Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | MARIA CRISTINA CERDEIRA | ||
| Descritores: | TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO LEI APLICÁVEL ARTº. 57º NRAU CONSTITUCIONALIDADE NULIDADE PROCESSUAL GRAU DE INCAPACIDADE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/29/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I) - A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico da morte do arrendatário. II) - A Lei nº. 6/2006 de 27/2 veio estabelecer o NRAU, tendo no seu art.º 59º regulado a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, estando estas normas transitórias contempladas nos artºs 26º a 58º da referida Lei. III) - Os artºs 26º, n.º 1, 27º e 28º, nº. 1 impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado art.º 26º. O que significa que se aplica o n.º 2 do artº. 26º que estabelece que à transmissão por morte aplica-se o disposto nos artºs 57º e 58º, sendo que o primeiro refere-se aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais. IV) - O actual regime do art.º 1106º do Código Civil não é aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, valendo para estes o regime transitório consagrado no artº. 57º da Lei nº. 6/2006 de 27/2, que estabelece condições mais restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional. V) - O artigo 57º do NRAU, ao prever um regime transitório para a transmissão do direito ao arrendamento habitacional por morte do arrendatário, restritivo da expectativa jurídica da Ré, representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador dos princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artºs 13º e 18º da CRP. VI) - Não se encontrando a Ré em nenhuma das situações previstas nas alíneas do nº. 1 do artº. 57º do NRAU, mormente na sua alínea e) aplicável ao caso em apreço, não se lhe transmite o arrendamento para habitação e não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte da arrendatária, sua mãe, a morte desta constitui causa legal de caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO A. R. intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra O. V., pedindo que esta seja condenada: a) a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio sito na Rua ..., nºs …, em …, Braga, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº …; b) a desocupar o referido imóvel e a entregá-lo ao Autor, livre de pessoas e bens. Para tanto, alega, em síntese, que é legítimo proprietário do prédio identificado no artº. 1º da petição inicial, que lhe foi adjudicado no processo de inventário nº. 2459/15, que correu termos no Cartório Notarial do Dr. R. P.. Além da aquisição derivada, alega, também, factos inerentes à aquisição originária (por usucapião), por parte do A., do direito de propriedade sobre o aludido prédio. Acrescenta que se encontra impedido de usufruir do mesmo em virtude de a Ré estar a ocupá-lo abusiva e ilegalmente, fazendo dele a sua casa de habitação. Refere, ainda, que o referido imóvel encontrava-se arrendado à mãe da Ré desde data anterior à sua transmissão para o A., e tendo aquela falecido em 11 de Dezembro de 2018, o contrato de arrendamento caducou, devendo a Ré tê-lo desocupado e entregue ao A. até 16/06/2019. A Ré tem-se recusado a entregar o imóvel ao Autor, apesar de ter sido interpelada para esse efeito. Contestou a Ré, alegando, em síntese, que ocupa legitimamente o imóvel reivindicado pelo A., na medida em que o mesmo tinha sido arrendado pelo pai do A. ao seu pai, arrendamento esse que após a morte do pai da Ré, ocorrida em 19 de Junho de 2016, se transmitiu à sua mãe e, depois do decesso desta, à própria Ré, que sempre residiu com os seus falecidos pais, durante mais de 45 anos. Após a morte da sua mãe sempre pagou, e o A. recebeu, a renda mensal no valor de € 123,69, sendo que o A. não precisa do imóvel para o habitar, visto que possui outros prédios para além daquele objecto da presente demanda, para além de que vive em França durante todo o ano, vindo a Portugal apenas no período de férias. Acrescenta que em 21 de Julho de 2019, o A. enviou carta à Ré, manifestando a intenção de manter o arrendamento com esta, contudo interpelando-a no sentido de assinar novo contrato de arrendamento aumentando o valor da renda para € 200,00 mensais, tendo a Ré respondido por carta enviada em 1/08/2019 e junta a fls. 36 dos autos, na qual não aceitou assinar novo contrato de arrendamento. Refere, ainda, que é pessoa bastante doente, não trabalha e aufere o Rendimento Social de Inserção no valor mensal de € 189,66. Em 7/08/2019 solicitou a realização de junta médica para avaliação do seu grau de incapacidade, que considera ser superior a 60%. Conclui, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição dos pedidos formulados pelo Autor, com as necessárias consequências legais. O A. apresentou resposta, na qual impugna a matéria de excepção alegada pela Ré e mantém o alegado na petição inicial, referindo que nunca foi sua intenção manter o contrato de arrendamento após a morte da mãe da Ré, tendo apenas acedido a que a Ré permanecesse no locado porquanto a mesma tinha invocado que padecia de uma incapacidade superior a 60%, solicitando-lhe que aguardasse pelo resultado da junta médica que havia pedido, para além de que nos termos da lei não podia exigir a desocupação imediata do imóvel. Por despacho proferido em 3/11/2020, foi determinada a notificação da Ré para juntar aos autos documento comprovativo do grau de incapacidade que lhe foi atribuído pela junta médica realizada em 4/12/2019, tendo a Ré em 9/11/2020 vindo juntar o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, no qual consta que lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 48% (cfr. fls. 117 e vº), e informar o Tribunal que havia interposto recurso por discordar do grau de incapacidade que lhe foi atribuído, aguardando decisão sobre o mesmo. Em 25/03/2021 foi junta aos autos cópia do ofício remetido pela DGS à Ré, a comunicar que o recurso por ela apresentado havia sido indeferido por despacho de 26/02/2021 (cfr. fls. 126 e vº). Em 30/03/2021 veio a Ré requerer que os autos aguardassem pelo resultado da nova junta médica que iria pedir, para reavaliação do grau de incapacidade atribuído, por a sua situação clínica se ter agravado. O A. veio opor-se a tal pretensão da Ré. Por despacho proferido em 18/05/2021, o Tribunal “a quo” indeferiu esta pretensão da Ré com a seguinte fundamentação: “E, de facto, não pode tal pretensão da ré ser atendida, pelas razões que o autor contrapôs. Aquela solicitou já anteriormente uma junta médica para efeitos de atribuição de incapacidade e fixação do respectivo grau. Essa junta médica realizou-se, foi atribuída à ré uma incapacidade e o recurso que a mesma interpôs foi indeferido por decisão da Direcção-Geral de Saúde datada do passado dia 26 de Fevereiro. Não podem os autos aguardar que a ré peça nova junta médica e, na eventualidade de não lhe ser atribuída a incapacidade que na contestação alega afectá-la, aguardar indefinidamente que aquela solicite novas juntas para reavaliação do grau de incapacidade entretanto arbitrado. Assim sendo, decide-se indeferir o requerido. Notifique.” Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido saneador-sentença em 23/08/2021, no qual se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, e se decidiu nos seguintes termos: Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar pela procedência da acção e, consequentemente, condeno a ré a: a) Reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio sito na Rua ..., nºs …, em …, Braga, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de... sob o nº ...; b) Desocupar e entregar ao autor esse mesmo prédio, livre de pessoas e bens. Inconformada com tal decisão e com o despacho de 18/05/2021, a Ré deles interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]: I. O tribunal “a quo” decidiu em 18 de Maio de 2021 indeferir requerimento da Ré - com a ref.ª electrónica 38418304 – em que esta veio solicitar que os autos aguardassem pelo resultado de nova junta médica, que dizia ter intenção de pedir, e pediu, com vista à reavaliação do grau de incapacidade que lhe foi atribuído, II. Tudo pelo facto de a sua situação de saúde se ter agravado, desde a primeira avaliação a que foi submetida (que lhe concedeu uma incapacidade permanente global de 48%), e por não ter juntado ao pedido de recurso da incapacidade atribuída, relatório médico actualizado. III. O Tribunal decidiu indeferir o requerido pela Ré/recorrente. IV. Não pode a recorrente conformar-se com a decisão proferida, por considerar que não é conforme ao direito, sendo certo que os autos deveriam ter aguardado novo resultado de avaliação da incapacidade da recorrente, para, só depois, ter sido proferida decisão sobre o objecto da causa. V. A questão central que se coloca nos autos é saber se a recorrente, que pretende a transmissão do direito de arrendamento, por ser descendente da primitiva arrendatária, tem ou não uma incapacidade permanente global igual ou superior a 60%. VI. E se os autos deveriam aguardar ou não que essa questão ficasse definitivamente resolvida, com o resultado de novo pedido de avaliação de incapacidade, tanto mais que a recorrente alegou no seu requerimento que o seu estado de saúde se agravou, ainda no decorrer do processo. VII. Ora, indeferir-se a possibilidade de a Ré, aqui recorrente, demonstrar que é portadora de uma incapacidade superior a 60 %, para poder beneficiar da transmissão do arrendamento, nos termos do art. 57.