Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2303/24.0T8GMR.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: VÍCIOS DA MATÉRIA DE FACTO
JUÍZOS DE VALOR
REVELIA OPERANTE
ADMISSÃO DE FACTOS
DANO PROVOCADO POR CANÍDEO
FIXAÇÃO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nas situações de revelia, absoluta ou relativa, operante, consideram-se adquiridos, por admissão do réu, nos termos do art. 567/1 do CPC, os factos alegados na petição inicial.
II - Não podem, porém, considerar-se como adquiridos, por essa via, factos que comprovada e fundamentadamente, o juiz conclua terem sido alegados em violação do dever de verdade, nem factos que, à luz das regras do id quod plerumque accidit, não apresentam coerência lógica com a narrativa feita pelo autor, em resultado de insuficiências desta que não foram oportunamente supridas.
III - A indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza mista: visa compensar, de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada, não lhe sendo estranha, porém, a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
IV - Na determinação judicial do seu montante, a fazer de acordo com critérios de equidade, deve atender-se à gravidade dos danos, ao grau de culpa do lesante, à situação económica deste e do lesado e as todas as demais circunstâncias do caso, sem esquecer a harmonização com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra BB, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 50 192,00 “a título de danos morais e patrimoniais”, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que: no dia 18 de dezembro de 2022, pelas 14 horas, foi mordida, na zona do antebraço direito, por um canídeo pertencente ao Réu, o que lhe causou uma ferida com “vários centímetros de comprimento” (sic) e provocou dores; recebeu tratamento hospitalar; nos dias subsequentes, teve de realizar curativos e manter o braço direito em suspensão, carecendo de ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoal e as lides domésticas; sentiu temor e medo, o que agravou o estado depressivo em que se encontrava; apesar dos tratamentos, ficou com uma cicatriz e edema na região do corpo atingida, sentindo limitações no uso desta e desconforto noturno; passou a ter de fazer mais pausas nas suas atividades da vida corrente, o que lhe causa irritação e tristeza; as dores, de grau superior 1” (sic), os incómodos, o temor e o medo que sentiu, o dano estético, também  de grau “superior a 1”, e as repercussões ao nível da sua capacidade geral, cuja diminuição é “superior a 1 ponto” (sic) e nas atividades desportivas e de lazer, constituem danos não patrimoniais que devem ser compensados com € 50 000,00; acresce que teve de consultar um médico e, por indicação deste, realizar exames complementares, no que despendeu € 192,00.
Citado, o Réu não contestou e, na sequência, foi proferido despacho, datado de 22 de maio de 2024, a: afirmar tabularmente a verificação dos pressupostos processuais; considerar admitidos os factos alegados pela Autora; sem prejuízo, convidar a Autora a apresentar prova documental relativa à gravidade das lesões físicas e suas consequências ou requerer o que a esse propósito tivesse por conveniente.
No prazo fixado, a Autora apenas juntou aos autos certidão do respetivo assento de nascimento, após o que foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, condenando o Réu no pagamento da quantia de € 192,00, a título de danos patrimoniais, e da quantia de € 3 000,00, a título de danos não patrimoniais, ambas acrescidas de juros de mora, calculados à taxa legal, a primeira desde a citação e a segunda desde a data da sentença, e absolvendo-o do demais peticionado.
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2) Inconformada com a sentença na parte em que absolveu o Réu, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1ª – Salvo o devido respeito por diferente opinião, os factos não contestados alegados pela autora na PI nos artigos 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 36º, 37º, 41º, deviam merecer resposta positiva e, por isso, o Tribunal a quo, devia-os ter dado como provados;
2º - Com efeito, como resulta do douto despacho referencia ...54, o réu, devida e regularmente citado, não contestou nem constituiu mandatário, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 567º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deviam ter sido julgados confessados todos os factos articulados pela Autora na PI (nomeadamente os invocados nos artigos 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 36º, 37º, 41º) e não apenas os constantes na douta sentença recorrida.
3º - Nos termos do n.º 1 do art. 567º CPC “consideram-se confessados” os factos alegados pelo Autor. Trata-se, portanto, de prova (os factos ficam provados em consequência do silêncio do Réu) e aparentemente, duma ficção (ficciona-se uma confissão inexistente, equiparando os efeitos do silêncio do Réu aos da confissão, de que tratam os arts. 352.º e seguintes, do Código Civil).
4ª - A causa, não obstante se considerarem confessados os factos articulados pela autora, tem de ser julgada conforme for de direito, devendo uma sentença obedecer, na sua elaboração, ao estatuído no nº 3 do artº 607º do CPC, que manda discriminar os factos que o julgador considera provados, o que implica naturalmente uma prévia selecção dos factos articulados pelo autor.
5ª - No caso dos autos, os artigos 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 36º, 37º, 41º da petição inicial contêm factos, alegados pela autora/recorrente, os quais, no nosso modesto entendimento, deviam ser considerados também confessados e dados como provados pela douta sentença recorrida. Ao não tê-lo feito, fez-se uma interpretação desconforme o disposto nos artigos 567º e 607º 3 do CPC, violando-os.
6ª – Acresce que a autora entende que, face aos factos provados e àqueles que deviam ser dados como assentes, o montante da indemnização atribuída pelo Tribunal a quo a título de danos não patrimoniais não é adequado à integral reparação das duas dimensões do dano corporal, devendo ser majorada, tendo presente que a apelante pugnou incremento de tal indemnização mediante a atribuição de uma outra prestação indemnizatória, no valor de € 50.000,00.
7º - No entender da apelante, é inequívoco que no caso vertente, quer no tocante aos danos não patrimoniais, quer no que respeita ao dano biológico stricto senso, o cálculo da indemnização em apreço se deve fazer de acordo com critérios de equidade – arts. 496º, nº 4, 1ª parte, e 566º, nº 3, do CC.
8ª - Tal significa que nada obsta a que a reponderação da situação dos autos passe pela consideração de um montante indemnizatório global que abranja as duas mencionadas dimensões do dano corporal.
9ª - Os danos não patrimoniais indemnizáveis são aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art. 496º n.º1 CC -, e que no ressarcimento dos mesmos não existe uma genuína indemnização, pois, ao invés desta que visa essencialmente preencher uma lacuna no património do lesado, destina-se aquela a aumentar um património intacto para que, com tal acréscimo, o lesado encontre compensação para a dor, a fim de restabelecer um desequilíbrio no âmbito imedível da felicidade humana, o que impõem que o seu montante - «quantum» - deva ser proporcional à gravidade do dano, ponderando-se, para tal, nas regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e do criterioso sopesar das realidades da vida, em conformidade com o preceituado no n.º1 daquele art. 496º.
10º - Mas na fixação desta indemnização interfere, ainda, uma componente punitiva, de reprovação ou castigo, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, da conduta do agente, como vem sendo salientado pela doutrina e pela jurisprudência, sendo certo que «in casu» o réu confessou os factos, nem sequer os contestou, alheando-se completamente da situação, desprezando o estado da saúde (física e mental) da autora;
11ª - Para cabal fixação do montante compensatório a que a autora/recorrente tem direito, há que ter em conta toda a factologia que se mostra descrita nos Factos Provados da sentença recorrida e toda a matéria factual alegada na PI nos artigos 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 36º, 37º, 41º e o que dela decorre, particularmente, que:
a) O cão de raça pastor alemão, pertença do réu, cravou os dentes na zona do antebraço direito da Autora, mantendo-os cravados durante mais de vinte segundos, apesar dos gritos.
b) O cão já tinha mordido outras pessoas, sem que o Réu tivesse tomado qualquer providência para evitar que isso voltasse a acontecer.
c) Como consequência direta e imediata da mordedura causada pelo cão, a Autora sofreu um ferimento no antebraço direito, de onde ficou a escorrer sangue, com ferida de vários centímetros, queixando-se de dores.
d) A Autora foi assistida no Serviço de Urgência do Hospital ..., em ..., onde fez raio x ao antebraço direito, analgesia, desinfeção das feridas, aplicação de pensos, tendo tido alta nessa tarde, com recomendação de cuidados com elevação do membro superior e para troca do penso 2 dias depois.
e) Realizou ainda tratamentos às feridas para limpeza e desinfeção e mudança de pensos no Centro de Saúde ... nos dias 20-12-2022, 22-12 2022, 26-12-2022, 27-12-2022, 29-12-2022, 02-01-2023, 04-01-2023, 09-01-2023.
f) Neste período a Autora permaneceu com o membro superior direito em suspensão, o que dificultava o uso do mesmo, necessitando da ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoal e para as lides domésticas.
g) Em virtude das sequelas da mordedura, a Autora consultou médico especialista em ortopedia, que prescreveu a realização de exames complementares, nomeadamente, neurofisiologia e imagiologia, suportando o montante de 192,00 € (cento e noventa e dois euros).
h) Além do mais, a Autora é diabética, o que, por aconselhamento médico, a obrigou, por causa da mordedura do cão, a manter a vigilância clínica, que ainda hoje se mantém;
i) À data dos factos, a Autora padecia de perturbação depressiva, seguida em psiquiatria no CAT em ..., sendo que, pelo temor e medo que sentiu, viu a sua situação agravar-se.
