Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1397/17.9TABFG.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
INQUÉRITO
CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. O teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho contém condições objetivas de punibilidade, na medida em que o facto penalmente ilícito (o não pagamento do tributo) se encontra previsto no n.º 1 do citado preceito legal, funcionado a restante factualidade como pressupostos de natureza burocrática ou até resultantes de simples decurso do tempo, de cuja verificação depende a plena atuação da censura legal.
2. As condições constantes das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, acima citado, são de verificação cumulativa. Assim, cumpre alegar e provar que decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, e que decorreram mais de 30 dias desde a notificação para pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.
3. As condições de instauração de inquérito são condições de procedibilidade, ao passo que o teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho são condições de punibilidade, pelo que nada obsta a que sejam materializadas na pendência do inquérito, sendo apenas imprescindível que isso não possa prejudicar os direitos do notificando, seja no sentido de poder dispor do prazo da alínea a) e exercer as faculdades conferidas pela notificação referida na alínea b), seja no sentido de exercer o seu legítimo direito de defesa.
4. A inconstitucionalidade é de normas e não de decisões, pelo que a decisão só padecerá de inconstitucionalidade, por assim dizer, se aplicar norma jurídica inconstitucional ou interpretada de modo inconstitucional.
Decisão Texto Integral:
I RELATÓRIO

1 No processo n.º 1397/17...., do Juízo Local Criminal de Guimarães – J 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

A. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelo art. 107.º, n.º 1 e 2 do RGIT, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz um montante global de €280,00 (duzentos e oitenta euros);---
B. Condenar o arguido BB pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelo art. 107.º, n.º 1 e 2 do RGIT, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz um montante global de €1.050,00 (mil e cinquenta euros);---
C. Condenar os arguidos em custas, na vertente criminal, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC – art. 513.º, n.º 1 do CPP, e ainda art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais (RCP), e respectiva tabela III em anexo;---
D. Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante, e, consequentemente;---
a. Condenar o demandado BB no pagamento à demandante da quantia global de €5.837,10, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento;---
b. Absolver os arguidos/ demandados do demais peticionado;---


2 Não se tendo conformado com a decisão, o arguido BB interpôs o presente recurso, formulando a seguintes conclusões:

A. A douta Sentença, ora Recorrida, ao considerar que o Recorrente incorreu na prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, atenta a motivação da matéria de facto e a fundamentação de Direito – quanto às condições objetivas de punibilidade, alíneas a) e b), do n.º 4, do art. 105.º do R.G.I.T. – sempre incorreu em manifesto vício em sede de interpretação da matéria de Direito, e consecutivamente, violou as diretrizes que compõem o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social,
B. Pois que, compulsados os presentes autos, ainda que o Tribunal a quo, entenda que, o teor das notificações presentes nas fls. 89-96 e 197-198 concluem o elemento-tipo da norma incriminadora, verificado o concreto e objetivo teor de tais “notificações”, sempre ocorre uma violação interpretativa desses elementos de prova, porquanto, as supraditas “notificações”, em nenhum ponto ou traço identificativo observam os pressupostos cumulativos das condições objetivas de punibilidade – analogamente, decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e a falta de pagamento da prestação no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito –,
C. Uma vez que, tais notificações nunca lograram o seu âmbito de concretização e êxito de informação, pois, atento o teor e conteúdo das mesmas, nunca poderia concluir o Tribunal a quo pela efetivação do conteúdo por parte do destinatário; na medida em que, de forma e modo algum, foi o Recorrente notificado, quer na qualidade de legal representante da sociedade comercial melhor identificada nos presentes autos, quer na qualidade de Arguido, para efeitos de pagamento voluntário, no prazo de 30 dias, do valor em dívida quanto a quotizações retidas e não entregues e respetivos juros de mora que se vençam até integral pagamento,
D. Onde, inexiste quanto às referidas notificações um qualquer recibo de aviso de receção, nota de conhecimento ou aviso de notificação sobre a entrega/notificação do Recorrente para efeitos de pagamento voluntário do valor em dívida à Segurança Social, até porque, verificadas fls. 96. da prova documental, verifica-se “objeto não reclamado pelo Remetente”,
E. Seja, visualizadas e interpretadas as aludidas notificações – nomeadamente, uma “segunda” notificação, quanto à condição objetiva de punibilidade do ilícito-tipo plasmada na alínea b), do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T. –, verificasse uma ausência de identificação quanto aos seguintes elementos: data de expedição/cumprimento da notificação, registo do n.º de identificação civil da pessoa a notificar e assinatura do alegado notificado.
F. Assim, entende o Recorrente que, quanto à execução das condições objetivas de punibilidade que compõe o ilícito de abuso de confiança contra a segurança social, enferma dos autos, um vício de cumprimento de notificação, pois, da conjugação dos elementos de prova documental, inexiste uma qualquer concretização e validade de notificação do Recorrente nesse efeito.

