Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
41/23.0T8PVL-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INDEFERIMENTO DE JUNÇÃO DE DOCUMENTO POR IRRELEVANTE
PRINCIPIO DE GESTÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Ao abrigo do princípio de gestão processual consagrado no art. 6º,1 CPC, e com uma manifestação concreta no art. 443º CPC, quanto à prova documental, o Juiz da causa pode indeferir a junção de um documento, apresentado tempestivamente, se o considerar irrelevante ou impertinente para a decisão da causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

AA, casado, com o cartão de cidadão ...93, válido até 06.02.2029, residente na Rua ..., ... ..., ..., intentou acção declarativa comum contra BB, viúva, residente no Rua ..., ..., ... ..., ... e CC, casada, residente no Praça ..., ... ...,
pedindo que a escritura que descreve e junta sob a designação de documento nº 2 que tem por objecto a entrega de um prédio rústico ali melhor identificado para pagamento de uma dívida de €20.000,00 seja julgada nula e de nenhum efeito por dar abrigo a um negócio simulado.
           
As rés foram citadas e contestaram.

A ré BB reconheceu que são verdadeiros todos os factos relatados na petição inicial, os quais confessou para todos os efeitos legais. E pediu que a acção seja julgada de acordo com a prova a produzir.
A ré CC aceitou alguns factos e impugnou outros, e deduziu reconvenção. Terminou pedindo que a acção seja julgada totalmente improcedente, e que a reconvenção seja julgada totalmente procedente e que o Tribunal reconheça a validade do negócio jurídico dissimulado, de doação.

O autor apresentou réplica defendendo a improcedência do pedido reconvencional.

Chegando à fase de saneamento dos autos, foi proferido despacho saneador, dispensada a realização de audiência prévia, definido o objecto do litígio da seguinte forma: negócio (dação em pagamento totalmente simulada, numa versão, ou doação dissimulada, noutra) celebrado entre as RR. E foram fixados os seguintes temas da prova:

1. Verificação dos pressupostos da simulação absoluta da “dação em pagamento” celebrada entre as RR.
2. Verificação dos pressupostos da simulação relativa da “dação em pagamento” celebrada entre as RR. (dissimulando uma doação).

A segunda ré requereu as seguintes diligências de prova:
-que seja ordenado ao Autor-Reconvindo a junção aos autos de qualquer escritura pública, documento particular, contrato (de doação, de compra e venda, de arrendamento, de dação, de mútuo, de comodato ou qualquer outro) celebrado entre si e a Ré BB, desde ../../2018 e até à presente data.
-que seja ordenado à Ré BB a junção aos autos de qualquer escritura pública, documento particular ou contrato (de doação, de compra e venda, de arrendamento, de dação, de mútuo, de comodato ou qualquer outro) celebrado entre si e o Autor-Reconvinte ou entre si e o seu filho DD, desde ../../2018 e até à presente data.
-que seja ordenado à Conservatória do Registo Predial ... que venha aos Autos esclarecer que registos realizou relativos a transmissões realizadas entre a Ré BB (BB), portadora do cartão de cidadão nº ...05, NIF ...23 e o Autor-Reconvindo, seu filho, AA e ainda que registos realizou relativos a transmissões realizadas entre a Ré BB (BB), portadora do cartão de cidadão nº ...05, NIF ...23 e o seu filho DD.
-que seja ordenado ao Serviço de Finanças ... que venha aos Autos esclarecer que impostos foram cobrados e que transmissões foram detectadas relativos a transacções realizadas entre a Ré BB (BB), portadora do cartão de cidadão nº ...05, NIF ...23 e o Autor-Reconvindo, seu filho, AA e ainda que impostos foram cobrados e que transmissões foram detectadas relativos a transacções realizadas entre a Ré BB (BB), portadora do cartão de cidadão nº ...05, NIF ...23 e o seu filho DD.

O Tribunal indeferiu ao requerido, com o fundamento de tais diligências se afigurarem totalmente irrelevantes para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio, nos termos do art. 411º CPC.
Não foi interposto recurso desse despacho.

Por requerimento de 12.1.2024 veio a ré CC requerer, por estar dentro do prazo de 10 dias após a notificação da dispensa de realização de audiência prévia, o aditamento de 2 documentos, onde consta, do documento 1, certidão permanente do prédio descrito na conservatória sob o artigo ...11 da Conservatória do Registo Predial ... e, do documento 2, escritura realizada a 05/06/2020 entre 1ª Ré e Autor, na qual, a 1ª Ré, através de dação em pagamento, vendeu três prédios rústicos, ao Autor, declarando entregas em dinheiro no valor de vinte e cinco mil euros.

Por requerimento de 24.1.2024, veio a ré BB exercer o contraditório quanto ao requerimento anterior, dizendo, em síntese, que esses mesmos documentos correspondem precisamente aos documentos cuja junção foi indeferida no ponto 12 do despacho saneador. Tais documentos são totalmente irrelevantes para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio e não devem ser admitidos.