j) Apesar dos tratamentos, a Autora ficou com cicatriz e edema no antebraço direito e dores que limitam o uso do antebraço direito e causam desconforto noturno.
k) À data dos factos, a Autora era portadora de deficiência, tendo sido conferida uma incapacidade permanente global de 77%, por atestado de incapacidade datado de 29/03/2022 e com lesões reportadas a 2021.
l) A Autora nasceu em ../../1969, não trabalhava à data, auferindo a componente base da prestação social para a inclusão no valor mensal de 298,42 €.
m) Não obstante a incapacidade de que padece, a Autora ocupava-se de todas as lides domésticas, sempre gostou de andar ao ar livre, dedicando-se a cuidar do seu quintal, obtendo para consumo próprio produtos agrícolas.
n) Em consequência das lesões, a Autora tem de fazer mais pausas durante as suas atividades de vida corrente que implicam o uso do braço, demorando mais tempo a terminar o serviço, ficando mais irritada e triste.
o) Pelo temor e medo que sentiu, viu a sua depressão agravar-se substancialmente, tendo necessidade de reforçar a medicação – cfr. citado doc. 4 (cfr. 22 PI parte final);
p) Apesar dos tratamentos a que se submeteu, a Autora ficou com sequelas, nomeadamente: Cicatriz no antebraço direito; • Dificuldades acrescidas nos esforços de carga ou rotação do membro superior direito; • Desconforto noturno; • Dificuldades acrescidas por limitação dolorosa na marcha normal e acelerada; • Dores intensas no antebraço direito após esforço de carga e rotação, que se agrava nos primeiros movimentos da manhã e nas mudanças de tempo; • Edema no antebraço direito; • Limitação na capacidade de utilização do membro superior direito; • Amiotrofia do membro superior direito; • Agravamento da perturbação depressiva – (cfr. art. 23º PI);
q) Lesões e sequelas que lhe provocaram uma IPP superior a 1 ponto (cfr. art. 24º PI).
r) Apresenta ainda um quantum doloris superior a 1 numa escala de 1 a 7 (cfr. art. 25º PI,
s) Um dano estético igualmente superior a grau 1 na mesma escala (cfr. art. 26º PI) e
t) Com repercussões das atividades desportivas e lazer no grau superior a 1 na citada escala (cfr. art. 27º PI).
u) A incapacidade permanente global da Autora agravou-se em consequência do relatado em 2º PI (cfr. art. 30º PI).
v) Tendo vista condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social (cfr. art. 36º PI).
w) Vendo reduzida a sua capacidade funcional (cfr. art. 37º PI).
x) A mordedura de que foi alvo e as repercussões daí resultantes, afetaram, pois, a sua saúde, que passou a ter até insónias, dificuldades em dormir, pesadelos e grande irritabilidade (cfr. art. 41º PI).
12ª - No geral, importa atender ao facto de à recorrente ter sido imposta, para toda a sua vida, uma diminuição da sua qualidade de vida (não só menor desfrute dos prazeres da vida, como maiores sacrifícios físicos e psíquicos no normal acontecer dos dias).
13ª - Impõe-se assim concluir, em razão de tudo o já exposto, com o devido respeito pela opinião do Meritíssimo Juiz a quo, temos como mais adequado, equitativo e justo, considerar que a indemnização a atribuir à lesada/autora (a título de ressarcimento dos danos morais sofridos) e com o desiderato de lhe proporcionar uma vantagem capaz de consubstanciar um lenitivo para a dor moral, os sofrimentos físicos, e o desgosto sofridos, não deve ser inferior ao valor peticionado.
Ao decidir como o fez, a douta sentença violou, entre outros, o disposto nos artigos 562º, 563º, 564º, 2, 566º, 496º, 1 todos do Código Civil.”
Pediu que, na procedência do recurso, a compensação pelos danos não patrimoniais seja fixada no montante pedido na petição inicial (€ 50 000,00).
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3) O Réu (daqui em diante, Recorrido) não respondeu.
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4) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5) Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Saber se a decisão recorrida padece do vício de deficiência quanto à matéria de facto (ut art. 662/2, c), do CPC), por na sua fundamentação terem sido omitidas as afirmações feitas nos arts. 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 36, 37 e 41 da petição inicial, as quais devem considerar-se como provadas, em resultado da ausência de contestação;
2.ª Independentemente da resposta à questão anterior, saber se a decisão recorrida incorreu em error in iudicando (ut art. 639/2, b), do CPC), no que tange à quantificação dos danos não patrimoniais, por errada interpretação das normas jurídicas identificadas (arts. 496/1, 562, 563, 564/2 e 566, todos do Código Civil).
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III.
1) Na resposta às questões enunciadas, começamos por transcrever a fundamentação de facto da decisão recorrida:
“Factos Provados
Atento o disposto no artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foram considerados os factos alegados pela Autora na petição inicial (com exclusão de juízos de valor, conclusões e conceitos de direito).
Neste caso, apesar de não ter sido realizada a prova pericial, não sendo possível a verificação das referidas incapacidades dos documentos juntos, sempre se considerarão os factos alegados não conclusivos, pertinentes e não em contradição com a documentação médica junta, designadamente:
1.º No dia 18 de dezembro de 2022, cerca das 14 horas, a Autora deslocou-se à freguesia ..., no concelho ..., mais concretamente ao n.º ...29 na Rua ..., para visitar a sua irmã, ali residente.
2.º Ao aproximar-se do portão surgiu, de forma repentina, um cão de raça pastor alemão, que cravou os dentes na zona do antebraço direito da Autora, mantendo-os cravados durante mais de vinte segundos, apesar dos gritos.
3.º O cão não estava preso, nem tinha açaime.
4.º O cão pertencia ao réu, ali residente, incumbindo-lhe a sua vigilância.
5.º O cão já tinha mordido outras pessoas, sem que o Réu tivesse tomado qualquer providência para evitar que isso voltasse a acontecer.
6.º Como consequência direta e imediata da mordedura causada pelo cão, a Autora sofreu um ferimento no antebraço direito, de onde ficou a escorrer sangue, com ferida de vários centímetros, queixando-se de dores.
7.º A Autora foi assistida no Serviço de Urgência do Hospital ..., em ..., onde fez raio x ao antebraço direito, analgesia, desinfeção das feridas, aplicação de pensos, tendo tido alta nessa tarde, com recomendação de cuidados com elevação do membro superior e para troca do penso 2 dias depois.
8.º Realizou ainda tratamentos às feridas para limpeza e desinfeção e mudança de pensos no Centro de Saúde ... nos dias 20-12-2022, 22-12- 2022, 26-12-2022, 27-12-2022, 29-12-2022, 02-01-2023, 04-01-2023, 09-01-2023.
9.º Neste período a Autora permaneceu com o membro superior direito em suspensão, o que dificultava o uso do mesmo, necessitando da ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoal e para as lides domésticas.
10.º Em virtude das sequelas da mordedura, a Autora consultou médico especialista em ortopedia, que prescreveu a realização de exames complementares, nomeadamente, neurofisiologia e imagiologia, suportando o montante de 192,00 € (cento e noventa e dois euros).
11.º Além do mais, a Autora é diabética, o que, por aconselhamento médico, a obrigou, por causa da mordedura do cão, a manter a vigilância clínica.
12.º À data dos factos, a Autora padecia de perturbação depressiva, seguida em psiquiatria no CAT em ..., sendo que, pelo temor e medo que sentiu, viu a sua situação agravar-se.
13.º Apesar dos tratamentos, a Autora ficou com cicatriz e edema no antebraço direito e dores que limitam o uso do antebraço direito e causam desconforto noturno.
14.º À data dos factos, a Autora era portadora de deficiência, tendo sido conferida uma incapacidade permanente global de 77%, por atestado de incapacidade datado de 29/03/2022 e com lesões reportadas a 2021.
15.º A Autora nasceu em ../../1969, não trabalhava à data, auferindo a componente base da prestação social para a inclusão no valor mensal de 298,42 €.
16.º Não obstante a incapacidade de que padece, a Autora ocupava-se de todas as lides domésticas, sempre gostou de andar ao ar livre, dedicando-se a cuidar do seu quintal, obtendo para consumo próprio produtos agrícolas.
17.º Em consequência das lesões, a Autora tem de fazer mais pausas durante as suas atividades de vida corrente que implicam o uso do braço, demorando mais tempo a terminar o serviço, ficando mais irritada e triste.
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2).1. Na resposta à 1.ª questão, começamos por lembrar que o art. 607/4 do CPC, dando cumprimento ao disposto no art. 205/1 da CRP, diz que o juiz deve, na fundamentação da sentença, declarar quais os factos que julga provados e quais os factos que julga não provados.