VEJAMOS QUE,
G. A notificação prevista na alínea b), do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T., sempre deve ser pessoal e efetivamente concretizada, bem como, documentalmente comprovada, devendo a mesma concluir-se quanto ao ente coletivo; à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, e também, aos gerentes e administradores, na qualidade de pessoas singulares – vide, douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11-10-2017, proc. 2500/15.9T9CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt - «(…) A notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente coletivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares, ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.» (negrito e sublinhado nossos)
H. Pelo que, a notificação imposta pela alínea b), do n.º 4, do art. 105.º do R.G.I.T., deverá concluir-se quanto a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de Arguido; sucede que, compulsados os presentes autos, observadas as “Notificações para Pagamento Voluntário”, salvo o devido respeito por opinião diversa, na ótica do Recorrente, nunca cumpriu a competente Segurança Social com a concreta e efetiva notificação da sua pessoa, pelo que, sempre se encontram por inobservados, os pressupostos materiais de punibilidade de um tal crime.
I. Ademais, a condição prevista na alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T. surge como uma condição objetiva de punibilidade, pelo que, além de constituir um pressuposto da verificação da condição de punibilidade, igualmente, integra um pressuposto da instauração do procedimento criminal, na medida em que, enquanto a notificação não tiver lugar (seja, não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido), aquele procedimento criminal não deveria iniciar-se,
J. Ora, tendo o procedimento criminal iniciado sem que se mostre realizada a alegada notificação, tamanha omissão, acarreta a falta de condição objetiva de punibilidade; onde, a falta desta condição implica a absolvição do Agente, o que in casu, atento o texto acusatório e a matéria de facto tida como provada, sempre deveria o Recorrente ter sido absolvido do crime que vinha acusado.
K. A este propósito, veja-se o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformização de Jurisprudência, n.º 6/2008, de 15-05-2008, disponível em Diário da República, onde prevê que, – «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respetiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT].»
L. Pelo que, sendo as condições objetivas de punibilidade elementos de norma extrínsecos ao ilícito-tipo, sempre deveria o Agente ser notificado nos termos e para os demais efeitos do referido normativo, porquanto, a notificação conjeturada na alínea b), do n.º 4, do art. 105.º do R.G.I.T. sempre é pessoal e perentória como condição objetiva de punibilidade, devendo uma tal notificação ser verificada e ponderada pelo Tribunal competente em sede de julgamento; sem prejuízo, de um tal formalismo processual poder ser imposto em benefício do Arguido e não ocorrer vício formal ou substancial no caso de o agente renunciar ao cumprimento do ato no processo.
M. Assim, encontramo-nos perante um elemento de punibilidade, onde, só poderá decidir-se por uma eventual condenação, ainda que, preenchidos os elementos subjetivos e objetivos que compõe o ilícito dos arts. 105.º e 107.º ambos do R.G.I.T., caso se tenha verificado o pressuposto de que a lei faz depender a punição, isto é, o não pagamento no prazo de 30 dias concedido para o efeito dos montantes referentes às prestações mencionadas no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T.
N. Ainda, e nesse efeito, ponderada a prova documental dos presentes autos e a prova produzida em audiência de discussão em julgamento, não se verificam de todo o modo, as condições objetivas de punibilidade plasmadas nas alíneas a) e b) do n.º 4 do 105.º do R.G.I.T., pois que, em nenhum momento se efetivou uma concreta, objetiva e pessoal notificação do Recorrente para efeitos da alínea b) do n.º 4, do art. 105.º do R.G.I.T (vide, de igual modo, fls. 263 dos presentes autos), nem tão pouco, foi lavrada nota de incidente em recusa de assinar a efetiva notificação, que sempre repercutia efeitos de notificação pessoal.
O. Assim, atenta a motivação da matéria de facto, bem como a fundamentação de Direito expostas na Sentença que aqui se recorre, salvo o devido respeito, entende o Recorrente que nunca poderia ter sido condenado por um alegado crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, porquanto, verifica-se a inobservância das condições objetivas de punibilidade, mormente a alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T, onde, para que a última condição se verifique é necessário que o Arguido tenha sido regularmente notificado e não tenha, dentro do prazo referido, satisfeito o pagamento devido.

