Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | DOAÇÕES A FAVOR DOS CÔNJUGES COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO EFEITOS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | (i) Do princípio da dualidade das partes, característico dos processos de jurisdição contenciosa, resulta que toda a ação pressupõe, pelo menos, duas partes: autor e réu. (ii) A verificação de uma situação em que a mesma pessoa deva ser réu e autor tem como consequência natura rerum, nos casos de legitimidade singular, a impossibilidade da ação, seja ela original ou superveniente. (iii) Nos casos de legitimidade plural, não podendo negar-se o direito de os demais titulares do interesse atuarem em juízo contra o outro titular, sob o pretexto de, não estando este do lado ativo, estar a ser infringido um litisconsórcio necessário, com a consequente ilegitimidade, é de entender que a finalidade prosseguida através da figura do litisconsórcio – a presença na ação de todos os titulares da relação material controvertida, para que a sentença produza os seus efeitos materiais de forma subjetivamente esgotante – é alcançada pela presença, como réu, daquele que tinha também legitimidade para figurar como autor. (iv) Entre nós vigora, desta a entrada em vigor a Lei n.º 61/2008, de 31.10, o modelo do divórcio-rutura, nos termos do qual o fundamento do divórcio é a falência da comunhão conjugal, abstraindo-se de qualquer declaração de culpa dos cônjuges. (v) Em decorrência, os efeitos patrimoniais do divórcio estão relacionados exclusivamente com a cessação do casamento, não constituindo uma sanção para qualquer um dos cônjuges. (vi) Entre esses efeitos inclui-se a perda dos benefícios adquiridos pelos cônjuges por causa do estado de casados, tributária da ideia de que o casamento não deve constituir um meio para o enriquecimento dos cônjuges. (vii) No conceito de benefícios adquiridos pelos cônjuges por causa do estado de casados incluem-se as doações feitas por terceiro de bens especificamente destinados a integrarem o património comum dos cônjuges. (viii) Aquela perda de benefícios ocorre ipso facto, independentemente da vontade do doador, e tem efeitos ex nunc. | ||
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Decisão Texto Integral: | I. 1). AA, “por si e na qualidade de herdeira das heranças indivisas e já aceites, abertas por óbito de BB e CC” (sic), intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra DD e EE, pedindo: (i) a título principal, a declaração de “caducidade das doações efetuadas à Ré por escritura pública celebrada no dia 30.11.1999, no Cartório Notarial ..., arquivada no Livro ...2-D sob fls. 69 e seguintes, isto é, que seja declarada a perda do beneficio obtido por esta por efeito das referidas doações, tendo por objeto os imóveis elencados no artigo 2.º da petição inicial, revertendo o direito de propriedade da sua quota-parte nos identificados imóveis a favor do acervo hereditário dos doadores e determinando-se o respetivo registo de aquisição, com a consequente extinção do direito na esfera jurídica da Ré;” (ii) a título subsidiário, a declaração de “caducidade das doações efetuadas aos Réus por escritura pública celebrada no dia 30.11.1999, no Cartório Notarial ..., arquivada no Livro ...2-D sob fls. 69 e seguintes, isto é, que seja declarada a perda do beneficio obtido por estes por efeito das referidas doações, tendo por objeto os imóveis elencados no artigo 2.º da petição inicial, revertendo as suas quotas-partes nos identificados imóveis a favor do acervo hereditário dos doadores e determinando-se o respetivo registo de aquisição, com a consequente extinção do direito na esfera jurídica dos Réus.” Alegou, em síntese, que: BB e CC, falecidos em ../../2002 e ../../2016, respetivamente, eram os pais do Réu EE; este, por sua vez, era casado com a Ré DD segundo o regime da comunhão de adquiridos; por escritura pública outorgada no dia 30 de novembro de 1999, os primeiros declararam doar aos segundos, que no mesmo ato declararam aceitar a doação, sob reserva de usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último dos doadores, a raiz ou a nua propriedade dos prédios identificados (art. 2.º da petição inicial), por conta da quota disponível do Réu EE; entretanto, o casamento que unia os Réus foi dissolvido, por divórcio, decretado por sentença de 8 de abril de 2015, proferida pelo Tribunal do Condado de ..., Estados Unidos da América, revista em Portugal por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de dezembro de 2015; uma vez que a Ré apenas foi beneficiada com as referidas doações por ser casada, à data, com o filho dos doadores, estas caducaram no que tange à respetiva quota-parte, nos termos do disposto no art. 1791/1 do Código Civil. Os Réus foram citados e, na sequência, a Ré DD apresentou contestação, na qual alegou, também em síntese, que: a Autora, “como pessoa singular” (sic) não é parte legítima para requerer a invocada caducidade das doações em causa nos autos; esse direito apenas podia ser exercido pelos doadores e não por um terceiro, como a Autora, alheio a tais atos; os doadores agiram com a intenção de que os bens doados passassem a integrar o património comum do casal constituído pelos donatários; não se pode retirar das declarações dos doadores que a doação tenha sido feita à Ré tendo em atenção o estado de casada desta; tanto assim que os doadores nunca invocaram a caducidade da doação nem requereram a sua reversão; ainda que assim não fosse, a caducidade teria de abranger toda a doação e não apenas a quota-parte da Ré; previamente ao divórcio, os Réus celebraram, no Supremo Tribunal do Estado de Nova Iorque, uma Estipulação de Partilhas, na qual acordaram em proceder à venda dos bens doados, assim que cessasse o usufruto a favor dos doadores, e repartir o valor obtido em partes iguais. Concluiu que: (i) deve ser julgada verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, com a consequente absolvição dos Réus da instância; (ii) caso assim não seja entendido, a ação deve ser julgada improcedente, com a consequente absolvição dos Réus dos pedidos formulados. Na sequência de despacho judicial, a Autora respondeu à matéria da arguida exceção dilatória dizendo que ela própria e o Réu EE são os únicos herdeiros dos doadores, sendo nessa qualidade que propõe a ação; o Réu está impossibilitado de figurar do lado ativo, uma vez que é também titular passivo da relação material objeto da ação. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho a: fixar em € 60 000,00 o valor processual da causa; julgar não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa; afirmar, em termos tabulares, a verificação dos demais pressupostos processuais; delimitar o objeto do processo [“(…) aferir do preenchimento dos pressupostos da caducidade, previstos no artigo 1791º, do Código Civil, relativamente à transmissão dos bens imóveis, concretizada através do acordo celebrado por escritura pública de 30.11.1999 e, na afirmativa, se entre as consequências admissíveis está alguma das peticionadas pela Autora.”]; e enunciar os temas da prova [“Da intenção dos doadores em relação à donatária Ré aquando da emissão das declarações de vontade constantes do acordo de 30.11.1999.”] Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório: “julgo a ação proposta por AA, na qualidade de herdeira das Heranças Ilíquidas e Indivisas abertas por óbito de BB e de CC, contra FF e EE procedente, por provada, e, consequentemente, declaro a caducidade das doações formalizadas por escritura pública no dia 30 de Novembro de 1999, no Cartório Notarial ..., que têm por objeto os prédios descritos no artigo 2º da petição inicial e em que é donatária a Ré, revertendo o direito de propriedade da sua meação nos identificados prédios a favor do acervo hereditário dos doadores.” *** 2). Inconformada, a Ré (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, visando quer a decisão, proferida em sede de despacho saneador, de julgar não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, quer a decisão, proferida em sede de sentença, de julgar a ação procedente, o que fez através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):“1. Com o devido e merecido respeito, e atento o disposto no artigo 644º, nº 1, alínea a) e nº 3 do Cód. Proc. Civil, a Recorrente vem, pelo presente recurso, impugnar simultaneamente o douto despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa invocada pela Ré e consequentemente julgou a Autora parte processualmente legítima, assim como a douta sentença recorrida, que decidiu julgar procedente a ação proposta pela Autora AA e declarar a caducidade das doações efetuadas à Ré por escritura pública no dia 30 de Novembro de 1999, revertendo o direito de propriedade da Ré a favor do acervo hereditário dos doadores. 2. No modesto entendimento da Recorrente, a Autora não é parte legítima para intentar a presente ação uma vez que, atenta a causa de pedir invocada pela Autora, o interesse em demandar e agir pertence exclusivamente aos doadores, enquanto autores da liberalidade – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2 de julho de 2020, (Processo n.º 3931/16.2T8MTS.P1). 3. Perante o decretamento do divórcio entre EE e FF por sentença de ../../2015, e a ser verdade que as doações efetuadas por escritura pública de ../../1999 foram feitas à Ré em consideração do estado de casada com o filho dos doadores, a doadora CC detinha legitimidade para propor ação judicial contra os ex-cônjuges (EE e DD), a fim de ver decretada a caducidade das doações feitas à Ré, ora Recorrente, e a reversão do direito de propriedade para o seu património, alegando, para o efeito, que apenas declararam doar tais prédios à Ré em consideração do estado de casada com o seu filho EE e no pressuposto que o referido casamento se manteria, o que não fez. 4. Com efeito, os doadores, não intentaram, em vida, ação judicial contra EE e DD (donatários), invocando que, por escritura pública outorgada no dia ../../1999, declararam doar a DD os prédios descritos e constantes do documento junto aos autos de fls 21. a 24, apenas em consideração do estado de casada com o filho (EE), e, face à dissolução do casamento por divórcio, pretendiam ver decretada a caducidade das doações feitas à Ré e declarada a reversão da sua meação para o património dos doadores. 5. A Autora não detém legitimidade para, em substituição dos doadores, intentar a presente ação com vista a ver decretada a caducidade das doações que, no seu entender, foram recebidas pela Ré em consideração do estado de casada com o Réu EE, uma vez que o direito que pretende exercer consubstancia um direito pessoal, intransmissível e que não pode ser suprido através da intervenção dos herdeiros ao abrigo do exercício dos poderes de administração da herança. 6. Os poderes atribuídos aos herdeiros no âmbito da administração da herança não conferem legitimidade à Autora para instaurar a presente ação, e exercer o direito de ver decretada a caducidade das doações feitas à Ré, baseado no pressuposto daquilo que, no seu entender e hipoteticamente, seria a vontade dos doadores, sem o mínimo de sustentação factual e probatória que a fundamente ou comprove. 7. No modesto entendimento da Recorrente, a Autora, ora Recorrida, não pode suprir uma vontade que os doadores não manifestaram em vida, pretendendo sobrepor a sua própria vontade de ver declarada a caducidade das doações feitas à Ré em ../../1999, sem ter conhecimento se essa intenção/vontade corresponderia à vontade que os doadores, caso fossem vivos, pretenderiam exteriorizar e ver reconhecida. 8. Entende a Recorrente que a douta sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que julgue procedente a exceção dilatória de ilegitimidade invocada pela Ré, ora Recorrente, e, em consequência, deve a Ré, aqui Recorrente, ser absolvida da instância nos artigos 30º, 576º, 577º, alínea e), todos do Código de Processo Civil. 9. Sem prescindir, caso a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Autora venha a ser julgada improcedente e, consequentemente, seja mantida a decisão que julgou a Autora parte processualmente legítima, entende a Recorrente que, face à prova produzida e aos factos constantes da matéria de facto dada como provada, a douta sentença recorrida não poderia concluir que as doações formalizadas por escritura pública de 30 de Novembro de 1999, foram feitas à Ré, ora Recorrente, pelo facto de ser casada com EE. 10. Na escritura pública outorgada a 30 de novembro de 1999, no Cartório Notarial ..., consta que BB e CC declararam doar aos representados da segunda outorgante, seus filho e nora, respetivamente, a raiz ou nua propriedade dos imóveis identificados e que a doação é feita, quanto ao filho, por conta da quota disponível deles doadores, reservando para si o usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último deles, doadores. 11. As doações formalizadas por escritura pública de ../../1999, foram feitas conjuntamente a EE e DD, ambas por conta da quota disponível, sem qualquer cláusula ou estipulação que as vincule ao casamento entre os donatários (Réus). 12. Das declarações exaradas na escritura pública celebrada em ../../1999, não consta qualquer cláusula ou estipulação de que a doação a DD foi feita em consideração do estado de casada com o filho dos doadores ou por causa do casamento. 