º do NRAU, caso seja a norma aqui aplicável, configura uma limitação injustificada e injusta ao seu direito de poder demonstrar que é portadora de tal incapacidade. VIII. E, realce-se aqui, não se trata de aguardar indefinidamente, mas tão somente aguardar uma reavaliação do estado de saúde da aqui recorrente, em função do agravamento do seu estado de saúde. IX. Note-se que, o pedido de nova avaliação foi requerido ainda antes de ter sido proferida decisão final do processo, em 14 de Abril de 2021. – Cfr. doc. n.º 1 que só agora se junta, pelo facto de o tribunal ter considerado e dado como assente e provado que a recorrente padece de uma incapacidade de 48%, e se ter tornado necessário em virtude do julgamento proferido pelo tribunal “a quo”. X. Tal limitação, salvo melhor opinião, mostra-se desconforme ao princípio do acesso ao direito aos tribunais (art. 20.º da CRP) e ao princípio da livre apreciação da prova, pois que limita, e limitou, de forma injustificada, o seu direito à prova, e a possibilidade de discussão e de produção de meios de prova sobre o grau da incapacidade da Ré, aqui recorrente. XI. Ora, a ratio da exigência legal da deficiência “com grau comprovado de incapacidade”, prevista no art. 57.º do NRAU, tem a ver com a necessidade de se afastarem situações duvidosas, como é o caso dos presentes autos. XII. Portanto, não permitir que a Ré/recorrente demonstre de forma indiscutível que é efectivamente portadora de uma incapacidade permanente global de 60 %, como fez o tribunal “a quo”, limitou de forma inaceitável os princípios supra invocados, impedindo por exemplo a existência de discussão judicial quanto ao grau de incapacidade. XIII. Ademais, nenhum inconveniente haveria para o A., considerando que sempre esteve a receber as rendas devidas, e continuou a recebê-las até ao momento, XIV. Aliás, mesmo que o princípio da celeridade processual saia ou saísse prejudicado em virtude da demora na realização da requerida reavaliação da incapacidade da recorrente, certo é que aquele princípio em caso algum deverá prevalecer sobre o princípio da verdade material. XV. Pelo acima expendido, não deveria o tribunal “a quo” ter indeferido o requerimento apresentado nos autos pela Ré/recorrente em 18 de Maio de 2021, com a ref.ª electrónica 38418304, nem ter posteriormente proferido sentença que conheceu do mérito da causa, sem que a reavaliação do grau de incapacidade permanente global da recorrente tivesse sido efectuado. XVI. Dispõe o art. 195.º, n.º 1 do CPC que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, determinarão a nulidade caso a lei assim o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa. XVII. Duvidas não temos da essencialidade instrumental de comprovação do grau de incapacidade para podermos aferir da possibilidade ou não da transmissão do arrendamento à aqui recorrente nos termos do art. 57.º do NRAU, caso seja o regime aplicável. XVIII. A falta de realização de novo exame de reavaliação do grau de incapacidade da ré/recorrente, influiu, e sempre influenciaria, a decisão da causa. XIX. Razões estas pelas quais estamos perante uma nulidade processual, que aqui expressamente se invoca, e se requer seja conhecida e reconhecida, com todas as legais consequências. XX. Deverão ser declarados nulos todos os actos praticados nos autos, desde essa data, incluído o saneador sentença proferido. XXI. A recorrente viu coartado o seu direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e violado o principio da livre apreciação da prova, o que deverá desde logo ter como consequência a procedência do recurso e, consequentemente, a revogação do despacho que indeferiu o requerimento da recorrente para que os autos aguardassem pelo resultado de nova junta médica com vista à reavaliação do seu grau de incapacidade, e a declaração de nulidade de todo o processado nos autos, desde essa altura, com todas as consequências legais que daí possam advir. XXII. Violou o tribunal “a quo”, portanto, ao decidir como decidiu, o disposto no art. 20.º da C.R.P. e os artigos 410.º e 413.º, todos do C.P.C. por erro de integração, interpretação e aplicação. XXIII. A decisão final do processo, designadamente o saneador sentença proferido não faz uma correcta aplicação do direito aos factos. XXIV. O Saneador sentença foi proferido tendo por base a aplicação do artigo 57.º do NRAU, à presente situação. XXV. Entendemos ocorrer inconstitucionalidade no preceito em causa – art 57.º do NRAU, por ofensa aos princípios de confiança e da igualdade plasmados nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP. XXVI. O artigo 57.º do "Novo Regime do Arrendamento Urbano", aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, é, inconstitucional e ofensivo dos principias da confiança e da igualdade, dimanados pelos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa XXVII. Tal inconstitucionalidade deve determinar a revogação do saneador sentença recorrido e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente. XXVIII. Perante as modificação legislativas relativas à transmissão do arrendamento por morte (art. 57.º do NRAU; art. 85.º do RAU; art. 1106 do CC) passou a não bastar a qualidade de descendente e conviver com o arrendatário há mais de um ano para ocorrer o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário. XXIX. Trata-se assim de uma imposição que veio cercear um direito constituído face às normas que regiam os contratos de arrendamento no tempo em que foram celebrados, que contende com preceitos constitucionais. XXX. Porém, o que mais surpreende na modificação legislativa no que respeita a esta questão é a actual redacção do art. 1106.º do CC; XXXI. Este preceito aplica-se aos contratos de arrendamento celebrados após a vigência do NRAU (já não aos constituídos sob o regime do RAU ou em época anterior, os quais são regulados pela norma transitória do NRAU). XXXII. E estipula no seu n.º 2 que o contrato de arrendamento se transmite “sucessivamente para o parente ou afim mais próximo que com ele residissem em economia comum há mais de um ano, XXXIII. Autorizando dessa forma, sem margem para dúvida, que a transmissão do arrendamento opere para qualquer descendente ou afim que residisse com o arrendatário em economia comum há mais de um ano, sem que para isso estabeleça qualquer das limitações que consagrou na norma transitória do art. 57.º do NRAU, XXXIV. Voltando ao que constava no revogado art. 85.º, n.º 1, alínea b), do RAU; XXXV. Tal situação, além de estranha, é iniqua e desigual… XXXVI. De facto, não se compreende, nem se poderá compreender, como não possa ser consentida a transmissão para o descendente, conforme previa o art. 85.º, n.º 1, alínea b) do RAU, impondo o legislador a clara limitação do art. 57.º do NRAU nas normas transitórias, para afinal, nos contratos celebrados sob o actual regime, voltar a permitir que essa transmissão opere. XXXVII. O problema está em saber se a norma que operou a modificação, veio frustrar de modo intolerável as expectativas da transmissão do arrendamento a favor das pessoas que face ao artigo 85.º do RAU, legitimamente esperavam a materialização desse direito, designadamente os descendentes, como é o caso da aqui Ré/recorrente XXXVIII. Do princípio do Estado de Direito emana uma prerrogativa de confiança, de modo a que todos possam organizar e programar as suas vidas tendo em atenção o quadro legal por onde regem as suas recíprocas relações. XXXIX. Daí que os direitos adquiridos em razão dessas expectativas (juridicamente tuteladas), não devem ser modificadas, sem que seja garantida a estabilidade (imodificabilidade) dos interesses que licitamente eram tidos como certos. XL. Embora as leis retroactivas não sejam constitucionalmente proibidas (salvo em matéria penal), sempre será necessário atender-se á amplitude dos efeitos que a Lei Nova veio produzir, de modo a não ser posto em causa o princípio da confiança ínsito em qualquer Estado de Direito Democrático (art. 2 e 18 da CRP). XLI. Se, por um lado, o legislador procurou acautelar os interesses do senhorio, não permitindo que o contrato de arrendamento se transmitisse aos descendentes em situações de duvidosa justificação (por exemplo, permanência ou frequência do lar parental por simples comodidade) outras situações ficaram gravemente desacauteladas: XLII. Veja-se o caso da recorrente, que sempre viveu em casa dos pais, durante 45 anos, ininterruptamente, e ali permaneceu, para deles cuidar. XLIII. E onde construiu o seu lar, por carência de meios que lhe permitissem conseguir habitação própria, designadamente, por ser pessoa muito doente, que não pode trabalhar, e que aufere o Rendimento Social de Inserção, no valor mensal de 189,66 €. XLIV. Em todas estas situações, o descendente, que não reúna as condições das alíneas d) e e) do nº 1 do art. 57.