ADEMAIS,
P. O crime de abuso de confiança contra a segurança social consuma-se com a falta de pagamento da prestação em dívida na data do respetivo vencimento, caraterizando-se, como um crime omissivo puro, onde, a falta de pagamento da prestação e demais acréscimos referidos na alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T. – no prazo de 30 dias aí estabelecido –, é circunstância que respeita à categoria da punibilidade, em que para além de constituir um pressuposto da verificação da condição de punibilidade, constitui igualmente uma diretriz para efeitos de instauração do procedimento criminal,
Q. Já que, e conforme supra se expôs, enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, tal procedimento criminal não deverá iniciar-se – vide, douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proc. 1391/11.3TAPTM.E1, datado de 11-05-2021 e disponível em www.dgsi.pt – «Em jeito de síntese: a condição objetiva de punibilidade em questão, e em termos simplificados, traduz-se num elemento constante da norma incriminadora, situado fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a ação antijurídica tenha consequências penais. Tal condição objetiva de punibilidade constitui-se, assim, como uma circunstância que, muito embora se situe fora do tipo de ilícito e da culpa do agente, é absolutamente necessária para a punibilidade do facto (ou seja, é um pressuposto essencial para que o atuar antijurídico do arguido importe consequências penais para o mesmo).»,
R. Ora, prosseguindo o processo os seus ulteriores trâmites, não realizadas as referidas notificações, nomeadamente, a plasmada e imposta pelo art. 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T., a referida omissão, acarreta a falta da condição objetiva de punibilidade, sendo consensualmente entendido na doutrina penal que a falta desta condição resultará naturalmente na absolvição do Agente,
S. O que, in casu, e contrariamente ao disposto nos pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto tida como provada, que sempre se impugna para todos os devidos e legais efeito, nunca poderia o Recorrente ter sido julgado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, pois, não decorre da factualidade provada um qualquer elemento de prova documental ou testemunhal que reverta para os presentes autos a verificação das alíneas a) e b), do n.º 4 do artigo 105.º do R.G.I.T. para efeitos de preenchimento das condições objetivas de punibilidade,
T. Assim, sempre deveria o Tribunal a quo ter concluído pela absolvição do ora Recorrente, por força da inobservância dos pressupostos legais, que compõem o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, sob pena de violação, das normas jurídicas expostas nos artigos 105.º, n.º 4, alíneas a) e b) e 107.º, n.ºs 1 e 2 ambos do R.G.I.T., devendo a Sentença condenatória ser revogada,
U. Pelo que, e, por conseguinte, os pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto tida como provada, sempre devem ser dados como não provados devendo o douto Acórdão em sede de Recurso, reconhecer e declarar como não provado, que o Recorrente foi notificado nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), ou seja, não foi notificado para em prazo de 30 dias, satisfazer o pagamento devido, devendo decidir-se pela inobservância das condições objetivas de punibilidade que compõem o crime de abuso de confiança fiscal, e per fim ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.
V. Ainda, e caso assim não se entenda, o que por mero dever legal de patrocínio sempre se equaciona, desatendendo o Tribunal a quo, quanto às condições objetivas impostas pelas alíneas a) e b), do n.º 4 do art. 105.º do R.G.I.T., salvo o devido respeito por opinião diversa, da decisão final proferida enferma uma nulidade, por violação do princípio da igualdade de armas entre Acusação e Defesa, atento o preceituado no n.º 4, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, deverá a douta Sentença ora recorrida ser revogada, em sede de matéria de direito, por violação das normas jurídicas previstas, nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 105.º do R.G.I.T., quanto à inobservância das condições objetivas de punibilidade que compõem o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social; sem prejuízo, da impugnação da matéria de facto – art. 412.º, n.º 3, al. a) do C. P. Penal – quanto aos pontos 9), 10 e 11) da factualidade provada; ou, caso assim não se entenda, ser a douta Sentença ora recorrida declarada nula, por violação do princípio da igualdade de armas entre Acusação e Defesa – cfr. concetualização de processo justo e equitativo imposto pelo n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.

3 O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo pelo seguinte modo:

I. O recorrente assenta a sua discordância, única e exclusivamente, quanto à apreciação e valoração que o tribunal a quo fez da prova produzida ao dar como provados factos que integram o preenchimento da condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do Regime Geral das Infrações Tributárias.

