Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANIZABEL SOUSA PEREIRA | ||
| Descritores: | PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM INTERPRETAÇÃO CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ESTATUTÁRIA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 12/18/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I- Instaurada uma ação nos tribunais estaduais e invocada a exceção de preterição de tribunal arbitral, só em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a exceção. II- A convenção de arbitragem está sujeita às regras gerais de interpretação do negócio jurídico, nos termos dos arts. 236º e 238º do Cód. Civil e 2º, nº 1 da LAV, devendo relevar na sua interpretação o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer. III- Num caso de cessão da posição contratual, a cláusula compromissória aproveita e é oponível aos novos titulares da relação cedida, ao mesmo tempo que continua a aproveitar e a vincular as partes originais de tal relação, na medida em que os direitos substantivos que tal cláusula configurara na sua dimensão processual não tenham deixado de existir entre essas partes IV- No caso concreto, o direito de ação configurado mediante a inserção da cláusula compromissória nos estatutos do agrupamento de empresas, para um declaratário normal colocado naquela situação, atenta a redação da mesma e restante texto dos estatutos onde se inseriu, apenas poderá ter o sentido de valer nas relações e litígios entre membros do agrupamento de empresas e com respeito àquela dimensão substantiva, por isso é manifesto que o presente litígio não está abrangido pela cláusula compromissória constante dos Estatutos do ACE, porquanto não estamos perante um “litígio ou diferendo entre membros do Agrupamento”, já que é indiscutível que a Autora não é, nem era à data da instauração da presente ação membro do Agrupamento. V- Por isso, aquela dimensão processual apenas se explicava com aquela dimensão substantiva, a qual, no caso em apreço, cessou, pois deixando de ser membro do agrupamento de empresas deixou de existir a componente substantiva que explicava a dimensão processual em causa e a existência da cláusula compromissória estatutária. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: * I- RELATÓRIO:Com a data de 09.10.2024, foi proferida a seguinte decisão: “ A autora EMP01..., SA. intentou a presente acção declarativa com processo comum contra o réu CONSTRUCTORES DAS EMP02..., ACE. pedindo a sua condenação a pagar a quantia de € 62.500,00 relativa ao remanescente dos dividendos do ano de 2018 e o montante que tenha sido deliberado relativamente aos dividendos do primeiro semestre do ano de 2019. Alega que cedeu a sua participação no réu à sociedade comercial EMP03..., Sa. Ficou acordado com a cessionária que a cessão produzia efeitos a partir do dia 10 de Julho de 2019, pelo que tem direito aos dividendos que reclama, uma vez que são relativos a um período anterior a esta data. Acrescenta que esta questão foi discutida com a cessionária no Processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...). Nesta acção a cessionária reclamava os dividendos relativos ao período entre o dia 1 de Dezembro de 2017 e o dia 10 de Julho de 2019. A acção foi julgada improcedente, tendo o tribunal considerado que a data de 1 de Dezembro de 2017 se referia apenas ao pagamento do passivo bancário relacionado com o financiamento da aquisição da participação da autora, o que não incluía os dividendos do réu. Esta decisão implica que os dividendos relativos ao período anterior ao dia 10 de Julho de 2019 sejam devidos à autora. * O réu contestou alegando não foi parte na acção do Processo nº904/21.... do Juízo Central Cível de Braga (Juiz ...) e não está vinculado pela sentença que foi proferida. Acrescenta, no essencial, que não sabe se os dividendos reclamados pela autora são devidos a esta ou à cessionária e que por este motivo tem a quantia de € 62.500,00 cativa até ficar decidido a quem é devida.* Na contestação o réu invocou a incompetência absoluta deste juízo central cível por preterição do tribunal arbitral e deduziu incidente de intervenção principal provocada da sociedade comercial EMP03..., Sa.I Os estatutos sobre a constituição e funcionamento do réu regulam a resolução dos litígios nos seguintes termos: Artigo 19º (Arbitragem) 1. Qualquer litígio ou diferendo entre os membros do agrupamento relativo à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos presentes estatutos que não seja amigavelmente resolvido no âmbito do conselho de administração ou da assembleia geral, será, em primeira instância, obrigatoriamente objecto de uma tentativa de conciliação a realizar pelos respectivos presidentes dos conselhos de administração dos membros do agrupamento ou quem estes indicarem para o efeito. 2. O diferendo será apresentado aos administradores por qualquer membro do agrupamento, os quais deverão decidir por unanimidade no prazo de quinze dias de calendário. 3. A arbitragem será realizada por um tribunal constituído nos termos do presente artigo e, supletivamente, de acordo com o disposto na Lei da Arbitragem Voluntária. 