º do NRAU, após a morte do arrendatário, terá de abrir mão da habitação, entregando-a ao senhorio devoluta de pessoas e de bens. XLV. Esta situação é ainda mais injusta e iniqua, quando, face à vigente norma do artº 1106 do CC, o legislador voltou a permitir transmissão a favor desses descendentes, nos contratos celebrados sob a vigência do NRAU. XLVI. Com efeito, na situação da recorrente, os descendentes não podem sequer invocar direito a novo arrendamento, pelas simples razões da norma que o previa – art. 90.º do RAU- ter sido revogada e não existir no novo regime disposição idêntica. XLVII. Motivo pelo qual entendemos ocorrer inconstitucionalidade do preceito ora analisado por ofensa aos princípios de confiança e da igualdade dimanados pelos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP. XLVIII. Em face da invocada inconstitucionalidade da norma prevista no art. 57.º do NRAU, deverá, “in casu”, ser aplicado o art. 85.º do RAU, e, em consequência, ter a ré/recorrente direito à transmissão do arrendamento por morte da sua mãe. XLIX. Pelo exposto, o saneador sentença recorrido viola, por errada integração, interpretação e aplicação, o disposto nos arts 57.º NRAU; 85.º RAU; art. 1106.º CC e 2.º, 13.º e 18.º da C.R.P.. L. Portanto, ao decidir como decidiu, na sentença proferida, o Mmº. Juiz “a quo” não fez correcta aplicação do direito. S.M.O., violou o disposto nos arts 57.º NRAU; 85.º RAU; art. 1106.º CC e 2.º, 13.º e 18.º da C.R.P.. LI. Salvo o devido respeito – que é muito – o despacho proferido em 18/05/2021 e, subsequentemente, a sentença proferida nos autos, traduziu-se num resultado ética e juridicamente injusto, entendendo a apelante que as decisões sob recurso fizeram uma inexacta interpretação e aplicação da lei, violando, entre outros, o disposto nos artigos 410.º e 413.º do C.P.C; 57.º NRAU; 85.º RAU; 1106.º CC e 20.º, 2.º, 13.º e 18.º da C.R.P. Termina entendendo que o presente recurso deve ser julgado procedente. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do despacho e do saneador-sentença recorridos. O recurso foi admitido por despacho de fls. 172. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6. Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Ré, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: I) – Recurso do despacho de 18/05/2021: 1. Questões prévias: A) - Saber se é possível a junção de documentos com as alegações de recurso; B) - Ampliação da matéria de facto provada; 2. Saber se foi cometida a nulidade processual invocada pela recorrente. II) – Recurso do saneador-sentença proferido em 23/08/2021: 1. Da inconstitucionalidade do artº. 57º do NRAU por violação dos princípios da igualdade e da confiança; 2. Saber se ocorre a caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária. Na sentença recorrida foram considerados provados, por acordo e por documento, os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir [transcrição]: 1. No processo de inventário nº 2459/15, que correu termos pelo Cartório Notarial do Dr. R. P. por óbito de B. J., foi adjudicado ao autor o prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa térrea com quintal, sito na Rua ..., nºs …, união de freguesias de …, … e …, concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., inscrito na matriz sob o artigo …. 2. Mostra-se inscrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de..., pela ap. 1920, de 20/07/2018, o registo da aquisição desse imóvel a favor do autor, por partilha extrajudicial. 3. Por si e antecessores, desde há mais de 20 anos tem sido o autor quem tem usufruído do referido prédio, dele colhendo todos os seus frutos, rendimentos e utilidades, pagando as respectivas contribuições, taxas e impostos, e suportando os demais encargos inerentes, na convicção de exercer um direito próprio, com exclusão de outrem, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e de forma ininterrupta. 4. A ré vem ocupando o dito imóvel, habitando-o e fazendo dele a sua casa. 5. Esse imóvel foi arrendado pelo pai do autor ao pai da ré, tendo este falecido em 19 de Junho de 2016, ficando aí a residir a mãe da ré, esta falecida no dia 11 de Dezembro de 2018. 6. A ré foi submetida a junta médica no dia 4 de Dezembro de 2019, tendo-lhe sido atribuída, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Junho, uma incapacidade permanente global de 48%. * Apreciando e decidindo.I) – Recurso do despacho de 18/05/2021: 1. Questões prévias: A) - Saber se é possível a junção de documentos com as alegações de recurso: Como questão prévia à apreciação do presente recurso, e porque tem a ver directamente com o pedido formulado pela Ré/recorrente no seu requerimento de 30/03/2021, que foi indeferido pelo despacho proferido em 18/05/2021 ora sob escrutínio, importa tomar posição quanto à admissibilidade da junção, com as alegações de recurso, do documento constante de fls. 167vº (pedido de realização de nova Junta Médica para reavaliação do grau de incapacidade, formulado pela Ré em 14/04/2021), tendo a recorrente apresentado como justificação para só agora juntar tal documento o facto de o Tribunal de 1ª instância ter considerado e dado como assente que a recorrente padece de uma incapacidade de 48% e se ter tornado necessário em virtude do julgamento proferido por aquele Tribunal. Porém, a junção pretendida pela recorrente não é admissível. Como é sabido, a junção de documentos na instância de recurso obedece, clara e compreensivelmente, a regras particulares restritivas. Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 423º e 425º do NCPC, os documentos destinados a fazer prova da acção ou da defesa devem ser juntos com os articulados, podendo ainda ser apresentados até 20 dias antes da data da audiência final, mediante pagamento de multa ou prova de que não foi possível a sua junção em momento anterior. Depois desse limite temporal só são admissíveis os documentos cuja apresentação não foi possível até aquele momento, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior. Depois do encerramento da discussão em 1ª instância e havendo recurso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Por sua vez, o artº. 651º, nº. 1 do NCPC estabelece que as partes apenas podem apresentar documentos com as alegações nas situações excepcionais a que se refere o artº. 425º do mesmo diploma, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. Da articulação lógica destas normas resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (i) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso (valendo aqui a remissão do artº. 651º, nº. 1 para o artº. 425º); (ii) ter o julgamento da 1ª instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí (até ao julgamento em 1ª instância) se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este. Neste sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Guimarães de 22/01/2015 (proc. nº. 561/12.1TBAMR-A, disponível em www.dgsi.pt): “Já depois do encerramento da audiência, no caso de recurso, a apresentação de documentos, sendo permitida desde que juntos com as alegações, lícita/admissível é tão só desde que se verifique uma de duas situações, a saber: a) Quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, quer por impossibilidade objetiva (inexistência do documento em momento anterior), quer subjetiva (v.g. ignorância sobre a sua existência); b) Quando a sua junção se tenha tornado necessária devido ao julgamento na 1ª instância - v.g. quando a decisão proferida não era de todo expectável, tendo-se ancorado em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes, justificadamente, não contavam.” Quanto à primeira situação, a impossibilidade de junção do documento refere-se ou a uma superveniência objectiva (quando o documento é historicamente posterior ao encerramento da discussão da causa) ou a uma superveniência subjectiva (em que o documento só é conhecido após o encerramento da discussão da causa), relevando aqui apenas razões atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade do apresentante, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento (cfr. acórdão da RC de 18/11/2014, proc. nº. 628/13.9TBGRD, disponível em www.dgsi.pt). No que concerne à situação referida em segundo lugar, é necessário que a decisão da 1.