II. Embora o recorrente argumente, em síntese, que “em nenhum momento se efetivou uma concreta, objetiva e pessoal notificação do Recorrente para efeitos da alínea b) do n.° 4, do art. 105.º do R. G.I. T — veja-se fls. 263 dos presentes autos—, nem tão pouco, foi lavrada nota de incidente em recusa de assinar a efetiva notificação, que sempre repercutia efeitos de notificação pessoal”, a prova documental constante dos autos demonstra cabalmente o oposto (como bem decidiu o tribunal recorrido).

III. O arguido, ora recorrente, foi pessoalmente notificado para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (e com todos os elementos relevantes) em 18/10/2017, quer por si quer na qualidade de gerente e legal representante da sociedade arguida, conforme resulta, inequivocamente, das notificações de fis. 294 e 297 das quais consta a certificação da recusa daquele em as assinar.

IV. O facto de se recusar a assinar as referidas notificações não pode impedir que se considere regularmente notificado já que o alegado desconhecimento do teor integral dessas notificações é somente imputável ao próprio.

V. Pelo exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respetivos fundamentos, de facto e de Direito, e não padece de qualquer vício.

4 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5 Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo sido apresentada resposta.

6 Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


II FUNDAMENTAÇÃO

Objeto do recurso:

A
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos constantes dos pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto tida como provada na decisão recorrida?

B
Devem considerar-se verificados nos autos os requisitos previstos nas alíneas a) e b), do n.º 4, do artigo 105.º do R.G.I.T.?

C
A decisão final proferida enferma uma nulidade, por violação do princípio da igualdade de armas entre Acusação e Defesa, atento o preceituado no n.º 4, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa?

2 Decisão recorrida (excertos relevantes):

I. Factos provados

Resultaram provados os seguintes factos:
Da Acusação
1) A sociedade EMP01..., Lda., pessoa colectiva com o NIPC ...08 e contribuinte da Segurança Social n.º ...56, tinha como objecto social o estudo, fabricação e comércio de radiadores eléctricos para aquecimento central, sendo tal actividade desenvolvida na sua sede sita na ... – ..., Lote ... – 33, em ..., Guimarães;---
2) Desde o início da sua actividade, a sociedade laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, em que estes se obrigavam a prestar, mediante retribuição, a sua actividade àquela, sob autoridade e direcção desta;---
3) Desde a constituição da sociedade e até ../../2013, era o arguido AA que exercia todas as funções de administração e gestão da sociedade EMP01...;---
4) Em 15.07.2013 o arguido AA apresentou, e registou no dia seguinte, renúncia à gerência e saiu da administração da referida sociedade, assumindo o arguido BB, nessa mesma data, sozinho a gestão e administração da sociedade EMP01..., sendo ainda nomeado gerente da referida sociedade, cargo que manteve até ../../2014;---
5) Nos meses de Maio de 2013 a Junho de 2013 o arguido AA entregou na Segurança Social as declarações de remunerações dos membros dos órgãos estatutários e relativos aos trabalhadores subordinados da sociedade EMP01...;---
6) Porém, as correspondentes quotizações retidas quer nos salários dos trabalhadores quer dos membros dos órgãos estatutários não foram entregues à Segurança Social;---
7) Com efeito, AA, em representação e no interesse da sociedade EMP01..., durante o período supra referido, descontou no salário que pagou aos trabalhadores e nas remunerações dos membros dos órgãos estatutários as cotizações devidas por estes à Segurança Social, mas decidiu não efectuar a sua entrega à referida entidade, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias posteriores, nem tão-pouco nos 30 dias posteriores à notificação da Segurança Social para o efeito;---
8) Assim, a EMP01... e o arguido AA deviam ter entregue à Segurança Social os montantes relativos ao período que, respectivamente, se discrimina no quadro de fls. 177 e que se dá aqui por integralmente reproduzido, deduzindo, assim, do valor das remunerações pagas, o montante global de €951,25, quantias que, ao arrepio do legalmente imposto, não entraram nos cofres da Segurança Social, decidindo o arguido integrá-los no património da sociedade.
9) Igualmente nos meses de Julho de 2013 a Maio de 2014 o arguido BB entregou na Segurança Social as declarações de remunerações dos membros dos órgãos estatutários e relativos aos trabalhadores subordinados da sociedade EMP01..., porém, as correspondentes cotizações retidas quer nos salários dos trabalhadores quer dos membros dos órgãos estatutários não foram entregues à Segurança Social;---
10) Com efeito, o arguido BB, em representação e no interesse da sociedade EMP01..., durante o período supra referido, descontou no salário que pagou aos trabalhadores e nas remunerações dos membros dos órgãos estatutários as cotizações devidas por estes à Segurança Social, mas decidiu não efectuar a sua entrega à referida entidade, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias posteriores, nem tão-pouco nos 30 dias posteriores à notificação da Segurança Social para o efeito;---
11) Assim, a sociedade EMP01... e o arguido BB deviam ter entregue à Segurança Social os montantes relativos ao período que, respectivamente, se discrimina no quadro de fls. 177 e que se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo deduzido assim do valor das remunerações pagas o montante global de €5.837,10 quantias que, a arrepio do legalmente imposto, não entraram nos cofres da Segurança Social, decidindo o arguido integrá-las no património da sociedade;---
12) Ao actuar pela forma descrita, o arguido AA, relativamente ao período dos meses de Maio de 2013 a Junho de 2013, e o arguido BB, relativamente ao período dos meses de Julho de 2013 a Maio de 2014, agiram, cada um dos deles, movidos pelo propósito concretizado de se apropriarem, em proveito da sociedade arguida que geriam, as aludidas cotizações deduzidas nos salários dos seus trabalhadores dependentes e das remunerações dos membros dos órgãos estatutários, no montante global de €951,25, no que se refere ao arguido AA e posteriormente, no que respeita ao arguido BB no montante global €5.837,10, conscientes os dois arguidos de que eram meros depositários dessas quantias e de que estavam obrigados a entregá-las aos serviços de segurança social;---
13) Os arguidos agiram sempre livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;---
Do Pedido Cível
14) Encontra-se em dívida o valor de €5.837,10, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, referente às cotizações devidas pelo período compreendido entre Julho de 2013 a Maio de 2014;---