13. Da prova documental e da prova produzida na audiência de discussão e julgamento não resultou provado que a doação em questão nos presentes autos fosse feita à Ré de forma clara, condicionada e ligada ao casamento com EE. 14. Não sendo possível descortinar os contornos que motivaram a outorga da escritura nem sendo possível extrair do texto constante da escritura pública a causa ou as circunstâncias que motivaram as doações, recaía sobre a Autora o ónus de alegar e provar, que a doação foi efetuada à Ré por causa do casamento ou em consideração do estado de casada com EE. 15. De harmonia com o disposto no artigo 342º do Código Civil, incumbe à Autora o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, e não tendo logrado provar que a doação foi feita à Ré na consideração do estado de casada e/ou por causa do casamento com EE, o Tribunal a quo deveria ter decidido contra a parte a quem incumbia o ónus da prova, neste caso, a Autora/Recorrida e deveria ter julgado improcedente a presente ação. 16. O incumprimento do ónus probatório por parte da Autora não pode repercutir e prejudicar a Ré, ora Recorrente, permitindo que a fundamentação da douta sentença recorrida assente num facto essencial, que não foi provado (doações em consideração do estado de casada ou por causa do casamento), e que culmine na procedência da pretensão da Autora. 17. Caso a verdadeira e real vontade dos doadores fosse somente beneficiar e contemplar o filho teriam efetuado as referidas doações apenas a este, por conta da quota disponível, sem intervenção da Ré, dado que este ato não carecia do seu consentimento uma vez que tais bens, sendo doados por conta da quota disponível, constituiriam bens próprios do Réu e não integrariam o património comum do casal. 18. Mas não foi isso que os doadores pretendiam pois que, como consta das declarações exaradas na escritura pública outorgada a ../../1999, a vontade dos doadores foi a de doar conjuntamente a ambos os cônjuges os prédios nela descritos, por forma a que estes integrassem o património comum. 19. Não tendo sido produzida prova no sentido de aferir os contornos, circunstâncias e contexto da celebração da escritura pública de 30 de novembro de 1999, cuja alegação e prova recaía e recai sobre a Autora, a douta sentença recorrida não poderia concluir, como concluiu, que a doação foi feita à Ré na consideração do estado de casada com o Réu EE. 20. Sendo que, a conclusão de que a doação foi feita em consideração do estado de casada, tem de se extrair de factos concretos, que não foram alegados e muito menos provados. 21. Perante a ausência e insuficiência de prova no sentido de que a doação feita à Ré, foi apenas em consideração do estado de casada com o donatário EE, filho dos doadores, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo decidiu para além do que a matéria de facto dada como provada e a restante prova carreada para os autos permite. 22. No modesto entendimento da Recorrente, a dedução de que a doação foi feita à Ré em consideração do seu estado de casada com o Réu EE, sem que fosse produzida prova que comprovasse e sustentasse tal afirmação, consubstanciaria uma sobreposição à vontade real e expressa pelos doadores na escritura pública de ../../1999, na qual declararam doar a EE e a DD os bens descritos na referida escritura junta aos autos de fls. 21 a 24. 23. No modesto entendimento da Recorrente, o ónus probatório não pode ser invertido e fazer impender sobre a Ré, ora Recorrente, o ónus de provar a existência de um motivo/razão, para lá do estado de casada, subjacente à liberalidade dos doadores, quando da matéria de facto assente nos autos não resulta provado que BB e de CC apenas doaram a DD os prédios descritos na escritura pública pelo facto de estar casada com o filho de EE. 24. Assim, não resultando provado nenhum facto que evidenciasse que a doação feita à Ré em ../../1999 foi motivada pelo casamento contraído entre os Réus, e não tendo os doadores praticado qualquer ato que contraditasse a vontade expressa na referida escritura pública, entende a Recorrente que as doações efetuadas devem ser interpretadas de acordo com a vontade expressa pelos doadores no ato, isto é, a vontade de doar a ambos os Réus, sob pena de desconsiderar e desrespeitar a vontade real dos doadores que, em vida, não manifestaram nem exerceram o direito de reversão quanto aos bens doados à Ré. 25. Em todo o caso, ainda que se entenda que a Autora deu cumprimento ao ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, e por conseguinte, se considere que as doações efetuadas a DD foram feitas em consideração do estado de casada com o filho dos doadores, o que apenas por mera hipótese se concebe, a Recorrente diverge do enquadramento e fundamentação de direito vertida na douta sentença recorrida por entender que as doações feitas a ambos os cônjuges não integram os benefícios consagrados no artigo 1791º do Código Civil e, por conseguinte, não caducam automaticamente em caso de divórcio ou de separação de pessoas e bens. 26. Entende a Recorrente que o regime da caducidade das doações e o regime da perda de benefícios consagrado no artigo 1791º do Código Civil são regimes autónomos, que sempre coexistiram e que dispõem de regulamentação própria. 27. As doações para casamento e entre casados não integram o conceito de benefícios previsto no artigo 1791º do Código Civil – neste sentido, Eva Dias Costa no artigo “Contributos para a interpretação do artigo 1791º do Código – a perda de benefícios em caso de divórcio e separação de pessoas e bens”, publicado na Revista Jurídica Portucalense de 2023. 28. As doações não podem ser confundidas com os benefícios referidos no artigo 1791º do Código Civil, porquanto os benefícios do referido artigo 1791º, são vantagens patrimoniais ou não patrimoniais que decorrem do casamento e do estado de casado, e que caducam automaticamente com o divórcio, sem necessidade de qualquer ato autêntico ou decisão judicial, como é o caso da ADSE, do acesso a determinados grupos ou clubes, da integração num seguro de saúde, de vida, ou outros, da aquisição de um título, entre outros. 29. Entende a Recorrente que no conceito de benefícios não se enquadram as doações, que para além de disporem de regime próprio, necessitam, para serem declaradas inválidas ou ineficazes, de um ato autêntico, nomeadamente escritura pública ou documento particular autenticado, ou de uma decisão judicial que possa inviabilizar os efeitos da doação, nomeadamente, no registo predial. 30. Equivaler as doações aos benefícios do artigo 1791º do Código Civil, poderia ainda acarretar prejuízos e injustiças, no caso de doações com cláusulas modais, encargos ou condições que, entretanto, foram satisfeitas e cumpridas pelo cônjuge donatário. 31. No modesto entendimento da Recorrente, as doações efetuadas por escritura pública de ../../1999 não configuram nem integram os benefícios a que alude o artigo 1791º do Código Civil. 32. Mesmo que se entenda que as doações foram feitas à Ré em consideração do estado de casada com o Réu e que tais doações integram o conceito de perda de benefícios consagrados no artigo 1791º do Código Civil, entende a Recorrente que a caducidade/perda das referidas doações não opera automaticamente e carecia e carece de impulso processual por parte dos doadores, mediante a propositura de ação judicial no sentido de manifestarem a sua intenção/vontade de revogar a doação feita à Ré e de ver decretada a reversão da sua quota-parte a favor do património dos doadores, o que não sucedeu. 33. Com efeito, os doadores, não intentaram, em vida, ação judicial contra os donatários (EE e DD), a fim de ver declarada a caducidade das doações efetuadas à Ré por escritura pública outorgada no dia ../../1999, uma vez que tais doações apenas foram feitas em consideração do estado de casada com o filho (EE), e, perante o decretamento do divórcio por sentença de ../../2015, pretendiam ver declarada a reversão da meação da Ré para o seu património. 34. No modesto entendimento da Recorrente, a perda das doações e a perda dos benefícios feitos em consideração do estado de casado ou por causa do casamento não operam ipso iure, ou seja, independentemente de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade uma vez que, do mesmo modo que os doadores detêm liberdade para dispor dos seus bens, também detêm liberdade para revogar e/ou requerer a declaração de caducidade das doações sustentando a modificação ou alteração das circunstâncias que constituíram a base do ato anteriormente exarado. 35. Sendo que, a determinação automática da caducidade das doações e/ou dos benefícios previstos no artigo 1791º do Código Civil atentaria contra a vontade expressa pelos doadores e permitiria que a caducidade afetasse não só a quota-parte da Ré mas também a quota-parte do Réu dado que, na falta de estipulação, os bens doados a ambos os cônjuges entram na comunhão e, à luz do disposto no artigo 1791º do Código Civil, podem ser interpretados como benefícios que cada cônjuge perde por terem sido recebidos de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado. 36. Não resultando dos autos a prova de qualquer facto relativamente à intenção dos doadores, nem à vontade por estes manifestada de que pretendiam a revogação ou a caducidade da doação, não pode a Autora peticionar tal caducidade sob pena de violação da vontade dos doadores. 37. Pois que, nenhum dos doadores manifestou vontade e/ou invocou a caducidade da doação feita à Ré em ../../1999. 38. Ora, tendo o divórcio ocorrido 10 meses antes do óbito da doadora CC, e não tendo esta manifestado qualquer vontade na revogação ou caducidade da doação, deve tal comportamento da doadora ser interpretado como convalidação ou confirmação da doação efetuada à Ré, ora Recorrente. 39. Sendo que, se os doadores, podendo fazê-lo em vida, não o fizeram, não pode a Autora, sua herdeira e sucessora, vir após o óbito dos doadores requerer a caducidade da doação. 40. Acresce que, não tendo os doadores estipulado qualquer cláusula que condicionasse a doação feita à Ré à constância e/ou à manutenção do casamento com o Réu, e não tendo a Autora logrado provar que, em virtude da dissolução do casamento entre os donatários, a vontade dos doadores seria ver decretada a caducidade das doações feitas à Ré e a reversão da quota-parte da Ré para o seu património, no entender da Recorrente, deve ser aplicado o regime geral das doações previsto e consagrado nos artigos 940º e seguintes do Código Civil e não o regime das doações para casamento (artigos 1760º e 1766º do Código Civil) nem o regime da perda de benefícios previsto no artigo 1791º do Código Civil. 41. Diante do exposto, a Recorrente pugna pela validade e eficácia das doações formalizadas por escritura pública de ../../1999, por corresponder à vontade real e expressa pelos doadores, de doarem a EE e a DD os prédios descritos na escritura pública junta aos autos de fls 21. a 24, tratando-se de uma doação regulamentada pelo regime geral previsto nos artigos 940º e seguintes do Código Civil, e não de uma doação para casamento (artigos 1760º e 1766º do Código Civil) nem de um dos benefícios previstos no artigo 1791º do Código Civil. 42. No modesto entendimento da Recorrente, a douta sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 342º, 1729º, 1760º, 1766º, 1791º, 2091º, todos do Código Civil, e nos artigos 30º, 576º, 577º, alínea e), todos do Código de Processo Civil. Pediu que, na procedência do recurso, sejam revogadas: em primeiro lugar, a decisão de julgar não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, substituindo-a por outra que, decidindo em sentido contrário, absolva a Ré da instância; caso assim não seja entendido, em segundo lugar, a decisão de julgar a ação procedente, substituindo-a por outra que a julgue improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido. *** 3). Na resposta, a Autora (daqui em diante, Recorrida) pugnou pela improcedência do recurso. Sem prejuízo, salvaguardando a hipótese de procedência das questões suscitadas pela Recorrente quanto à impugnação da decisão contida na sentença, ampliou o respetivo objeto, concluindo do seguinte modo (transcrição):“I. Na hipótese de procedência, que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, da argumentação da Recorrente relativamente ao ónus probatório (o que não se concede), ou seja, entendendo V.Exas. que impendia sobre a Autora o ónus de provar o concreto facto de que os doadores outorgaram as doações contemplando a Recorrente em consideração do seu estado de casada, à altura, com o Réu, neste cenário torna-se necessária a impugnação da decisão da matéria de facto; II. Isto porque, não obstante a Autora ter alegado e feito prova desse concreto facto, entendeu o Tribunal a quo que o mesmo não era essencial para a decisão da causa nem das várias soluções plausíveis de direito, bastando-se para subsumir o caso dos autos ao regime do art. 1791º do Cód. Civil com os factos que considerou provados na decisão que proferiu sobre a matéria de facto. III. Em função do que se requer, nos termos do art. 636.º, n.