Estão em causa, como se afigura axiomático, os factos essenciais, necessariamente alegados pelas partes nos respetivos articulados em substanciação da causa de pedir ou das exceções perentórias aduzidas ou do conhecimento oficioso ainda não apreciadas no despacho saneador (art. 5.º/1 do CPC). Estão também em causa os factos complementares e os factos concretizadores dos factos essenciais, quer tenham sido alegados pelas partes – nos articulados ou em resposta a um eventual despacho de aperfeiçoamento, cf. art. 590/4 do CPC –, quer resultem da instrução da causa, desde que, neste caso, a sua aquisição tenha sido precedida de contraditório (art. 5.º/2, b), do CPC).
Compreende-se que assim seja: conforme explica Manuel Tomé Soares Gomes (“Da Sentença Cível”, AAVV, O Novo Processo Civil. Textos e Jurisprudência, Lisboa: CEJ, 2015, p. 342), “o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio.”
A inobservância desta regra pode gerar uma de duas patologias, consoante o respetivo grau: a total omissão da enumeração dos factos provados e não provados é causa da nulidade da sentença, nos termos previstos no art. 615/1, b), a qual carece, de acordo com a doutrina e a jurisprudência maioritárias, de arguição, por via de recurso, quando este seja admissível, ou, não o sendo, por via de reclamação (art. 617/1 e 6 do CPC); a enumeração feita em termos deficientes, obscuros e contraditórios quanto a determinados pontos tem como consequência a nulidade da sentença, na parte afetada, nos termos previstos no art. 662/2, c), do CPC, a qual é do conhecimento oficioso.
Centrando a atenção na segunda patologia, podemos assentar, com base na lição de Manuel Tomé Soares Gomes (loc. cit., p. 374), que os enunciados de facto são deficientes quando expressam um sentido incompleto do juízo probatório, nos seus próprios termos, não abrangem toda a factualidade relevante ou quando não cobrem, de forma positiva ou negativa, todo o facto enunciado como provado. São obscuros quando se apresentam “vagos, ininteligíveis, equívocos ou imprecisos”. E são contraditórios quando exprimem sentidos reciprocamente excludentes.
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2).2. No caso vertente, a Recorrente afirmou que foram omitidos, na sentença recorrida, os enunciados de facto dos arts. 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 36, 37 e 41, do seguinte teor:
“21.º: Além do mais, a Autora é diabética, o que, por aconselhamento médico, a obrigou, por causa da mordedura do cão, a ter vigilância clínica permanente, com várias consultas, que ainda hoje se mantém.
22.º Acresce que, à data dos factos, a Autora padecia de perturbação depressiva, seguida em psiquiatria no CAT em ..., sendo que, em consequência do sucedido em 2, pelo temor e medo que sentiu, viu a sua depressão agravar-se substancialmente, tendo necessidade de reforçar a medicação.
23.º: Apesar dos tratamentos a que se submeteu, a Autora ficou com sequelas, nomeadamente: • Cicatriz no antebraço direito; • Dificuldades acrescidas nos esforços de carga ou rotação do membro superior direito; • Desconforto noturno; • Dificuldades acrescidas por limitação dolorosa na marcha normal e acelerada; • Dores intensas no antebraço direito após esforço de carga e rotação, que se agrava nos primeiros movimentos da manhã e nas mudanças de tempo; • Edema no antebraço direito; • Limitação na capacidade de utilização do membro superior direito; • Amiotrofia do membro superior direito; • Agravamento da perturbação depressiva;
24.º: Lesões e sequelas que lhe provocaram uma IPP superior a 1 ponto.
25.º: Apresenta ainda um quantum doloris superior a 1 numa escala de 1 a 7,
26.º Um dano estético igualmente superior a grau 1 na mesma escala e
27.º: Com repercussões das atividades desportivas e lazer no grau superior a 1 na citada escala.
(…)
30.º: Que se agravou em consequência do relatado em 2º.
(…)
36.º: Em consequência do descrito em 2, a Autora viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da sua vida diária, familiar e social.
37.º: Vendo reduzida a sua capacidade funcional.
(…)
41.º: A mordedura de que foi alvo e as repercussões daí resultantes, afetaram, pois, a sua saúde, que passou a ter até insónias, dificuldades em dormir, pesadelos e grande irritabilidade.”
Vale isto por dizer que, na tese da Recorrente, a decisão recorrida é deficiente quanto aos pontos da matéria de facto discriminados.
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2).3. Compaginando estes enunciados com a fundamentação de facto da decisão recorrida, supra transcrita, logo concluímos que:
O do art. 21 foi considerado como provado no ponto 11 do rol dos factos provados;
O do art. 22 foi considerado como provado no ponto 12 do rol dos factos provados;
Os segmentos “cicatriz no antebraço direito”; “desconforto noturno” e “edema no antebraço direito”, contidos no art. 23, foram considerados provados no ponto 13 do rol dos factos provados; e
O segmento “agravamento da perturbação depressiva”, também contido no art. 23.º, foi considerado provado no ponto 12 do rol dos factos provados;
Os restantes foram omitidos.
Quanto aos enunciados de facto que foram replicados na decisão recorrida, concluímos, sem necessidade de outras considerações, que não assiste razão à Recorrente.
Quanto aos restantes enunciados de facto, impõe-se notar que não há uma omissão tout court: previamente à enumeração dos factos, o Tribunal a quo explicou, ainda que de forma genérica, que não os considerou na fundamentação por conterem “juízos de valor, conclusões e conceitos de direito” e especificou, quanto às incapacidades, que não foram verificadas por prova pericial, pelo que apenas considerou as que não estão “em contradição com a documentação médica junta.” (sic)
Se bem interpretamos esta explicação, o Tribunal a quo entendeu omitir os enunciados que aludem a incapacidades por estarem em contradição com a documentação clínica junta, o que se retira, a contrario, da última afirmação transcrita no § anterior; e entendeu omitir os demais, por conterem juízos de valor, conclusões e conceitos e direito.
Quid inde?
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2).3.1. A cisão que fizemos da explicação dada pelo Tribunal a quo evidencia que a omissão quanto aos enunciados relativos a incapacidades – que são os dos arts. 13.º, segmentos “dificuldades acrescidas nos esforços de carga ou rotação do membro superior direito”, “dificuldades acrescidas por limitação dolorosa na marcha normal e acelerada”, “dores intensas no antebraço direito após esforço de carga e rotação, que se agrava nos primeiros movimentos da manhã e nas mudanças de tempo”, “limitação na capacidade de utilização do membro superior direito” e “amiotrofia do membro superior direito”, 24, 30, 36 e 37 da petição inicial – é meramente aparente.
Com efeito, a afirmação de que tais factos não foram verificados por prova pericial, não sendo, por essa razão, incluídos no rol dos factos provados, tem implícita uma outra: a de que não foi possível, ao Tribunal a quo, formar uma convicção positiva sobre os enunciados em questão. Isto equivale a dizer que resultaram não provados.
Embora tivesse sido mais rigoroso incluir tais enunciados, de forma discriminada, no rol dos factos não provados, certo é que não se verifica, quanto a eles, uma situação suscetível de dar origem a uma patologia do 2.º tipo a que fizemos referência.
Isto sem prejuízo, como veremos mais à frente, da questão, situada a jusante, de saber se a decisão que, por via da exegese, descortinamos na decisão recorrida enferma de erro, devendo ser modificada no sentido de considerar aqueles enunciados como provados.
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2).3.2. Os restantes enunciados– os dos arts. 25, 26, 27 e 41 da petição inicial – foram omitidos por se ter considerado que contêm juízos de valor, conclusões e conceitos de direito.
É inequívoco que do citado n.º 4 do art. 607 do CPC resulta que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.
A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 809/10.7TBLMG.C1.S1), no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”
Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784[1], https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023], que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…)
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético. Com efeito, tal como se expende no Ac. de 9.11.2023 (175/21.5T8VNF-B.G2), por nós relatado, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007, 07A3060, ainda na vigência do CPC de 1961, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”
O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”
Sem prejuízo, como salientado no Acórdão desta Relação de 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…”
No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”
Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.
Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Isto sem esquecer que, como refere a declaração de voto de vencido da Conselheira Luísa Geraldes ao Acórdão do STJ de 28.01.2016 (1715/12.6TTPRT.P1.S1), “ainda que relativamente a alguns deles se pudesse afirmar a sua natureza conclusiva, nem assim se justificava a eliminação pura e simples, de tais pontos de facto, devendo a Relação fazer uso dos poderes conferidos enquanto Tribunal de instância que conhece da matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC.”
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2).3.2.1. Partindo destas premissas, temos que nos três primeiros enunciados está em causa a objetivação de dano – o quantum doloris (art. 25.º); o dano estético (art. 26.º); a repercussão do dano biológico nas atividades desportivas e de lazer (art. 27.º); no quarto (art. 41.º) estão em causa as repercussões do dano biológico ao nível do bem-estar psicossomático da Recorrente.
Sobre os três primeiros importa dizer, em antecipação da resposta à 2.ª questão, que a avaliação dos danos em questão, todos de natureza não patrimonial, é essencialmente subjetiva, variando a sua intensidade de sujeito para sujeito. Isto não impede, porém, que se procurem formas de, tanto quanto possível, os objetivar, pressuposto da desejada uniformidade de julgados, o que é feito, pela medicina-legal, através do recurso a escalas, designadamente a denominada escala de sete graus.
