Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
56483/23.6YIPRT.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DE SENTENÇA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- É inquestionável que não pode haver lugar a condenação por litigância de má fé, sem contraditório.
II- A omissão de prévia notificação às partes de que na sentença a proferir se tencionava conhecer de um fundamento ainda não discutido configura, pois, nos termos expostos, uma violação do princípio do contraditório, que se traduz, a nível processual, para uns na nulidade da sentença por excesso de pronúncia e para outros na nulidade prevista no artigo 195.º do CPC, com evidente influência no desfecho da causa, o que levava a que fosse declarada a nulidade da sentença e se ordenasse a baixa dos autos para que as partes se pronunciassem acerca da temática da litigância de má fé e que relevou para a decisão.
III- Por razões de economia, até porque o Autor/Recorrente que foi condenado como litigante de má fé já expôs, desenvolvidamente, nas alegações de recurso, as razões por que entende que tal condenação não deveria ter ocorrido, não se vê razão útil (ut artº 130º CPC) para o convidar a pronunciar-se, de novo, sobre a questão (o que redundaria em pura perda de tempo, porque certamente se assistiria à repetição do que verteu nas alegações de recurso).
IV- Por isso, parece-nos que não obstante a nulidade de que padece a sentença recorrida, reúnem os autos todos os elementos para que se passe a conhecer do mérito do recurso.
V- Não litiga com má-fé quem se apresenta a exercer um direito com tutela legal e não decorre dos factos apurados que tenha agido no convencimento da falta de fundamento da sua pretensão, violando os deveres de boa fé processual, alterando a verdade dos factos e omitindo outros relevantes para a decisão da causa.
Decisão Texto Integral:
I- Relatório:

AA, residente na Rua ..., ... ... iniciou um requerimento de injunção contra BB, residente na Rua ..., ... ..., peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €380,67. 
Para tanto alega, em suma, o seguinte: no exercício da atividade comercial de compra e venda de imóveis, o requerido solicitou ao requerente para que este tratasse (sic) de um processo de construções e loteamento relativo a duas construções urbanas, geminadas, em dois lotes de terreno, sitas no Lugar ..., ..., ..., em nome de CC e DD; para tal, o requerente necessitou de apresentar diversos requerimentos em 11/02/2021, 11/02/2021, 28/02/2021, 07/03/2021 e 10/04/2021, suportando o custo de €183,80; para apresentar estes requerimentos, careceu de elaborar os requerimentos e o PDF, deslocando-se aos serviços camarários; pretende a quantia de €120,00 pelo seu trabalho; pretende ainda juros moratórios sobre as quantias peticionadas; termina formulando o pedido acima enunciado.
O requerido apresentou oposição, tendo alegado, em suma, o seguinte: rejeita dever qualquer quantia ao requerente, rejeita ter-lhe solicitado quaisquer serviços, não se comprometeu a pagar nenhuma quantia ao requerente; termina peticionando a absolvição do requerido.
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Em sede de audiência de julgamento da causa, e ouvidas as alegações orais, o requerido peticionou a condenação do requerente enquanto litigante de má-fé.
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Após, foi proferida a sentença, na qual se decidiu o seguinte:

“a) Julga a presente acção totalmente improcedente;
b) Condena o autor numa multa de 10 (dez)UC enquanto litigante de má-fé, bem como bem como no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do mandatário, a fixar em liquidação de sentença (art 542º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
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Custas pelo autor (art 527º, n.º 2 do Cód de Proc Civil).”.
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O autor veio interpor recurso da decisão sobre a condenação como litigante de má fé e apresentou as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

“1 - Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou a ação totalmente improcedente e condenou o autor numa multa de 10 (dez) UC enquanto litigante de má-fé, bem como no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do mandatário, a fixar em liquidação de sentença (art. 542º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
2 - A prova produzida nos autos impunha decisão muito diversa, pelo que não pode o recorrente conformar-se com a sentença prolatada.
3 - A decisão constitui manifesta surpresa quanto à condenação como litigante de má-fé.
4 - A sentença em crise, padece de erro de julgamento quer quanto à matéria de facto, quer quanto à aplicação do direito, porque andou mal, num primeiro momento, ao entender que: ”em sede de audiência de julgamento da causa, o requerido peticionou a condenação do requerente enquanto litigante de má-fé”, e, num segundo momento, porque com a matéria de facto dada como provada (NENHUM FACTO), deveria ter extraído outras consequências jurídicas da prova produzida.