ª instância venha, pela primeira vez, criar uma necessidade de junção do documento, por se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou por ter resultado da aplicação ou interpretação de regra de direito com que as partes, razoavelmente, não contavam (cfr. acórdão do STJ de 26/09/2012, proc. nº. 174/08.2TTVFX, disponível em www.dgsi.pt.). Quanto a esta situação, explica António Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., 2016, pág. 203 e 204) que a admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso, justifica-se designadamente quando a parte/recorrente tenha sido surpreendida com o julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos documentos já constantes do processo. No caso dos presentes autos, a recorrente veio juntar o supra mencionado documento (pedido de realização de nova Junta Médica para reavaliação do grau de incapacidade, formulado pela Ré em 14/04/2021), obtido já depois da Ré ter requerido, em 30/03/2021, que os autos aguardassem pelo resultado da nova junta médica que iria pedir, para reavaliação do grau de incapacidade atribuído, mas antes do Tribunal “a quo” ter proferido o despacho de 18/05/2021 e a decisão final do processo, objecto do presente recurso, pretendendo com o mesmo comprovar um facto que vem agora alegar “ex novo” em sede de recurso, sendo que não alega, nem prova, qualquer uma das mencionadas situações. De todo o modo, não se verifica nenhuma das situações supra referidas: i) o documento junto a fls. 167vº reporta realidade anterior à prolação do despacho de 18/05/2021 e ao encerramento da discussão da causa em 1ª instância ocorrida na audiência prévia de 28/06/2021 (não existe superveniência objectiva); ii) num quadro de diligência normal a recorrente poderia ter junto o documento antes da prolação do aludido despacho ou, quando muito, até ao encerramento da discussão da causa, quer por se tratar de um documento pessoal, quer por se tratar de documento emitido em data anterior às supra referidas - não existe superveniência subjectiva; iii) o despacho de 18/05/2021 e a sentença de 23/08/2021, objecto do presente recurso, não se fundaram em qualquer meio de prova não oferecido pelas partes e seguiram as regras de direito em discussão nos autos (ambas as decisões proferidas pelo Tribunal “a quo” não introduziram qualquer novidade). No caso em apreço, constata-se que tal documento podia ter sido apresentado pela ora recorrente antes de ter sido proferido o despacho de 18/05/2021 ou, em última análise, até ao encerramento da discussão da causa em 1ª instância, pelas razões acima apontadas. Com efeito, a recorrente apenas justificou a apresentação tardia do mencionado documento com o facto de o Tribunal de 1ª instância ter considerado e dado como assente que a mesma padece de uma incapacidade de 48% e se ter tornado necessário em virtude do julgamento proferido por aquele Tribunal. Todavia, não se nos afigura que tal decisão proferida pelo Tribunal “a quo” tenha introduzido alguma novidade não expectável ou se tenha baseado em algum meio probatório não oferecido pelas partes, pois quando a mesma foi proferida já constava dos autos o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, com indicação de grau de incapacidade atribuído à Ré/recorrente pela Junta Médica, o qual foi junto pela própria com o requerimento de 9/11/2020. Por outro lado, não se vislumbra que tal documento ora junto pela recorrente, no confronto com a restante prova produzida nos autos, assuma alguma relevância na decisão da causa, até porque como consta assinalado no mesmo, a Ré pediu a realização de nova Junta Médica para “Importação de veículo automóvel e outros (Lei n.º 22-A/2007 de 29 de Junho de 2007)”, e não para emissão de Atestado Médico de Incapacidade Multiuso (cfr. fls. 167vº). Assim, não se verificando nenhuma das situações previstas nos citados artºs 651º, nº. 1 e 425º do NCPC, não se admite a junção aos autos do documento apresentado com as alegações de recurso, determinando-se o respectivo desentranhamento. * B) - Ampliação da matéria de facto provada:Conforme se alcança dos autos e da prova documental neles produzida, para além dos factos considerados provados pelo Tribunal “a quo” enunciados na sentença recorrida, resultaram provados factos que foram alegados pela Ré nos artºs 22º e 23º da contestação, que estão em consonância com os alegados pelo A. no artº. 16º da petição inicial e que não constam do capítulo dos factos provados. Com efeito, encontra-se alegado nos supra mencionados artigos da contestação o seguinte [transcrição]: 22º - Em 22 de Agosto de 2019 o Autor enviou outra missiva à Ré, dando o dito por não dito e comunica-lhe que o contrato de arrendamento caducou!!! (ver por favor doc. 7 junto da p.i.). 23º - Interpelando a Ré no sentido de esta desocupar o imóvel até ao dia 15 de Setembro de 2019 sob pena de responder por todos os prejuízos causados com qualquer ocupação abusiva. No artº. 16º da petição inicial, o Autor alega o seguinte [transcrição]: 16º - Aliás, isso mesmo foi comunicado à Ré, diversas vezes, conforme cópia das cartas que se juntam e se dão como reproduzidas para todos os efeitos legais (Doc. nº 6 e nº 7). Tais factos encontram-se demonstrados pelo documento junto a fls. 17 e vº (doc. 7 da petição inicial), que não foi impugnado, o qual consubstancia uma carta enviada pelo A. à Ré, datada de 22/08/2019, na qual aquele comunica à Ré que, com a morte da sua mãe, o contrato de arrendamento caducou e que aquela deveria desocupar e entregar o prédio descrito, livre de pessoas e bens, até ao dia 15/09/2019, “sob pena de responder por todos os prejuízos causados com qualquer ocupação abusiva, designadamente, decorrentes da impossibilidade de celebrar um novo contrato de arrendamento”. Ademais também se mostram assentes factos alegados pela Ré no seu requerimento de 9/11/2020 (fls. 115 a 116vº), nomeadamente, que a Ré interpôs recurso da decisão da Junta Médica por discordar com o grau de incapacidade que lhe foi atribuído, tendo o mesmo sido indeferido por despacho da DGS de 26/02/2021, os quais estão relacionados com o ponto 6 dos factos provados. Estes factos são comprovados pelo documento constante de fls. 126 e vº, que constitui um ofício da DGS dirigido à Ré, datado de 19/03/2021, onde aquela entidade comunica à Ré que o recurso por ela interposto da decisão da Junta Médica que lhe atribuiu o grau de incapacidade, foi indeferido por despacho de 26/02/2021, transcrevendo os respectivos fundamentos. Apesar daqueles factos não terem sido ponderados ou especificados na decisão recorrida, consideramos que contêm matéria relevante para a decisão da causa. Assim, tendo em atenção a matéria alegada por ambas as partes nos respectivos articulados, admitida por acordo, e os documentos juntos aos autos acima referidos, entendemos que devem ser aditados aos factos provados os pontos 7 e 8 com a seguinte redacção: 7. Em 22 de Agosto de 2019 o Autor enviou uma missiva à Ré a comunicar-lhe que, com o falecimento da sua mãe, o contrato de arrendamento em que esta figurava como arrendatária caducou, interpelando a Ré no sentido de esta desocupar e entregar o imóvel, livre de pessoas e bens, até ao dia 15 de Setembro de 2019, sob pena de responder por todos os prejuízos causados com qualquer ocupação abusiva; 8. A Ré interpôs recurso da decisão da Junta Médica supra referida no ponto 6, por discordar com o grau de incapacidade que lhe foi atribuído, tendo o mesmo sido indeferido por despacho da DGS de 26/02/2021. * 2. Saber se foi cometida a nulidade processual invocada pela recorrente:O Tribunal “a quo” decidiu, por despacho de 18/05/2021, indeferir o requerimento apresentado pela Ré em 30/03/2021 (refª. 38418304), em que esta veio requerer que os autos aguardassem pelo resultado da nova junta médica que iria pedir, para reavaliação do grau de incapacidade que lhe foi atribuído, por a sua situação clínica se ter agravado. Tal pretensão da Ré foi indeferida pelo Tribunal de 1ª instância com a seguinte fundamentação: “Aquela [referindo-se à Ré] solicitou já anteriormente uma junta médica para efeitos de atribuição de incapacidade e fixação do respectivo grau. Essa junta médica realizou-se, foi atribuída à ré uma incapacidade e o recurso que a mesma interpôs foi indeferido por decisão da Direcção-Geral de Saúde datada do passado dia 26 de Fevereiro. Não podem os autos aguardar que a ré peça nova junta médica e, na eventualidade de não lhe ser atribuída a incapacidade que na contestação alega afectá-la, aguardar indefinidamente que aquela solicite novas juntas para reavaliação do grau de incapacidade entretanto arbitrado.” A Ré, ora recorrente, insurge-se contra esta decisão, alegando que os autos deveriam ter aguardado o resultado do novo pedido de avaliação da sua incapacidade para, só depois, ter sido proferida decisão sobre o objecto da causa, até porque a recorrente alegou no seu requerimento que o seu estado de saúde se agravou, ainda no decorrer do processo. Argumenta, ainda, que indeferir-se a possibilidade de a recorrente demonstrar que é portadora de uma incapacidade igual ou superior a 60%, para poder beneficiar da transmissão do arrendamento nos termos do artº. 57º do NRAU, caso seja a norma aqui aplicável, configura uma limitação injustificada ao seu direito de poder demonstrar que é portadora de tal incapacidade, limitação essa desconforme com o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais e o princípio da livre apreciação da prova. Entende a recorrente que a falta de realização de novo exame de reavaliação do grau de incapacidade que lhe foi atribuído pela Junta Médica, influiu, e sempre influenciaria, na decisão da causa, razão pela qual invoca a existência de uma nulidade processual nos termos do artº. 195º, n.