4. O tribunal arbitral será constituído por um árbitro único se as partes em litígio acordarem na sua designação ou, na falta de acordo, cada uma das partes litigantes nomeará um árbitro, no prazo de dez dias, designando estes um terceiro, no mesmo prazo. Está em causa uma convenção de arbitragem que pode ser definida como o acordo através do qual as partes submetem à arbitragem um conflito actual (compromisso arbitral) ou eventuais conflitos futuros (cláusula compromissória) relativos a interesses patrimoniais ou não patrimoniais que estejam na sua disponibilidade . A convenção de arbitragem insere-se na arbitragem voluntária. A questão de saber se a fonte de legitimação dos árbitros é contratual ou jurisdicional é discutida . Todavia, independentemente desta discussão, é unânime o entendimento de que a convenção de arbitragem tem natureza contratual . Tratando-se de um contrato, a convenção apenas pode vincular as partes atendendo à eficácia meramente relativa dos contratos (art. 406º nº2 do Cód. Civil). A vinculação apenas às partes foi expressamente prevista na convenção de arbitragem acordada nos estatutos, uma vez que ficou a constar que era aplicável apenas aos litígios entre os membros do agrupamento relativos à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos estatutos. A presente acção não se refere a um litígio entre os membros do agrupamento. A autora foi um dos membros do agrupamento, mas deixou de ser a partir do dia 28 de Julho de 2020 através da aprovação pela assembleia geral da cessão da sua participação para a sociedade comercial EMP03..., Sa. Actualmente, a autora é uma terceira em relação ao agrupamento, pelo que além de não estar incluída no âmbito subjectivo que foi expressamente delimitado nos estatutos, não está vinculada à convenção de arbitragem. (…) III Pelo exposto, decido: 1. Julgar improcedente a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral que foi invocada pelo réu; (…) * Custas pelo incidente a cargo do réu.”* É desta decisão que vem interposto recurso pelo R, o qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:“I - O Tribunal Judicial da Comarca de Braga é absolutamente incompetente para apreciar e decidir o presente litígio; II - Deveria a A. ter esgotado os meios de composição não litigiosa, através do recurso à arbitragem, nos termos acordados, antes de ter recorrido ao tribunal; III - Tal cláusula consubstancia o que a doutrina e a jurisprudência têm designado de Cláusula compromissória; IV - Está em causa, tal como a decisão recorrida afirma, uma convenção de arbitragem que pode ser definida como o acordo através do qual as partes submetem à arbitragem um conflito atual (compromisso arbitral) ou eventuais conflitos futuros (cláusula com promissória) relativos a interesses patrimoniais ou não patrimoniais que estejam na sua disponibilidade; V - A convenção de arbitragem insere-se na arbitragem voluntária; VI - Os tribunais arbitrais, embora não sejam órgãos de soberania como os tribunais estaduais, não deixam de ser entidades jurisdicionais a quem cabe definir o direito nas situações concretas que lhes são submetidas; VII - A convenção arbitral está sujeita a dois requisitos: um formal, já que tem de ser reduzida a escrito, observando os requisitos de forma do contrato e outro material, traduzido, no caso do compromisso arbitral (que é o que aqui interessa considerar), no dever de designar as questões a que se refere e o critério de determinação do tribunal (art." 952 do CPC e art.? 2.° da LAV (Lei da Arbitragem Voluntária). VIII - A sentença recorrida conclui que a presente ação não se refere a um litígio entre os membros do agrupamento, já que a A. deixou de ser um dos membros do agrupamento a partir do dia 28 de julho de 2020 através da aprovação pela assembleia geral da cessão da sua participação para a sociedade comercial EMP03..., SA, pelo que deixou de estar vinculada à convenção de arbitragem; IX - Salvo o devido respeito, tal entendimento não salvaguarda o sentido e intenção do clausulado, com violação do disposto nos arts. 236.° e 238.° do Código Civil; X - Consta da convenção de arbitragem (art. 19.1) que qualquer "litígio ou diferendo entre os membros do agrupamento relativo à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos presentes estatutos que não seja amigavelmente resolvido no âmbito do conselho de administração ou da assembleia geral, será, em primeira instância, obrigatoriamente objeto de uma tentativa de conciliação a realizar pelos respetivos presidentes dos conselhos de administração dos membros do agrupamento ou quem estes indicarem para o efeito"; XI - A A, pretende a condenação do Réu a pagar-lhe o valor de € 62.500,00 acrescido dos respetivos juros de mora, bem como no pagamento à Autora dos dividendos deliberados distribuir pelo ACE e respeitantes ao primeiro semestre de 2019, acrescido dos respetivos juros de mora, calculados às taxas; XII - A A. fundamenta tal pedido no direito a dividendos que lhe são devidos, enquanto agrupada do ACE, já que respeitam a período em que a Autora era membro do agrupamento; XIII - O litígio entre os membros do agrupamento é relativo à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos presentes estatutos que deve ser dirimido pelo Tribunal Arbitral já que se prende com factos decorrentes da situação de agrupada, ao tempo existente e da qual deriva o alegado direito a dividendos; XIV - Resulta do clausulado que a intenção das partes - incluindo da A. ora recorrida - ao estipularem o mencionado conteúdo da cláusula compromissória constante do n.