(…)

III. Motivação da matéria de facto

(…)
No mesmo sentido, os pontos 9), 10) e 11) da factualidade provada – estes respeitantes ao período da gerência do arguido BB – também decorreram pacificamente do depoimento de CC, da tabela junta com o documento de fls. 870, e do teor das notificações de fls. 89-96 e 197-98 que lhe foram pessoalmente dirigidas pela Segurança Social para o mesmo efeito. Da conjugação destes elementos de prova, apurou-se que o valor em dívida (e que assim permanece à data de hoje), ascende a €5.837,10, e não a €5.837,09, razão pela qual foi aquele facto julgado como não provado.
(…)

3. Fundamentação de Direito
(…)
São assim elementos do tipo objectivo: i) a apropriação, total ou parcial, da prestação contributiva deduzida pelo agente nos termos legais; e ii) a existência da obrigação legal de a entregar à Segurança Social.
A apropriação consiste na não entrega da prestação devida à Segurança Social com quem se estabelece, nos termos legais, uma relação de confiança. Neste sentido, atente-se que o agente detém o montante, na qualidade de depositário, possuindo-a e detendo-a licitamente, se bem que a título precário e temporário. Com a sua não entrega ao Estado, o agente altera o título da posse ou detenção, passando a dispor da coisa, como se a mesma estivesse sob seu domínio, na sua disponibilidade. Trata-se, pois, de um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida, no tempo devido, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores.
Para além dos elementos típicos, a verificação do crime depende ainda de duas condições de punibilidade: i) o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; e ii) a falta de pagamento da prestação no prazo de 30 dias após notificação para o efeito – art. 105.º, n.º 4 ex vi art. 107.º, n.º 2, ambos do RGIT.
As condições objectivas de punibilidade constituem pressupostos materiais de punibilidade, isto é, são elementos da norma extrínsecos ao tipo de ilícito.
O tipo subjectivo pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14,.º do CP.
Revertendo aos autos, decorre da factualidade provada:
• Que o arguido AA, em representação e no interesse da sociedade EMP01..., nos meses de Maio e Junho de 2013, descontou no salário que pagou aos trabalhadores e nas remunerações dos membros dos órgãos estatutários as cotizações devidas por estes à Segurança Social, mas decidiu não efectuar a sua entrega à referida entidade, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias posteriores, nem tão-pouco nos 30 dias posteriores à notificação da Segurança Social para o efeito (ponto 7);
• Que o arguido AA devia ter entregue à Segurança Social, o montante global de €951,25, quantias que, ao arrepio do legalmente imposto, não entraram nos cofres da Segurança Social, decidindo o arguido integrá-los no património da sociedade (ponto 8);
• Que nos meses de Julho de 2013 a Maio de 2014 o arguido BB, em representação e no interesse da sociedade EMP01..., descontou no salário que pagou aos trabalhadores e nas remunerações dos membros dos órgãos estatutários as cotizações devidas por estes à Segurança Social, mas decidiu não efectuar a sua entrega à referida entidade, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias posteriores, nem tão-pouco nos 30 dias posteriores à notificação da Segurança Social para o efeito (ponto 10);
• O arguido BB devia ter entregue à Segurança Social o montante global de €5.837,10 quantias que, a arrepio do legalmente imposto, não entraram nos cofres da Segurança Social, decidindo o arguido integrá-las no património da sociedade (ponto 11);
Nestes termos, ao não entregarem as quantias devidas à Segurança Social, os arguidos apropriaram-se das mesmas, independentemente do destino que lhes tenham dado. A apropriação, como vimos, nasce da obrigação de entregar e não o fazer no tempo certo. Assim, os arguidos conheciam a obrigação de entregar, ou pelo menos não a poderiam ignorar. Ao não entregarem, fizeram aquelas quantias suas, e assim se apropriaram das mesmas.