º 2 do CPC, a ampliação do âmbito do recurso por forma a que, a título subsidiário, aprecie o Excelentíssimo Tribunal ad quem o facto alegado pela Autora no artigo 15 da sua Petição Inicial, julgando-o provado. IV. Aliás, neste particular, poder-se-á até entender que estava o Tribunal a quo obrigado a pronunciar-se sobre o julgamento de facto deste facto em concreto por ele quadrar a uma solução plausível do direito: caso assim se entenda, o caso poderá quadrar numa nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, a. d) do CPC – nulidade esta que aqui também se invoca por cautela de patrocínio. Ora, V. Alegou a Autora no artigo 15 (que reafirmou-o nos artigos 38 e 39) do libelo inicial: “Conforme melhore se alegou supra, a Recorrente FF apenas foi considerada em tais doações em virtude de, à data da sua realização , ou seja, em 30.11.1999, se encontrar casada com o Réu, filho dos doadores!!” VI. A prova deste facto por parte da Autora no julgamento da causa foi absolutamente abundante e esmagadora: foi produzida prova testemunhal, decorrente do depoimento de parte da Autora e ainda documental, a qual não foi de forma alguma colocada em causa por nenhum meio de prova oferecido pela Recorrente. Vejamos: VII. A prova testemunhal foi clara no sentido de que entre a Recorrente FF e os doadores, pais do Réu, não existia qualquer tipo de relacionamento que justificasse qualquer animus donandi dos mesmos em relação a si que não tivesse como causa única, pura e simples, o vínculo conjugal que a unia ao filho do casal, numa perspetiva favor matrimonii. VIII. Destarte se discorda, com o devido respeito, que é muitíssimo, do Tribunal a quo, quando afirma na sentença recorrida não ter sido possível, “por insuficiência probatória”, determinar os contornos da relação existente entre a Recorrente FF e a falecida CC, e quando afirma não ter sido possível descortinar os contornos, circunstâncias e contexto que envolveram a outorga da escritura pública de 30.11.1999. IX. Pelo contrário, resulta claramente provado, numa perspetiva de probabilidade lógica prevalecente, que a Recorrente FF não visitava sequer a Senhora CC quando se deslocava com o marido a Portugal (ambos eram emigrantes nos EUA) e que, portanto, a relação entre ambas era inexistente ou parca, não permitindo qualquer tipo de ilusão da parte da Recorrente quanto ao motivo pelo qual foi contemplada nas doações. X. Igualmente se conclui que o motivo determinante para as doações foi o falecimento do filho do casal – irmão do Réu – e o facto deixar uma filha bebé e uma esposa estrangeira com a qual não tinham qualquer tipo de afinidade, pretendendo com aquela liberalidade, realizada por conta da quota disponível, beneficiar o filho sobrevivo – o Réu na presente ação. XI. Esse afastamento afetivo da neta e da mãe desta, e consequente projeto de favorecimento do Réu na sua sucessão é corroborado a jusante, aquando do falecimento do Senhor BB, momento no qual a Autora foi omitida pela Sra. CC (doadora) na Habilitação de Herdeiros que consta do Doc. N.º 10 junto com a Petição Inicial. XII. Finalmente, com base na prova testemunhal arrolada pela Autora prova-se igualmente que a Senhora CC sempre se referiu aos negócios em causa nos autos como consistindo em doações ao seu filho, nunca mencionando sequer a Recorrente quando se pronunciava acerca dos mesmos. XIII. Alhures, ditam as regras da experiência comum que o falecido casal, religioso tal como era, achasse por bem doar ao seu filho e à Recorrente os bens de forma conjunta atento o laço matrimonial que unia os Réus e cuja dissolução aos olhos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana se dá apenas com a morte!!! XIV. Para os doadores, beneficiar o filho sem a nora, seria desrespeitar aquele laço relacional, desrespeitar o projeto de vida e de família duradouro que a ambos vinculava, mas que veio posteriormente a frustrar-se. XV. Neste sentido, veja-se o depoimento da Testemunha GG (prestado na 1.ª sessão de julgamento – 15 de janeiro de 2024), que conhecia a donatária desde que era pequena, sendo sua vizinha, trechos [00:02:49] a [00:03:32]; [00:04:42] a [00:05:50]; [00:07:52] a [00:08:28]; [00:09:51] a [00:10:03]. XVI. No mesmo sentido, analise-se o depoimento da Testemunha HH (1.ª sessão de julgamento – 15 de janeiro de 2024), que viveu durante muitos anos, desde os seus 7 até que se casou, aos 2 8, em casa dos doadores, na qualidade de empregada, e que privava com os mesmos numa base próxima diária, trechos [00:04:18] a [00:06:40]; [00:06:46] a [00:08:46]; [00:11:09] a [00:12:06]; [00:14:57] a [00:15:26]. XVII. Também a Testemunha II, que conhecia a Senhora CC já antes da morte do seu outro filho, irmão do Réu, e que foi a sua cuidadora nos últimos 6 anos de vida, trechos [00:04:04] a [00:05:13]; [00:05:14] a [00:06:31];[00:10:43] a [00:10:59]; [00:10:43] a [00:11:05], do seu depoimento prestado na 1.ª sessão de julgamento, de 15 de janeiro de 2024. XVIII. Comprovando que a Senhora CC era uma pessoa que era muito religiosa, veja-se o depoimento de II, trecho [00.07:28] a [00:07:46]; bem como o de HH, trecho [00:08:46] a [00:09:30]; e o de GG, trecho [00:06:22] a [00:06:49]. XIX. A estes acresce o depoimento de parte prestado pela Autora AA, via Webex, na 2.ª sessão da audiência de julgamento, de dia 8 de fevereiro de 2024, na qual afirma que a relação entre a sua mãe e os seus avós paternos era fraca, até em virtude da barreira linguística que os separava, ao ponto de inclusive ter determinado que após a sua morte não ficasse ao cuidado dos avós, mas sim ao cuidado de uma outra família - a família JJ: analise-se o trecho [00:23:56] a [00:27:35] do seu depoimento. XX. Da prova documental produzida pela Autora, nomeadamente pelos dizeres constantes da escritura de doação junta a fls 21 a 24 [alínea a) dos factos provados] também resulta que a Recorrente apenas foi contemplada na doação dos autos pelo facto de, à data, estar casada com o filho dos doadores. XXI. Por isso mesmo nela se afirma “Que, pela presente escritura, doam aos representados da segunda outorgante, seus filho e nora, respetivamente, a raiz ou nua propriedade dos imóveis atrás identificados…” claramente evidenciando a circunstância familiar pela qual a Recorrente foi contemplada, a par do filho do casal. XXII. Também se lê na escritura de doação “Que esta doação é feita quanto ao filho por conta da quota disponível” [alínea b) dos factos provados], o que facilmente permite concluir que o real motivo que levou a que os doadores Senhora CC e o Senhor BB celebrassem o negócio foi o de beneficiar o filho sobrevivo, em virtude de a filha do filho pré-falecido ser uma bebé, de não terem muito contacto com a esposa dele – que era inclusivamente estrangeira - e ser, por isso, sua vontade evitar que o seu património pudesse cair, um dia, na gestão de uma pessoa praticamente estranha, em detrimento do seu filho. XXIII. Neste sentido, aliás, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.11.2016, proc. n.º 185/14.9TBBR.C1, citado em texto. XXIV. No mesmo sentido, apela-se aos Ac. do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 02/05/2019, proc. n.º 5015/15.1T8CBR.C1.S2.S1, relatora Catarina Serra; e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-04-2021, proc. n.º 3931/16.2T8MTS.P1.S4, relator José Rainho, igualmente citados em texto. XXV. Pelo que tudo permite concluir, à luz da interpretação daquele documento segundo as regras da experiência comum e da hermenêutica associada à teoria da impressão do destinatário consagrada no nosso ordenamento jurídico (art. 236.º do CC), que as doações foram feitas à Recorrente apenas e só em consideração do seu estado de casada com o Réu. XXVI. Um declaratário normal, colocado na posição da Recorrente, entenderia, quer por força daquilo que é usual neste tipo de negócios, quer em virtude da relação triangular que existe entre os doadores, o filho dos donatários, e a sua pessoa, que a causa da sua contemplação pelos doadores na liberalidade se devia ao facto de ser casada com o seu filho. XXVII. Pelo que é esse, em termos objetivos, o sentido da declaração negocial corporizada na escritura dos autos. XXVIII. Sem prejuízo, e in extremis, ainda que, após o exame crítico de toda a prova acima indicada, subsistissem dúvidas da parte do douto Tribunal, sobre qual o sentido a dar à declaração negocial, sempre o art. 237.º do CC determina que prevaleça aquele que é mais favorável ao disponente no caso de o negócio em análise ser gratuito. XXIX. Destarte, também por via deste decantado normativo, chegaríamos à prova do facto que pretendemos que seja dado como provado nesta sede e alegado pela Autora: «A FF apenas foi considerada em tais doações em virtude de, à data da sua realização, ou seja, 30.11.1999, se encontrar casada com o Réu, filho dos doadores.» *** 4). A Recorrente sustentou que a resposta apresentada pela Recorrida deve ser rejeitada, por nela não terem sido formuladas conclusões quanto ao recurso, mas apenas quanto à ampliação, e, caso assim não seja entendido, pela improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto.*** 5). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.Concomitantemente, o Tribunal a quo pronunciou-se de forma especificada sobre nulidade da sentença (cf. art. 617/1 do CPC), arguida pela Recorrida na ampliação, no sentido da sua improcedência, com fundamento na natureza conclusiva do enunciado do art. 15.º da petição inicial. *** 6). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.*** II.1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC). *** 2). Tendo presente o que antecede, levanta-se a questão de saber se a resposta da Recorrida deve ser rejeitada tout court, como pretende a Recorrente, por não conter conclusões quanto ao objeto do recurso, mas apenas quanto à ampliação deste.A resposta, adiantamos já, é negativa. Com efeito, o ónus de formular conclusões impõe-se ao recorrente (art. 639/3 do CPC), o que se compreende e justifica pela já indicada função que as conclusões desempenham na delimitação do objeto do recurso, em tudo semelhante ao pedido na petição inicial (Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2020, p. 180). Porque não cabe ao recorrido, mas ao recorrente, delimitar o objeto do recurso, inexiste qualquer ónus que sobre aquele recaia de formular conclusões. Estas seriam, assim, uma inutilidade. Esta regra apenas sofre desvio quando o recorrido, com arrimo no disposto no art. 636 do CPC, amplie o objeto do recurso, o que se compreende: o recorrido deixa de estar numa posição estritamente defensiva e passa ao contra-ataque, como sucede com o réu reconvinte. Contribui, assim, ainda que subsidiariamente, na medida da ampliação, para a delimitação do objeto do recurso. Por outro lado, existindo uma autonomia, bem clara e definida, entre a parte das contra-alegações em que o recorrido pugna pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida e aquela em que expõe discriminadamente as razões e o pedido da ampliação do objeto do recurso (cf. Luís Espírito Santo, Recursos Civis, Lisboa: Cedis, 2020, p. 169), as conclusões apenas têm que abranger esta última. Improcede, portanto, esta questão prévia suscitada na contrarresposta da Recorrente. *** 3). À luz do que antecede, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:1.ª Saber se a decisão, proferida em sede de despacho saneador, de julgar não verificada a exceção dilatória da ilegitimidade ativa enferma de erro sobre a matéria de direito, mais concretamente no que tange à interpretação “do disposto” (sic) no art. 2091 do Código Civil e nos arts. 30, 576 e 577, e), do CPC; 2.ª Em caso de resposta negativa, saber se a decisão, proferida em sede de sentença, de julgar procedente a ação com base no acervo factual ali considerado como provado, enferma de erro sobre a matéria de direito, mais concretamente no que tange à interpretação do disposto nos arts. 342, 1729, 1769, 1766 e 1791 do Código Civil; 3.ª Em caso de resposta afirmativa, saber se a sentença recorrida é nula, ut art. 615/1, d), 1.ª parte, do CPC, por não ter sido considerado, na fundamentação de facto, o enunciado do art. 15.º da petição inicial (“… a Ré AA apenas foi considerada em tais doações em virtude de, à data da sua realização, ou seja, em 30.11.1999, se encontrar casada com o Réu, filho dos doadores”); 4.ª Saber se a prova produzida impõe que esse enunciado seja considerado como provado. *** III.1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto exarada na sentença recorrida. Assim, foram ali considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição): “a) No dia 30 de novembro de 1999, no Cartório Notarial ..., BB e mulher, CC, declararam doar a EE e mulher, FF, a raiz ou nua propriedade dos imóveis que melhor surgem descritos na cópia da escritura pública junta aos autos de fls. 21 a 24 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; b) Tendo nesse instrumento ainda declarado que “esta doação é feita quanto ao filho por conta da quota disponível deles doadores, reservando para si o usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último deles, doadores”; c) Os Réus contraíram casamento católico no dia ../../1973, conforme se retira da cópia da certidão da Conservatória do Registo Civil junta aos autos de fls. 19v a 20 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; d) O casamento suprarreferido foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de ../../2015, proferida pelo ..., Estado de Nova Iorque, Estados Unidos da América, sentença que foi revista e confirmada por decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em 21.12.2015 e transitada em julgado em 13.01.2016, conforme se retira da certidão junta aos autos de fls. 205v a 237v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; e) Nessa sentença revista, proferida pelo ..., pode ler-se: “ordenado e decidido que a propriedade marital das partes estará distribuída conforme a Estipulação no registo datada de 01 de agosto de 2014 e à Estipulação de Acordo datada de 08 de dezembro de 2014”; f) Pode também ler-se: “ordena e determina que, por força do disposto na Estipulação de Partilhas entre as Partes de 08 de dezembro de 2014, de que foi arquivada uma cópia em simultâneo neste Tribunal”; g) E pode ainda ler-se: “ordena e determina que a propriedade conjugal das Partes será distribuída por força da Estipulação registada com data de 1 de agosto de 2014 e da Estipulação de Partilhas entre as Partes de 08 de dezembro de 2014”; h) No dia 8 de dezembro de 2014, os aqui Réus, FF e EE, outorgaram, perante KK L., Notária Pública, Estado de Nova Iorque, Habilitada no ..., o ..., doravante Estipulação de Partilhas, cujos termos se encontram reproduzidos nos autos de fls. 74v a 132v e cujo teor, bem como o da respetiva tradução para a Língua Portuguesa, se dão aqui por integralmente reproduzidos; i) De acordo com o artigo X da supra mencionada Estipulação de Partilhas, “as partes, ao executarem a presente Estipulação de Partilhas, providenciaram a distribuição equitativa de todos os bens pertencentes às Partes, quer tais bens sejam qualificados de “bens separados” ou “bens conjugais” (…). As partes acordam que a distribuição disposta no presente Acordo de Partilhas constitui uma distribuição equitativa, que será vinculativa para as duas partes, no presente como no futuro”; j) Nos termos do artigo XXIV