º 19, foi a de estabelecer que as questões relacionadas com a interpretação e cumprimento dos estatutos fossem dirimidas pelo tribunal arbitral; XV - Independentemente da data em que fosse exigido o alegado incumprimento dos estatutos, o que releva é que o alegado direito nasceu ao tempo em que A. integrava o agrupamento e por causa dessa sua qualidade; XVI - A interpretação das declarações ou cláusulas contratuais deve observar os critérios legais impostos pelos artigos 236° e 238° do Código Civil, para a interpretação do sentido que há de vincular as partes; XVII - A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (n.? 1 do artigo 236.° do Código Civil); sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (n.? 2 do artigo 236.° do Código Civil); XVIII- Por força do disposto na LAV (Lei da Arbitragem Voluntária), a convenção de arbitragem deve adotar forma escrita (n.? 1 do artigo 2.°), encontrando-nos, assim, perante um negócio jurídico formal, impondo a lei a forma escrita; XIX - A "interpretação e integração da convenção de arbitragem seguem as regras gerais aplicáveis aos negócios: 236.° a 239,°, do CC, ( .. .), Todavia, as inerentes operações devem recair sobre o contrato (no seu todo) onde, porventura, se contenha a convenção em causa; cabe ir ainda mais além e ter em conta o complexo contratual (vários contratos) onde se insira" (Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, 2016, pág.88); xx - A cláusula compromissória terá o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, pudesse razoavelmente deduzir do comportamento do declarante, desde que tenha um mínimo de correspondência na letra do texto do documento (negócio formal); XXI - O que está em causa é, sem dúvida, um litígio entre os membros do agrupamento relativo à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos presentes estatutos que só poderá ser dirimido pelo Tribunal Arbitral já que se prende com factos decorrentes da situação de agrupada, ao tempo existente e da qual deriva o alegado direito a dividendos; XXII - Esta é a melhor interpretação correspondente à vontade dos declaratários que apenas pretenderam estabelecer o foro convencional e competente para dirimir os conflitos que viessem a ocorrer quando estivessem em causa a interpretação e execução ou cumprimento dos estatutos, independentemente das vicissitudes que viessem a ocorrer mormente a saída de um membro do agrupamento. XXIII - A interpretação e integração da convenção de arbitragem seguem as regras gerais aplicáveis aos negócios: 236.° a 239.°, do CC e devem recair sobre o contrato (no seu todo) onde, porventura, se contenha a convenção em causa e cabe ir ainda mais além e ter em conta o complexo contratual onde se insere; XXIV - A A. só pode invocar o direito a dividendos com fundamento nas regras estatutárias, no seu todo, e não apenas na parte que, no seu entender, se mostra mais favorável; XXV - Mostra-se assim irrelevante que a A. já não faça parte do agrupamento, na medida em que o direito que invoca nasce e termina enquanto a A. integrou o mesmo agrupamento; XXVI - Ou seja o R. recorrente e a A., recorrida, entre outros, no âmbito e ao abrigo da autonomia privada, celebraram um negócio jurídico substantivo elou processual, nos termos do qual acordaram que os litígios futuros emergentes da interpretação e cumprimento dos estatutos que os obrigavam, seriam obrigatoriamente resolvidos por decisão arbitral; XXVII - Assim sendo, é de verificar a exceção de preterição do tribunal arbitral, considerando a cláusula invocada pela Ré e, em consequência, concluir pela incompetência absoluta deste tribunal, nos termos do artigo 96.°, b) do Código de Processo Civil; XXVIII - Por efeito de tal incompetência, deve a Ré ser absolvida da instância -artigo 278.°, n.? 1, a) do C.P.C.; XXIX - Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, declaro a incompetência absoluta deste Tribunal e determino a absolvição da Ré da instância»; xxx - Pelo que, intentada ação perante tribunal estadual cujo âmbito de resolução esteja incluído em convenção de arbitragem válida, eficaz e exequível, deverá ser declarada, a incompetência absoluta e ser absolvida a R./ Recorrida; XXXI - É neste registo que a jurisprudência dos tribunais superiores se tem pronunciado, ao decidir que, face ao princípio consagrado no artigo 18.0, n." 1, da LA V (Lei da Arbitragem Voluntária), segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para talos pressupostos que a condicionam - validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem -, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção invocada é nula ou ineficaz ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação (vide entre outros o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2019, Proc. 8927/18.7T8LSB-A.L 1.S1, e Acórdão da Relação de Lisboa, de 02.02.2021, Proc. 876/19.8T8AMD.L 1-7, disponíveis em www.dgsLpt); XXXII - Apenas numa situação comprovada de absoluta impossibilidade, e não de mera - difficultas praestandi - em respeito pela autonomia privada -, que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, poderá fundamentar e justificar o afastamento de tal cláusula (cfr. por todos o Ac. da RG de 25/09/2014, Relator Jorge Teixeira, AC. RP de 07/05/2019, Relatora Anabela Dias da Silva e Ac RL de 02/11/2010, Relatora Graça Amaral); XXXIII - Em suma, o Tribunal Judicial é absolutamente incompetente por preterição de tribunal arbitral; XXXIV - A questão em litígio não respeita a direitos indisponíveis, pelo que, a vontade das partes pode, livremente, afirmar-se na concretização do princípio da liberdade contratual, como corolário da autonomia privada - art.