Daí entendermos que a alegação de que as dores provocadas por uma lesão física ou o dano estético que resultou da cicatrização de uma ferida atingem um determinado grau na escala utilizada contém em si mesmo um facto na medida em que transmite ao julgador uma percepção da intensidade que objetivamente atingiram.
Essa alegação pode ser impugnada pela parte contrária e sobre ela pode recair a produção de prova (art. 410 do CPC) que não tem de ser, necessariamente, de natureza pericial.
Não estão em causa, portanto, enunciados conclusivos ou que contenham conceitos de direito ou juízos de valor, pelo que, nesta parte, é indiscutível que a decisão recorrida padece de uma patologia do 2.º tipo – a falta de pronúncia sobre factos, alegados na petição inicial, que são concretizadores daqueles outros, essenciais, que substanciam os danos dor, estético e repercussão do dano biológico nas atividades físicas e de lazer.
Apenas há que fazer uma ressalva: a afirmação de que tais danos são quantificáveis em valor superior ao ponto 1 apresenta-se como vaga e imprecisa. Estando em causa uma escala composta por números inteiros, tanto pode querer significar que foram do grau 2 como que foram do grau 7 ou de qualquer um dos graus intermédios.
A 1.ª instância teve o cuidado de, fazendo uso dos seus poderes de gestão, previstos no art. 590/4, através do despacho de 22 de maio de 2024, convidar a Recorrente a complementar a sua alegação, designadamente através da apresentação de prova documental que suprisse as insuficiências.
Não tendo a Recorrente respondido a esse convite, a alegação apenas se pode ter como adquirida, por via da confissão ficta que é consequência da situação de revelia operante em que se constituiu o Recorrido, com o único conteúdo preciso que dela se pode retirar – o de que os ditos danos foram, pelo menos, do grau imediatamente superior ao ponto 1 (ponto 2).
Explicando esta afirmação, diremos que a decisão do réu contestar ou não contestar a ação é tomada tendo em conta o conteúdo da petição inicial, cujo duplicado lhe é entregue aquando da citação (art. 227 do CPC).
Pode suceder que o réu se conforme com a pretensão do autor ou que entenda que ela, tal como gizada, está destinada ao insucesso, decidindo-se por não apresentar contestação.
Nesta hipótese, a admissão presumida pela lei apenas terá como objeto os factos alegados pelo autor tal como constam da petição inicial. Se essa alegação apresentar insuficiências ou imprecisões, o juiz deverá convidar o autor a proceder aos ajustamentos convenientes. Respondendo este ao convite, terá de ser facultado ao réu o exercício do contraditório, ao abrigo do qual a doutrina admite, na expressão de Paulo Pimenta (A Fase do Saneamento do Processo antes e após a Vigência do Novo Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2003, p. 170), a apresentação de “uma contestação-defesa integral– ou seja, de uma contestação com a extensão que esta peça poderia ter tido se inicialmente oferecida. No mesmo sentido, Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 80).
Daqui resulta, inequivocamente, que o Recorrido, ao não contestar, apenas admitiu que os danos em questão podem ser quantificados em ponto superior a 1. O menos gravoso para ele é o ponto 2 – o imediatamente superior ao 1. É este o conteúdo aproveitável da alegação da Recorrente.
A aquisição de um ponto superior a 2 – de resto, nunca afirmada, nem sequer em sede recursiva, teria de resultar de uma resposta afirmativa da Recorrente ao despacho de 22 de maio de 2024. A ocorrer, implicaria que ao Recorrido fosse facultada nova possibilidade de impugnação, com a amplitude referida.
Sobre o quarto enunciado, é indiscutível que a afirmação de que a Recorrente passou a sofrer de insónias, dificuldades em dormir, pesadelos e irritabilidade é estritamente factual, pelo que, também neste ponto, a decisão recorrida padece da referida patologia.
Já assim não sucede quando se qualifica a irritabilidade (fazendo uso do adjetivo grande) e se conclui que a saúde da Recorrente foi afetada. Estes segmentos do enunciado do art. 41.º da petição inicial, pela sua natureza conclusiva, foram corretamente excluídos da fundamentação de facto.
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2).3.3. Como ensina António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 362), deparando-se com respostas que sejam de reputar deficientes, se a reapreciação dos meios de prova permitir sanar a deficiência, a Relação deve fazê-lo sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido.
Se assim sucede nos casos em que a sanação do vício implica a reapreciação dos meios de prova constantes dos autos, por maioria de razão deve suceder quando, como sucede no caso vertente, ocorre uma situação de revelia, absoluta ou relativa, operante. Em tais situações, diz o art. 567/1 do CPC, “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”, com exceção daqueles que, por disposição legal ou por iniciativa das partes, apenas podem ser provados documentalmente (art. 568, d), do CPC e arts. 223, 354, a) e 364 do Código Civil).
Não está em causa, em rigor, a confissão enquanto declaração expressa de reconhecimento de um facto desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária (art. 352 do Código Civil), mas uma figura autónoma, como ensinam Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 534), autores que, na senda de João de Castro Mendes, sugerem ser mais adequado distingui-la, reservando para ela o termo admissão.
Com efeito, entre a confissão (stricto sensu) e a admissão, podem ser identificadas as seguintes diferenças: ao contrário do que sucede com a confissão, a admissão não exige que o facto admitido seja desfavorável ao admitente; não opera quanto a factos para cuja prova a lei exige documento escrito, relativamente aos quais a confissão é, admitida (art. 364/2 do Código Civil); não é impugnável, como a confissão (art. 359 do Código Civil); só eficaz no processo em que for produzida, não tendo a eficácia extraprocessual da confissão.
Tendo presente esta diferença, entendeu-se, em STJ 23.05.2012 (240/10.4TTLMG.P1.S1), relatado por Sampaio Gomes, que a admissão está sujeita a livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no art. 358/4 do Código Civil.
Independentemente das reservas que esta leitura suscita (não está em causa a valoração de uma confissão judicial não escrita, mas o funcionamento de um mecanismo processual de aquisição de factos), sempre diremos que é de excluir o funcionamento da figura da admissão, nas situações de revelia operante, não apenas quando aos factos que apenas admitem prova documental, mas também quanto aos factos que, comprovada e fundamentadamente, o juiz conclua terem sido alegados em violação do dever de verdade (art. 542/2, b), do CPC). Neste sentido, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 72).
O mesmo deve suceder, por identidade de razões, no que concerne aos factos que, à luz das regras do id quod plerumque accidit, não apresentem coerência lógica com a narrativa feita pelo autor. Com efeito, a sentença que, considerando-os adquiridos, os incluísse na sua fundamentação, apresentar-se-ia, nesta parte, irremediavelmente, como obscura ou mesmo contraditória. A consequência seria a nulidade, do conhecimento oficioso pela Relação, que, ademais, teria de proceder à correção do vício, relegando os factos em questão para o rol dos não provados (art. 662/1, c), do CPC), assim repondo a coerência interna da narrativa factual.
Com base nisto, tendo em conta que não existe qualquer regra de direito probatório material que reclame que os factos dos arts. 25, 26, 27 e 41, parte final, da petição inicial, sejam provados por um específico meio de prova, temos de concluir, necessariamente, que estão adquiridos por força da situação de revelia absoluta e operante em que incorreu o Recorrido.
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2).4. Isto dito, é agora o momento de retomarmos a questão, abordada no ponto 2).3.1., do erro de julgamento quanto aos enunciados de facto dos arts. 13.º, segmentos “dificuldades acrescidas nos esforços de carga ou rotação do membro superior direito”, “dificuldades acrescidas por limitação dolorosa na marcha normal e acelerada”, “dores intensas no antebraço direito após esforço de carga e rotação, que se agrava nos primeiros movimentos da manhã e nas mudanças de tempo”, “limitação na capacidade de utilização do membro superior direito” e “amiotrofia do membro superior direito”, 24, 30, 36 e 37 da petição inicial.
O que escrevemos no ponto anterior serve de mote: também estes se consideram adquiridos por força do disposto no art. 567/1 do CPC, pelo que se apresenta, prima facie, como errada a decisão de os considerar como factos não provados.
Fazendo uma análise mais cuidada, temos, porém, de atentar, em alguns aspetos.
Em primeiro lugar, não é lógico admitir-se, sem mais, a hipótese de uma mordidela de canídeo no antebraço direito ter provocado amiotrofia do membro e “dificuldades acrescidas por limitação dolorosa na marcha normal e acelerada.”
Falta aqui a alegação de factos que substanciem o nexo de causalidade entre o facto lesivo (mordidela do canídeo no antebraço direito) e o dano (amiotrofia do antebraço direito e dificuldades de locomoção). Seria, por exemplo, a hipótese de se alegar que ocorreu uma rotura do tendão do antebraço direito da Recorrente, por via da qual este ficou paralisado formando, com o braço, um ângulo de 90o que lhe provoca perda de equilíbrio e, assim, dificulta a locomoção.
