórdão da Relação do Porto de 11/02/2021, Processo n.º 1095/20.6T8VNG.P1, Relator Desembargador Filipe Caroço, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, sendo nulos os contratos de mútuo, deve ser restituído tudo quanto haja sido prestado em virtude de tais contratos.
A nulidade dos mútuos afeta quaisquer convenções acordadas, designadamente no que respeita a juros, pois o negócio nulo deixa de produzir quaisquer efeitos, estando apenas em causa o efeito restituitório, em espécie ou pelo equivalente, nos termos referidos no referido artigo 289º do Código Civil.
Tal como se refere na sentença recorrida, ainda que se entendesse existir convenção posterior ao vencimento para que os juros vencidos produzam juros, de forma a que fosse de considerar admissível o anatocismo (cfr. artigo 560º do Código Civil), a nulidade por falta de forma dos contratos de mútuo celebrados sempre afetaria também essa convenção, assim como afetaria a estipulação respeitante aos juros remuneratórios acordados, sendo de com concluir pela inexistência destas pois o negócio nulo deixa de produzir quaisquer efeitos, estando apenas em causa o efeito restituitório.
Neste sentido, o tribunal a quo considerou que as quantias entregues pela Ré e seu falecido marido ao Autor devem ser imputadas ao capital, a ser restituído face ao preceituado no artigo 289º do Código Civil, pelo que, tendo sido entregue o valor global de €150.328,27 (correspondente à soma dos seguintes valores: €518,75, €6.729,14, €17.876,90, €99.758,48, €8.000,00, €1.000,00, de €8.220,00 e de €8.225,00) e perfazendo o montante emprestado o valor global de €245.408,57, faltará restituir a quantia de €95.080,30; e considerou ainda não se verificar abuso de direito no comportamento dos Réus
Em sentido contrário, sustenta o Recorrente que as quantias pagas a título de juros não podem ser repetidas ou imputadas ao capital mutuado, invocando a este propósito o abuso de direito uma vez que a Ré e seu falecido marido foram procedendo ao pagamento de juros sem questionar a validade dos contratos.
Vejamos:
O artigo 334º do Código Civil prevê o abuso do direito dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 3ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora p. 298) a conceção adotada de abuso de direito é objetiva pois “não é necessária a consciência de se excederem com o seu exercício os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites”.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (v. Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, p. 63 e seguintes; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª Edição, 2014, p. 80 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. Vol. I, p. 299).
Poderá dizer-se, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito (v. acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 03/10/2019, relatado pela Conselheira Maria Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt).
O abuso de direito pressupõe, por isso, a titularidade de um direito e o seu consequente exercício, o que será legítimo em tese geral, mas que, em face dos contornos concretos da situação em causa, se revele manifestamente excessivo em face dos “limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso de direito ocorre “quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça” (acórdão da Relação do Porto de 24/02/2015, Processo n.º 46/14.1TBAMT.P1, Relator Desembargador Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt)
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o venire contra factum proprium, a qual se manifesta no essencial pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara” (v. o citado acórdão da Relação do Porto de 24/02/2015).

Como ensina Menezes Cordeiro (Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, julho 1998, p. 964, https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-1998/ano-58-vol-ii-jul-1998/doutrina/), podem apontar-se quatro os pressupostos da proteção da confiança através do venire contra factum proprium:
“1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma catividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.
Ou seja, a proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de proteção da confiança e da exigência de correta atuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi isento de desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; reclama uma atuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte; havendo violação objetiva desse modelo de atuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito formalmente exercido, se pretendem atuar, mas que, objetivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado que a ética negocial reprova, porque incompatível com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito que colidem com o sentido de justiça que a comunidade adota como sendo o seu padrão cultural” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2013, Processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, Relator Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt).
Tal entendimento tem também aplicação aos casos em que o abuso de direito se reconduz às denominadas inalegabilidades formais, ou seja, à invocação da invalidade formal de um negócio pela parte que provocou intencionalmente a ocorrência do vício de que decorre (atuação dolosa), ou que, embora não a tenha provocado, participou na sua prática (atuação ingénua, confiante, oportunista e contraditória), ainda que se venha considerando que, se os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, tal ocorrerá sempre em casos excecionais ou de limite, a ponderar casuisticamente; como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/2016 (Processo n.º 2234/11.3TBFAF.G1.S1, Relator Conselheiro Lopes do Rego, também disponível em www.dgsi.pt) “[E]m situações excecionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respetiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do ato: porém , esta solução - conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia - carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o ato”.
Contudo, nos casos de nulidade formal dos negócios, deverá ter-se sempre em atenção que não é qualquer atuação que pode justificar o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, e que só excecionalmente é que se deve submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium.
In casu, está em causa a não consideração das quantias entregues pela Ré e seu falecido marido a título de juros e a sua imputação no capital, decorrente da nulidade dos contratos de mutuo por falta de forma, entendendo o Recorrente que as quantias pagas a título de juros não podem ser repetidas ou imputadas ao capital mutuado, uma vez que a Ré e seu falecido marido foram procedendo ao pagamento de juros sem questionar a validade dos contratos.