º 1 do NCPC, devendo ser declarados nulos todos os actos praticados nos autos, desde essa data, incluído o saneador sentença proferido. Vejamos se lhe assiste razão. Ora, conforme resulta dos documentos juntos a fls. 71 e 117 e vº, este processo, numa primeira fase, já esteve a aguardar vários meses pelo resultado da Junta Médica decorrente do pedido formulado pela recorrente junto do Delegado de Saúde do Concelho de Braga em 7/08/2019, para avaliação da sua incapacidade, acabando por ser submetida a Junta Médica em 4/12/2019. Por outro lado, a recorrente ocultou ao Tribunal o resultado dessa Junta Médica durante cerca de 10 meses, tendo somente em 9/11/2020, após ter sido notificada em 4/11/2020 para juntar documento comprovativo do grau de incapacidade que lhe havia sido atribuído, vindo comunicar aos autos que lhe tinha sido atribuída uma incapacidade permanente global de 48%, sendo que nessa mesma data também comunicou que tinha interposto recurso da decisão da Junta Médica, por discordar do grau de incapacidade que lhe foi atribuído (cfr. fls. 115 e 116). Assim, numa segunda fase, os presentes autos estiveram a aguardar mais de 4 meses, até que, após ofício do próprio Tribunal dirigido à Direcção-Geral de Saúde e sem que a recorrente, uma vez mais, nada tivesse dito, em 25/03/2021, aquela entidade veio informar o processo que o recurso interposto pela Ré/recorrente tinha sido indeferido por despacho de 26/02/2021 (cfr. ofício de fls. 126 e vº). Após o Tribunal ter dado conhecimento às partes do teor desse ofício da DGS, veio a recorrente requerer, uma vez mais, que os autos aguardassem, desta vez, o resultado de nova Junta Médica que tinha intenção de pedir. Ora, perante este quadro, não tinha o Tribunal recorrido outra alternativa senão indeferir o pedido da recorrente. Na verdade, conforme consta no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso junto aos autos resultante da avaliação feita à Ré/recorrente, o grau de incapacidade atribuído àquela tem carácter “DEFINITIVO”, não sendo susceptível de variação futura, nos termos previstos no artº. 4º, nº. 3 do DL 202/96 de 23/10, que estabelece o seguinte: “Quando o grau de incapacidade arbitrado for susceptível de variação futura, a junta deve indicar a data de novo exame, levando em consideração o previsto na Tabela Nacional de Incapacidades ou na fundamentação clínica que lhe tenha sido presente.” Ora, analisando o referido Atestado, verificamos que a Junta Médica não indicou nenhuma data para a realização de novo exame, no local reservado para o efeito, estando escrito no mesmo que tem carácter “DEFINITIVO”. Ou seja, em condições normais, nada indicia que o estado da Ré venha a sofrer alterações, nomeadamente algum agravamento. Acresce referir ainda que, em tese, o estado de saúde de uma pessoa pode sempre alterar-se, até por força de uma doença ou acidente súbitos ou inesperados. Assim, toda e qualquer avaliação do estado de saúde de uma pessoa tem carácter temporário, reconduzindo-se, em última instância, ao tempo em que foi realizada. No entanto, tal situação nunca poderia levar a que, nos processos em que se discute o estado de saúde de uma pessoa, aqueles aguardassem por todo e qualquer pedido de avaliação que fosse formulado. Deste modo, nenhum processo terminaria, aguardando-se indefinidamente por sucessivos e infindáveis pedidos de reavaliação, minando a segurança jurídica que sustenta qualquer Estado de Direito. Como já foi referido, o estado de saúde de alguém está sempre em aberto. Aliás, se a recorrente tinha dúvidas acerca da avaliação realizada pela Junta Médica, podia ter requerido um exame pericial nos presentes autos, realizado por ordem e sob o controlo do Tribunal. Porém, decidiu não o fazer, optando por deixar essa avaliação para os serviços de saúde pública. Assim, por tudo o que se deixou exposto, teremos de concluir que não foi cometida nenhuma nulidade processual nos termos do artº. 195º, nº. 1 do NCPC, como alega a recorrente, porquanto não foi omitido um acto ou formalidade que a lei prescreva e que pudesse influir na decisão da causa. Nestes termos, deverá ser mantido o despacho recorrido que indeferiu o requerimento apresentado pela Ré em 30/03/2021 (refª. 38418304), improcedendo, nesta parte, o recurso por ela interposto. * II) – Recurso do saneador-sentença proferido em 23/08/2021:1. Da inconstitucionalidade do artº. 57º do NRAU por violação dos princípios da igualdade e da confiança: Alega a recorrente que o saneador-sentença foi proferido tendo por base a aplicação do artº. 57º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (doravante designado NRAU) à situação dos autos, entendendo que este preceito legal é inconstitucional por ofender os princípios da igualdade e da confiança plasmados nos artºs 2º, 13º e 18º da Constituição das República Portuguesa (doravante designada CRP). Para tanto, argumenta que perante as alterações legislativas relativas à transmissão do arrendamento por morte (artº. 57º do NRAU, artº. 85º do RAU e artº. 1106º do Código Civil) passou a não bastar a qualidade de descendente e conviver com o arrendatário há mais de um ano para ocorrer o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, tratando-se de uma imposição que veio cercear um direito constituído face às normas que regiam os contratos de arrendamento no tempo em que foram celebrados, que contende com preceitos constitucionais. Dentre essas alterações legislativas, salienta a actual redacção do artº. 1106º do Código Civil que se aplica aos contratos de arrendamento celebrados após a vigência do NRAU (já não aos constituídos sob o regime do RAU ou em época anterior, os quais são regulados pela norma transitória do NRAU), referindo que este preceito legal autoriza que a transmissão do arrendamento opere para qualquer descendente ou afim que residisse com o arrendatário em economia comum há mais de um ano, sem que para isso estabeleça qualquer das limitações que consagrou na norma transitória do artº. 57º do NRAU, voltando ao que constava no revogado artº. 85º, n.º 1, al. b) do RAU, o que configura uma situação estranha e desigual. A Ré/recorrente não compreende como não possa ser consentida “in casu” a transmissão para o descendente, conforme previa o artº. 85º, n.º 1, al. b) do RAU, impondo o legislador a clara limitação do artº. 57º do NRAU nas normas transitórias, para afinal, nos contratos celebrados sob o actual regime, voltar a permitir que essa transmissão opere. Entende a recorrente que a norma transitória que operou a modificação, veio frustrar de modo intolerável as expectativas da transmissão do arrendamento a favor das pessoas que face ao artº. 85º do RAU esperavam legitimamente a materialização desse direito, designadamente os descendentes, como é o seu caso aqui em apreço. Vejamos se lhe assiste razão. Na sentença recorrida, o Tribunal “a quo” entendeu que, no caso em apreço, a questão da transmissão (ou não) do arrendamento para a Ré deverá ser apreciada e decidida à luz do preceituado no artº. 57º da Lei nº. 6/2006 de 27/2, que aprovou o NRAU, por força do disposto nos artºs 26º, nº. 2, 28º, nº. 1 e 59º, nº. 1 desse mesmo diploma, “porquanto muito embora não tenha sido alegada pelas partes a data em que foi celebrado entre o pai da autora e o pai da ré o contrato de arrendamento, é possível extrair de documentação junta com a contestação (que não foi impugnada) que tal data foi anterior ao mês de Maio do ano de 1999. Isso é o que resulta dos recibos de renda juntos pela ré como docs. 1 e 2 com o seu articulado.” Sublinha, ainda, aquele Tribunal que «como se decidiu no Ac. da Relação do Porto de 18 de Fevereiro de 2018 (proferido no proc. nº 1037/18.9T8MAI, publicado em www.dgsi.pt), “a questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico da morte do arrendatário”, o que significa que, no caso vertente, tendo o óbito da mãe da ré ocorrido no dia 11 de Dezembro de 2018, a redacção do referido artigo 57º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro a aplicar é aquela que lhe foi dada pela Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, sendo irrelevantes para o caso as alterações depois introduzidas pela Lei nº 13/2019, de ....» Defende a recorrente que o regime transitório previsto no art.º 57º do NRAU é inconstitucional por ofender os princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artºs 2º, 13º e 18º da CRP. A sentença recorrida considerou que, para que a Ré pudesse beneficiar da transmissão da posição de arrendatária por morte da sua mãe, sempre seria necessário que estivesse na situação prevista na al. e) do nº. 1 do artº. 57º do NRAU - a única susceptível de ser convocada no caso em apreço – ou seja, que estivesse afectada por deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, pressuposto esse que não se verifica “in casu”. A recorrente contesta a definição do regime legal aplicável, mormente o recurso ao disposto no art.