Na falta de semelhante alegação, que a Recorrente teve oportunidade de fazer, em complemento à constante da petição inicial, tem de concluir-se que os factos em questão não apresentam coerência com aqueles em que é descrito o evento e, bem assim, com aqueles outros em que se quantificam as dores, o dano estético e a repercussão nas atividades desportivas e de lazer no grau 2 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente.
Em segundo lugar, a adjetivação das dores como intensas não passa disso mesmo, estando ainda em contradição com a avaliação feita no enunciado do art. 25.º, nos termos em que este foi interpretado, donde resulta que devem ser objetivadas no ponto 2 de uma escala de sete graus de gravidade crescente.
Em terceiro lugar, a afirmação de que a IPP é superior a 1 ponto padece da mesma imprecisão que apontámos às afirmações relativas à intensidade da dor, do dano estético e da repercussão do dano biológico nas atividades desportivas e de lazer. Por identidade de razões, tem de entender-se como apenas estando admitido que tal IPP dois pontos;
Finalmente, as afirmações dos arts. 30.º e 37.º são redundantes relativamente à do art. 24.º.
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2).5. Em resultado do que antecede, ficámos com a seguinte narrativa factual, ordenada de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica[2]:
1.º No dia 18 de dezembro de 2022, cerca das 14 horas, a Autora deslocou-se à freguesia ..., no concelho ..., mais concretamente ao n.º ...29 na Rua ..., para visitar a sua irmã, ali residente.
2.º Ao aproximar-se do portão surgiu, de forma repentina, um cão de raça pastor alemão, que cravou os dentes na zona do antebraço direito da Autora, mantendo-os cravados durante mais de vinte segundos, apesar dos gritos.
3.º O cão não estava preso, nem tinha açaime.
4.º O cão pertencia ao réu, ali residente, incumbindo-lhe a sua vigilância.
5.º O cão já tinha mordido outras pessoas, sem que o Réu tivesse tomado qualquer providência para evitar que isso voltasse a acontecer.
15.º A Autora nasceu em ../../1969, não trabalhava à data, auferindo a componente base da prestação social para a inclusão no valor mensal de 298,42 €.
14.º À data dos factos, a Autora era portadora de deficiência, tendo sido conferida uma incapacidade permanente global de 77%, por atestado de incapacidade datado de 29/03/2022 e com lesões reportadas a 2021.
16.º Não obstante a incapacidade de que padece, a Autora ocupava-se de todas as lides domésticas, sempre gostou de andar ao ar livre, dedicando-se a cuidar do seu quintal, obtendo para consumo próprio produtos agrícolas.
12.º À data dos factos, a Autora padecia de perturbação depressiva, seguida em psiquiatria no CAT em ..., sendo que, pelo temor e medo que sentiu, viu a sua situação agravar-se.
6.º Como consequência direta e imediata da mordedura causada pelo cão, a Autora sofreu um ferimento no antebraço direito, de onde ficou a escorrer sangue, com ferida de vários centímetros, queixando-se de dores.
7.º A Autora foi assistida no Serviço de Urgência do Hospital ..., em ..., onde fez raio x ao antebraço direito, analgesia, desinfeção das feridas, aplicação de pensos, tendo tido alta nessa tarde, com recomendação de cuidados com elevação do membro superior e para troca do penso 2 dias depois.
8.º Realizou ainda tratamentos às feridas para limpeza e desinfeção e mudança de pensos no Centro de Saúde ... nos dias 20-12-2022, 22-12- 2022, 26-12-2022, 27-12-2022, 29-12-2022, 02-01-2023, 04-01-2023, 09-01-2023.
11.º Além do mais, a Autora é diabética, o que, por aconselhamento médico, a obrigou, por causa da mordedura do cão, a manter a vigilância clínica.
9.º Neste período a Autora permaneceu com o membro superior direito em suspensão, o que dificultava o uso do mesmo, necessitando da ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoal e para as lides domésticas.
10.º Em virtude das sequelas da mordedura, a Autora consultou médico especialista em ortopedia, que prescreveu a realização de exames complementares, nomeadamente, neurofisiologia e imagiologia, suportando o montante de 192,00 € (cento e noventa e dois euros).
Apesar dos tratamentos a que se submeteu, a Autora ficou com sequelas, nomeadamente: • Cicatriz no antebraço direito; • Dificuldades acrescidas nos esforços de carga ou rotação do membro superior direito; • Desconforto noturno; • Dores no antebraço direito após esforço de carga e rotação, que se agrava nos primeiros movimentos da manhã e nas mudanças de tempo; • Edema no antebraço direito; • Limitação na capacidade de utilização do membro superior direito; • Agravamento da perturbação depressiva.
Lesões e sequelas que lhe provocam uma IPP de dois pontos.
Apresenta ainda um quantum doloris de dois pontos numa escala de sete (de gravidade crescente).
E um dano estético de dois pontos na mesma escala.
Tudo com repercussões de dois graus na mesma escala.
17.º Em consequência das lesões, a Autora tem de fazer mais pausas durante as suas atividades de vida corrente que implicam o uso do braço, demorando mais tempo a terminar o serviço, ficando mais irritada e triste.
Passou a ter insónias, dificuldades em dormir, pesadelos e irritabilidade.
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3).1. Vejamos agora a 2.ª questão enunciada, começando por dizer que não vem questionada a decisão de imputar os danos sofridos pela Recorrente na esfera jurídica do Recorrido com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, mas apenas o quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais, fixado em € 3 000,00, montante que a Recorrente pretende seja aumentado para € 50 000,00.
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3).2. Os danos não patrimoniais podem ser definidos como aqueles prejuízos que, “sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (...) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação (...) do que uma indemnização” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996, pp. 622-623). Por outras palavras, a reparação do dano não patrimonial visa, em primeira linha, proporcionar, na medida do humanamente possível uma compensação pelo sofrimento que foi causado.
Estão em causa, também, danos corporais, os quais vêm sendo configurados como um tertium genus, com a sua natureza específica que não se esgota nem num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (v.g., casos de incapacidade permanente ou temporária mas com repercussões sobre a atividade laboral) nem num simples dano moral, podendo ter reflexos suscetíveis de avaliação pecuniária e outros que o não são (cf. João António Álvaro Dias, Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, Coimbra: Almedina, 2001, p. 125).
Esta questão será abordada com mais detalhe mais à frente, importando agora apenas que tenhamos presente que o art. 562 do Código Civil[3]  consagra um princípio fundamental: o de que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Este princípio, na sua aplicação prática, depara com várias dificuldades, razão pela qual o art. 566/1 permite, a título subsidiário, a fixação da indemnização em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Nestes casos, e como resulta do n.º 2 do art. 566, é aplicável a teoria da diferença, devendo a indemnização ter como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (que é a do encerramento da discussão em 1.ª instância: art. 663/1 do Código de Processo Civil) e a que teria nessa data, se não existissem danos.
O princípio é inconciliável e inaplicável com danos não patrimoniais, sendo que, em tais casos, o que se visa não é a reparação integral, tanto mais que o dano é de difícil, senão mesmo impossível, quantificação, em atenção ao bem jurídico violado, mas apenas a compensação do lesado pelo dano sofrido – e, bem assim, a sanção aplicável ao lesante, aspeto que também – e cada vez mais – está em causa no instituto da responsabilidade civil. É em termos de equidade que a compensação deve ser decretada no momento da prolação da sentença, atendendo-se aos elementos referidos no n.º 3 do art. 496/3.
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3).3. O nosso ordenamento jurídico, sem individualizar concretamente quais os danos não patrimoniais atendíveis, usou de uma cláusula genérica considerando indemnizáveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496/1), o que reconhecidamente sucede com as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética, que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, 
Como quer que seja, a gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, embora atendendo às circunstâncias do caso concreto, afastando-se fatores suscetíveis de sensibili­dade exacerbada ou requintada. Quer isto significar que, no que a estes danos concerne, a lei manda atender apenas aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496/1), o que implica que a gravidade do dano se deve medir por um padrão objetivo, e não à luz de fatores subjetivos (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 499, e Vaz Serra, Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ 83, p. 89), embora se deva considerar que, como referem Garcia Blázques / Perez Piñeda (Manual de Medicina Legal para Profesionales del Derecho, Granada: Comares, 1992, p. 334), “os efeitos que a lesão provoca num indivíduo são muito diversos, dependendo da natureza da própria lesão e do indivíduo. Perante agressões iguais, e inclusive lesões semelhantes, as reações individuais são muito diversas.”
Entre os danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito, inclui-se, necessariamente, o dano corporal em sentido estrito, caracterizado como o prejuízo de natureza não patrimonial que recai na esfera do próprio corpo, dano à integridade física e psíquica.
E nesse âmbito, tem-se considerado tradicionalmente ser de valorar o quantum doloris ou dor física e dor moral ou psíquica sofrida pelo lesado, por saber-se diminuído fisicamente. A dor física está relacionada com diversos fatores de natureza cultural e religiosa, a idade da vítima, fatores psicossociais e tipo de personalidade e pelo tipo de lesão e tratamento que haja sido aplicado.
Por isso, a dor pode não ser proporcional à gravidade da lesão, podendo ser mais aguda em lesões menos graves.