5 - A decisão constitui manifesta surpresa porquanto, compulsados os autos, vistos os articulados, a ata de julgamento e as gravações da mesma, em momento algum o requerido, quer em sede de articulado, quer em sede de audiência, peticionou a condenação do requerente enquanto litigante de má-fé.
6 - Acresce que mesmo que fosse o Tribunal, de moto próprio, a entender haver, in casu, litigância de má-fé, como parece ter acontecido ( “...compulsados os autos, o Tribunal considera existirem aqui indícios de litigância de má-fé.” Sic ), sempre deveria ser assegurado ao Apelante o direito de exercer o contraditório, concedendo-lhe prazo para tal.
7 – A sentença não poderia condenar em indemnização à parte contrária, pelo simples motivo de esta a não ter pedido! – n.º 1 do artigo 542.º do CPC.
8 -Há, pois, nulidade procedimental decorrente da falta relacionada com a previsão do artigo 3.º do CPC, ou seja, com a necessidade de pedido e de contradição para que o Tribunal estivesse apto a resolver algum conflito de interesse.
9 - Dada a relevância e primordial importância do contraditório, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível  de  influir   no exame ou na decisão da causa).
10 - Com efeito, o princípio do contraditório – que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado inserto no direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º, n.º 1, da CRP) – envolve, desde logo, como vertente essencial, a proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
11 - Além disso, o princípio do contraditório ou da contrariedade, deriva de outro princípio processual: o da igualdade das partes, o qual resulta necessariamente da imparcialidade do órgão incumbido de compor o litígio – artigo 4.º CPC
12 – Na sentença em crise, podemos constatar que para além de não existir qualquer pedido de condenação como litigante de má-fé, foi proferida uma decisão surpresa, sem ter sido concedido o prazo para exercício do contraditório.
13 -Foi cerceado ao Apelante um prazo mínimo para que pudesse contribuir para a formação da decisão que veio a ser proferida, ainda para mais em matéria tão gravosa como a de litigância de má-fé.
14 – O Tribunal estava obrigado a deferir ativamente ao Apelante pelo menos o prazo previsto no art. 149.º, do CPC, para que este se pronunciasse e, eventualmente, indicasse prova pertinente para a boa decisão do incidente.
15 - Ao Tribunal cabia-lhe, ativamente, ter concedido esse prazo ao ora recorrente, a fim de se cumprir o preceituado no art. 3º, do CPC, e não, como fez, anular esse prazo proferindo de imediato decisão, sobrevalorizando assim, porventura, a celeridade processual, ao proferir de imediato uma sentença que corria o risco, agora materializado, de se tornar nula.
16 - A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão viciada com a apontada falta, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade      cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
17 - Considerando procedente a apontada nulidade procedimental, haverá que ter em conta o disposto no art. 199º, nº 2, do Código de Processo Civil, no qual se estabelece que: quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
18 - E, por esta parte deverá ser anulada a decisão recorrida, ou seja, aquela que condena o Apelante em má-fé, uma vez que não existe qualquer pedido de condenação e, mais ainda, não foi dada oportunidade para exercer o contraditório.
19 - Acresce ainda que com a matéria de facto dada por provada e a matéria de facto dada como não provada, o Tribunal não pode condenar o Apelante como litigante de má-fé, ocorrendo em flagrante violação do disposto no artigo 542.º do CPC.
20 – A sentença não deu como provado qualquer facto e deu como não provados os factos alegados pelo Apelante:
a) factos não-provados;
a) Que o requerido tenha solicitado ao requerente para que este tratasse de um processo de construções e loteamento relativo a duas construções urbanas, geminadas, em dois lotes de terreno, sitas no Lugar ..., ..., ..., em nome de CC e DD;
b) Que o requerente tenha necessitado de apresentar diversos requerimentos em 11/02/2021, 11/02/2021, 28/02/2021, 07/03/2021 e 10/04/2021, suportando o custo de €183,80;
c) Que para apresentar estes requerimentos, tenha carecido de elaborar os requerimentos e o PDF, deslocando-se aos serviços camarários;
21 - Nada resultou do julgamento efetuado.