da supra mencionada Estipulação de Partilhas, “as partes estarão em todos os aspetos daqui em diante vinculados pelos termos e condições da presente Estipulação de Partilhas e tais termos e condições não serão anulados, reduzidos, prejudicados, alargados, ou por qualquer forma alterados ou afetados por qualquer sentença ou sentença de divórcio proferida por qualquer tribunal”; k) De acordo com o artigo XXXVI da supra mencionada Estipulação de Partilhas, “as partes acordam e reconhecem que receberam determinadas propriedades/parcelas de terrenos em Portugal, provenientes dos pais do marido. As partes acordam e reconhecem que a mãe do marido, que ainda se encontra viva, residirá numa das propriedades portuguesas à sua escolha até à sua morte e que as partes estão proibidas de venderem a referida propriedade enquanto não ocorrer a morte da mãe do marido. As partes mais reconhecem que a venda da supra mencionada propriedade será feita em conformidade com a legislação de Portugal e que cada parte terá direito a 50% das propriedades”; l) BB faleceu em ../../2022, conforme se retira da cópia da certidão da escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos de fls. 66v a 67 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [Ou seja: Por escritura pública lavrada no dia 26 de março de 2023, no Cartório Notarial ..., CC declarou que: “(…) no dia ../../2002 (…), faleceu aquele BB, no estado de casado sob o regime da comunhão geral em primeiras núpcias de ambos com ela outorgante. / (…) o autor da herança não fez testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, ela outorgante (…), atrás já identificada e um filho: EE, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com FF (…). / (…) não há outras pessoas que segundo a lei prefiram aos indicados herdeiros ou com eles concorram à herança do falecido (…)”]; m) CC faleceu em ../../2016, conforme se retira da cópia da certidão da escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos de fls. 68 a 69 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [Ou seja: no dia 14 de junho de 2016, no Cartório da Notária LL, JJ, MM e NN declararam que: “(…) no dia ../../2016 (…), faleceu CC (…), no estado de viúva de BB. / (…) a falecida não havia feito testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, deixando por herdeiros como única sucessão legitimária: a) um filho – EE, divorciado (…); e b) uma neta, filha do filho da autora da herança pré-falecido, OO (…): AA (…) / (…) os indicados filho e neta são os únicos herdeiros da falecida, não havendo quem com eles concorra ou lhes prefira na sucessão à herança (…)”].” *** 2). Depois de ter escrito que, “com exclusão dos enunciados fácticos já provados por acordo, dos enunciados fácticos que apenas podem ser provados por documentos, dos enunciados de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito”, o Tribunal a quo consignou, quanto a factos não provados, que:“Da petição inicial: inexistem. Da contestação da Ré: artigos 24º e 25º, quanto à existência de algum motivo para a doação à Ré para além da condição de casada com o Réu. Da réplica: inexistem.” *** 3). Finalmente, o Tribunal a quo motivou a sua decisão da matéria de facto nos seguintes termos (transcrição):“Fundou o Tribunal a sua convicção na valoração do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, na valoração do depoimento das testemunhas GG, II, HH, PP, JJ, na valoração dos elementos documentais, na parte em que a lei permite a sua valoração de acordo com a livre convicção do julgador, juntos aos autos e constantes de fls. 21 a 2474v a 132v e 205v a 237v. O Tribunal valorou ainda o depoimento de parte da Autora, na parte em que o pode fazer livremente (cf. artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil). Antes de avançarmos há que sublinhar um aspeto fáctico-jurídico de primordial importância. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe a prova do facto, como de determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova do facto”1, ou seja, se após a apreciação de todos os elementos de prova levados ao processo por impulso das partes ou por iniciativa do juiz, permanecer a dúvida sobre a verdade de uma asserção de facto necessário para a formação da convicção daquele e para a prolação da decisão, o tribunal pode e deve pronunciar-se desfavoravelmente em relação à pretensão da parte a quem incumbia o ónus da prova. Podemos, pois, extrair duas consequências relativamente à repartição do ónus probatório. Uma, de cariz jurídico. Outra, prévia e de cariz eminentemente fáctico, que é aquela que reside no processo interior do julgador quanto ao convencimento sobre a ocorrência do facto. Neste último âmbito, se, produzidos todos os meios de prova, o julgador permanecer na dúvida sobre a ocorrência do facto deve decidir contra a parte que tem o ónus de o provar, ou seja, deve considerar tal facto como não provado. Ou seja, a enunciação da repartição do ónus da prova auxilia o julgador na resposta fáctica e, por outro lado, posteriormente, determina o sentido da decisão no caso de se fazer ou não se fazer prova do facto. Quando os factos estão já fixados, não há já lugar a qualquer tratamento de uma eventual dúvida, pois que esta é tratada previamente, na resposta fáctica. Não desconhecemos que a jurisprudência, através de um longo processo de perda de rigor e acutilância, tem reduzido as consequências da repartição do ónus probatório ao seu cariz eminentemente jurídico, ou seja, às suas consequências jurídicas, depois de os factos já se encontrarem fixados, esquecendo as suas consequências ao nível da apreciação fáctica, antes de se darem como provados ou não provados os factos enformadores do objeto do processo. Serve, pois, esta nota para reafirmar a dúplice dimensão, ao nível das consequências, da repartição do ónus probatório e para evidenciar que o julgamento da matéria de facto não se pode desligar do disposto no artigo 342º do Código de Processo Civil, consideração essa que esteve sempre presente neste julgamento. Isto posto. A matéria de facto dada por provada nas alíneas a) a m) assentou nos teores dos documentos aí referidos. No que concerne à restante matéria de facto dada como não provada, a convicção do Tribunal assentou, para além da valoração dos elementos probatórios já indicados, no facto de as testemunhas que a tal propósito depuseram apresentarem uma versão inverosímil face às regras da experiência comum, não logrando convencer o Tribunal da veracidade do que por si foi afirmado, e na falta de prova credível. Duas considerações a tecer, neste âmbito. Em primeiro lugar, para afirmar não ter o Tribunal alcançado, por insuficiência probatória, os contornos da relação existente entre a Ré FF e a falecida CC. Em segundo lugar, para afirmar não ter o Tribunal descortinado os contornos, circunstâncias e contexto que envolveram a outorga da escritura pública de 30.11.1999. A conjugação dos depoimentos testemunhais com o acervo documental supra referido resultou, depois de uma última e inevitável depuração pelas regras da lógica e da experiência, na convicção final do Tribunal.” *** IV.1).1. Seguindo a sequência traçada, começamos pela impugnação do despacho saneador na parte em que foi julgada improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa. A resposta afigura-se de grande simplicidade. Nos termos do art. 30/1 do Código de Processo Civil (CPC) vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, “[o] autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.” O n.º 2 do mesmo artigo define o alcance do interesse de que resulta a legitimidade: a legitimidade do autor afere-se pela utilidade derivada da procedência da ação e a legitimidade do réu pelo prejuízo que dessa procedência advenha. Quer isto dizer que o autor é parte legítima sempre que a procedência da ação lhe confira (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade, e o réu é parte legítima sempre que se vislumbre que tal procedência lhe venha a causar (para si e não para outrem, também) uma desvantagem. Como escreve Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 84) exige-se que o interesse seja direto. “Não basta, pois, um interesse indireto ou reflexo; não basta que a decisão da causa seja suscetível de afetar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular.” Ao contrário da personalidade e da capacidade judiciária – que são requisitos abstratamente exigidos para que qualquer pessoa possa ser autor ou réu em qualquer ação –, a legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada ação – posição que lhe permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta (Antunes Varela / QQ / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 131). Perante isto, a questão que se coloca é a de saber se a eventual procedência do pedido em causa é suscetível de trazer à Autora (rectius, à Recorrida) uma vantagem ou uma utilidade direta e concreta. Sem prejuízo de disposição legal em contrário, a legitimidade apura-se pela relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial (art. 30/3). Esta norma reproduz a do art. 26/3 do CPC anterior, na redação emergente da reforma levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12. Com a sua parte final, ficou resolvida, no sentido propugnado por Barbosa de Magalhães (Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, I, p. 16), a questão que, no âmbito do primitivo art. 26, o opunha a Alberto dos Reis (Legitimidade das Partes, Boletim da Faculdade de Direito, VIII, pp. 64 e ss.). Entendia este processualista que a relação material controvertida atributiva da legitimidade não devia ser a configurada pelo autor na petição inicial, mas a que no decurso da causa se viesse a apurar como verdadeiramente existente. A questão não era inócua: a solução de Barbosa de Magalhães, também sufragada por Palma Carlos (Projeto de Alteração de Algumas Disposições dos Livros I e II do Código de Processo Civil, Lisboa, 1961, pp. 57 e ss.) e por Castro Mendes (Direito Processual Civil, I, Lisboa, 1980, p. 170), tinha como consequência a absolvição do pedido nos casos em que se apurasse que os sujeitos da relação material controvertida real e verdadeira não coincidiam com os anunciados pelo autor. Pelo contrário, a tese de Alberto dos Reis, também defendida por Antunes Varela et. al. (ob. cit., pp. 140 e ss.), considerava que, em tais hipóteses, o réu era parte ilegítima e, em consequência, devia ser absolvido da instância. Deste modo, podemos concluir que, como escreve Miguel Teixeira de Sousa (Sobre a Legitimidade Processual, BMJ, n.º 331, p. 46), “a legitimidade da parte pressupõe (...) uma relação formal, independente da apreciação do mérito da causa, da parte processual com o objeto adjetivo: a legitimidade processual é aferida pela posição, naturalmente decorrente ou legalmente configurada, da parte adjetiva perante a situação subjetiva constante do objeto processual. Como o objeto do processo é a função processual requerida para uma individualizada pretensão processual e como o réu está tematicamente vinculado ao objeto adjetivo definido pelo autor, a legitimidade adjetiva implica uma conexão das partes com o objeto adjetivo configurado pelo autor. Para aferir a legitimidade processual nada mais é preciso – não é nomeadamente necessário pressupor que o direito invocado pelo autor e o correlativo dever imputado ao réu existem, porque tal pressuposição só é infirmatória da legitimidade processual se as partes não forem os titulares do objeto adjetivo, isto é, se não existir uma coincidência entre as partes processuais e os alegados titulares do objeto do processo, e só é atributiva da legitimidade adjetiva se as partes forem os titulares do objeto processual, isto é, se existir uma coincidência entre as partes adjetivas e os invocados titulares do objeto da causa.” *** 1).2. Do exposto decorre uma consequência importante: não relevam, nesta sede, elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial. Ora, no caso vertente, estamos perante uma ação em que é pedida a declaração de que os atos de transmissão do direito de propriedade da esfera jurídica dos identificados BB e CC para a esfera jurídica dos Réus caducaram ipso iure em consequência da dissolução, por divórcio, do casamento que, ao tempo, unia estes. Como é bom de ver, neste tipo de situações, a procedência da ação importa, de forma direta, uma utilidade para os doadores que, assim, verão ultrapassado o estado de dúvida quanto ao reingresso daquele direito no seu património, pelo que pode afirmar-se que são eles quem dispõe de legitimidade ativa para a ação. Neste sentido, parece apontar a doutrina de STJ 13.04.2021 (3931/16.2T8MTS.P1.S4), José Rainho, onde, analisando a questão sobre outra perspetiva, se escreve, com interesse, que “[a] haver litígio sobre a perda de benefícios recebidos de terceiro na pendência do casamento [nos termos do art. 1791/1 do Código Civil], tal só poderá ser dirimido no confronto do doador e não em ação em que as partes são apenas os ex-cônjuges.” Tendo ocorrido a morte dos doadores, com a consequente cessação da respetiva personalidade jurídica (art. 68/1 do Código Civil[1]) – e, logo, da judiciária que é decalcada sobre aquela, sem prejuízo do seu alargamento nos casos especificamente previstos na lei (arts. 11/2 e 12 do CPC) –, o direito de propriedade transite-se mortis causa. Com efeito, o art. 2024, disposição que abre o Livro V, dedicado ao Direito das sucessões, diz que a sucessão consiste no “chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas de natureza patrimonial de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.” Esta definição condensa o fenómeno sucessório por morte que Pereira Coelho (Direito das Sucessões, lições policopiadas ao curto de 1973-1974, Coimbra, 1992, p. 4) explica nos seguintes termos: “[e]xtinguindo a personalidade jurídica do falecido (…), a morte abre uma crise nas relações jurídicas de que ele era titular e que devem