º 405.° do Código Civil e art.º 1.° da Lei 63/2011 de 14/12 (Lei da arbitragem voluntária); XXXV - Sendo assim, verifica-se que o Tribunal Judicial da Comarca de Braga é absolutamente incompetente por preterição de tribunal arbitral, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que reconheça essa incompetência que pertence ao tribunal arbitral; XXXVI - É de verificar a exceção de preterição do tribunal arbitral, considerando a cláusula invocada pela Ré, agora Recorrida, e, em consequência, concluir pela incompetência absoluta deste tribunal, nos termos do artigo 96.°, b) do Código de Processo Civil; XXXVII - Por efeito de tal incompetência, deve a Ré, aqui Recorrida, ser absolvida da instância - artigo 278.°, n.º 1, a) do C.P.C. Termos em que deve, sendo o Tribunal Judicial da Comarca de Braga absolutamente incompetente por preterição de tribunal arbitral, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça essa incompetência que pertence ao tribunal arbitral..” * Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida, e concluindo nos seguintes termos ( que se transcrevem):“I – O recurso interposto pelo Recorrente do despacho proferido pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral que foi invocada pelo Réu, deve ser julgado totalmente improcedente. II – Com efeito, no despacho recorrido, o Tribunal a quo considerou (e bem) que a Autora não está incluída no âmbito subjetivo que foi expressamente delimitado nos estatutos e que não está vinculada à convenção de arbitragem. III – No recurso interposto, o Recorrente pugna pela verificação da exceção de preterição do tribunal arbitral, porquanto crê que o entendimento do Tribunal a quo não salvaguarda o sentido e intenção da cláusula compromissória inserta nos Estatutos do ACE, violando do disposto nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil. IV – Contudo, não lhe assiste qualquer razão, pois, tal cláusula compromissória não tem aplicação ao presente litígio, na medida em que estamos perante um litígio entre um ex-membro do ACE e o próprio ACE. V – A referida cláusula (artigo décimo nono), estabelece que “1. Qualquer litígio ou diferendo entre os membros do Agrupamento relativo à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos presentes Estatutos que não seja amigavelmente resolvido no âmbito do Conselho de Administração ou da Assembleia Geral, será, em primeira instância, obrigatoriamente objecto de uma tentativa de conciliação a realizar pelos respectivos Presidentes dos Conselhos de Administração dos membros do Agrupamento ou quem estes indicarem para o efeito.” VI – Decorre inequivocamente daquela cláusula que, do ponto de vista subjetivo, a mesma tem por objeto litígios existentes apenas entre membros do ACE, não se aplicando a litígios existentes com ou entre entidades que já o foram e já não o são. VII – A cláusula em causa é dirigida e vincula os membros do Agrupamento nessa sua específica qualidade de membros, não vinculando não membros, o que se reflete no facto de se prever que tais litígios devem tentar ser resolvidos, num primeiro momento, no âmbito do Conselho de Administração ou da Assembleia Geral, onde só participam…membros do ACE! VIII – Com efeito, tal resulta do n.º 2 do Artº. Décimo Terceiro (“Conselho de Administração”) na versão dos Estatutos junta com a petição inicial (cfr. Doc. 5.º), da formulação dos Estatutos juntos com a contestação (cfr. Doc. 13), que difere da anterior, no n.º 2 do Artº Décimo Terceiro (“Conselho de Administração”), dele não fazendo parte a Recorrida à data da interposição desta ação e, ainda, do Artº. Nono, n.º 1, (“Assembleia Geral”) dos Estatutos, que tem formulação idêntica em ambas as versões, dela não fazendo parte a Recorrida à data da interposição desta ação. IX – Em qualquer caso, o Conselho de Administração é sempre composto por administradores propostos ou nomeados pelas Agrupadas, tendo todas estas intervenção nessa nomeação, sendo que a Recorrida, não detendo a qualidade de Agrupada do Recorrente, não tem qualquer intervenção nesta nomeação. X – Ora, não faria qualquer sentido que litígios entre membros do ACE e ex-membros do ACE pudessem ser resolvidos pelo Conselho de Administração ou da Assembleia Geral do ACE, onde os ex-membros não têm assento ou participam. XI – Por sua vez, é igualmente demonstrativo da posição da Recorrida a circunstância de na cláusula se prever que, não sendo os referidos litígios resolvidos no âmbito do Conselho de Administração ou Assembleia Geral do ACE, os mesmos sejam objeto de tentativa de conciliação a realizar pelos respetivos Presidentes dos Conselhos de Administração “dos membros do Agrupamento” envolvidos no litígio, sendo que, nesse caso, o litígio será apresentado aos referidos “Administradores por qualquer dos membros do Agrupamento, os quais deverão decidir por unanimidade.” XII – Assim, é manifesto que o litígio não está abrangido pela cláusula compromissória constante dos Estatutos do ACE, porquanto não estamos perante um “litígio ou diferendo entre membros do Agrupamento”, já que é indiscutível que a Recorrida não é, nem era à data da instauração da presente ação (2024.05.29), membro do Agrupamento, tendo deixado de ser agrupada do ACE em 2020.07.28, sendo, atualmente, uma terceira em relação ao agrupamento. XIII – Mas mais do que isso: não estamos sequer perante um litígio entre um membro do Agrupamento e um ex-membro do Agrupamento, mas entre um litígio entre o próprio ACE e um ex-membro do Agrupamento, como se referiu, o que, em nenhum caso, está abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula, pois que, contrariamente ao invocado pelo Recorrente nas suas alegações (art.