22 – Ora, existe a ocorrência de litigância de má fé quando se verifica: a. Uma conduta processual; b. Típica (que se subsuma, em perspetiva objetiva e subjetiva, numa das alíneas supra mencionadas); c. Ilícita (neste âmbito a ilicitude, o juízo de desvalor objetivo, obtém-se por via da violação de uma norma [conceito formal] e da violação do bem jurídico protegido por esta [conceito material] inexistindo qualquer causa de justificação); d. E culposa (a culpa, o juízo de censurabilidade ao agente concreto, relevará na determinação do conteúdo concreto da obrigação de indemnizar e da multa). Todavia, a ilicitude é tipificada num sistema de cláusulas taxativas, excluindo os comportamentos processuais meramente negligentes. Deste modo, atribui-se mais liberdade a quem atua no processo em comparação com as atuações não processuais. E tal conceção é, desde logo, imposta constitucionalmente.
23 - Não existindo prova de um qualquer facto significa que os mesmos não possuem existência jurídica, isto é, são juridicamente inexistentes.
24 - Não há nada juridicamente relevante pelo que não pode o Tribunal condenar com base em factos inexistentes.
25 - Assim, salvo o devido respeito, que é muito, carece o Tribunal a quo de qualquer matéria fáctico-processual que possa consubstanciar objetivamente a invocada litigância de má-fé em que foi condenado o Apelante.
26 - De igual forma, também pela inexistência de qualquer matéria fático processual, inexiste matéria de facto provada que possa traduzir o elemento subjetivo para que haja tal condenação como litigante de má-fé.
27 - Inexiste qualquer elemento subjetivo – ter agido com dolo ou negligência grave - como exige o artigo 542.º do CPC que permita a condenação, já que nenhum facto positivo se provou.
28 - Não se provou que tenha deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar;
29 - Não se provou que tivesse alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
30 - Não se provou que tivesse praticado omissão grave do dever de cooperação;
31 - Não se provou que tivesse feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão;
32 - De igual forma ao contrário do que entende o Tribunal a quo, quando refere que ocorreu lide temerária, a exigência da consciência de não ter razão, pois, não se vê em que matéria, atentos os factos provados e os factos não provados, se baseia e fundamenta a sentença em crise!
33 - Decidindo pela condenação do Apelante na multa de 10 UC’s, como litigante de má-fé, bem como no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do mandatário, a fixar em liquidação de sentença violou a sentença recorrida o disposto no art. 542º- 2 do CPC, pelo que é ilegal e, como tal, deve ser substituída por outra que revogue a condenação do recorrente como litigante de má-fé!
34 – Foram, assim violados os artigos, 20.º da Constituição da República Portuguesa, 3.º, 4.º, 149.º e 199.º, n.º 2 e 542.º do CPC
Nestes Termos,
Sempre com o douto suprimento de V. Exas.,
Deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra,
Que não condene o Apelante como litigante de má-fé.
Decidindo como se requer, farão V. Exas. a costumada Justiça!”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foi admitido o recurso da decisão ora recorrida, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
(A)A nulidade por violação do contraditório;
(B) A litigância de má fé.
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III. Fundamentação de facto.

- Consta da sentença o seguinte quanto à “fundamentação de facto”:

a) factos provados;
Nenhuns com relevância para a causa.

b) factos não-provados;
a) Que o requerido tenha solicitado ao requerente para que este tratasse de um processo de construções e loteamento relativo a duas construções urbanas, geminadas, em dois lotes de terreno, sitas no Lugar ..., ..., ..., em nome de CC e DD;
b) Que o requerente tenha necessitado de apresentar diversos requerimentos em 11/02/2021, 11/02/2021, 28/02/2021, 07/03/2021 e 10/04/2021, suportando o custo de €183,80;
c) Que para apresentar estes requerimentos, tenha carecido de elaborar os requerimentos e o PDF, deslocando-se aos serviços camarários;”
- Consta da sentença quanto “ à fundamentação de direito”, sob o item “ litigância de má fé”
“(…)
Perante os factos, o Tribunal pode concluir pela má-fé da autora, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil.