(…)

3 O direito.

A
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos constantes dos pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto tida como provada na decisão recorrida?

A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.

Não se vislumbra na decisão qualquer das imperfeições elencadas pelo artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Vejamos, então, o que consta no Código de Processo Penal em relação ao que ora nos ocupa, que é a impugnação do julgamento de facto:

Artigo 412.º

Motivação do recurso e conclusões

(…)

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Assim, se a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados não apresenta dificuldade de maior, bastando indicá-los tout court, sendo certo que a maior parte das decisões têm a factualidade estruturada através de numeração, já as concretas provas dizem respeito ao conteúdo específico das provas, não sendo suficiente a simples indicação de uma testemunha ou perícia, por exemplo, para fundar aquela pretensão.

Observação importantíssima tem que ver com as condições de procedência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Na verdade, o julgamento efetuado em primeira instância beneficia, em pleno, dos princípios da oralidade e imediação da produção de prova, o que, consabidamente, confere aos julgadores melhores possibilidades de apreciar a prova com rigor e clarividência, permitindo um juízo mais aproximado da verdade material e, portanto, uma mais precisa reconstituição desta.

Por isso, a lei estabelece no preceito ora em análise que a argumentação do recorrente deve conter a indicação das provas que impõem uma decisão diversa, bem como, naturalmente, qual é ela. Que impõem, e não apenas que aconselham, permitem, autorizam ou facultam. E tal exigência não deriva, como muitas vezes se afirma, do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127.º do CPP, pois este tanto se aplica ao julgamento do tribunal recorrido como ao julgamento do tribunal de recurso; na verdade, tão livre é um tribunal quanto o outro para apreciar a prova; a diferença entre ambos radica, precisamente, na aludida proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz, ideia que a lei acolhe expressamente, quando opta pelo vocábulo impõe para autorizar uma alteração daquele julgamento primordial – basta pensarmos na diferença entre um julgador numa sala de audiências com várias pessoas olhar diretamente o arguido, a testemunha ou o perito nos olhos, assistir às suas reações, postura corporal, esgares, hesitações ou assertividade, e olhares, assistir ao seu interrogatório ou formular-lhe as perguntas que entender necessárias, no momento que lhe parecer ser pertinente ou adequado, mostrar-lhe documentos ou outras partes do processo, apreciar, no decurso da audiência,  comparativa e simultaneamente as reações isoladas ou recíprocas de uns e outros, enfim, ter perante si este completíssimo e riquíssimo cenário, dir-se-ia teatro até, por um lado, e entre um outro julgador que está durante umas horas, dias ou até mais, fechado no seu gabinete, com uns auscultadores nos ouvidos e de olhos abertos, cerrados ou semicerrados, tentando captar a maior parte que lhe é humanamente possível de toda aquela riqueza de pormenores através da simples audição, para percebermos por que (acertado) motivo a lei tomou a opção acima referida. É, na verdade, esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede.

Assim, e em conclusão, o art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas permite a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.