sobreviver-lhe. Essas relações desligam-se do seu primitivo sujeito, à morte deste, e até que se liguem a novo sujeito é necessário que ocorra – ou há a possibilidade de que ocorra – uma série de atos ou factos, comumente designados por fenómeno sucessório que se encadeiam num processo mais ou menos longo.” O primeiro de tais atos é o chamamento que pode ter a sua fonte na lei, no testamento ou em contrato (art. 2026). O seu objeto pode ser universal ou singular, consoante abranja a totalidade ou uma quota do património ou, pelo contrário, bens ou valores determinados deste (art. 2030/2). Na primeira situação, o sucessor diz-se herdeiro; na segunda legatário. Este último sucede em bens determinados, no sentido de que apenas sucede em certos bens, com exclusão dos restantes bens do de cuius. Pelo contrário, o herdeiro não é chamado a suceder em bens determinados e o seu direito estende-se, real ou virtualmente, à totalidade da herança ou a uma quota-parte dela. Por esta razão, afirma-se que “o herdeiro é um sucessor a título universal ao passo que o legatário é um sucessor a título singular” (Cristina Araújo Dias, Lições de Direito das Sucessões, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 62). *** 1).3. Como resulta do que antecede, a morte é o facto que espoleta o fenómeno sucessório. A sucessão aberta por efeito dela (art. 2031) tem como primeira etapa o chamamento dos sujeitos (sucessíveis) designados para sucederem na totalidade das relações jurídicas que não se extingam por morte do seu titular, tratando-se de herdeiros, ou em certas e determinadas relações jurídicas, tratando-se de legatários.Com o chamamento, os bens da herança ficam à disposição dos sucessíveis, que os podem adquirir mediante a aceitação da herança. Só então ocorre a devolução sucessória e o sucessível para a ser sucessor. Como ensina Pereira Coelho (Lições cit., pp. 154-155), existem, a este propósito, “duas grandes orientações, a que correspondem a doutrina da aquisição ipso iure e a doutrina da aquisição mediante aceitação.” Pela primeira, o chamado, por força da própria vocação, adquire a titularidade dos direitos hereditários, ingressa na titularidade das relações jurídicas transmissíveis do falecido. A aquisição sucessória resulta automaticamente da vocação sucessória. Basta ser chamado à sucessão para que as relações jurídicas do falecido adquiram um novo titular, não sendo necessário qualquer ato adicional ao chamamento. Não será, assim, necessária a aceitação para que se verifique a aquisição sucessória. O chamado tem, na mesma, de aceitar, mas esta aceitação não tem o efeito de permitir a aquisição dos bens pelo chamado, mas apenas o de “confirmar ou consolidar uma aquisição sucessória que já se verificara.” Dito de outra forma, “antes da aceitação, o chamado já adquirira os direitos hereditários, bastando apenas a consolidação dessa aquisição pela aceitação” (Cristina Araújo Dias, Lições cit., p. 100). Pela segunda orientação, a aquisição sucessória só se dá após a aceitação e por força dela. A aceitação não tem, portanto, uma função confirmatória, mas uma função verdadeiramente constitutiva. Por isso, o repúdio não é um “ato positivo de que resulta uma diminuição do património, mas uma renúncia a uma aquisição que ainda não se verificou” (Cristina Araújo Dias, Lições cit., pp. 100-101). Não há dúvida de que é esta última a orientação seguida pelo legislador português, atento o disposto no art. 2050/1, onde se diz que “[o] domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material.” Pode, portanto, dizer-se que “o conteúdo da vocação é o seguinte: ela coloca aqueles bens ou direitos à disposição do chamado – ainda não dentro da sua casa, como na doutrina da aquisição ipso iure, mas por assim dizer à sua porta – em termos de a aquisição dos direitos hereditários depender apenas de um ato de sua vontade” (Pereira Coelho, Lições, p. 151). Tenha-se presente que, além do direito de aceitar ou repudiar a herança, a vocação confere ao chamado, pelo simples facto de o ser, a possibilidade de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos (art. 2047/1), não obstante a possibilidade de nomeação de curador à herança (arts. 2047/3 e 2048). Deste modo, o sucessível chamado à herança, se ainda não a tiver aceitado ou repudiado, goza de poderes de administração da herança – que, por não ter sido ainda aceita nem declarada vaga para o Estado, se encontra em estado de jacência (art. 2046). Compreende-se, por isto, que se preveja (art. 2056/3) que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança. No hiato compreendido entre aquelas das etapas do fenómeno sucessório – o chamamento e a aceitação –, a herança permanece em estado de jacência. Não tem como seu titular ativo nem o de cujus, nem os sucessíveis, que ainda não a aceitaram. Também não lhe é atribuída personalidade jurídica. Após a aceitação, por força do disposto no art. 2050/2, tudo se passa como se as relações jurídicas do de cujus tivessem sido tituladas desde a morte pelos sucessíveis chamados que a aceitaram. *** 1).4. As posições jurídicas quanto à natureza da herança jacente oscilam entre a existência de um estado de vinculação, juridicamente tutelado, de uma universalidade jurídica (não havendo ainda direitos subjetivos dos sucessíveis chamados à herança) e de um fenómeno de direitos sem sujeito, de caráter temporário. Independentemente dos entendimentos, a herança jacente tem personalidade judiciária, conforme resulta da alínea a) do art. 12 do CPC, pelo que, enquanto perdurar esse estado, é em nome dela – ou contra ela –, representada pelo respetivo administrador, se o houver, seja ele herdeiro ou não, que devem ser propostas as ações em que estejam em causa direitos integrados no património do de cujus. A personificação judiciária da herança, assente numa ficto iuris, não dura até à partilha; antes cessa, nos termos da lei, com a aceitação. Como sintetiza António Abrantes Geraldes (Personalidade Judiciária, Lisboa: CEJ, 1998, p. 8), “[a] personalidade judiciária só foi atribuída por lei à herança jacente, que não se confunde, pois, com herança impartilhada (…) determinados os sucessores e aceite por eles a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e quem poderá intervir como parte em processos judiciais são os contitulares ou, nos casos previstos na lei, o cabeça-de-casal, como seu representante.” De notar que, após a reforma do CPC de 1961, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, deixou de ter qualquer apoio literal a tese defendida por Antunes Varela / Sampaio e Nora / Miguel Bezerra (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 111, nota 1), que defendiam a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa no decurso do processo de inventário, até ser efetuada a partilha. Tendo ocorrido a aceitação da herança – o que no caso foi alegado na petição inicial e não questionado na contestação –, mas permanecendo a situação de indivisão dos bens que a integram, quem tem legitimidade processual ativa ou passiva é, em regra, o conjunto dos herdeiros, em litisconsórcio necessário, ativo ou passivo. Apenas em determinados casos o cabeça-de-casal, enquanto administrador, dotado de legitimidade extraordinária (Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil cit., p. 139), pode intervir sozinho em juízo. Envolvido nesta matéria, que resulta da circunstância de os herdeiros serem titulares de um direito indivisível, enquanto se não fizer a partilha, que recai sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta, diz o art. 2091/1, que, fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Isto pressupõe, necessariamente, quando o óbito ocorre antes de proposta a ação, a habilitação dos herdeiros na posição processual que caberia ao autor da herança através da denominada habilitação-legitimidade, devendo o autor alegar, na petição inicial, que ele próprio ou o réu é sucessor do anterior titular da situação subjetiva. A propósito, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 381); na jurisprudência, RG 13.01.2022 (1818/20.3T8VNF-A.G1), relatado por Eva Almeida. Já quando o óbito ocorre na pendência da ação a habilitação é feita incidentalmente (arts. 351 a 357 do CPC). Por conseguinte, pode o cabeça-de-casal propor, em nome da herança, ações tendentes a obter a entrega de bens que deva administrar como, v.g., as ações possessórias (art. 2088), e as ações de despejo (cf. RE 19.06.97, CJ, XXII, t. 2, p. 276, e RC 3.10.2006, 642/05.8TBAVR.C1, António Barateiro Martins). Já assim não acontece, v.g., com as ações de reivindicação (STJ 17.03.2005, 05B433, Moitinho de Almeida), de preferência, constituição de servidões prediais, indemnização, impugnação paulina (cf. António Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 15-16), em que mais que a entrega de bens da herança está em causa o reconhecimento de direitos titulados pela herança. De igual modo com as ações de cobrança de dívida, salvo se "a cobrança possa perigar com a demora" (art. 2089), e com as ações de indemnização. Em qualquer caso, qualquer um dos herdeiros pode, sem intervenção dos demais, intentar ação de petição da herança (art. 2075), caraterizada por uma dualidade de pedidos: o reconhecimento da qualidade sucessória; e a restituição de todos os bens da herança ou de parte deles contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título. Como entendido em RC 18.05.1010 (8/06.2TBTMR.C1), Virgílio Mateus, não descaracteriza a ação como petição de herança o facto de o primeiro pedido não ser formulado de forma expressa, bastando que esteja implícito na petição inicial, sendo alcançado, acrescentamos, por via interpretativa de tal ato postulativo, a realizar com respeito pelos cânones dos arts. 236 e 238. É que, à semelhança do que sucede na ação de reivindicação, “na ação de petição de herança não existe verdadeira independência entre os pedidos de reconhecimento da qualidade de herdeiro e o pedido de restituição dos bens pertencentes à herança, sendo que o primeiro constitui apenas o pressuposto no qual tem que assentar a procedência do segundo” (RP 15.12.2010, 802/05.1TBLMG.P1, Maria Catarina). Também não descaracteriza a ação como petição da herança o facto de o pedido de restituição de bens ser cumulado com um pedido de declaração de nulidade ou mesmo de extinção de um negócio jurídico cuja procedência importa a afirmação de que os bens (rectius, o direito) em discussão integra o acervo hereditário. *** 1).5. No caso, a Recorrida alegou, na petição inicial, a sua qualidade de herdeira dos doadores e, com base nisso, pediu a declaração de que as doações caducaram por efeito do divórcio dos donatários, tendo assim os bens doados (rectius, a quota-parte doada à Recorrente) reingressado no património hereditário dos primeiros.Suscitam-se dúvidas quanto à qualidade da Recorrida como herdeira do doador BB (não foi, como tal, indicada na escritura de habilitação). Afigura-se-nos, porém, que esse aspeto é irrelevante: a Recorrida foi habilitada como herdeira da doadora CC, que, por sua vez, tinha a dupla qualidade de cônjuge meeiro sobrevivo e de herdeiro daquele BB. É duvidoso que a ação possa ser qualificada como uma petição da herança da doadora. Ademais de não haver um pedido expresso, mas meramente implícito, de reconhecimento de que a Recorrida tem a qualidade de herdeira, não há um pedido de restituição dos bens doados, mas apenas o pedido de reconhecimento de que os bens doados integram as heranças abertas por óbito dos doadores, por efeito da caducidade do ato de transmissão do direito de propriedade sobre eles para os donatários. Dir-se-ia, assim, que a ação devia ter sido proposta, em litisconsórcio necessário, por todos os herdeiros dos doadores. A afirmação carece, porém, de ser corrigida, em função de uma particularidade: para além da Recorrida, há apenas um outro herdeiro que é o Réu EE. Há pouco escrevemos que a legitimidade ativa para a ação em que, com base no disposto no art. 1791/1, é pedida a declaração de doações, pertence aos doadores. Como reverso, podemos acrescentar que a legitimidade passiva pertence aos donatários. Daqui resulta que o Réu EE tem, em relação ao objeto da ação, um interesse duplo: a procedência da ação pode, a um tempo, enquanto herdeiro dos doadores, trazer-lhe uma vantagem direta; a outro, enquanto donatário, uma desvantagem. Esta última dimensão do interesse do Réu na ação – que, diga-se, é paradoxalmente mais vincada no pedido subsidiário – deve prevalecer sobre a primeira, justificando o seu interesse, ao menos num plano abstrato, em contradizer a pretensão da Recorrida. Seria um absurdo admitir-se que a mesma pessoa pudesse figurar, numa mesma ação, como autor e como réu. É isto um corolário do princípio da dualidade das partes, característico dos processos de jurisdição contenciosa, do qual decorre que toda a ação pressupõe, pelo menos, duas partes: autor e réu. A verificação de uma situação em que a mesma pessoa deva ser réu e autor tem como consequência natura rerum, nos casos de legitimidade singular, a impossibilidade da ação, seja ela original ou superveniente. Nos casos de legitimidade plural, não pode negar-se o direito de os demais titulares do interesse atuarem em juízo contra o outro titular, sob o pretexto de, não estando este do lado ativo, estar a ser infringido um litisconsórcio necessário ativo, com a consequente ilegitimidade ativa. Tal redundaria, inevitavelmente, numa restrição injustificada do direito de ação genericamente consagrado no art. 20 da CRP e desenvolvido no art. 2.