º 57.º do NRAU na apreciação da situação em presença, defendendo que em face da invocada inconstitucionalidade daquela norma, deverá ser aplicado, “in casu”, o artº. 85º do RAU e, em consequência, ter direito à transmissão do arrendamento por morte da sua mãe. A Lei nº. 6/2006 de 27/2 veio estabelecer o NRAU, tendo no seu art.º 59º regulado a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.” Estas normas transitórias são as contempladas nos artºs 26º a 58º da referida Lei. Os artºs 26º, n.º 1, 27º e 28º, nº. 1 impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado art.º 26º. O que significa que se aplica o n.º 2 do artº. 26º que estabelece que à transmissão por morte aplica-se o disposto nos artºs 57º e 58º, sendo que o primeiro refere-se aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais. No caso em apreço, atento os factos provados nos pontos 4 e 5 estamos perante um arrendamento para habitação. Ora, de acordo com a posição plasmada na sentença recorrida, o que está em causa é a aplicação da norma estatuída no artº. 57º do NRAU. Tendo a Lei n.º 6/2006 de 27/02 sofrido várias alterações até à publicação da Lei nº. 2/2020 de 31/3, coloca-se a questão de saber qual a redacção dada ao mencionado artº. 57º que será de aplicar no caso dos autos - a que se encontra actualmente em vigor ou a que se encontrava em vigor à data do decesso da mãe da Ré. O acórdão da RP de 18/12/2018 acima referido e citado na sentença sob escrutínio, e ainda o acórdão da mesma Relação de 16/12/2015 (proc. nº. 403/14.3TBGDM), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, dão-nos a resposta: “A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário”. Tendo em atenção o ponto 5 dos factos provados, a mãe da Ré faleceu em -/12/2018, pelo que será de aplicar a norma estatuída no artº. 57º do NRAU, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 79/2014 de 19/12, que estabelece o seguinte: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano; c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano; d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. 2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. 3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. 5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contractos com prazo certo, pelo período de 2 anos. 6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos”. Por sua vez, o artº. 85 do RAU que regulava a transmissão por morte do arrendatário, antes de ter sido revogado pelo artº. 60º do NRAU, estabelecia o seguinte: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto; b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano; c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens; d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano; e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c); 2 - Caso ao arrendatário não sobrevivam pessoas na situação prevista na alínea b) do n.º 1, ou estas não pretendam a transmissão, é equiparada ao cônjuge a pessoa que com ele vivesse em união de facto. 3 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso. 4 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.” Importa ainda referir que o actual regime da transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário, previsto no artº. 1106º do Código Civil, só se aplica aos contratos de arrendamento celebrados já após a entrada em vigor do NRAU, o qual dispõe o seguinte: “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado; b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano; c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano. 2 – (Revogado.) 3 - Havendo várias pessoas com direito à transmissão, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que com o falecido vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou, de entre estes, para o mais velho ou para a mais velha de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum. 4 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. 5 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso.” Em conformidade com o acima exposto, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem entendendo que o actual regime do art.º 1106º do Código Civil não é aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, valendo para estes o regime transitório consagrado no artº. 57º da Lei nº. 6/2006 de 27/2, que estabelece condições mais restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional. O NRAU consagrou, assim, duas soluções aplicáveis aos contratos de arrendamento para habitação: - uma aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor – a do artº. 1106º do Código Civil; - outra aplicável aos arrendamentos celebrados antes da sua entrada em vigor – a estatuída no artº. 57º do NRAU. Acolhendo a posição que é defendida no acórdão da RP de 7/10/2019, proferido no proc. nº. 2346/18.2T8GDM (e também no acórdão da RL de 15/12/2011, proc. nº. 129/10.7TBFUN, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), e adaptando-a à redacção do artº. 57º do NRAU vigente à data do falecimento da mãe da Ré, diremos o seguinte: Quanto aos descendentes, o artº. 57º do NRAU apenas admite a transmissão do arrendamento para filho do arrendatário ou do cônjuge deste, para quem haja sido transmitido o direito ao arrendamento, desde que tenha menos de 1 ano de idade ou com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11º ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior ou, sendo maior de idade, com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% (nº. 1, al. a), d) e e) e nº. 4). O artº. 85º do RAU permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade. O artº. 57º do NRAU alterou tal regime, já que, passou a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%. Mas para os contratos que lhe são posteriores, o novo regime estatuído no artº. 1106º do Código Civil liberalizou a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário e fê-lo deliberadamente, certamente por ter tido em consideração que nestes novos contratos o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário (o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado – artºs 1096º, nº. 2 e 1097º do Código Civil – ou, não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos – artº. 1101º, al. c) do mesmo Código). O que bem se compreende, pois que, tendo findado o sistema de renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, deixaram de se justificar as limitações que antes eram impostas à transmissão do arrendamento. Mas como na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto for essa a vontade do arrendatário, considerou-se justificado diminuir, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento. Como se refere no acórdão da RL de 10/03/2022 (proc. nº. 7405/20.9T8LSB, disponível em www.dgsi.pt), «Facilmente se vê a razão de ser da distinção que o legislador aqui faz entre os descendentes, na medida em que, para efeitos da transmissão do arrendamento, não é esta sua qualidade sem mais que releva, mas antes a especial situação de fragilidade que se verifica nos descendentes que se encontrem nas condições excepcionadas pelo artº. 57º, nº. 1 do NRAU, em razão da idade ou estado de saúde, pessoas que pela sua fragilidade impõem a necessidade de uma especial protecção, o que justifica que beneficiem de um regime mais favorável. Não se verifica assim, com tal selecção, uma qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, que antes supõe tratar de igual forma o que é igual e de forma diferente o que é diferente. Como nos diz o Acórdão do STJ de 18 de Abril de 2012, no proc. nº. 667/08.1GAPTL.G1-A.S1, in www.dgsi.pt: “Na sua dimensão material ou substancial, o princípio da igualdade, como vem defendendo o Tribunal Constitucional (…), vincula em primeira linha o legislador ordinário, no entanto, não o impede de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, visto que este princípio, enquanto limitador da discricionariedade legislativa, apenas proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. O princípio da igualdade como proibição de arbítrio não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, ao invés, que se tratem por igual situações essencialmente desiguais e, obviamente, a descriminação, para além de que, não constitui um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial, tratando-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui, assim, um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não também a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa, controle este vedado ao juiz.” No regime do art.