Os factos cujo assentamento o recorrente impugna são os seguintes:

9) Igualmente nos meses de Julho de 2013 a Maio de 2014 o arguido BB entregou na Segurança Social as declarações de remunerações dos membros dos órgãos estatutários e relativos aos trabalhadores subordinados da sociedade EMP01..., porém, as correspondentes cotizações retidas quer nos salários dos trabalhadores quer dos membros dos órgãos estatutários não foram entregues à Segurança Social;
10) Com efeito, o arguido BB, em representação e no interesse da sociedade EMP01..., durante o período supra referido, descontou no salário que pagou aos trabalhadores e nas remunerações dos membros dos órgãos estatutários as cotizações devidas por estes à Segurança Social, mas decidiu não efectuar a sua entrega à referida entidade, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias posteriores, nem tão-pouco nos 30 dias posteriores à notificação da Segurança Social para o efeito;---
11) Assim, a sociedade EMP01... e o arguido BB deviam ter entregue à Segurança Social os montantes relativos ao período que, respectivamente, se discrimina no quadro de fls. 177 e que se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo deduzido assim do valor das remunerações pagas o montante global de €5.837,10 quantias que, a arrepio do legalmente imposto, não entraram nos cofres da Segurança Social, decidindo o arguido integrá-las no património da sociedade.

Ora, não obstante esta extensa referência factual, parece-nos que o recorrente, verdadeiramente, apenas se insurge contra o assentamento da factualidade integrante das condições objetivas de punibilidade previstas no artigo 105.º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT.

Para tanto, afirma que:

Do teor das notificações presentes nas fls. 89-96 e 197-198 (…) resulta que estas nunca lograram o seu âmbito de concretização e êxito de informação, pois, atento o teor e conteúdo das mesmas, nunca poderia concluir o Tribunal a quo pela efetivação do conteúdo por parte do destinatário; na medida em que, de forma e modo algum, foi o Recorrente notificado, quer na qualidade de legal representante da sociedade comercial melhor identificada nos presentes autos, quer na qualidade de Arguido, para efeitos de pagamento voluntário, no prazo de 30 dias, do valor em dívida quanto a quotizações retidas e não entregues e respetivos juros de mora que se vençam até integral pagamento, (…) pois inexiste quanto às referidas notificações um qualquer recibo de aviso de receção, nota de conhecimento ou aviso de notificação sobre a entrega/notificação do Recorrente para efeitos de pagamento voluntário do valor em dívida à Segurança Social, até porque, verificadas fls. 96. da prova documental, verifica-se “objeto não reclamado pelo Remetente”,

Ou seja, o que o recorrente diz é que as notificações em causa não tiveram sucesso, pelo que não podem fundar o assentamento dos factos em causa.

É verdade que as ditas notificações foram infrutíferas, tal como o recorrente alega.

E também é certo que para dar como provados os factos relativos às mencionadas condições objetivas de punibilidade, o tribunal se socorre delas.

Efetivamente, consta da decisão que:

No mesmo sentido, os pontos 9), 10) e 11) da factualidade provada – estes respeitantes ao período da gerência do arguido BB – também decorreram pacificamente do depoimento de CC, da tabela junta com o documento de fls. 870, e do teor das notificações de fls. 89-96 e 197-98 que lhe foram pessoalmente dirigidas pela Segurança Social para o mesmo efeito. Da conjugação destes elementos de prova, apurou-se que o valor em dívida (e que assim permanece à data de hoje), ascende a €5.837,10, e não a €5.837,09, razão pela qual foi aquele facto julgado como não provado.

Todavia, as notificações em causa constam efetivamente dos autos a fls. 294 e 299 – na primeira, o ora recorrente é notificado pessoalmente pela GNR para proceder ao aludido pagamento em 30 dias; na segunda, é notificado nos mesmos termos, mas como representante de EMP01..., Lda, precisamente para os mesmos fins. É certo que tais certidões não estão assinadas, mas consta delas que tal se deve ao facto de o notificando se recursar a assinar, o que, como bem se refere na resposta ao recurso, só a si e à sua representada é imputável, nenhum engulho isso aportando à validade e eficácia das referidas notificações. Tais notificações tiveram lugar em 18/10/2017, pelo que há muito estava ultrapassado o prazo de 90 dias de que o devedor tributário dispunha para proceder à entrega dos valores que declarou reter, previsto pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea a), do RGIT.