º/2 do CPC, onde se diz que a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, exceto quando a lei determine o contrário, com o que se quer ressalvar a hipótese das obrigações naturais não espontaneamente cumpridas (arts. 402 e 403) (Lebre de Freitas / Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 27). Tem sido, assim, entendido que, neste tipo de situações, a finalidade prosseguida através da figura do litisconsórcio (arts. 33 e 35 do CPC) – a presença na ação de todos os titulares da relação material controvertida, para que a sentença produza os seus efeitos materiais de forma subjetivamente esgotante – é alcançada pela presença, como réu, daquele que tinha também legitimidade para figurar como autor. Desta forma, ficarão todos os interessados vinculados à sentença sobre a relação material controvertida. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 29.10.2020 (604/18.5T8LSB-C.L1.S1), Catarina Serra, RC 9.03.2010 (121/08.1TBANS.C1), Teles Pereira, RL 21.09.2017 (2467/13.8TBCSC.L1-8), António Valente, RC 26.02.2019 (1222/16.8T8VIS-C.C1), António Carvalho Martins, e RP 26.09.2019 (487/17.2T8STS-A.P1), Aristides Rodrigues de Almeida. Na doutrina, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil cit., pp. 287-288. *** 1).6. As considerações acabadas de fazer permitem-nos concluir que o Tribunal a quo, ao julgar improcedente a arguição da exceção da ilegitimidade ativa – o que fundamentou escrevendo que “[u]ma vez que todos os herdeiros estão presentes na lide, ainda que um deles do lado passivo, está assegurada, por um lado, a participação no processo desse interessado na relação material controvertida, conforme impõe o art. 33.º, n.º 1, do CPC, e, por outro lado, a decisão a proferir não vai deixar de produzir o seu efeito útil normal, tal como preceitua o art. 33.º, n.º 2, do mesmo diploma legal” –, decidiu corretamente.Resta dizer que há uma evidente petição de princípio nas conclusões da Recorrente: conforme resulta do que escrevemos, a Recorrida não pretende, através da ação, exercer um direito potestativo à cessação da doação, como seria próprio de uma ação constitutiva; o que pretende é que se reconheça que, por efeito da dissolução do casamento entre os Réus, caducou, de forma automática, aquela doação e o direito de propriedade transmitido reverteu para o património dos doadores, o que nos coloca perante uma ação de natureza meramente declarativa. O direito que está em causa é o direito de propriedade, o qual, como é evidente, pela sua natureza, é transmissível por morte do seu titular. Ainda que assim não fosse, a admitir-se a hipótese de a ação revestir natureza constitutiva, estando em causa um direito dos doadores a porem termo, através de ato unilateral de vontade, à doação, sempre diríamos que tal direito, pela sua natureza patrimonial, não estaria excluído da sucessão hereditária. Tenha-se presente que a regra é a transmissibilidade das situações jurídicas pertencentes ao de cuius, da qual apenas são excluídos os direitos pessoais, intimamente ligados à pessoa do sujeito – e nem todos (veja-se, por exemplo, os arts. 1825, 1844 e 1862), os direitos que o legislador expressamente exclui da sucessão – por exemplo, o usufruto (art. 1476/1, a), ou os direitos de uso e habitação (arts. 1485 e 1490) – e aqueles que, em virtude de negócio jurídico, devam extinguir-se com a morte do seu titular (no exemplo de Pereira Coelho, ob. cit., pp. 161-162, a renúncia a um direito de servidão feita em testamento). Para evidenciar a correção desta afirmação basta que se pense que também os benefícios que tenham sido obtidos pelos cônjuges, em razão do estado de casados, por via testamentária, são perdidos por efeito do divórcio. A resposta à primeira questão enunciada em II. é, sem necessidade de outras considerações, negativa, improcedendo assim o recurso na parte relativa à impugnação da decisão de julgar improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa especificamente contida no despacho saneador. *** 2).1. Passamos para a resposta à 2.ª questão.Está aqui em causa saber se a doação feita aos Réus, durante a vigência do casamento que os uniu, caducou, de forma automática, por efeito da dissolução de tal casamento, através de divórcio, com a consequente reversão do direito de propriedade transmitido para o património dos doadores. Na sentença recorrida deu-se uma resposta afirmativa, no que tange à quota-parte da Ré, ora Recorrente, com arrimo no disposto no art. 1791/1. Assim, entendeu-se, a um tempo, que esta norma estabelece, como consequência do divórcio, a caducidade dos benefícios atribuídos a ambos os cônjuges, “em consideração do estado de casado, entre os quais se incluem os direitos adquiridos a título gratuito, e, a outro, que apenas assim não será se os cônjuges demonstrarem “um motivo ou razão, para lá daquele estado” de casados, “subjacente à liberalidade.” (sic) A Recorrente contesta estas duas dimensões da fundamentação: quanto à primeira, sustenta que o conceito de benefícios utilizado no art. 1791/1 não abrange os direitos adquiridos através de um contrato de doação, não obstante a natureza gratuita deste; quanto à segunda, sustenta que o “ónus da prova” de que os benefícios foram recebidos em consideração do estado de casado recaía sobre a Autora (Recorrida), que não o cumpriu. Quid inde? *** 2).2. Como se constata, a resposta à questão decidenda pressupõe a exegese da norma do n.º 1 do art. 1791, na sua redação vigente, introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, do seguinte teor: “Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.”Como claramente indica a inserção sistemática do preceito – na Subsecção IV (Efeitos do divórcio) da Secção I (Divórcio) do Capítulo XII (Divórcio e separação judicial de pessoas e bens) do Título II (Do casamento) do Livro IV (Direito da Família) – estamos aqui perante a previsão de um efeito do divórcio. Não é, por isso, de estranhar que a atual solução normativa seja o repositório da conceção do casamento subjacente à intervenção legislativa que a consagrou, certo como é que estamos numa área – a do Direito da Família – em que a neutralidade legislativa é impossível, pelo que a lei é sempre o reflexo das ideologias e das conceções de vida dominantes (cf. Jorge Duarte Pinheiro, “Ideologias e ilusões no regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais”, AAVV, José Lebre de Feitas et al (coord.), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Carlos Ferreira de Almeida, III, Coimbra: Almedina, 2011, p. 475). De facto, antes da Lei n.º 68/2008, a norma estabelecia a “perda dos benefícios” recebidos do outro cônjuge ou de terceiro como uma sanção para o “cônjuge declarado único ou principal culpado do divórcio”, o que era tributário da conceção legalmente predominante do divórcio-sanção, que impunha que, sempre que houvesse culpa de um ou de ambos os cônjuges quanto aos factos concretos que serviram de causa ao divórcio, o juiz declarasse qual deles tinha sido o culpado ou o principal culpado (arts. 1787, 1782/1 e 1783, na redação anterior à Lei n.º 68/2008). Semelhante declaração tinha efeitos relevantes ao nível patrimonial (arts. 1790, 1791 e 1792), entre elas se incluindo, precisamente, a perda dos benefícios que o cônjuge visado tivesse recebido do outro cônjuge ou de terceiro em vista do casamento ou em consideração do estado de casado. Escrevia então Antunes Varela (Direito da Família, I, 4.ª ed., Lisboa: Petrony, 1996, pp. 520-521), a propósito do n.º 1 do art. 1791, que “o cônjuge culpado (único ou principal) perde todos os benefícios, não só os futuros, mas também os pretéritos, que lhe tenham sido atribuídos (seja pelo outro cônjuge, seja por terceiro) em vista do casamento (doações entre esposados por ex.) ou em consideração do estado de casado (doação feita conjuntamente ao casal). Em contrapartida, o cônjuge inocente conserva os benefícios que lhe tenham sido atribuídos nas mesmas circunstâncias, incluindo os prevenientes do outro cônjuge, mesmo que com cláusula de reciprocidade”, e acrescentava que “os benefícios atingidos pela sanção legal (…) são apenas os que provêm de liberalidades, excluindo assim as vantagens que, por força da lei e não de qualquer disposição lavrada pelo cônjuge inocente ou menos culpado ou por terceiro, o cônjuge considerado único ou principal culpado tenha usufruído.” Na densificação do conceito de benefícios, Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, IV, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1992, pp. 563-564) ensinavam que podia tratar-se “de uma doação entre esposados ou entre casados, ou de uma doação de terceiro aos esposados, ou de uma outra liberalidade feita em consideração do estado de casado do beneficiário, como será o caso de uma doação feita a ambos os cônjuges por familiar de um deles.” Depois de excluírem do conceito os “donativos usuais” que o cônjuge inocente ou terceiro tivessem feito ao cônjuge culpado, acrescentavam que a norma visava “especialmente as doações entre vivos, mortis causa e as próprias disposições testamentárias.” Também Miguel Teixeira de Sousa (O Regime Jurídico do Divórcio, Coimbra: Almedina, 1991, p. 122) escrevia que nos benefícios se incluíam, “nomeadamente, as doações para casamento ou entre esposados (art. 1735/1) e as doações entre casados (art. 1761).” Com a referida Lei n.º 61/2008, de 31.10, o regime jurídico do divórcio sofreu uma alteração profunda, que teve na sua génese a intenção, confessada pelo legislador, de “colocar os afetos no centro da relação matrimonial” e de determinar a dissolução do vínculo “quando os laços se rompem” e o “casamento deixa de ser fonte de realização e satisfação dos cônjuges.” Como resulta da exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 509/X, “[l]iberdade de escolha e igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges, afetividade no centro da relação, plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver, eis os fundamentos do casamento nas nossas sociedades”, numa modernidade que “assenta na ideia transformadora da capacidade de cada indivíduo e na procura da realização pessoal traduzidas, no plano do casamento, na valorização das relações afetivas em detrimento das imposições institucionais e na aposta no bem-estar individual como condição necessária para o bem-estar familiar.” O legislador convocou, para justificação do novo regime, os três grandes movimentos que foram ocorrendo no decurso do século XX e, mais particularmente, nos seus últimos quarenta anos: sentimentalização, individualização e secularização. A propósito, Sandra Passinhas, Propriedade e Personalidade no Direito Civil português, Coimbra: UC, 2014, p. 219, nota 122). A referida Reforma de 2008 consagrou, portanto, no nosso ordenamento jurídico, o sistema de divórcio-rutura (Zerrüttungsprinzip; divorce-faillite, irretrievable breakdown), em que o fundamento do divórcio é a falência da comunhão conjugal, e em que, na dissolução do casamento, se abstrai de qualquer declaração de culpa, bem como das sanções patrimoniais acessórias aplicadas em função da determinação dessa culpa. Neste modelo, o divórcio é permitido onde quer que se verifique uma rutura do casamento, admitindo a lei que o divórcio seja requerido por ambos os cônjuges ou só por um deles sem qualquer condicionamento ou limitação, de prazo ou outros. É isto que explica que Guilherme de Oliveira (“Transformações do direito da família”, AAVV, Comemorações dos 35 anos e dos 25 anos da Reforma de 1977, I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 765), escreva que a relação conjugal passou a ser uma “relação pura”, “baseada no compromisso permanente e na gratificação renovada, que contém em si o acordo prévio sobre a sua dissolução.” Em decorrência, as alterações introduzidas pela Lei n.º 61/2008 ao regime jurídico do divórcio situaram-se ao nível das modalidades, das causas e dos efeitos do divórcio. No que diz respeito especificamente aos efeitos do divórcio, a alteração primeira deveu-se ao facto de a ausência de declaração de culpa implicar a extinção das sanções patrimoniais acessórias daí decorrentes. O legislador atuou, pois, em vários níveis, nomeadamente, no que importa para o caso, ao nível dos efeitos do divórcio, prevendo a perda de benefícios para qualquer um dos cônjuges. *** 2).3. Como se constata, a intervenção do legislador ao nível da perda de benefícios passou pela substituição, na letra do n.º 1 do art. 1791, do segmento “cônjuge declarado único ou principal culpado” pelo segmento “[c]ada cônjuge”, com a qual se pretende significar que qualquer dos cônjuges pode ser afetado. Isto porque é o divórcio, e não a culpa, a causa da perda de benefícios. Dito de outra forma, não sendo o casamento um meio de adquirir património, cessando tal relação jurídica, cessa a causa das deslocações patrimoniais que foram feitas em vista dele ou em consideração do estado (de casado) dele decorrente. Como pode ler-se na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 509/X, “[e]m caso de divórcio, qualquer dos cônjuges perde os benefícios que recebeu ou havia de receber em consideração do estado de casado, apenas porque a razão dos benefícios era a constância do casamento. Também aqui se afasta a intenção de castigar um culpado e beneficiar um inocente.”Tendo em conta o único aspeto sobre que incidiu a alteração, podemos concluir que mantêm atualidade as interpretações do conceito de benefícios feitas na vigência da redação pretérita, designadamente no que tange a incluírem-se nele atos de disposição patrimonial a título gratuito, como as doações (cf. art. 940/1), independente de terem sido feitas entre os esposados ou entre os cônjuges, ou de terem sido feitas por terceiros e, bem assim, de terem sido feitas em vista do casamento (doações para casamento) ou em consideração do estado decorrente do casamento. Isto mesmo pode ser constatado pela leitura da doutrina que se debruçou sobre o tema depois da Reforma. Assim, Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, I, Introdução. Direito Matrimonial, Coimbra: UC, 2016, p. 769) escrevem, invocando em apoio a lição de Pires de Lima / Antunes Varela, que a lei, falando em “benefícios”, “quer referir‑se às liberalidades. O art. 1791.º abrange pois as doações entre esposados, entre vivos ou por morte, feitas em vista do futuro casamento, e as doações feitas por terceiro em vista do casamento; as doações entre cônjuges (cf. art. 1766.