Este aspeto é autónomo e deve ser valorado com outro aspeto do dano não patrimonial, que corresponde à afetação da integridade anatómica, fisiológica ou estética.
Assim, a perda de órgão ou membro ou a sua mutilação, não pode deixar de ser valorada em simultâneo com a dor física ou moral que esse facto provoca.
Na adoção de um sistema de tabelas indicativas, não poderá deixar de se ponderar o valor médio de referência da sensação dolorosa atrás enunciada, a aliar ao padrão funcional, considerando que são aspetos distintos e devem ser avaliados separadamente.
A nossa jurisprudência tem caminhado no sentido de considerar merecedor de tutela o prejuízo de distração ou de afirmação pessoal, valorando-se a diminuição ou anulação da capacidade do indivíduo para obter ou desfrutar os prazeres ou satisfações da vida como consequência direta do dano, desde que se aleguem e provem as atividades lúdicas que, praticadas antes do facto gerador do dano, ficam comprometidas por causa dele.
Como refere João António Álvaro Dias (Dano…, ps. 388 - 389), “[n]ão merece contestação séria que certas lesões, pela sua gravidade, são suscetíveis de provocar a quem as sofre especialíssimas disfunções relacionais, desenquadramentos situacionais ou alterações comportamentais (na forma de estar e de ser… com os outros) que se repercutem negativamente sobre o trajeto vital (existencial?) do lesado. Quer retirando-lhe a possibilidade de se dedicar a pequenos e edílicos prazeres (…), quer privando-o de deambular fisicamente sustentado no seu corpo ou interagir, de forma profícua ou estéril, com ele, quer de se projetar ou reverberar na humana existência (ou mesmo para além dela) em jeito de autorretrato. O dano de afirmação pessoal, a que algumas vezes anda associada a designação de dano à vida de relação, mais não é afinal que a lesão do conjunto de capacidade sociais, relacionais, que se expressam ou consubstanciam na capacidade, ou pelo menos na abstrata possibilidade, de a pessoa desenvolver, transformando em ato, uma vida onde pontifiquem momentos mais ou menos intensos de satisfação estética (…), física (…), social (…) e familiar ou outros…”
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3).4. Relativamente às dores, importa dizer, citando Duarte Nuno Vieira (“A “missão” de avaliação do dano corporal em direito civil”, Sub Judice, 2000, p. 26), que o quantum doloris é um parâmetro de dano relativo à incapacidade temporária, que valoriza a dor física resultante não só dos ferimentos como dos tratamentos (v. g., uma tração prolongada), mas também a dor psicológica, referente à angústia e ansiedade criadas pelas circunstâncias inerentes ao acidente, como sejam as resultantes da hospitalização, a consciência do risco de vida, o afastamento do meio familiar (v. g., o caso de uma criança que sofre um traumatismo e que tem de permanecer internada durante um certo tempo, num ambiente onde não conhece ninguém), o afastamento das ocupações profissionais, etc. É também comum integrar nesta valorização a angústia e ansiedade face a intervenções cirúrgicas e particularmente à anestesia geral. O quantum doloris está dependente destas duas vertentes (dor física e também da dor psíquica). A avaliação do quantum doloris é muito complexa, pois trata-se de um parâmetro do dano muito subjetivo: de facto a avaliação da dor é muito subjetiva; cada pessoa sente o estímulo doloroso de maneira diferente, inclusivamente, cada um de nós é capaz de vivenciar a mesma dor e o mesmo estímulo doloroso de forma diferente, consoante a situação em que o vivencia. Mas mais, para além da subjetividade do próprio sinistrado, que não conhece senão as dores que ele próprio já experienciou, e à partida são para ele as piores que existem pois não conhece outras, há também a subjetividade do próprio perito médico que está a avaliar, que também não conhece senão as dores que também ele próprio já experienciou. Por tudo isto a avaliação da dor é duplamente subjetiva: por um lado, é a avaliação que a vítima faz das dores que sente (que diz sentir); por outro lado, a avaliação que é feita pelo perito. Estamos perante uma valoração tipicamente subjetiva, ou duplamente subjetiva. Em primeiro lugar é o próprio dano em si que é intrinsecamente subjetivo; em segundo lugar há o omnipresente subjetivismo da apreciação pericial. Mas, se a avaliação do quantum doloris é duplamente subjetiva, a verdade é que a avaliação da dor tem também muito de objetivo (neste sentido, Idem, ibidem). Por exemplo, a natureza e a gravidade das lesões podem, objetivamente, ser consideradas de dolorosas (em qualquer mortal, uma queimadura de 3º grau, por muito resistente que a pessoa possa ser à dor, é uma situação que objetivamente se pode concluir como dolorosa). Também o timbre de tratamentos que foram administrados é um fator a considerar (por exemplo, permanecer dois ou três meses com um colete gessado na mesma posição, na sequência de uma fratura da coluna vertebral, é naturalmente uma situação dolorosa para qualquer mortal). O mesmo acontece com o número de incidentes verificados no decurso do processo evolutivo das lesões (as complicações infeciosas, o número de intervenções cirúrgicas, etc.) são parâmetros que podem objetivamente ser indicadores de uma situação dolorosa, independentemente da capacidade de resistência à dor que o indivíduo possa ter. A medicina dispõe “hoje de diversos métodos de avaliação da dor (métodos de Fisher, de Gunther, de Terry, de Wussow e Krause, etc.) bem como de uma multiplicidade de escalas (binárias, de categorias, de analogia visual, etc.) e de questionários (MPQ, Wisconsin, McGill, etc.) suscetíveis de constituírem um precioso auxiliar para uma avaliação mais fundamentada deste parâmetro de dano. São, todavia, métodos que têm as suas limitações, nomeadamente em termos da cooperação do examinado, da sua idade, do seu contexto clínico (ansiedade, compromisso do nível de consciência, patologia psiquiátrica, etc.), do seu nível intelectual, sendo necessário que o perito domine o seu manuseamento para que deles retire alguma utilidade. Consideramos de particular relevância para a quantificação do quantum doloris a Tabela de Tierry e Nicourt, amplamente divulgada na prática médico-legal, a qual proporciona valorizações de referências (que o perito ajustará em função do caso concreto) suscetíveis de facultarem uma maior equidade nesta avaliação. Para referenciar e qualificar o quantum doloris (no nosso país e noutros) é utilizada uma escala de 7 graus (que vai do muito ligeiro até ao muito importante). Trata-se de uma escala que não é obrigatória, o perito pode recorrer a uma outra qualquer escala qualificadora (desde que no relatório faça menção da escala adotada, porque o qualificativo que atribuiu e o seu valor, depende do posicionamento relativo que tem dentro da escala escolhida), mas, por uma questão de harmonização, deve utilizar a escala de 7 graus (que neste momento é uma das escalas mais utilizadas dentro da União Europeia, e também por uma questão de atualização).
O mesmo raciocínio vale para o dano estético e para outros danos não patrimoniais que resultem do dano biológico, aqui entendido como dano-evento – isto é, como “o prejuízo que o lesado sofreu em sentido naturalístico (in natura)” (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 595), por contraposição ao dano consequência, que, em sede não patrimonial pode ser definido, pela negativa, como a afetação de vantagens insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam as de ordem espiritual, ideal ou moral. É o caso da perda ou diminuição do gosto por atividades lúdicas ou de lazer.
Partindo destas considerações, há então que fixar o quantum indemnizatório a atribuir como forma de compensar os referidos danos não patrimoniais. Este constituiu um dos problemas mais complicados que se levantam em sede de responsabilidade civil pois, escreve Vela Torre (Criterios Legales y Judiciales para Cálculo de Indemnizaciones, em Cuadernos de Derecho Judicial — Responsabilidad Civil, Madrid, 1993, p. 228), “entronca com problemas culturais e éticos, relativos ao sofrimento humano, e assenta sobre bases extremamente movediças, pois o dinheiro dificilmente poderá substituir bens como a saúde ou a própria vida.”
Somos, portanto, reconduzidos ao critério do art. 496/3, 1.ª parte: “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.” Nesta última disposição, por seu turno, ao dizer-se que “quando a indemnização se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”, consagra-se uma ressalva ao critério geral fixado no art. 566/2.
O legislador civil de 1966 consagrou, no dizer de Brandão Proença (A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coimbra: Almedina, 1997, p. 163), “uma série de situações heterogéneas, cuja verificação pode conduzir à limitação ou à exclusão da indemnização, não recebendo, pois, o lesado, o resultado do juízo hipotético da diferença entre duas situações patrimoniais.” Trata-se, enfim, de “um fator de correção da extensão indemnizatória”, de forma a evitar que a gravidade da conduta do lesante seja desproporcionada face ao montante da indemnização.
Importa não esquecer também que a indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza mista: visa compensar, de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada, não lhe sendo estranha, porém, a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
Na verdade, os fatores referidos no artigo 494 apontam, no seu conjunto, para um duplo objetivo: o da reparação dos danos causados e o da sanção ou reprovação do agente.