º 3.º) a mesma apenas se aplica aos litígios entre membros do Agrupamento e não a litígios entre o ACE e qualquer um dos seus membros ou ex-membros. XIV – Não é a Recorrida que o diz; é o que está escrito na cláusula, sem qualquer margem para dúvida ou interpretação. XV – Em todo o caso, em matéria de interpretação do clausulado dos estatutos, a primeira regra a que se deve atender na interpretação, é a vontade real comum das partes, quando conhecida pelo Tribunal, o que resulta das disposições conjugadas do art.º 236.º,n.º 2, e do art.º 238.º, n.º 2 do Código Civil. XVI – Neste caso, nada vem alegado nos articulados quanto à vontade real subjacente à consagração da convenção de arbitragem, pelo que fica afastada a aplicação do disposto nos arts.º 236.º, n. 2, e 238.º, n.º 2, do Código Civil. XVII – Assim sendo, e à luz do art.º 236.º, n.º 1, do Código Civil, cremos ser evidente que o sentido que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, retiraria da cláusula, lida na íntegra e em conjugação com o restante texto os estatutos, era de que cláusula abrange e vincula única e exclusivamente os membros do Agrupamento, enquanto o forem, e que só se aplicaria a litígios entre membros do Agrupamento. XVIII – Mais: sempre há que ter em conta que, no caso de negócios formais, a teoria da impressão do destinatário, consagrada no art.º 236.º do CC, sofre a limitação constante do art.º 238.º do CC, ou seja, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, a não ser que esse sentido corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade. XIX – Ora, a convenção de arbitragem é um negócio formal, porquantodeve ser reduzida a escrito (art.º 2.º da LAV), pelo que é inequivocamente aplicável à interpretação desta o disposto no art.º 238.º, do Código Civil. XX – Não sendo, como se referiu, aplicável o n.º 2 daquele preceito, por nada vir alegado quanto à vontade das partes e, em qualquer caso, as razões determinantes da forma se oporem à validade de um sentido que não tenha o mínimo de correspondência com o texto da convenção de arbitragem. XXI – É que a convenção de arbitragem determina a atribuição de competência aos tribunais arbitrais para decidir um dado litígio, retirando, ao mesmo tempo, jurisdição aos tribunais estaduais, sendo este último efeito que está na base da exigência da forma escrita, visando assegurar a devida ponderação da opção pelas partes. XXII – Ora, não pode a convenção de arbitragem, à luz do art.º 238.º, n.º 1, do Código Civil, valer com o sentido de abranger um litígio entre um ex-membro do ACE e o próprio ACE, sendo que a interpretação que o Recorrente pretende que prevaleça – essa sim – fere manifestamente o disposto neste artigo. XXIII – Por fim, os estatutos do ACE, regulamentando matérias do funcionamento interno do ACE, apenas vinculam os membros do ACE e enquanto mantiverem essa qualidade, o que não é o caso da Autora. XXIV– Afigura-se-nos pouco relevante tecer grandes considerações em relação ao âmbito objetivo da cláusula compromissória, na medida em que é manifesto que o caso sub judice não se enquadra no âmbito subjetivo da cláusula compromissória. XXV – O Recorrente faz, ainda, apelo ao disposto no art.º 18.º, n.º 1, da LAV, invocando que entende incumbir prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência. XXVI – Porém, se é certo que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, tal não significa, nem resulta daquela disposição, que o tribunal judicial esteja impedido de o fazer, até porque o tribunal judicial também tem competência para apreciar da sua competência – cf. a este propósito, o artigo 5.º, n.º 1, da LAV. XXVII – O tribunal estadual deve aferir da existência de convenção de arbitragem (“o tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem”). XXVIII – Existindo convenção de arbitragem, o tribunal estadual deve absolver o Réu da instância, a menos que verifique que a convenção padece, manifestamente, de um dos vícios aí indicados (nulidade, ineficácia ou inexequibilidade). XXIX – É quanto a eventuais vícios da convenção da arbitragem, que podem determinar a incompetência do tribunal arbitral, que se exige os mesmos tenham de ser manifestos para que o Tribunal possa, face a um litígio abrangido pela convenção de arbitragem, deixar de absolver o Réu. XXX – Acresce que ainda que se entendesse, como defende o Recorrente, que os tribunais judiciais só devem julgar improcedente a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral quando seja manifesto, entre outros, que o litígio, de forma ostensiva, não se situa no âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, o que em caso algum se admite, XXXI – Sempre se dirá que é precisamente essa a situação dos autos: é manifesto que a convenção de arbitragem mesma não abrange litígios entre ex-membros do ACE e o próprio ACE: não só porque os mesmos aí não são referidos, como, de acordo com as regras de interpretação, mais concretamente o art.º 238.º, n.