Em primeiro lugar, conforme vimos supra, a hipótese de litigância de má-fé prevista no art 542º, n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil permite sancionar não apenas a lide dolosa mas igualmente a lide temerária, entendida como aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição »cuja falta de fundamento não devia ignorar«, i.e: não é necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má-fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão, sendo suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização (cfr o Douto Acórdão do STJ de 20/03/2014 (1063/11.9TVLSB.L1.S1); TRP de 14/03/2022 (2881/20.2T8AVR.P1)).  
Em segundo lugar, não poderemos deixar de salientar a temeridade com que um funcionário público de um município, sem actividade aberta fora do seu vínculo com a edilidade, sem passar facturas, sem estar colectado para o efeito, vem a Tribunal exigir o pagamento de uma quantia que solicitou para que interviesse junto de um processo de licenciamento de um prédio urbano, suscitando suspeitas da prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. no art 372º do Cód Penal.
Termos em que o Tribunal considera que se verifica aqui litigância de má-fé, na modalidade de lide temerária, na medida em que o autor veio reclamar o pagamento de uma quantia absolutamente indevida, por estar totalmente fora do exercício das suas funções  (art 542º, nº 2, al.a) do Cód de Proc Civil).
Pelo que consideramos que devemos condenar o autor numa multa de 10UC, bem como no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários (art 542º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
Não havendo elementos para fixar a indemnização peticionada, relegamos os mesmos para liquidação em execução de sentença (art 543º, n.º 1, al.b) e n.º 3 do Cód de Proc Civil).

IV- Do mérito do recurso:

Insurge-se o ora recorrente contra a sentença recorrida na parte em que condenou o A. como litigante de má-fé, alegando que:
- por um lado, para além de não existir qualquer pedido de condenação como litigante de má-fé, foi proferida uma decisão surpresa, sem ter sido concedido o prazo para exercício do contraditório, resultando assim numa violação do princípio do contraditório a acarretar a nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC;
- por outro lado, não resultou provada qualquer matéria de facto, nomeadamente não resultou como provado que o recorrente, ao reclamar o seu direito, tenha agido com má fé processual.
Vejamos se lhe assiste razão.
Em relação à primeira questão: A) da nulidade por violação do contraditório:
Dispõe o art.3 nº3 do CPC – “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
A norma do nº3 do art.3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialética ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo (cf. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, 1996, pág. 96).
É inquestionável que não pode haver lugar a condenação por litigância de má fé, sem contraditório.
O TC tomou esta posição em vários arestos, designadamente no Ac nº 498/2011, de 26/10/2011, ao decidir – “Interpretar a norma extraída do artigo 456.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, em termos de a parte só poder ser condenada como litigante de má fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se defender da imputação de má fé”.
Perante decisão que tenha sido proferida com desrespeito pelo princípio do contraditório ( vg., quando se trate de verdadeira decisão surpresa), a sua impugnação deve ser feita através da interposição de recurso, se e quando este for admissível, ou mediante a arguição de nulidade da decisão, nos demais casos” ( in CPC Anotado de G.P.S., vol I, 2ª ed, p. 23)
Na situação dos autos, nas alegações orais, além do mais, e apesar de não constar da ata, verificou-se pela auscultação das gravações que o R requereu expressamente a condenação do requerente como litigante de má fé.
Contudo, nesta sequência foram logo os autos conclusos para proferir sentença.
Coloca-se a questão de saber se é suficiente para a garantia do contraditório considerar-se efetuada a notificação deste requerimento pela contraparte por estar presente na diligência, ou se o tribunal deveria, depois disso e autonomamente, notificar o requerente indicando a matéria da má fé.
Segundo determinado entendimento, sustenta-se estar garantido o contraditório, não sendo decisão-surpresa se a parte foi notificada do pedido (de condenação por litigância de má fé) feito em requerimento pela contraparte ou considerando-se, assim notificada ( neste sentido, decidiu-se no Ac STJ de 2/11/2005 (recurso nº 2340/05); idêntica posição se adotou no Ac RG de 2/7/2013 (proc. nº 39/12), em www dgsi.pt) – e também no Ac RE de 14/6/2007 (proc. nº 492/07) em www dgsi.pt – “Tendo uma das partes num articulado notificado a parte contrária suscitado a questão da litigância de má fé do opositor, quando o juiz toma posição não está a proferir decisão surpresa” e de igual forma no Ac RL de 18/12/2012 (proc. nº 612/07), em www dgsi.pt.