Naturalmente que o recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso (STJ 25.06.2009, CJSTJ, XVII, t. 2, ps. 128 e ss.).
De dizer ainda que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica nem miserabilista, devendo, antes, ser significativa e traduzir a justiça do caso concreto, não se devendo, porém, confundir a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjetivismo do julgador.
Vejamos alguns exemplos retirados da jurisprudência recente.
STJ 21.01.2016, 1021/11.3TBABT.E1.S1, relatado por Carlos Lopes do Rego: Não é desproporcionada à gravidade objetiva e subjetiva das lesões sofridas por lesado em acidente de viação o montante de € 50 000, atribuído como compensação dos danos não patrimoniais, num caso caracterizado pela existência em lesado jovem, de 27 anos de idade, de múltiplos traumatismos (traumatismo na bacia, traumatismo torácico, com hemotórax, traumatismo crânio-encefálico grave, com hemorragia subaracnoídea e contusão corticofrontal, à esquerda, traumatismo abdominal, fratura do condilo occipital esquerdo, fratura do acetábulo direito e desenervação do ciático poplíteo externo direito), envolvendo sequelas relevantes ao nível psicológico e de comportamento, produzindo as lesões internamento durante 83 dias, quantum doloris de 5 pontos em 7 e dano estético de 2 pontos em 7; ficando com um deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica, fixável em 16 pontos, e com repercussão nas atividades desportivas e de lazer, fixável em grau 2 em 7, envolvendo ainda claudicação na marcha e rigidez da anca direita; implicando limitações da marcha, corrida, e todas as atividades físicas que envolvam os membros inferiores e determinando alteração relevante no padrão de vida pessoal do lesado, que coxeia e é inseguro, física e psiquicamente, triste, deprimido e com limitação na capacidade de iniciativa; sofrendo incómodos, angústias e perturbações resultantes das lesões que teve, dos tratamentos e intervenções cirúrgicas a que foi sujeito; terá de suportar até ao fim dos seus dias os sofrimentos e incómodos irreversivelmente decorrentes das limitações com que ficou.
STJ 16.06.2016, 1364/06.8TBBCL.G1.S2, relatado por Manuel Tomé Soares Gomes: Tendo em conta a idade da autora, a natureza das lesões sofridas, os períodos de internamento e de convalescença, os tratamentos a que teve, sucessivamente, de se submeter, as sequelas com que ficou e a repercussão na sua vida quotidiana, o grau de quantum doloris fixado em 4 pontos numa escala crescente de 1 a 7, o sofrimento que, segundo as regras da experiência, tudo isso implica com tendência a agravar-se com a idade, o facto de o acidente se ter devido a culpa exclusiva e grave do condutor do veículo atropelante sem qualquer parcela de responsabilidade da autora, o longo tempo decorrido entre a data da propositura da ação (24-03-2006) e a data da sentença final (28-05-2014), tem-se por justificada e equitativa uma compensação pelos danos não patrimoniais no montante de € 20 000 reportado à data da decisão final em 1.ª instância.
STJ 26.01.2017, 1862/13.7TBGDM.P1.S1, relatado por Oliveira Vasconcelos: Resultando da matéria fáctica provada que a autora: (i) tinha 29 anos de idade à data do acidente; (ii) em virtude deste, sofreu pânico e dores corporais; (iii) recorreu, várias vezes, ao serviço de urgência hospitalar, tendo sido submetida a exames, tratamentos e medicação; (iv) usa colar cervical e colete dorsal; (v) continua em tratamento, designadamente medicação, com o mesmo quadro clínico de síndrome pós-traumático, dores lombares e cervicais com intensidade progressiva, irradiação occipital, dores de cabeça, crises de pânico, humor depressivo, angústia e insónia; (vi) o quantum doloris foi fixado no grau 4; (vii) é casada e tem a seu cargo dois filhos menores; (viii) antes do acidente era uma pessoa alegre, enérgica, trabalhadora e ativa, sendo agora uma pessoa triste, angustiada, revoltada e nervosa; (ix) apresenta uma atitude apelativa e pitiática, humor lábil de tonalidade depressiva, expressando desgosto pelas dificuldades de mobiliação com que ficou, queixando-se do evitamento para a condução e revivências do acidente; (x) não brinca com a filha, nem a ajuda nos estudos, o que antes fazia; e (xi) deixou de fazer desporto, caminhadas e de andar de bicicleta, o que a deixa nervosa e desgostosa, é correto, de acordo com a equidade, o montante de € 30 000 fixado pela Relação a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial (arts. 494.º e 496.º do CC).
STJ 16.03.2017, 294/07.0TBPCV.C1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo: Provando-se, ainda, que o mesmo lesado, em consequência do acidente, (i) foi submetido a cinco intervenções cirúrgicas; (ii) esteve, no total, 92 dias internado; (iii) sofreu, para além das lesões referidas em VII, manifestações ango-depressivas como humor triste e depressivo, lentificação psicomotora, anedonia, sentimentos de insegurança e desânimo (com perda da autoestima), ansiedade e angústia, cefaleias e tonturas, intolerância ao ruído, irritabilidade fácil, dificuldades de concentração, prejuízos mnésicos; (iv) no futuro e até à sua morte terá de seguir uma dieta alimentar rigorosa devido aos problemas intestinais, digestivos e sanguíneos inerentes à amputação dos respetivos órgãos; (v) as cirurgias e tratamentos a que foi submetido foram dolorosos, sendo o respetivo quantum doloris fixável em 6/7; (vi) devido às cicatrizes que para si resultaram das lesões, sente vergonha em ir à praia ou usar roupas de verão, padecendo de um dano estético permanente fixável no grau 5/7, considera-se adequado e correspondente à orientação da jurisprudência do STJ, manter a indemnização de € 100 000 por danos não patrimoniais, fixada pelas instâncias.
STJ 27.04.2017, 1343/13.9TJVNF.G1.S1, relatado por Manuel Tomé Soares Gomes: Resultando da factualidade provada que, para além do referido em IV, a autora: (i) sofreu forte abalo psíquico no momento do acidente, mormente angústia de poder vir a falecer; (ii) padeceu de uma multiplicidade de lesões, tendo de se submeter a diversos tratamentos médicos, medicamentosos e terapêuticos; (iii) foi-lhe atribuído um quantum doloris de 4 numa escala crescente de 1 a 7, tem-se por adequado fixar em € 15 000 o valor para compensar os danos não patrimoniais.
STJ 25.05.2017, 868/10.2TBALR.E1.S1, relatado por Carlos Lopes do Rego: No caso de um jovem com 19 anos de idade à data do acidente, sujeito a quatro cirurgias e 125 sessões de fisioterapia, com alta cerca de dois anos e meio depois do acidente, ficando afetado de sequelas que implicaram a perda do seu posto de trabalho e incapacidade permanente para a sua profissão habitual, com um quantum doloris de grau 4 (numa escala de 1 a 7), dano estético de grau 4, défice permanente de integridade físico-psíquica de 7 pontos, sendo de admitir danos futuros, repercussão nas atividades desportivas e de lazer de grau 3 e na atividade sexual de grau 2, sentimentos de tristeza, com isolamento e depressão, carecendo de apoio psicológico, justifica-se que a indemnização por danos não patrimoniais, de acordo com uma jurisprudência atualista, seja fixada em € 50 000.
STJ 6.12.2017, 559/10.4TBVCT.G1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo: Tendo ainda em atenção as lesões que a autora sofreu em consequência do acidente (em concreto, traumatismo da coluna cervical), com as inerentes dores e incómodos que teve de suportar, sendo que o quantum doloris ascendeu ao grau 4, numa escala de 1 a 7, e os tratamentos a que teve de se submeter e, bem assim as sequelas de que ficou a padecer, considera-se ser de manter o montante indemnizatório fixado pela Relação por danos não patrimoniais no montante de € 15 000.
STJ 14.12.2017, 589/13.4TBFLG.P1.S1, relatado por Fernanda Isabel Pereira: Ficando, ainda, provado que o autor: (i) teve ser sujeito a diversas intervenções cirúrgicas; (ii) permaneceu diversos períodos internado; (iii), apresenta um dano estético de grau 3, o quantum doloris é fixável no grau 5 e a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é de grau 3 (em escalas crescentes até 7); (iv) antes do embate era uma pessoa autónoma, trabalhadora e bem-disposta e agora sente-se limitado, em termos pessoais e profissionais; (v) sabe que o seu estado não melhorará e isola-se em casa, sentindo desgosto por não mais conseguir fazer caminhadas, jogar futebol e andar de bicicleta; (vi) aquando do internamento, e quando se encontrava manietado de pernas e mãos, nasceu o seu filho, sem que lhe pudesse pegar ao colo, tem-se por adequada e quantitativa a indemnização fixada pela Relação a título de danos não patrimoniais no valor de € 30 000.