º 1, do Código Civil, não se podem considerar incluídos, não sendo necessária qualquer produção de prova para assim concluir. XXXII – Em suma, não há dúvidas que o presente litígio não está abrangido pela convenção de arbitragem, na medida em que esta apenas se aplica a litígios entre “membros do Agrupamento”, o que corretamente foi determinado no despacho recorrido, razão pela qual, bem andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral que foi invocada pelo Réu. XXXIII – Nestes termos e nos mais de Direito, deve o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão proferida.” * O recurso foi admitido, por despacho datado de 11-11-2024, como apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto. Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos. II- FUNDAMENTAÇÃO A questão suscitada no presente recurso diz respeito à procedência ou não procedência da exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral. * O tribunal a quo decidiu pela improcedência da exceção de preterição de tribunal arbitral, em síntese, porque “ A presente acção não se refere a um litígio entre os membros do agrupamento. A autora foi um dos membros do agrupamento, mas deixou de ser a partir do dia 28 de Julho de 2020 através da aprovação pela assembleia geral da cessão da sua participação para a sociedade comercial EMP03..., Sa. Actualmente, a autora é uma terceira em relação ao agrupamento, pelo que além de não estar incluída no âmbito subjectivo que foi expressamente delimitado nos estatutos, não está vinculada à convenção de arbitragem”.Desde já, dir-se-á que, salvo o devido respeito, tendemos a concordar com a decisão recorrida. Vejamos. Conforme o princípio fixado no n.º1 do artigo 38.º da LOSJ (n.º62/2013, de 26.08) a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe. Podem ter lugar, antes, acordos em tal domínio, mas à míngua destes, assiste ao autor total liberdade até ao momento de instauração da ação. Por outro lado, dispõe o art. 96º, do C.P.C. (Código de Processo Civil), que determina a incompetência absoluta do tribunal (b) a preterição de tribunal arbitral. Trata-se de exceção dilatória prevista no art. 577º, al. a), do C.P.C., que é de conhecimento do Tribunal quando suscitada pelas partes art. (cf. art. 578º, do C.P.C.). Assim fez o aqui Recorrente/Réu, aliás a coberto da norma do art. 5º, da L.A.V., onde se estabelece o efeito negativo da convenção da arbitragem e se prevê que “o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.”. Diga-se a este propósito que não discutem as partes a interpretação a dar ao principio da competência da competência, quando é consabido que existem pelo menos três correntes[i] a respeito, das quais tem vindo a ser defendido de forma, cremos, uniforme pelos últimos arestos do STJ[ii] a chamada corrente intermédia e que já no Ac. do STJ de 20/1/2011 ( in dgsi), e ainda que tendo por objecto o artº 21º da LAV à data em vigor [ Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto], se decidiu que “ Vigora, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-kompetenz e que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. Com efeito, o artº 21º nº 1 da Lei de Arbitragem Voluntária consagra expressis verbis que «o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”. Em suma, como se lê no AC do STJ de 10-03-2011 ( relator Lopes do Rego, in dgsi), e com o que concordamos plenamente, ao apreciar a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral, devem “(…) os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insusceptível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada (…).” ( também neste sentido, AC STJ de 8-9-2011, relator João Bernardo, in dgsi). No caso, as partes discutem, desde logo, e apenas a (ina)aplicabilidade da cláusula arbitral ao caso sub judicio. O recorrente argumenta que o entendimento do tribunal a quo não salvaguardou o sentido e intenção do clausulado, pois o litígio é relativo à interpretação e cumprimento dos estatutos do agrupamento de empresas e respeita a factos decorrentes da situação da agrupada ao tempo existente e do qual deriva o seu direito. Ou seja, o recorrente coloca a tónica na circunstância de a cláusula compromissória continuar a vincular o cedente nas relações que, no seu entendimento, mantém com o cedido, apesar da cessão da posição contratual ocorrida em 2020. Para o efeito, argumenta, em suma, que, o que releva é que o alegado direito nasceu ao tempo em que o autor integrava o agrupamento e por causa dessa qualidade. O tribunal a quo e o recorrido entendem que “ a vinculação apenas às partes foi expressamente prevista na convenção de arbitragem acordada nos estatutos, uma vez que ficou a constar que era aplicável apenas aos litígios entre os membros do agrupamento relativos à interpretação, integração, execução ou cumprimento dos estatutos; e a presente acção não se refere a um litígio entre os membros do agrupamento, pois a cedente, ora autora, cedeu a sua participação e é atualmente terceira ao agrupamento, pelo que além de não estar incluída no âmbito subjectivo que foi expressamente delimitado nos estatutos, não está vinculada à convenção de arbitragem”. Ou seja, colocam a tónica na circunstância de com a dinâmica da relação contratual, a autora transmitiu a sua posição contratual e deixou de ser membro do agrupamento, pelo que a cláusula de arbitragem em si mesma não abrange litígios entre ex-membros do ACE e o próprio ACE ( mas apenas entre membros do ACE), e ainda, de acordo com as regras de interpretação, mais concretamente o art.