Argumentam os defensores desta tese o seguinte: o pedido de má fé pode ser feito por qualquer das partes através de simples requerimento e em qualquer altura do processo; quando requerido o incidente da litigância da má fé, a lei não exige um despacho liminar de admissibilidade, prévio à notificação da parte; ora, tendo o requerido pedido a condenação do requerente como litigante de má fé e uma vez notificados do mesmo, é evidente que tiveram oportunidade de responder, não o tendo feito sibi imputet.
Noutra perspetiva e que aqui se adota, é indispensável uma notificação autónoma com a advertência da eventual condenação (cf., por ex., Ac STJ de 11/9/2012 (proc. nº 2326/11), Ac RP de 29/11/2004 (proc. nº 0455241), Ac RE de 14/12/2012 (proc. nº 731/09), e AC desta RG de 21-05-2015, relatora Ana Cristina Duarte e o recente AC da RG de 15-02-2024, relator José Flores, todos disponíveis em www dgsi.pt).
Ora, o tribunal recorrido, condenou a apelante como litigante de má fé, “em multa processual e indemnização a favor do R, condenação essa pedida em alegações orais ( sem explicitar e pedir condenação em indemnização), sendo certo que, na ata da audiência de julgamento nada consta quanto a tal pedido e, de igual modo, não consta que o recorrente tivesse sido ouvido sobre tal alegado pedido, não tendo sido notificado para se pronunciar sobre a possibilidade ou intenção de vir a ser condenado como litigante de má fé.
A condenação do pleiteante como litigante de má fé tem um forte cariz punitivo do seu comportamento processual, por ter como requisito um comportamento eivado de dolo ou de negligência grave, ficando tal atuação incursa na previsão do art. 542º do Código de Processo Civil.
Assim, eventual pretensão do R (que, como já dissemos, não consta da ata, mas que terá sido adiantada em alegações orais) teria que ser apreciada pelo Tribunal que, para isso e para não incorrer numa condenação surpresa, teria, ele mesmo, de notificar a parte para, ante a possibilidade de ser condenada como litigante de má fé, se pronunciar antes da decisão, tendo a oportunidade de refutar, querendo, os motivos que o Tribunal lhe anunciava como sendo os fundamentos dessa condenação.
Como se lê no citado AC do STJ de 11.09.2012 ( relator Fonseca Ramos): “Estava aqui em causa o seu direito de defesa na perspectiva de que sendo a condenação como litigante de ma fé uma sanção “infamante”, a possibilidade de defesa tem de ser efectiva e só pode cumprir-se verdadeiramente se o putativo condenado conhecer os comportamentos pelos quais poderá ou será condenado”.
No que ora se impõe decidir, temos de concluir que a sentença recorrida, nos termos expostos, viola o princípio do contraditório, pelo que sofre da invocada nulidade.
Como acima já referido, a omissão de prévia notificação às partes de que na sentença a proferir se tencionava conhecer de um fundamento ainda não discutido configura, pois, nos termos expostos, uma violação do princípio do contraditório, que se traduz, a nível processual, para uns numa nulidade da sentença por excesso de pronúncia[1] e para outros na nulidade prevista no artigo 195.º do CPC, com evidente influência no desfecho da causa, o que acarreta a sua nulidade e dos atos subsequentes, cf. n.º 2, do preceito ora em referência.
O que levava a que fosse declarada a nulidade da sentença e se ordenasse a baixa dos autos para que as partes se pronunciassem acerca da temática da litigância de má fé e que relevou para a decisão.
No entanto, aqui chegados, importa ter em linha de conta que se deve obstar à prática de atos inúteis.
Com efeito, por razões de economia, até porque o Autor/Recorrente que foi condenado como litigante de má fé já expôs, desenvolvidamente, nas alegações de recurso as razões por que entende que tal condenação não deveria ter ocorrido, não se vê razão útil (ut artº 130º CPC) para o convidar a pronunciar-se, de novo, sobre a questão (o que redundaria em pura perda de tempo, porque certamente se assistiria à repetição do que verteu nas alegações de recurso).
Por isso, parece-nos que não obstante a nulidade de que padece a sentença recorrida, reúnem os autos todos os elementos para que se passe a conhecer do mérito do recurso, numa situação, ao que cremos, semelhante, à prevista no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, não se vislumbrando como necessário a baixa dos autos para as partes se pronunciarem acerca do tema da litigância de má fé, alias como já o fizeram.