Contudo, no caso dos autos, importa não esquecer que é o próprio Autor/Recorrente que configura a presente ação tendo por fundamento a nulidade por falta de forma cuja declaração constitui o primeiro dos pedidos que formula, sendo nessa nulidade que fundamenta o pedido de restituição da quantia mutuada, acrescida de juros à taxa contratualizada de 6% ao ano.
Considerou-se na sentença recorrida, seguindo a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2019 (Processo n.º 689/16.0T8VGS.P1.S2, Relator Conselheiro Oliveira Abreu, disponível em www.dgsi.pt) que o Recorrente não pode arguir a existência de uma situação de abuso de direito, quando foi ele próprio que introduziu a questão da nulidade por falta de forma em Juízo e foi com base nela que estruturou o pedido para lhe ser restituída a quantia por si emprestada à Ré mulher e ao seu falecido marido.
Também subscrevemos aqui a jurisprudência constante de tal acórdão em cujo sumário se pode ler que “III. Quando a causa petendi assenta no pressuposto da nulidade do negócio jurídico celebrado, por falta de forma, não faz sentido, sustentar o abuso de direito, e violação da boa-fé contratual, por parte dos Réus mutuários, uma vez que foi o próprio Autor, mutuante, que guisou a ação, sustentando a nulidade do mútuo, por falta de forma”.
Ora, também no caso dos autos a causa petendi assenta no pressuposto da nulidade do negócio jurídico, por falta de forma; não faz, por isso, sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, sustentar o abuso de direito quando é o próprio Recorrente que configura a ação no pressuposto da nulidade, por falta de forma, do empréstimo e invoca esta como fundamento do pedido de restituição.
É certo que o Recorrente não demonstrou o alegado empréstimo em 14 de agosto de 2013, da quantia de €290.532,50, cuja restituição peticionou, e nem a novação objetiva da divida, mas que a quantia, constante da declaração referida em a. dos factos provados, corresponde ao capital emprestado pelo Autor à Ré mulher e ao seu falecido marido, em momentos anteriores, acrescido de juros vencidos ao longo dos anos e que anualmente foram sendo incluídos na divida; ou seja, decorrente de mútuos anteriores, também nulos por falta de forma, acrescido de juros vencidos, de forma a que a quantia que pretende ver restituída se funda de igual forma na nulidade dos mútuos.
Assim, foi o próprio Autor, mutuante, que expressamente invocou a nulidade por falta de forma e nela baseou a obrigação de restituição, sendo que os Réus sustentam a não obrigação de restituição de qualquer quantia a título de juros na própria argumentação do Autor ao pretender fazer valer-se da invocada nulidade (v. artigos 68, 69, 70 e 71, 94, 95, 96, 99 e 100 da contestação), sustentando que dessa forma só poderão ser exigidos juros a partir da citação.
No caso dos autos, nem se trata verdadeiramente de equacionar a existência de situações excecionais ou de limite justificativas do impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade por parte dos Réus, pois não são estes, mas o próprio Autor que invoca e peticiona a declaração de nulidade, limitando-se os Réus a extrair as consequências da declaração de nulidade invocada (e peticionada) pelo Autor.
Do exposto decorre que, não se considerando in casu existir abuso de direito no comportamento dos Réus, e afetando a nulidade do mútuo a convenção quanto a juros (seja quanto a juros remuneratórios seja quanto ao vencimento de juros sobre juros), não entendemos que mereça censura a sentença recorrida ao considerar que as quantias entregues devem ser imputadas no capital, o qual deve ser restituído em conformidade com o estipulado no já referido artigo 289º do Código Civil, e ao decidir fixar o valor cuja restituição está em falta em €95.080,30, sendo devidos juros moratórios desde a citação à taxa legal de 4%.
Em face de todo o exposto, improcede, pois, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade do Recorrente em face do seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***
SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil):

I - A novação é regulada no Código Civil como uma das causas de extinção das obrigações e consiste “na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela”.
II - A novação objetiva dá-se quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (artigo 857º do Código Civil).
III - A novação não se presume pois tem de ser expressamente manifestada a vontade de a realizar, ou seja, tem de haver uma declaração com essa finalidade, feita por meio de palavras, escrito ou outro modo direto de manifestação da vontade (artigos 859º e 217º n.º 1, ambos do Código Civil).
IV - Só em casos excecionais ou de limite deverá ser configurado o abuso de direito na invocação de nulidade por inobservância da forma legal de um negócio jurídico.
V - Quando a causa petendi assenta no pressuposto da nulidade do negócio jurídico celebrado, por falta de forma, não faz sentido, sustentar o abuso de direito, e violação da boa-fé contratual, uma vez que foi o próprio Autor, mutuante, que guisou a ação, sustentando a nulidade do mútuo, por falta de forma.
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 10 de março de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)