º 238.º, n.º 1, do Código Civil, não se pode considerar incluído. Ora, a questão controvertida no presente recurso prende-se com a interpretação da cláusula – ínsita nos estatutos Agrupamento Complementar de Empresas ( doravante, designado ACE), de que fazia parte a autora à data e que o subscreveu, segundo a qual “ Qualquer litígio ou diferendo entre os membros do agrupamento relativo à interpretação, integração e execução dos presentes estatutos que não seja amigavelmente resolvido no âmbito do conselho de administração ou da assembleia geral, será, em primeira instância, obrigatoriamente objecto de uma tentativa de conciliação a realizar pelos respectivos presidentes dos conselhos de administração dos membros do agrupamento ou quem estes indicarem para o efeito…e levará à apreciação de um Tribunal Arbitral» , cuja constituição e regime de funcionamento traçam de seguida, nos pontos 2 a 4 da cláusula 19, precisamente intitulada de «Arbitragem». Como é sabido, a interpretação da convenção de arbitragem – que, no caso dos autos assume a natureza de cláusula compromissória, por reportada a litígios eventuais e futuros, decorrentes de qualquer litígio ou diferendo entre os membros do agrupamento quanto à interpretação, e execução dos estatutos, estipulando-se a competência exclusiva do juízo arbitral para tais litígios – está submetida às regras de interpretação das declarações negociais, contidas nos arts. 236º a 238º do CC, valendo tal convenção com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa razoavelmente deduzir do comportamento do declarante, devendo a interpretação adotada ter – porque se trata de negócio formal – um mínimo de correspondência no texto do documento que a corporiza. Com efeito, uma vez que no caso sub judice não foram alegados factos respeitantes à vontade real das partes, estar-se-á tão só perante a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos (de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no 236.º/1 do C. Civil), pelo que valerá o sentido que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante). No caso dos autos, os problemas suscitados a propósito da interpretação ou fixação do exato sentido da cláusula compromissória não se prendem propriamente com a equivocidade dos termos ou expressões verbais utilizadas pelos litigantes, mas antes – e decisivamente – com o problema de saber se no caso de cessão da posição contratual ocorrida, a cláusula compromissória ( que indubitavelmente aproveita ao (e vincula o) cessionário nas suas relações com o cedido), ao mesmo tempo continua a aproveitar ao cedente ora autor, nas relações que porventura continue a manter com o cedido ou que ainda se discutem, após a cessão do contrato. Não há dúvidas de que a autora, enquanto membro do réu “agrupamento de empresas” estava vinculada por aquela convenção arbitral em conjunto com os restantes então membros do agrupamento complementar de empresas ( cfr. art. 406º do CC) até à cessação da sua participação no agrupamento, ou seja, até à cessão da sua posição contratual e a respeito das matérias previstas na convenção. Com efeito, a dinâmica da relação jurídica entre a autora e o ACE modificou-se, alterou-se com a cessação da sua posição contratual, quando a autora cedeu a sua participação a outra sociedade, pelo que desde 2020, data de tal cessão, passou a ser terceira em relação ao ACE. Sem embargo, a A fundamenta o seu pedido de condenação da Ré no direito a dividendos que lhe são devidos pela Ré e respeitantes a período em que a Autora era agrupada do ACE, e já devidamente aprovados em assembleia geral. Mas a pergunta que se coloca é a seguinte: ainda estamos no âmbito de um litígio que envolve, à data a que se reporta o crédito litigioso, questões relacionadas com a interpretação e cumprimento dos estatutos do ACE, numa data em que a autora era membro do mesmo? Salvo o devido respeito, não cremos. Relembre-se a noção de convenção arbitral impressivamente dada por Mariana França Gouveia, in “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, a páginas 125 a 126: “A convenção arbitral é o acordo das partes em submeter a arbitragem um litígio actual ou eventual. Tem natureza contratual, na medida em que é um negócio bilateral. É a convenção arbitral que determina a jurisdição do tribunal arbitral, isto é, o tribunal arbitral só tem competência quando o litígio que lhe é submetido está integrado na convenção de arbitragem. Por esta razão, o estudo da convenção arbitral tem na arbitragem um lugar central. É uma espécie de foco de luz que ilumina a área de competência. O que estiver na escuridão, mesmo que relacionado com o litígio inserido na convenção, não pode ser decidido pelo tribunal arbitral. Se houver decisão sobre matéria não incluída na convenção, essa decisão é anulável, por ser proferida por tribunal incompetente (artigo 46º, nº 3, alínea a), iii) LAV” ( sublinhado nosso). “ O objeto da cláusula é, como acentuou Pierre Mayer no estudo anteriormente citado, o de precisar o regime processual dos direitos substantivos emergentes do contrato. Por conseguinte, quer no caso de cessão de crédito ( e de sub-rogação) quer no caso de cessão de posição contratual, a cláusula compromissória aproveita e é oponível aos novos titulares da relação cedida, ao mesmo tempo que continua a aproveitar e a vincular as partes originais de tal relação, na medida em que os direitos substantivos que tal cláusula configurara na sua dimensão processual não tenham deixado de existir entre essas partes”.