Consequentemente, não obstante, quanto a esta questão, ter o recurso de proceder, passamos a conhecer da questão acima elencada em B.
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B) A litigância de má fé.

A decisão condenatória (da má fé) foi assim fundamentada, em resumo, e após ter dado como não provados todos os factos alegados pelo autor:
não poderemos deixar de salientar a temeridade com que um funcionário público de um município, sem actividade aberta fora do seu vínculo com a edilidade, sem passar facturas, sem estar colectado para o efeito, vem a Tribunal exigir o pagamento de uma quantia que solicitou para que interviesse junto de um processo de licenciamento de um prédio urbano, suscitando suspeitas da prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. no art 372º do Cód Penal.
… o Tribunal considera que se verifica aqui litigância de má-fé, na modalidade de lide temerária, na medida em que o autor veio reclamar o pagamento de uma quantia absolutamente indevida, por estar totalmente fora do exercício das suas funções  (art 542º, nº 2, al.a) do Cód de Proc Civil).”.
O recorrente argumenta que “ A sentença não deu como provado qualquer facto e deu como não provados os factos alegados pelo Apelante”, pelo que “carece o Tribunal a quo de qualquer matéria fáctico-processual que possa consubstanciar objetivamente a invocada litigância de má-fé em que foi condenado o Apelante.”, “ não se vê em que matéria, atentos os factos provados e os factos não provados, se baseia e fundamenta a sentença em crise a lide temerária”.
Conclui assim “do que decorre da fundamentação da sentença é que o ora Apelante, por ser funcionário da Câmara, está impedido de aí apresentar requerimentos, não cuidando de saber ou esclarecer qual a função do mesmo dentro dessa organização e se podia ou tinha qualquer forma de influenciar decisões ou até de influenciar ou de proferir decisões....De igual forma, sui generis, entende que por ser funcionário não pode prestar serviços para outrem e apresentar o custo pelo trabalho realizado, sendo tal conduta ilícita e passível de punição criminal… o Apelante nada fez (pois nada se provou), mas incorre na prática de crimes...”
Salvo o devido respeito, cremos que o apelante tem, no essencial, razão.
Antes de analisarmos o caso concreto, importa rever as noções básicas sobre esta temática.
De facto, exige-se que as partes ajam com probidade processual nas ações por si propostas ou contestadas, ou seja, não devem fazer “um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” – cfr. artº 542º nº2 al. d) do CPC.
Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má-fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, de acordo com o artº 542º nº2 do CPC.
Com efeito, o dever de litigar de boa-fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos artºs 7º e 8º do CPC para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respetivas partes.
Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má-fé.
Mas tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo.
E esta atuação da parte, conforme se vinha entendendo na doutrina e Jurisprudência, exige que haja dolo ou negligência grave do atuante (Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 343 e Alberto dos Reis, Código Proc. Civil Anotado, II, pág. 259 e Ac. TRL de 09.01.97, Col. Jur., Ano XXII, Tomo I, pág. 88).
Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/5/2019, disponível in www.dgsi.pt: “Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. (No sentido do que se deixou exposto, vide, entre, outros, Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/ 17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014, todos publicados in www.dgsi.pt)”.
Assim, não podemos confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer (Vide Ac. TRP de 09/03/2006 disponível em www.dgsi.pt).
Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada. O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a atuar contra a verdade ou com propósitos ilegais. A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida” ( In AC da RG de 04.10.2018, disponível em www.dgsi.pt).
A litigância de má fé configura-se “ como um instituto em que o pretendido não é ou não é predominantemente, o acautelar de posições privadas e particulares das partes, mas sim um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça. Conforme referia a propósito Paulo Cunha, num passo recordado também por Luso Soares e Menezes Cordeiro, todo o processo tende à obtenção de uma decisão donde resulta em última análise o sujeito passivo da má fé será sempre o tribunal. A proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. A virtualidade específica da má fé processual é outra bem diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial” ( in Pedro de Albuquerque, “ Responsabilidade Processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo”, p. 55, 56)
Esta conclusão é confirmada pela análise da nossa jurisprudência e de que dá eco o mesmo autor ( in ob cit, p. 56 a 58).