STJ 25.10.2018, 2416/16.1T8BRG.G1.S1, relatado por Hélder Almeida: Considerando os gravosos ferimentos sofridos pelo autor em consequência do acidente de viação de que foi vítima, as suas repercussões, a circunstância de o mesmo ter sido sujeito a três intervenções cirúrgicas e de, em virtude das sequelas, ter deixado de desenvolver a atividade profissional que sempre desenvolveu e de que tanto gostava, é de concluir que a fixação, pela Relação, do quantum indemnizatório, a título de danos não patrimoniais, em € 30 000 se situou aquém do que impunham os referidos limites e pressupostos, devendo antes o mesmo ser fixado, num adequado juízo prudencial e casuístico, em € 40 000.
STJ 11.05.2022, 3028/17.8T8LRA.C1.S1, relatado por Jorge Dias: Não se tem por desajustada aos padrões seguidos pela jurisprudência a indemnização de 45.000,00 para o Autor que levava um estilo de vida ativa, praticando regularmente (pelo menos três vezes por semana) ciclismo/BTT com ampla satisfação, quer sozinho quer acompanhado por amigos e que, fruto das sequelas do sinistro, teve de deixar de praticar ciclismo/BTT; sofreu e sofre dores resultantes não só das lesões sofridas como também dos próprios tratamentos efetuados; teve sofrimento físico e psíquico durante o período entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões fixável no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; as características das cicatrizes resultantes do acidente causam um Dano Estético fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente; a Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente; é previsível um agravamento das sequelas e o autor terá de continuar a recorrer, de forma regular, a acompanhamento médico adequado (consultas de ortopedia e fisiatria) no sentido de evitar retrocesso e agravamento das sequelas e minorar o sofrimento crónico de que ficou a padecer; foi submetido a uma intervenção cirúrgica à tíbia direita e ao ombro direito; encontra-se incapacitado de praticar atos banais de higiene diária, tais como pentear-se com a mão direita; sente dificuldades em vestir-se sozinho, tendo de recorrer à ajuda de terceiros; apresenta uma impossibilidade dolorosa de levantar o braço direito acima dos noventa graus; deslocava-se numa primeira fase com recurso a cadeira de rodas e posteriormente com auxílio de duas canadianas;
RL 11.05.2021, 1777/19.5T8LRS.L1-7, relatado por Diogo Ravara, considerando que em consequência do acidente dos autos e das lesões e sequelas dele emergentes, o autor: a. sofreu ferida incisa na mão esquerda, que foi suturado, e sujeito a imobilização; b. sofreu um período de incapacidade temporária parcial de 226 dias, c. sentiu dores por causa das mencionadas lesões, dores essas que se prolongaram durante o período de incapacidade temporária; d. ficou com uma cicatriz no dedo mínimo da mão esquerda, e limitações de mobilidade do mesmo dedo; e. sofreu dano estético de grau 2, e quantum doloris de grau 3, ambos numa escala até 7; f. ficou afetado de défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 1% g. deixou de praticar musculação e ciclismo, circunstâncias que consubstanciam um dano decorrente da repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 1, numa escala até 7. … afigura-se adequada a quantia de € 15.000,00 arbitrada a título de indemnização, abrangendo quer os danos não patrimoniais, quer o dano biológico stricto senso.”
RG 2.11.2023 (5350/20.7T8GMR.G1, relatado por Joaquim Boavida): é adequado o montante de € 4 000,00 para compensar a autora, que à data do acidente tinha 32 anos de idade, pelas dores quantificadas no grau 1 de uma escala de 7 graus e pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 1 ponto.
RG 11.07.2024 (408/20.5T8VLN.G1), relatado por Maria João Matos, no qual interveio, como 2.º Adjunto, o ora Relator, no qual se considerou “adequada a quantia de € 10.000,00, para indemnizar lesado de 69 anos, que se encontra reformado (em que as limitações físicas, nomeadamente resultantes de posturas dolorosas, não têm de ser ignoradas ou contrariadas pelo cumprimento de horários ou de tarefas pré-estabelecidos por terceiros), vítima de embate de um automóvel naquele que conduzia, de que resultaram sequelas (ráquis com cervicalgias despertadas pelos esforços e pelas mudanças climatéricas, com particular incidência nos movimentos de elevação e que resultam de provável hiperestiramento forçado das estruturas paravertebrais, comum nos acidentes de viação com colisão - golpe de chicote Lesão tipo Wiplash; sintomatologia dolorosa recorrente e agravadas pelos esforços e pelas mudanças climatéricas; necessidade de recorrer à ingestão de AINEs nos períodos de agudização, designadamente Voltaren 100; joelho esquerdo com cicatriz marcada, linear de direção vertical, na face anterior, rótula com mobilidade algo diminuída, dor na palpação da face anterior do joelho e no trajeto do tendão rotuliano, mobilidade entre 0º extensão e flexão de 110º, com dor terminal; claudicação da marcha, à esquerda, por gonalgia residual, pela existência prévia de uma prótese que terá favorecido e precipitado o agravamento sintomatológico atual), determinando consequências definitivas para a sua vida diária (dependência ao longo de toda a vida de medicação analgésica, anti-inflamatória e de relaxantes musculares; limitações em participar em actividades lúdicas e recreativas que impliquem esforços físicos, designadamente caminhar e permanecer de pé por longos períodos de tempo; dificuldades acrescidas na execução de determinados gestos da sua actividade de agricultor, sobretudo quando necessita de exercer esforços com os membros superiores - como pegar em objetos pesados - e também com os membros inferiores, com maior incidência sobre o membro inferior esquerdo, deixando de poder executar as diferentes tarefas que dependem da marcha, da posição prolongada de pé, do uso da coluna lombar, dorsal e cervical e dos membros superiores), tudo a traduzir-se num défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 3,00 pontos.”
Este extenso rol de arestos, que naturalmente retratam situações com as suas próprias especificidades, variando quer na idade dos lesados, quer nas sequelas de que ficaram a padecer, quer ainda nas dores e incómodos suportados por aqueles, permitem, não obstante, na ponderação das suas próprias especificidades, retirar padrões de aferição e quantificação dos danos.
Em todos os casos, com ressalva do último, estão em causa danos que assumem uma gravidade incomparavelmente superior aos que foram sofridos pela Recorrente. Atente-se, por exemplo, no que foi tratado em STJ 6.12.2017, 559/10.4TBVCT, no qual se fixou o montante compensatório em € 15 000,00. Isto evidencia bem que, conforme entendeu a 1.ª instância, o montante compensatório tem de ser substancialmente inferior ao pretendido pela Recorrente.
Por comparação com o último caso, afigura-se-nos, por outro lado, que esse montante também não pode ser tão baixo como aquele que foi fixado na decisão recorrida. Não só o dano biológico é mais grave, como as suas repercussões no bem-estar físico e psíquico da Recorrente são mais intensas.
Acrescentando ainda que o caso dos autos apresenta a particularidade de o grau de censura da conduta do lesado ser considerável, posto que, como ficou provado, o canídeo já havia antes atacado outras pessoas, o que devia ter imposto um maior cuidado na sua guarda, entendemos como adequado fixar o montante da compensação em € 6 000,00, assim dando parcial procedência ao recurso.
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3).5. De dizer ainda que o STJ, no Ac. n.º 4/02, de 9.05.2002, estabeleceu jurisprudência uniformizadora acerca do problema da concorrência entre a norma do n.º 3 do art. 805 e a do n.º 2 do art. 566 com o seguinte teor: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566, do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805/3 (interpretado restritivamente) e 806/1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”.
A referência a decisão atualizadora, em vez de sentença em 1.ª instância, que é, em princípio, o momento processualmente mais compatível com “a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal” (a que se reporta o dito n.º 2 do art. 566), teve como único propósito o de abarcar na previsão do acórdão aquelas hipóteses em que o tribunal de recurso aumenta a indemnização atribuída pelo tribunal recorrido, com base em valores atualizados e não o de cometer ao juiz o encargo de declarar expressamente que os valores indemnizatórios foram atualizados, sob pena de, não o dizendo, haver de se considerar que o não foram (STJ 22.042004, 04B1184, relatado por Quirino Soares).
O dever de atualização deriva do disposto no citado n.º 2 do art. 566, já referido. A indemnização deve ser, por princípio, atualizada.
Assim, funcionando este Acórdão como decisão atualizadora quanto aos danos não patrimoniais, os juros de mora sobre o montante da compensação ora fixada a esse título são devidos desde a sua prolação.
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4) Parcialmente vencedores e vencidos, Recorrente e Recorrido devem suportar as custas do presente recurso, na proporção dos respetivos decaimentos (art. 527/1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo de que beneficia a primeira.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso de apelação parcialmente procedente e, com conformidade:
- Revogar a decisão recorrida na parte relativa à compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela Recorrente, fixando essa compensação no montante de € 6 000,00 (seis mil euros);
- Condenar o Recorrido a pagar esse montante à Recorrente, acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar da presente data e até efetivo e integral pagamento;
- Condenar Recorrente e Recorrido no pagamento das custas do presente recurso, na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário atribuído à primeira na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
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Guimarães, 3 de outubro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte



[1] O autor retomou o tema no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html
[2] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”
[3] Diploma ao qual pertencem as disposições legais que, daqui em diante, forem citadas sem menção expressa da respetiva proveniência.