º 57º não encontramos uma distinção arbitrária estabelecida pelo legislador, na determinação dos descendentes a quem confere o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, mas antes a definição de um regime mais favorável que é diferente em função da situação de maior fragilidade de alguns descendentes.» Por outro lado, uma maior restrição dos casos em que pode haver lugar, por morte do arrendatário, à transmissão do arrendamento para os descendentes imposta pela nova legislação, em limitação do anterior regime legal mais favorável, também não representa uma violação do princípio da igualdade, como tem vindo a ser amplamente entendido, com particular relevância para a posição manifestada pelo Tribunal Constitucional sobre esta questão, do que apenas é exemplo o Acórdão nº. 581/2011 de 29/11/2011, proferido no proc. nº. 100/11, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que refere o seguinte: «Com a criação das aludidas normas transitórias (dos artºs 57º e 58º), o legislador fez opções legislativas em função dos interesses sócio-económicos que pretendeu salvaguardar, atingindo com as suas prescrições, de forma generalizada e abstracta, um número indefinido de destinatários, supostamente os que se encontrem nas circunstâncias que definiu, sem ter criado, dentre eles, qualquer discriminação ou desigualdade injustificada. Como tem vindo a dizer o Tribunal Constitucional, em inúmeros Acórdãos, o princípio da igualdade não proíbe, em absoluto, as distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional, e, no essencial, o que ele impõe é uma proibição do arbítrio e da discriminação sem razão atendível, postulando que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para situações de facto desiguais – cfr. entre muitos outros, os seus Acórdãos nºs 195/07 de 14/03/2007, 210/07 de 21/03/2007, 254/07 de 30/03/2007, in, respectivamente, págs. 421, 537 e 883, do 68º Volume da Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional. Ora, pelos motivos já anteriormente aflorados, não vemos que aquelas normas transitórias sejam destituídas de fundamento justificativo e racional, que as torne incompreensivelmente desiguais para com determinados destinatários, mesmo que se saiba que algum tempo antes o regime da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário fosse outro e, no seu contexto (se a morte da mãe da Apelante tivesse ocorrido na sua vigência) já à Recorrente assistisse o direito a suceder no arrendamento. Mas esta é a “fatalidade” de toda e qualquer lei com o início e cessação da sua vigência; mesmo que vigore para futuro, pode fazer nascer, restringir ou extinguir direitos, contanto que essa restrição ou extinção se não verifique pelo efeito retroactivo da sua aplicação – art.º 18º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.» Aplicando a doutrina deste aresto do TC ao caso “sub judice”, podemos concluir que na hipótese em análise, aquelas normas transitórias não restringiram ou extinguiram qualquer direito da Ré, pelo simples facto de esta aquando da entrada em vigor das mesmas (com a Lei n.º 6/2006 de 27/2) ainda não ter qualquer direito a suceder no arrendamento, que só poderia nascer com o decesso da então arrendatária. Nesta conformidade, podemos concluir, como naquele acórdão, que não se verifica qualquer inconstitucionalidade. Também neste sentido se pronunciou o Acórdão do TC nº. 196/2010 de 12/05/2010, proferido no proc. nº. 1030/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que relativamente ao “princípio da igualdade”, refere o seguinte: «[O] NRAU consagrou dois regimes de transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário. Um aplicável aos contratos celebrados que são posteriores à sua entrada em vigor e que consta da nova redacção do artigo 1106º do C.C., e outro, transitório, constante do artigo 57º do NRAU, aplicável aos contratos anteriormente celebrados. Este último regime é mais restritivo, relativamente à admissibilidade da transmissão do arrendamento, do que aquele que é aplicável aos novos contratos de arrendamento, nomeadamente no que respeita à transmissão do arrendamento para filhos maiores de 26 anos e sem qualquer incapacidade, ou com uma incapacidade inferior a 60%. Enquanto o artigo 1106º do C.C. apenas exige, para que se verifique a transmissão do arrendamento para um filho nessas condições, que este tenha vivido em economia comum com o progenitor arrendatário no ano anterior à morte deste, já o artigo 57º do NRAU não permite essa transmissão. A diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU. Enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98º e seg. do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário. Nestes novos contratos, o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096º, n.º 2 e 1097º do C.C.), ou não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos (artigo 1101º, c) do C.C.). Na verdade, o alcance do direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional está intimamente conexionado com o grau de tutela conferido ao interesse na continuidade da relação contratual. Quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (SOUSA RIBEIRO, na ob. cit. [O novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise, in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Motta Veiga, Coimbra, 2007], p. 764-765). Por isso existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106º do C.C., para os novos contratos, e no artigo 57º do NRAU, para os contratos pré-existentes. (…)» Concluindo que «Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual sincrónico apontado pelo Recorrente, não se pode considerar que essa distinção viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da C.R.P.» No que respeita ao “princípio da confiança”, entende o TC, naquele mesmo Acórdão nº. 196/2010, o seguinte: «Efectivamente, como acima se verificou, o RAU (artigo 85º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, para os descendentes que vivessem com este em economia comum há mais de um ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade. O NRAU (artigo 57º) alterou este regime, passando a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%. Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-se somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento.» Acabando por decidir o seguinte: «Não julga inconstitucional a norma do artigo 57º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o sentido de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 1... (RAU), quando a morte do arrendatário tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor do NRAU.» Este entendimento constante do Acórdão nº. 196/2010 foi reiterado no Acórdão do TC nº. 581/2011, que decidiu “não julgar inconstitucional o artigo 57º, n.º 1, alíneas d) e e) da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.” Reportando-nos ao caso dos autos, como a morte da arrendatária ocorreu em 11/12/2018, ou seja, posteriormente à data da entrada em vigor do NRAU (em 27/06/2006), a decisão recorrida, socorrendo-se do critério que a transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário é regulada pela lei vigente à data da morte, aplicou o disposto no artº. 57º, nº. 1, al. e) deste diploma legal, não reconhecendo à Ré, filha da arrendatária, mas maior de 26 anos e com uma incapacidade inferior a 60%, o direito a ingressar na posição contratual da sua mãe, apesar desta alegar que vivia com ela há mais de 45 anos, tendo sempre cuidado dos seus pais. Resulta da inúmera jurisprudência que se tem debruçado sobre este tema que o artº. 57º, n.º 1, al. d) e e) do NRAU já foi amplamente apreciado pelo Tribunal Constitucional, quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU (Acórdãos nºs 385/2010, 346/2011 e 581/2011, os dois últimos por remissão para a fundamentação do Acórdão n.º 196/2010 acima referido, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt); quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU (Acórdão n.º 196/2010). Por força do disposto, por um lado, nos artºs 27º e 28º, nº. 2, e por outro, no artº. 26º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 6/2006 de 27/2, esta norma transitória é aplicável num caso e noutro. Atenta a argumentação expendida nos acórdãos dos tribunais superiores acima referidos, com a qual se concorda, verifica-se que o art.º 57º do NRAU e o regime que aí é definido para a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador dos princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artºs 13º e 18º da CRP. Dito de outro modo, não se vislumbra que o legislador ao estabelecer no art.º 57º do NRAU o regime da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, limitando a mesma nos termos aí previstos, tenha violado qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os princípios da igualdade e da confiança contemplados nos citados artºs 13º e 18º do CRP. Assim, considerando-se não existir uma desconformidade material do art.