Por outro lado, não se olvide que declarar desconhecer a realidade de um facto não é a mesma coisa que negá-lo - com a consequente necessidade de sobre ele se produzir prova - distintas sendo as consequências processuais de uma e outra atitude e a possibilidade de uma e outra conduzirem à “alteração da verdade dos factos” ( vide neste sentido AC da RG de 07-12-2017, in dgsi).
 Contudo, o julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Processo 280/18.5T8OAZ.P1, rel. RITA ROMEIRA): “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; O autor deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”.
Ou seja: “(…) a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má fé processual” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-2015, Processo 3067/12.5TBTVD.L1-2, rel. SOUSA PINTO).
No caso presente, a sentença fundamenta a decisão de condenação do autor como litigante de má fé considerando factos que não se provaram ( vide factos não provados).
Como se referiu integram-se na previsão da lei condutas que digam respeito a ofensas cometidas no exercício da atividade processual a posições também elas processuais ou ao processo em si mesmo.
Ora, apenas se apurou ( já que toda a alegação aduzida pelo autor foi dada como não provada) que o autor apresentou-se a exercer um direito com tutela legal e não decorre dos factos apurados que tenha agido no convencimento da falta de fundamento da sua pretensão.
A sua pretensão apenas não foi acolhida face aos factos apurados, ou seja, dados como não provados.
Desta forma, não decorre dos factos apurados que o autor violando os deveres de boa fé processual, alterou a verdade dos factos e omitiu outros relevantes para a decisão da causa, nomeadamente ser funcionário público e prestar outro tipo de funções como as alegadas, sendo necessário apurar, para a conclusão retirada, quais as funções que exercia, qual o vínculo jurídico que o ligava à câmara municipal e se estava habilitado a prestar outro tipo de trabalho.
Em verdade, aquele exercício de funções pode ser acumulado com outras funções públicas ou com funções/atividades privadas, carecendo sempre de autorização prévia.
No caso vertente, nada se sabe a respeito.
Conclui-se, assim, que não estão reunidos os pressupostos para condenar o autor, com fundamento em litigância de má-fé e, por isso, não pode, pois, subsistir devendo, neste conspecto, ser revogada a decisão do Tribunal recorrido.

VI- Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar:
- procedente o recurso intentado pelo A, quanto à condenação do A por litigância de má-fé, revogando a sentença recorrida quanto a esta condenação.
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Custas do recurso pelo R. ( cfr. art. 527º do CPC).
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Guimarães, 29 de maio de 2024

Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Maria Amália Santos e
Margarida Pinto Gomes


[1] Vide MTS, CPC online, anotação ao art. 3º “on line” onde se lê :
“A violação da proibição da decisão-surpresa implica um vício da própria decisão-surpresa. A decisão-surpresa é, em si mesma, um vício processual que nada tem a ver com a tramitação processual e, por isso, com as nulidades processuais. (b) A decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º), porque o tribunal conhece de matéria que, nas condições em que o fez, não podia conhecer (RP 2/3/2015 (39/13); STJ 23/6/2016 (1937/15); RP 8/10/2018 (721/12); RG 19/3/2020 (6760/19); RL 8/10/2020 (95274/18); tb RG 25/3/2021 (2935/11); dif., entendendo que a solução conduz à interposição de recursos “sugadores de esforços sem sentido”, RG 17/12/2018 (216/16)). Para proferir a sua decisão, o tribunal tem de ouvir previamente as partes; logo, o vício refere-se à própria decisão, e não ao que não deveria ter sido omitido para que não houvesse uma decisão-surpresa (dif. STJ 19/12/2018 (543/05); STJ 2/6/2020 (496/13); RP 10/11/2020 (358/19); RE 9/9/2021 (1883/20); em crítica a esta orientação, cf. Teixeira de Sousa, Blog do IPPC 22/9/2020). (c) Se a omissão da audição das partes constituísse uma nulidade processual, então não haveria decisão-surpresa. Haveria uma nulidade processual que teria como consequência a anulação dos actos subsequentes (art. 195.º, n.º 2), entre os quais uma decisão posteriormente proferida. Para que se possa falar de decisão-surpresa é necessário que haja um vício próprio da decisão, e não uma decisão não viciada que é anulada na sequência de uma nulidade anterior (→NP art. 186.º-202.º).”