Foi então proferido o seguinte despacho:
“A 2ª R. veio requerer a junção de dois documentos, relativos a um imóvel e a uma dação em pagamento que não envolve a 2ª R.
A 1ª R. veio alegar que a junção de tal documentação já havia sido indeferida.
Cumpre decidir.
Atento o objecto do litígio e os temas probatórios (que se restringem a uma simulação absoluta/relativa – e, neste caso, dissimulando a doação de um imóvel) a documentação junta (por se referir a outro imóvel e a outra dação em pagamento em que não interveio a 1ª R.) afigura-se-me irrelevante para a apreciação da causa (como já havia sido decidido, aliás, no saneador, quanto a toda a documentação relativa a outros negócios celebrados).
Pelo exposto, indefiro o requerido”.

Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
A. A Recorrente vem interpor recurso do despacho proferido pelo Tribunal a quo proferido a 22/02/2024, referência ...97, onde se indefere a alteração do requerimento      probatório apresentada a 12/01/2024, referência ...30.
B. Nesse requerimento de alteração do requerimento probatório a Recorrente juntou dois novos documentos e requereu que nos depoimentos de parte requeridos da 1ª Ré e do Autor (com a contestação e reconvenção), fossem as partes confrontadas com o teor desses documentos.
C. Entendeu o Tribunal a quo que tais documentos se afiguram “irrelevantes para a apreciação da causa” e, por isso, indeferiu o requerido.
D. Ressalvado o devido respeito por opinião diversa, decidiu mal o Tribunal a quo.
E. Não tendo sido realizada audiência prévia, por o Tribunal a quo a ter dispensado, assistia à Recorrente o direito de, no prazo de 10 dias após a notificação dessa dispensa, proceder à alteração do requerimento probatório – vide Ac. TRC de 15/01/2019 e TRE de 24/10/2019.
F. Tal afigura-se como um verdadeiro direito potestativo, não sendo estabelecido, pelo artigo 598º CPC, qualquer limite a essa mesma alteração – vide Ac. TRG de 18-03-2021.
G. Pelo que, era direito da Recorrente alterar o requerimento probatório, nos moldes em que fez – vide Ac. TRL de 29-09-2022.
H. Todavia, mesmo que se lançasse mão do regime da junção de documentos constante do artigo 423º do CPC, também por esta via os documentos juntos deveriam ter sido admitidos.
I. O referido artigo estabelece três momentos distintos para a junção de documentos: com os articulados, até 20 dias antes da audiência final, situações nas quais se verifica um verdadeiro direito potestativo da parte, apesar de, na última hipótese, poder vir a ser condenada em multa e um terceiro momento, após o prazo constante no artigo 423º/2, em que a junção só é admitida mediante o cumprimento de determinadas prerrogativas.
J. Ora, nos Autos nem sequer está agendada audiência de julgamento, pelo que, não obstante eventual condenação em multa, assistia à parte o direito potestativo de junção dos dois documentos por si juntos.
K. No entanto, acompanhamos de perto o sumariado no Ac. TRL de 29-09-2022, onde é referido que o regime do artigo 423º CPC só seria aplicável, enquanto regime geral, se não fosse aplicável o regime do artigo 598º CPC, o que não é o caso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se o Tribunal deveria ter admitido a junção aos autos dos dois documentos que a ré CC apresentou.