º 57º do NRAU às normas ou princípios constitucionais, resta concluir que a recorrente não tem razão ao invocar a inconstitucionalidade daquele preceito legal, por violação dos princípios da igualdade e da confiança contemplados nos artºs 2º, 13º e 18º do CRP, razão pela qual o presente recurso terá de improceder nesta parte. * 2. Saber se ocorre a caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária:É inquestionável que estamos perante uma acção de reivindicação prevista no artº. 1311° do Código Civil, nos termos do qual “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (nº. 1) e “Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei” (nº. 2), tendo sido este também o entendimento perfilhado na sentença recorrida. Está demonstrada nos autos a propriedade do A. e a detenção pela Ré do imóvel em litígio e, sabendo-se que o proprietário “goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas” (artº. 1305º do Código Civil), o A. terá direito à restituição do mencionado prédio, salvo se existir caso previsto na lei que justifique a recusa de tal restituição (artº. 1311º, nº. 2 do Código Civil). Entre os casos em que é lícito negar-se ao proprietário a restituição da coisa podem apontar-se o direito de retenção, o penhor, o usufruto, a locação, o comodato e qualquer outra relação obrigacional que confira a posse ou a detenção da coisa por parte do não proprietário. Assim, provada a propriedade da coisa, a restituição desta só será legitimamente recusada se o demandado (o possuidor ou detentor) invocar (e provar) que lhe assiste o direito à posse ou detenção da coisa em virtude de uma relação obrigacional ou real que impeça o exercício pleno da propriedade. Como bem se refere na sentença recorrida, «no caso vertente não foi sequer questionado pela ré que o demandante é actualmente o legítimo proprietário do prédio reivindicado na acção. E, perante os factos assentes, não subsistem quaisquer dúvidas que assim é, tendo o autor alegado – e estando demonstrados – factos que permitem concluir que o mesmo adquiriu o dito prédio por uma das formas de aquisição derivada (por sucessão mortis causa), como permitem também ter como certo que o adquiriu por um dos modos de aquisição originária: a usucapião. A defesa da ré alicerçou-se, como se viu, na invocação da existência - e da subsistência - de um contrato de arrendamento urbano, no qual ela assumiria presentemente a qualidade de arrendatária e, assim, legitimaria a sua recusa de entregar o imóvel ao autor. Imóvel esse que confessadamente vem ocupando, fazendo dele a sua casa de habitação. Conjugando as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados, é também ponto assente que o prédio reivindicado foi dado de arrendamento pelo pai do autor ao pai da aqui ré e que, após o óbito deste último, a posição de arrendatária se transmitiu para a progenitora da demandada. A única questão que se coloca é, como acima se enunciou, a de saber se esse mesmo contrato de arrendamento cessou, por caducidade, em virtude do óbito da mãe da ré, ocorrido no dia 11 de Dezembro de 2018, ou se, pelo contrário, como esta defende, a posição de inquilina se transmitiu novamente, desta feita a favor dela, ré. Ora, segundo dispõe a al. d) do artigo 1051º do Código Civil, “O contrato de locação caduca por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário”. No caso do arrendamento urbano para habitação – uma das modalidades do contrato de locação – a morte do locatário não tem necessariamente como consequência cessação do contrato por caducidade. O contrato não caducará caso sobreviva ao inquilino alguma ou algumas das pessoas que, nos termos da lei, detenham as condições para beneficiar da transmissão da posição de arrendatário – pessoas essas que, no regime actual, estão elencadas no artigo 1106º, nº 1 do Código Civil. Não é, no entanto, esse o regime à luz do qual deverá aferir-se da caducidade do arrendamento em discussão. Com efeito, muito embora não tenha sido alegada pelas partes a data em que foi celebrado entre o pai da autora e o pai da ré o contrato de arrendamento, é possível extrair de documentação junta com a contestação (que não foi impugnada) que tal data foi anterior ao mês de Maio do ano de 1999. Isso é o que resulta dos recibos de renda juntos pela ré como docs. 1 e 2 com o seu articulado.» Assim sendo e como já se referiu, entendeu o Tribunal “a quo” que, no caso em apreço, a questão da transmissão (ou não) do arrendamento para a Ré deverá ser apreciada e decidida à luz do preceituado no artº. 57º do NRAU (mais concretamente na al. e) do seu nº. 1), por força do disposto nos artºs 26º, nº. 2, 28º, nº. 1 e 59º, nº. 1 desse mesmo diploma legal. Tendo-se, ainda, sublinhado na sentença recorrida que a questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico da morte do arrendatário. Invoca a Ré/recorrente a inconstitucionalidade do artº. 57º do NRAU, por violar os princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artºs 2º, 13º e 18º da CRP, defendendo que deverá ser aplicado, “in casu”, o artº. 85º do RAU (em vez do regime transitório previsto no citado artº 57º) e, em consequência, ter a mesma direito à transmissão do arrendamento por morte da sua mãe. Sendo entendimento deste tribunal de recurso que o artº. 57º do NRAU não está ferido da invocada inconstitucionalidade pelas razões atrás expostas, e tendo o óbito da mãe da Ré ocorrido em 11/12/2018, concluímos ser de aplicar, “in casu”, o supra mencionado dispositivo legal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 79/2014 de 19/12. Nesta conformidade, entendemos que bem andou o Tribunal “a quo” ao considerar que resulta da leitura da al. e) do nº. 1 do citado artº. 57º do NRAU - o único susceptível de ser convocado no caso em apreço -, para que a Ré pudesse beneficiar da transmissão da posição de arrendatária por morte da sua mãe sempre seria necessário, além do mais, que estivesse afectada por deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, pressuposto esse que, como decorre dos factos assentes, não se verifica, uma vez que foi atribuída à Ré, pela Junta Médica, uma incapacidade de 48%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo DL 352/2007 de 23/6. Deste modo, não se encontrando a Ré em nenhuma das situações previstas nas alíneas do nº. 1 do artº. 57º do NRAU, mormente na sua alínea e), não se lhe transmite o arrendamento para habitação e não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, a morte deste constitui causa legal de caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário (cfr. acórdãos da RP de 7/10/2019 acima referido e da RG de 4/05/2010, proc. nº. 4262/07.4TBVCT, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Assim sendo, não merece censura a sentença recorrida que considerou extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento em causa nestes autos e, consequentemente, não tendo operado a transmissão do arrendamento para a Ré, nem tendo sido alegado outro motivo que legitimamente justificasse a não restituição do imóvel ao Autor, decidiu julgar totalmente procedente a presente acção. Nestes termos, improcede o recurso de apelação interposto pela Ré. * SUMÁRIO:I) - A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico da morte do arrendatário. II) - A Lei nº. 6/2006 de 27/2 veio estabelecer o NRAU, tendo no seu art.º 59º regulado a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, estando estas normas transitórias contempladas nos artºs 26º a 58º da referida Lei. III) - Os artºs 26º, n.º 1, 27º e 28º, nº. 1 impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado art.º 26º. O que significa que se aplica o n.º 2 do artº. 26º que estabelece que à transmissão por morte aplica-se o disposto nos artºs 57º e 58º, sendo que o primeiro refere-se aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais. IV) - O actual regime do art.º 1106º do Código Civil não é aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, valendo para estes o regime transitório consagrado no artº. 57º da Lei nº. 6/2006 de 27/2, que estabelece condições mais restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional. V) - O artigo 57º do NRAU, ao prever um regime transitório para a transmissão do direito ao arrendamento habitacional por morte do arrendatário, restritivo da expectativa jurídica da Ré, representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador dos princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artºs 13º e 18º da CRP. VI) - Não se encontrando a Ré em nenhuma das situações previstas nas alíneas do nº. 1 do artº. 57º do NRAU, mormente na sua alínea e) aplicável ao caso em apreço, não se lhe transmite o arrendamento para habitação e não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte da arrendatária, sua mãe, a morte desta constitui causa legal de caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário. III. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré O. V. e, em consequência, confirmam o despacho de 18/05/2021 objecto de recurso e a sentença recorrida. Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido. Notifique. Guimarães, 29 de Setembro de 2022 (processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora) Maria Cristina Cerdeira (Relatora) Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta) Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta) |