º, n.º 1, al. c)), mesmo que se trate de simples doações indiretas; as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário; e as deixas testamentárias, em forma de instituição de herdeiro ou de legado, com que um cônjuge tenha beneficiado o outro cônjuge. Mas, dada a sua razão de ser, o art. 1791.º não parece que deva aplicar‑se aos simples “donativos conformes aos usos sociais” a que se refere o art. 940.º, n.º 2, nos quais não existe intenção liberal, correspondem a práticas sociais generalizadas e não implicam, em regra, disposições de valor considerável.” Rita Lobo Xavier (Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Coimbra: Almedina, 2009, p. 36) escreve que a lei tem em vista “sobretudo as liberalidades feitas na convenção antenupcial, as disposições testamentárias e outros benefícios que não possam ser considerados doações (não os benefícios decorrentes do próprio regime de bens, como é evidente).” Paula Távora Vítor (“Art. 791.º”, AAVV, Maria Clara Sottomayor (coord.), Código Civil Anotado - Livro IV - Direito da Família, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 571) escreve que, quanto ao seu objeto, “o alvo do art. 1791.º é particularmente amplo. Os benefícios a que a lei se refere abrangem, à partida, todas as liberalidades recebidas pelos cônjuges, em atenção a este estatuto presente ou futuro. O seu principal elemento caracterizador é, assim, a sua causa (…). Deste modo, desde que concedidas em vista do casamento ou em atenção do estado de casado, compreendem-se liberalidades (i) feitas pelos cônjuges ou por terceiros (v.g. por familiar) (…); (ii) de estipulação anterior (portanto, também, por esposados) ou posterior ao casamento; (iii) que revistam carácter inter vivos ou mortis causa (nos casos em que a lei as admita), incluindo doações, disposições testamentárias, a título de herança ou de legado e outros benefícios que não possam considerar-se doações, mas que não decorram do funcionamento do regime de bens (…); (v) que já tenham sido recebidas ou que só futuramente venham a integrar o património do beneficiário (quer em virtude do seu carácter mortis causa, quer, parece-nos, porque a produção de efeitos esteja dependente da verificação de termo ou condição suspensivos ou de outro facto que determine).” Rute Teixeira Pedro (“Art. 791.º, AAVV, Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, II, Artigos 1251.º a 2334.º, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 725) escreve que “[o]s benefícios sobre que se produzirá o efeito extintivo serão todas as liberalidades que tenham por beneficiário um ou ambos os cônjuges, independentemente do momento da sua celebração, desde que a mesma se conexione causalmente com a relação matrimonial. Diversamente, não são abrangidos pela norma, por falta de animus donandi, os benefícios conformes aos usos sociais (art. 940.º, n.º 2).” De igual modo, ao nível da jurisprudência, para além do já citado STJ 13.04.2021: STJ 12.12.2023 (2800/20.6T8FAR.E1.S1), Maria João Vaz Tomé; RC 21.02.2017 (2201/15.8T8CTB.C1), Maria João Areias; RP 12.10.20221 (3067/19.4T8PRD.P1), Anabela Miranda; RP 9.10.2023 (2216/21.7T8PRD.P1), Jorge Martins Ribeiro. Em todos estes arestos se considerou, com base na lição de Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, que doações feitas por terceiro, após a celebração do casamento, em consideração do estado de casado do beneficiário, se encontram abrangidas pelo âmbito do artigo 1791/1, caducando por força desta norma, revertendo os bens doados automaticamente para o património dos doadores. No mesmo sentido, STJ 3.03.2016 (1808/13.2TBMTS-A.P1.S1), Pires da Rosa, a propósito de uma doação feita em pelos pais de um dos cônjuges donatários em vista do casamento, e STJ 19.09.2017 (2201/15.8T8CTB.C1.S1), Pinto de Almeida, a propósito de uma doação de um cônjuge ao outro. Em sentido divergente, Eva Dias Costa (“Contributos para a interpretação do artigo 1791.º – a perda de benefícios em caso de divórcio e separação de pessoas e bens”, Revista Jurídica Portucalense, n.º especial, 2023, pp. 40-56[2]), depois de proceder à distinção entre caducidade das doações, prevista nos arts. 1760 (doações para casamento) e 1766 (doações entre casados), e perda de benefícios, prevista no art. 1791/1, interpreta este segmento da lei como excluindo as doações e as atribuições patrimoniais sujeitas ao regime das doações, que relega para o âmbito de aplicação daqueles preceitos. A autora, sem apresentar um critério geral do que sejam os benefícios sujeitos ao regime do art. 1791/1, recorre a uma enunciação exemplificativa destes: será “a ADSE que um cônjuge tem e que perde automaticamente se deixa de ser cônjuge”, “a pensão de viuvez ou a parte da reforma do falecido marido que a viúva perde quando o divórcio ou a separação, propostos ante mortem, são decretados post mortem”, “uma disposição num contrato de seguro de vida ou incapacidade a favor do cônjuge, assim descrito” e uma “deixa testamentária, feita [a] favor da mulher ou do marido de alguém, assim descrito, ou de um casal de quem se gosta muito.” Salvo o devido respeito, não vemos razão para incluir no conceito de benefício um legado e excluir dele uma doação. A diferença essencial entre as duas figuras, que depois se reflete na respetiva natureza jurídica – no primeiro caso, trata-se de um negócio jurídico unilateral; no segundo, de um contrato –, tem a ver com a causa e o momento da produção dos respetivos efeitos. Em qualquer delas ocorre uma aquisição a título gratuito, que assim constitui um benefício para o adquirente, seja ele legatário, seja ele donatário. Por outro lado, os benefícios a que alude a norma do art. 1791/1 não podem deixar de ser aqueles que têm na sua génese a vontade de quem faz a correspondente disposição. Outros benefícios, designadamente os que derivem da lei, em função do estado de casado, encontram na lei a solução para o seu destino em caso de dissolução do casamento por divórcio. Pense-se no exemplo fornecido pela autora do cônjuge do funcionário beneficiário titular da ADSE que, por essa razão, seja inscrito neste mecanismo de assistência na saúde. Em caso de divórcio, a perda será uma consequência de deixar de estar verificado o requisito legal de que dependia a inscrição como beneficiário familiar – e, portanto, a aquisição deste estatuto – e não da aplicação do art. 1791/1. E para evidenciar isto basta que se cogite a hipótese abstrata de o legislador alargar a ADSE aos ex-cônjuges dos beneficiários titulares quando verificados determinados condicionalismos (v.g., por carência económica, terem direito a alimentos do seu ex-cônjuge). O benefício não caducará então por efeito do divórcio, em resultado da aplicação da lei que estabelece as condições para a sua atribuição e manutenção, ao contrário do que resultaria do art. 1791/1. Por outro lado, a tese da autora levaria à inexistência de qualquer previsão para os direitos adquiridos pelos cônjuges, através de doação feita por terceiro, por causa do estado de casados. Os que tivessem sido adquiridos antes do casamento, mas em vista à celebração deste, quando a doação tivesse sido feita na convenção antenupcial, caducariam, conforme entende a autora, nos termos do disposto no art. 1760/1, b), interpretado corretivamente, de modo a que onde se lê “se ocorrer divórcio ou separação judicial se pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado” se leia “ocorrendo divórcio ou separação de pessoas e bens.” O mesmo sucederia com as doações entre casados, por força do disposto no art. 1766/1, c), interpretado nos mesmos termos. Estariam, assim, criados regimes diversos para situações axiologicamente semelhantes (em todas elas o casamento ou o estado de casado funcionou como a causa da constituição do benefício), o que a doutrina anterior nunca equacionou e que, portanto, não se crê que tenha estado no espírito do legislador de 2008 que, como vimos, quis, declaradamente, um regime em que o divórcio apague, tanto quanto possível, os resquícios do anterior estado dos ex-cônjuges. Deste modo, entendemos que não há razão para nos afastarmos da interpretação do conceito feita pela maioria da doutrina e consolidada na jurisprudência. Reconhecemos que existe, aparentemente, uma sobreposição de regimes no que tange às doações para casamento (entre esposados ou de terceiros) e às doações entre casados. Com efeito, os arts. 1760/1, b), e 1766/1, c), mantendo a redação anterior à Lei n.º 61/2008, preveem a caducidade de umas e de outras, respetivamente, em caso de “divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado.” A nosso ver, estas normas, cuja aplicação pressupõe a declaração de culpa na produção do divórcio, eliminada do nosso ordenamento jurídico, têm de considerar-se tacitamente revogadas pela Lei n.º 61/2008 na parte em que se referem à declaração de culpa, substituindo-se a sanção nelas prevista pela perda de benefícios, genericamente consagrada, nos termos expostos, no art. 1791/1, na sua atual redação, tal como sustentam Jorge Duarte Pinheiro (O Direito da Família cit., p. 497 e pp. 576-577), Rita Lobo Xavier (Recentes Alterações cit., p. 36), Rute Teixeira Pedro (loc. cit., p. 726), Paula Távora Vítor (loc. cit., p. 572) e Daniel Morais (“Art. 1760” e “Art. 1766”, AAVV, Maria Clara Sottomayor (coord.), Código Civil Anotado - Livro IV - Direito da Família, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 490-491 e p. 503). Assim foi entendido, na jurisprudência: A propósito do art. 1760/1, b), em STJ 3.03.2016, já citado, e em RC 6.10.2015 (282/12.5TBMGL.C1), António Carvalho Martins; e A propósito do art. 1766/1, c), em STJ 19.09.2017, já citado, em RG 28.06.2018 (318/16.0T8VPA.G1), Helena Melo, e em RC 21.02.2017 (2201/15.8T8CTB.C1), António Magalhães. *** 2).4. Centrando agora a atenção no regime do n.º 1 do art. 1791, cumpre dizer que não suscita dúvida que a perda dos benefícios abrangidos pelo art. 1791 opera ipso iure, por mero efeito do divórcio (cf. art. 1788 e, quanto à data da produção dos efeitos, art. 1789/1 e 3), sem que seja necessária a manifestação de vontade das partes nesse sentido. Assim, Pires de Lima / Antunes Varela (Código cit., p. 564), Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (Curso cit., p. 770), Paula Távora Vítor (loc. cit., p. 571) e Rute Teixeira Pedro (loc. cit., p. 726). Na jurisprudência, os arestos anteriormente citados. Significa isto que, ressalvada a hipótese, conferida pelo n.º 2 do preceito, de o autor da liberalidade determinar a reversão para os filhos do casamento, o legislador prescinde da vontade daquele. Estamos, pois, perante um caso de caducidade do negócio jurídico – ou seja, como ensina Inocêncio Galvão Telles (“Contratos civis”, RFDULX, IX, 1953, p. 185), perante “a extinção automática do contrato, como mera consequência de algum evento a que a lei atribui esse efeito. O contrato cessa sem necessidade de qualquer manifestação de vontade, jurisdicional ou privada, tendente a extingui-lo.” Note-se que a caducidade não tem efeito retroativo (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 630) e José Carlos Brandão Proença (A Resolução do Contrato no Direito Civil, do Enquadramento e do Regime, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, pp. 55-56), escrevendo este último que “[a] eficácia da caducidade é naturalmente irretroativa, mesmo que se possa objetar com a eficácia ex tunc correspondente à verificação das condições resolutivas (arts. 274.º a 276.º do CC), pois, não sendo a retroatividade da essência da condictio (v. os arts. 276.º, in fine, e 277.º do CC), podemos continuar a reivindicar para a caducidade um princípio quase-absoluto de eficácia ex nunc.” Compreende-se, por esta razão, que estando em causa a caducidade de um ato, como a doação, de transmissão gratuita de um direito sujeito a registo, para efeitos registais, o título principal consista na prova do divórcio, dando lugar a um novo registo a favor do doador, cf. entendido no Parecer n.º 44/2014 do Conselho Consultivo do IRN.[3] Compreende-se, também, que Pires de Lima / Antunes Varela (idem) afirmem, relativamente às doações inter vivos, tratar-se de uma situação equiparável à figura da propriedade resolúvel (cf. art. 1307). A situação de terceiros a quem os cônjuges tenham, entretanto, transmitido os bens adquiridos, pode ser acautelada nos termos previstos no art. 978/3 para os casos de revogação da doação por ingratidão: sendo o ato plenamente válido, o autor da liberalidade apenas poderá exigir o valor dos bens (cf. Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, Curso cit., p. 770). *** 2).5. Por outro lado, como vimos, a atual redação do art. 1791/1 foi introduzida pela Lei n.º 61/2008, cuja entrada em vigor ocorreu após a celebração do casamento que uniu os Réus e antes do divórcio que o dissolveu.Embora se trate de questão não colocada no objeto do recurso, diremos que a jurisprudência tem sido unânime no sentido de que o novo regime aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam, por força da norma supletiva geral de aplicação da lei no tempo do art. 12/2, posto que a lei nova dispõe sobre a situação de casado, abstraindo do ato (casamento) que o fez nascer o estado de casado, abrange assim as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor. Neste sentido, pode ler-se no já citado STJ de 3.03.2016 que “[o] casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei n.º 61/2008) uma nova luz e é essa luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela. Sobre todos os casados – e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da Lei nº 61/2008 – incidirá esta nova luz no caso de divórcio.” De igual modo, RP 26.05.2015 (5199/12.0TBMAI.P1), Fernando Baptista de Oliveira, e RC 15.11.2016 (185/14.9TBBR.C1), Jorge Arcanjo. Na doutrina, Paula Távora Vítor (loc. cit., p. 574) e Rute Teixeira Pedro (loc. cit.), pp. 726-727. Expressando dúvidas quanto a esta questão, por entender que os resultados da lei nova são totalmente imprevistos e intoleráveis, levando a uma infração ao princípio in praeteritum non vivitur, cf. Heinrich Hörster, “A responsabilidade civil entre os cônjuges”, AAVV, Maria Clara Sottomayor (coord.), E Foram Felizes para Sempre? Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 91-112). *** 2).6. Finalmente, os benefícios sujeitos à estatuição da norma são tanto os adquiridos em vista do casamento, como os adquiridos em consideração do estado de casado.Daqui decorre que o casamento ou o estado de casado funcionam como a causa da aquisição do benefício. Conforme escrevemos, é a cessação desta causa que justifica a perda dos benefícios (cessant causa, cessat effectus). A existência deste nexo deve, naturalmente, estar sustentada em factos. O ónus da prova de tais factos, que pressupõe a prévia alegação[4], recai, indiscutivelmente, sobre aquele que pretende obter o reconhecimento da caducidade do benefício e da consequente reversão do direito ao seu património. Note-se que a questão do ónus da prova coloca-se a jusante, ao nível das regras de decisão. O que sucede é que, uma vez observado o antecedente ónus de alegação, os factos que aproveitam à parte, assim como outros factos essenciais que integrem a mesma previsão normativa, podem ser considerados como provados ainda que a parte onerada não desenvolva uma atividade probatória adequada à sua prova. Basta que esses factos resultam da atividade desenvolvida pela parte contrária ou mesmo, nos casos em que tal é imposto pelo princípio do inquisitório, da iniciativa probatória do tribunal. É isto que permite conjugar aquele conceito de ónus com os princípios da aquisição processual e do inquisitório, consagrados nos arts. 413 e 411 do CPC, respetivamente. A propósito, Rita Lynce de Faria, “Art. 342”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 1001. É esta conceção do ónus da prova que explica que o CPC atualmente em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, tenha substituído a figura da base instrutória, tributária do antigo questionário, pela dos temas da prova. Antes, na preparação do julgamento, os enunciados de facto feitos pelas partes nos respetivos articulados que permaneciam controvertidos eram selecionados de acordo com a versão adequada às regras de repartição do ónus da prova. Agora, a enunciação dos temas da prova não implica qualquer compromisso quanto às regras da distribuição do ónus da prova. A sua função é apenas a de balizar a instrução. Só mais adiante, na sentença, depois de elencar os factos que reputa provados e não provados, é que o juiz deve tirar consequências sobre a falta de prova de um determinado enunciado e, em face da natureza do mesmo, declarar a improcedência da ação ou da exceção. A propósito, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 332-333. Os factos que sustentam o referido nexo poderão resultar do teor da própria declaração de vontade de quem fez a disposição, naturalmente interpretada de acordo com os cânones estabelecidos nos arts. 236 e 238. Casos haverá, porém, em que a declaração negocial não contém elementos que permitam divisar os fatores determinantes da vontade. Em tais casos, os factos poderão ser adquiridos com base em qualquer meio de prova, ao que não constitui obstáculo a sua natureza de estados subjetivos, pois é indiscutível que as realidades de natureza psicológica constituem factos. Como se pode ler, a propósito, em STJ de 17.12.2019 (756/13.0TVPRT.P2.S1), Maria da Graça Trigo, “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico.” O que sucede, acrescentamos, citando RG 9.01.2025 (739/22.0T8GMR-H.G2), do presente Relator, é que a apreensão de tais realidades não pode ser feita de forma direta, mas através de factos probatórios que as permite inferir à luz das regras do id quod plerumque accidit. É o que explica Michele Taruffo, La Prueva de los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166, quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil. Daqui resulta que é provavelmente mais realista pensar que os factos psíquicos não são realmente determinados; são antes substituídos por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a eles e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, como também escreve Michele Taruffo, “o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.” *** 2).7. Exposto o regime, temos de reconhecer que a sua aplicação pode conduzir a um resultado injusto para o cônjuge que não deu causa à rutura e que preferia manter o casamento (Cristina Araújo Dias, Uma Análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 29), assim se desprezando quer as legítimas expetativas, de ordem moral e patrimonial, que cada um dos cônjuges colocou na relação quer o comportamento de cada um deles na vigência do vínculo (Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 7.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2020, pp. 630-631). Pode mesmo redundar na manutenção de um casamento exaurido, com o único propósito, da parte dos cônjuges, de evitarem perder os benefícios que, por causa desse estado, receberam de terceiros, situação absolutamente paradoxal à luz do espírito da reforma levada a cabo pela Lei n.º 61/2008. E implica, seguramente, uma restrição à autonomia privada de quem constituiu o benefício. Não tendo a autonomia privada, pelo menos de uma forma direta, tutela constitucional (cf. Ana Prata, A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra: Almedina, 1982, pp. 312-217), acabam por estar aqui em causa, apenas, as opções do legislador na modelagem do regime jurídico do divórcio, às quais o julgador deve obediência. *** 2).8. Isto dito, no caso vertente, não podemos deixar de expressar a nossa concordância com o entendimento expresso pelo Tribunal a quo.Com efeito, os doadores deixaram bem claro, nas declarações que emitiram perante o notário e que ficaram plasmadas na escritura, que o seu animus donandi foi determinado pelo facto de os donatários serem casados entre si. Em primeiro lugar, quando declararam que doavam ao seu filho e nora; depois, quando declaram que a doação era feita por conta da quota disponível do primeiro donatário, deixando assim clara a sua vontade de os bens doados integrarem o património comum do casal. Aliás, a própria Recorrente reconhece isto quando alega, repetidamente, que os doadores agiram com a intenção de que os bens doados passassem a integrar o património comum do casal constituído pelos donatários, o que constitui uma forma lapidar de dizer que os benefícios que, por essa via, foram obtidos pelos Réus tiveram como causa o casamento que os unia e não uma qualquer razão pessoal externa ao estado de casados, a qual, a existir, levaria, necessariamente, a uma opção diversa por parte dos doadores, como, por exemplo, a de doarem a apenas um dos membros do casal ou a de, doando aos dois conjuntamente, estabelecerem que os bens doados integrariam a legítima do donatário, assim os excluindo do património comum do casal. Esta conclusão tem presente que, no regime da comunhão de adquiridos, a regra de que os bens adquiridos por um dos cônjuges através de uma doação (inter vivos ou mortis causa) são bens próprios do cônjuge adquirente (art. 1722/1, b)) pode ser afastada, por vontade do doador (art. 17291, 1.ª parte), presumindo-se (iuris tantum) que assim sucede quando a doação seja feita aos dois cônjuges conjuntamente (art. 17291, 2.ª parte), salvo se o seu objeto integrar a legítima do donatário (art. 1729/2), o que se explica pela natureza imperativa da sucessão legitimária (arts. 2027 e 2156 e ss.). Resultando que a doação foi feita para que os bens integrassem o património comum do casal, afigura-se axiomático que o casamento (rectius, o estado de casados dos donatários) foi o fator determinante da vontade dos doadores, o que satisfaz de forma adequada e suficiente o apontado ónus probatório e permite compreender, em termos axiológicos, a consequência da perda do benefício que ela importou: com a dissolução do casamento por divórcio, aquele património de afetação especial foi dissolvido. Por efeito da partilha, os bens que o compunham serão atribuídos a cada um dos membros do dissolvido casal, o que contraria aquela que foi a razão determinante da vontade dos doadores.[5] Como consequência lógica, a caducidade dos benefícios recebidos pelos Réus em função do estado de casados atingiu, por igual, qualquer um deles e não apenas a Recorrente. A afirmação, feita na sentença recorrida, de que os doadores quiseram, em qualquer hipótese, “beneficiar o seu filho” (o Réu) é contrariada pela vontade expressa de ambos que foi a de doarem ao casal, para que os bens doados (rectius, o direito de propriedade sobre eles) integrassem o património comum. Este é, porém, um segmento decisório da sentença que não foi questionado através do recurso. Era mesmo duvidoso que a Recorrente dispusesse de legitimidade para esse efeito, por a eventual declaração de que o benefício caducou in totum – isto é, também na quota-parte do Réu – não lhe trazer um benefício direto e imediato. Aliás, perante o modo como a única pessoa com legitimidade para questionar a caducidade integral do benefício – a Recorrida – gizou os pedidos era mesmo duvidoso que o Tribunal a quo pudesse ter decidido de forma diferente. Perante isto, concluímos por uma resposta negativa à segunda questão, com a consequente improcedência do recurso, o que prejudica o conhecimento da 3.ª e da 4.ª questões (art. 607/2, ex vi do art. 666 do CPC). Como vimos, o conhecimento das questões suscitadas na ampliação do objeto do recurso estava dependente de uma resposta afirmativa às questões inicialmente colocadas à apreciação deste Tribunal, pressuposto que não se verifica. *** 3). Vencida, a Recorrente deve suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.*** V.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso improcedente e confirmar as decisões recorridas. Custas pela Recorrente. Notifique. * Guimarães, 20 de março de 2025 Os Juízes Desembargadores, Gonçalo Oliveira Magalhães Fernando Manuel Barroso Cabanelas Susana Raquel Sousa Pereira [1] Pertencem ao Código Civil as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [2] Disponível em https://doi.org/10.34625/issn.2183-2705(ne)2023.ic-03. [3] Disponível em Pareceres do Conselho Consultivo | IRN.Justica.gov.pt. [4] Em regra, há coincidência entre o ónus da alegação e o ónus da prova (arts. 342/1 e 2 e 343/1 do Código Civil). A regra cessa quando a lei ou as partes determinam a inversão do ónus da prova, o que sucede nos casos em que existe uma presunção legal (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação legal do ónus da prova (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação convencional do ónus da prova (arts. 344/1 e 345/1 do Código Civil) ou a impossibilitação culposa da prova pela contraparte do onerado (art. 344/2 do Código Civil). A propósito, vide Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 183 e ss.., e Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa: Lex, 2001, pp. 33 e ss.. Em nenhum dos apontados casos a inversão do ónus da prova dispensa do ónus da alegação, que se mantém. [5] Como se pode ler em RG 18.12.2024 (901/24.0T8GMR-B.G1), do presente Relator, a comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade coletiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de o direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património – mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património coletivo não pertencem diretos específicos – designadamente uma quota – sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente, pelo que, na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha, o que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. Até à respetiva divisão, sob a forma de partilha, os cônjuges são, pois, detentores de uma pars quota sobre uma universalidade em titularidade indivisa, uma quota ideal cujo conteúdo se concretiza em pars quanta depois da divisão. A situação de indivisão (pós-comunhão), embora por natureza transitória, destinada que está à liquidação, com a qual cada um dos ex-cônjuges adquirirá a sua meação nos bens comuns, pode perdurar indefinidamente, suscitando os problemas próprios das relações de contitularidade, pelo que se justifica, quanto à respetiva administração, a aplicação das regras da compropriedade, por força do disposto no art. 1404 do Código Civil, certo como é que já não vigoram as regras próprias do direito de família que disciplinam os regimes de comunhão. Isto não significa, porém, que com a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, na sequência do divórcio (ou da separação judicial de pessoas e bens), a comunhão se converte, ipso facto, numa situação de compropriedade; até que seja feita a partilha, existe uma situação de indivisão do património, tendo cada um dos ex-cônjuges direito a uma meação desse todo (indivision post-communautaire) e não a uma quota ideal de cada um dos bens que o compõem, atomisticamente considerado. A propósito, na doutrina, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 485; Francisco Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Coimbra: UC, 2016., p. 767; Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade cit., pp. 922-923; Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 77-78; Eva Dias Costa, “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 2 (2013), n.º 13, pp. 14813-14837, disponível em www.cidp.pt. Na jurisprudência: STJ 29.06.2004, 04A2062, Azevedo Ramos; STJ 26.04.2012, 33/08.9TMBRG.G1.S1, Serra Baptista; RC 8.11.2011, 4931/10.1TBLRA.C1, Henrique Antunes; RC 11.06.2016, 3146/12.9TBLRA.C1, Luís Cravo; RP 15.04.2021, 17294/18.8T8PRT-A.P1, Filipe Caroço; e RP 18.11.2021, 1403/20.0T8PVZ.P1, Paulo Dias da Silva; RG 19.01.2023 (191/21.7T8CMN.G1), Pedro Maurício. |