III
Para bem decidir, importa atentar mais em detalhe, no essencial que é alegado na petição inicial e nas contestações.
Em resumo: o autor (AA) é filho da primeira Ré (BB) e tio da segunda Ré (CC), e irmão do pai desta. Existe ainda uma outra irmã do autor e tia da segunda ré, de nome EE.
O autor e seus irmãos DD e EE, são filhos de AA, sendo a segunda Ré neta daquele AA, já falecido no dia ../../2009.
A 1ª Ré é viúva daquele AA (falecido a ../../2009).
A 1ª Ré quis beneficiar a sua filha EE e a sua neta CC, 2ª Ré, em relação aos outros filhos, quando fosse aberta a sua sucessão por morte.
Para o efeito celebraram no dia 28.10.2009 uma escritura de confissão de dívida no montante de 150.000,00€,
Também fez 3 testamentos onde legava à filha EE o remanescente da sua quota disponível, todos eles posteriormente revogados.
Para beneficiar a filha e a neta, aqui 2ª Ré, prejudicando os restantes filhos, e porque passaria a dar muito nas vistas beneficiar ainda mais a sua filha, a 1ª Ré decidiu agora virar-se para a neta, aqui 2ª Ré. Assim,
No dia 28 de Fevereiro de 2018, a primeira ré declarou falsamente que a segunda ré lhe emprestou, em diversas parcelas e datas várias, sem juros, o montante de € 20.000,00. Para pagar essa dívida a primeira ré deu em pagamento à segunda ré um prédio rústico, ao qual atribui o valor de €20.000,00.
Mas nada do que consta dessa escritura de dação em pagamento corresponde à verdade. É um caso de simulação absoluta.
Contestação da ré BB:
Custa muito à Ré contestante admitir que são verdadeiros todos os factos relatados na petição inicial, os quais se confessam para todos os efeitos legais.
Fruto de desentendimentos vários, a ora contestante incompatibilizou-se com os seus filhos varões e apegou-se à sua filha EE. Essa filha está desavinda com os irmãos há mais de 17 anos. E convenceu a mãe a fazer tudo quanto fosse possível para que os seus irmãos recebessem o menos possível das heranças da contestante e do marido.
Contestação da ré CC:
A avó BB, aqui Ré, transmitiu à Ré CC a sua intenção de, em definitivo, lhe doar um determinado prédio.
E a forma jurídica encontrada para procederem à doação do terreno seria uma dação em pagamento, pois assim não se preencheria a quota disponível da Ré BB e não seria necessária a autorização dos restantes filhos ou netos.
A Ré CC, perante a decisão da avó, limitou-se assentir com a solução que lhe era apresentada, vindo a assinar a dação em pagamento datada de ../../2018.
É verdade que a Ré CC nunca emprestou à sua avó a quantia de €20.000,00, sendo o negócio simulado, pelas razões já explicadas.
Mas por baixo dele existe um negócio dissimulado, um negócio real, que as partes efectivamente quiseram celebrar, a doação do imóvel à Ré CC.
Salienta-se que só agora, mais de 5 anos volvidos, vem o Autor-Reconvindo interpor a presente acção, em virtude de a dinâmica familiar ter mudado.
Na verdade, desde ../../2019 que a Ré BB se incompatibilizou com a sua filha EE. Apesar de Ré-Reconvinte CC ser totalmente alheia a esse facto, nunca tendo tido qualquer discussão ou desentendimento com a Ré BB, sua avó, parece que aquela parte da família, Autor-Reconvindo, o seu pai e filho da Ré BB, DD e a própria Ré BB, colocaram no mesmo patamar de ostracização a Ré-Reconvinte CC da sua Tia, EE.
Aliás, se atentarmos à Contestação da Ré BB, facilmente se compreende que a mesma está de claro conluio com o Autor-Reconvindo no sentido de procurar “dar o dito pelo não dito”, procurando reaver o prédio em causa nos presentes Autos, para, quem sabe, doá-lo ao Autor-Reconvindo.
Se se considerar que tal afirmação é infundada, em audiência de julgamento se apurará se o Autor-Reconvindo não adquiriu já se não vários, pelo menos um prédio, que era propriedade da Ré BB.

IV
Conhecendo.
O despacho recorrido não rejeitou os documentos nem com o argumento de a sua apresentação ser extemporânea, nem com o argumento de a questão estar já abrangida pelo caso julgado formal formado pela decisão proferida em sede de despacho saneador.
Rejeitou a junção de tais documentos aos autos única e exclusivamente por os considerar irrelevantes para a decisão da causa, atento o objecto do litígio e os temas probatórios (que se restringem a uma simulação absoluta/relativa – e, neste caso, dissimulando a doação de um imóvel).
Registamos que a recorrente não impugna o juízo sobre a utilidade do documento feito pelo Tribunal recorrido. Invoca apenas o seu direito -não tendo sido realizada audiência prévia por o Tribunal a ter dispensado-, de, no prazo de 10 dias após a notificação dessa dispensa, proceder à alteração do requerimento probatório.
Uma vez que o Tribunal não disse que os documentos em causa eram extemporâneos, nem sequer iremos discutir essa questão.

Vamos pois limitar-nos a dizer que:
a) ao abrigo do princípio de gestão processual consagrado no art. 6º,1 CPC, e com uma manifestação concreta no art. 443º CPC, quanto à prova documental, o Juiz da causa pode indeferir a junção de um documento se o considerar irrelevante ou impertinente para a decisão da causa (cfr. anotação aos respectivos artigos, in CPC anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa).
b) neste caso concreto, concordamos inteiramente com o Tribunal recorrido, pois atento o objecto do litígio e os temas probatórios, que consistem em saber se o negócio supra identificado foi simulado, e se essa simulação foi absoluta ou se existe um outro negócio escondido por esse (o dissimulado), os documentos que a recorrente pretendeu juntar, por dizerem respeito a outros contratos que não o que é objecto do litígio, são de todo irrelevantes para a decisão final. Os documentos em causa servem apenas para a ré provar aquilo que alegou na sua contestação/reconvenção, sobre o porquê de só agora, mais de 5 anos volvidos sobre a simulação, vir o Autor-Reconvindo interpor a presente acção, em virtude de a dinâmica familiar ter mudado.

Ora, a “dinâmica familiar actualizada”, neste caso concreto, é de todo irrelevante para a acção: o saber se a ré BB se incompatibilizou ou não com a sua filha EE, se a ré CC, como se diz na gíria, “apanha por tabela”, se aquela está de conluio com o Autor-Reconvindo, procurando reaver o prédio em causa nos presentes autos, para o doar ao Autor, são, salvo melhor opinião, de uma total irrelevância para o objecto da causa (simulação e existência de negócio dissimulado).
Pelo que bem andou o Tribunal recorrido em indeferir à junção desses documentos.
O recurso improcede na íntegra.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra o despacho recorrido.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 11.7.2024

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alexandra Rolim Mendes)
2º Adjunto (Eva Almeida)