[iii] Ora, cremos, desde logo, que a matéria da presente ação não está sequer relacionada com os estatutos em causa, qualquer que seja a versão dos mesmos ( já que nos autos encontram-se duas versões dos estatutos), pelo que logo por aqui a cláusula compromissória estatutária não se aplicaria porque a ação foi delineada como de responsabilidade da ré decorrente da distribuição de dividendos no período em que a autora era membro do ACE e conforme aprovação em assembleia geral, e isso não se discute; apenas é controvertido a quem é devido o pagamento de tais dividendos devidamente aprovados e a cláusula respeita exclusivamente aos litígios decorrentes da interpretação, integração, execução e cumprimento dos estatutos. Em suma, os estatutos regulamentam matérias do funcionamento interno do ACE e na presente ação não se discute nenhuma dessas matérias. Ora, como já supra mencionámos, terá que se relevar assim, na interpretação da cláusula compromissória, o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer – cfr. MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 444. No caso concreto, cremos que o direito de ação configurado mediante a inserção da cláusula compromissória nos estatutos do agrupamento de empresas, para um declaratário normal colocado naquela situação, atenta a redação da mesma e restante texto dos estatutos onde se inseriu, apenas poderá ter o sentido de valer nas relações e litígios entre membros do agrupamento de empresas e com respeito àquela dimensão substantiva. Por isso, concordamos com a decisão recorrida quando menciona que é manifesto que o presente litígio não está abrangido pela cláusula compromissória constante dos Estatutos do ACE, porquanto não estamos perante um “litígio ou diferendo entre membros do Agrupamento”, já que é indiscutível que a Autora não é, nem era à data da instauração da presente ação (2024.05.29), membro do Agrupamento, tendo deixado de ser agrupada do ACE em 2020.07.28 (cfr. art.s 14.º a 17.º da petição inicial que aqui se dão por reproduzido). Mais a mais, e conforme é realçado nas contra-alegações, estamos perante um litígio entre o próprio ACE e um ex-membro do Agrupamento, o que manifestamente não está abrangido pelo âmbito de aplicação da cláusula, porquanto a mesma apenas se aplica aos litígios entre membros do Agrupamento. Com efeito, a convenção arbitral em causa não deixa de ser uma cláusula compromissória estatutária, constando do art. 19º dos estatutos do ACE, estatutos esses que são a essência daquele agrupamento de empresas de que já não faz parte a autora, e que respeitam o encontro de vontades dos associados que deu vida à pessoa jurídica do ACE. Reflexo disso, e também conforme realçado nas contra-alegações, é a redação dessa mesma cláusula ao prever que tais litígios devem ser resolvidos, num primeiro momento, no âmbito do conselho de Administração ou Assembleia Geral, e numa fase seguinte pelos Presidentes dos Conselhos de Administração, ou seja, tudo orgãos onde só participam membros do ACE e deles não fazendo parte, como é obvio, a autora. Por tudo o exposto, seja à luz do disposto no art. 236º do CC, seja à luz do disposto no art. 238º do CC, porquanto a cláusula arbitral é um negócio formal, reduzido a escrito, é evidente e manifesto, para qualquer pessoa colocada no lugar das partes quando subscreveram aquela cláusula, atenta a sua redação e lida em conjugação com o restante texto dos estatutos em que se encontra inserida, apenas poderá ter o seguinte sentido: abranger e vincular exclusivamente os membros do agrupamento de empresas com referência aos estatutos daquele agrupamento, enquanto o forem, apenas se aplicando a litígios entre membros do agrupamento. Na verdade, toda a relação jurídica comporta uma dimensão substantiva e uma dimensão processual que normalmente não são separáveis, sendo concebidas como um todo pelas partes. Por isso, aquela dimensão processual apenas se explicava com aquela dimensão substantiva, a qual, no caso em apreço, cessou, pois deixando de ser membro do agrupamento de empresas deixou de existir a componente substantiva que explicava a dimensão processual em causa e a existência da cláusula compromissória estatutária, pelo que a interpretação que o recorrente pretende que prevaleça não colhe. Pelo exposto, a apelação improcede. VI- Decisão: Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente ( cfr.artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil) * Guimarães, 18 de dezembro 2024 Relatora: Anizabel Sousa Pereira Adjuntas: Elizabete Coelho de Moura Alves Margarida Pinto Gomes [i] Ensina MARIANA FRANÇA GOUVEIA que são três as diferentes formas/tipos de abordagem da questão possíveis, maxime doutrinalmente, têm sido defendidas ( cfr. in MARIANA FRANÇA GOUVEIA, in “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, 2011, Almedina, Pág.118) . [ii] Neste sentido e de entre muito outros, vide v.g. os Acs. do STJ de 10/3/2011 [proferido no processo nº 5961/09.1TVLSB.L1.S1, sendo Relator Lopes do Rego ], de 14/5/2019 [ proferido no processo nº 2741/16.1T8PTM.L1.S, sendo Relator António Magalhães] e de 7/3/2023 [proferido no processo nº 3868/20.0T8PRT-A.L1.S1, sendo Relator Nuno Pinto Oliveira], todos eles acessíveis em www.dgsi.pt [iii] António Sampaio Caramelo, in “ A Autonomia da cláusula compromissória e competência”, p. 363,364 |