Assim sendo, o que ocorre é um manifesto lapso de escrita na decisão recorrida em relação às folhas do processo em que as aludidas notificações, realizadas de forma válida e eficaz, se encontram, o que se explica, eventualmente, pelo caráter mais burocrático, por assim dizer, desta factualidade, que terá contribuído para a desatenção referida, tendo o tribunal certamente concentrado a sua energia nas questões da tipicidade, culpa e ilicitude ação, que constituem o cerne do julgamento penal. E, note-se, ainda que assim não fosse, atentos os elementos constantes dos autos, agora referidos, nunca a pretensão do recorrente poderia proceder -  poderíamos aceitar que a fundamentação da decisão não é a correta, mas a decisão é-o, atentos os elementos de prova disponíveis no processo, pelo que não faltariam meios processuais par resolver a situação, como é consabido.

Os elementos de punibilidade, sejam condições ou causas, têm de constar da matéria de facto alegada na acusação e provada na decisão para poder ser proferida decisão condenatória, uma vez que, embora não façam parte do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, fazem seguramente parte do tipo de garantia, que abrange, para além do tipo em sentido restrito, ou tipo objetivo, a ilicitude, a culpa e as condições de punibilidade – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, Vol. II, AAFDL, pag. 98 e 329.

Assim sendo, não existe erro de julgamento, mas antes lapso evidente na indicação das folhas do processo em que se encontram os meios de prova documentais que fundam a (correta, recorde-se) decisão.

Assim sendo, o recurso improcede nesta parte.

B
Devem considerar-se verificados nos autos os requisitos previstos nas alíneas a) e b), do n.º 4, do artigo 105.º do R.G.I.T.?

Vejamos o que diz a lei n.º 15/2001, de 05 de Junho em relação ao crime que aqui está em causa:

Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Resulta, portanto, da lei que o tipo de crime em causa nos autos consta do n.º 1 do transcrito preceito legal.
O recorrente não levanta qualquer questão em relação ao preenchimento do tipo objetivo e subjetivo da referida infração penal, pelo que despicienda se torna qualquer exposição a este respeito.

Todavia, consta ainda da lei, como já referimos, um conjunto de circunstâncias de caráter puramente objetivo de cuja verificação depende a punibilidade dos factos descritos.

Tais circunstâncias constam das alíneas a) e b), do n.º 4 da referida norma:

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

“Afirmámos que a verificação de um crime é o pressuposto da responsabilidade penal. E é sempre um pressuposto necessário, embora excecionalmente não seja um pressuposto suficiente.
É que nem sempre ao crime se segue a responsabilidade penal; a aplicabilidade da pena pode, em casos excecionais, ser condicionada por um facto, diverso do crime e que, diferentemente deste, não é fundamento, mas tão-só condição objetiva de punibilidade, isto é, de aplicação da pena.
A noção e natureza das condições objetivas de punibilidade é questão controvertida.
Se o crime é um facto punível, a punibilidade seria elemento essencial do próprio crime; mas deste modo incluir-se-iam na noção de crime, não somente a ilicitude e culpabilidade do facto, mas um terceiro requisito, inteiramente estranho ao facto ilícito e culpável, que não constituiria, como os demais, fundamento da punibilidade, mas somente a condicionaria extrinsecamente.
Excluída a inclusão das condições objetivas de punibilidade nos elementos co crime, a doutrina seguiu diversas vias para explicar a sua natureza jurídica. Uns, a maioria, aceitaram a noção de condições objetivas de punibilidade como uma condição extrínseca ao facto criminoso, de que ficará dependente a aplicação da pena; outros excluem tais condições do direito penal substantivo, e qualificam-nas como condições de procedibilidade, das quais depende somente a instauração da ação penal.
As condições objetivas de punibilidade não são, portanto, elementos constitutivos do crime; são factos diversos, extrínsecos ao facto constitutivo da responsabilidade penal. Não fundamentam a ilicitude – não são, em si mesmas, um facto penalmente ilícito -, e não são objeto de culpabilidade, pois que o objeto de culpabilidade é o facto penalmente ilícito.” – Prof. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, pag. 6/7, Reimpressão da edição de Janeiro de 1989, Almedina 2010.

Ora, atentos estes ensinamentos, não restam dúvidas de que o teor das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho contém condições objetivas de punibilidade, na medida em que o facto penalmente ilícito (o não pagamento do tributo) se encontra previsto  no n.º 1 do citado preceito legal, funcionado a restante factualidade como pressupostos de natureza burocrática ou até resultantes de simples decurso do tempo, de cuja verificação depende a plena atuação da censura legal.

Na verdade, o não pagamento do tributo devido é das mais antigas e severas opções legais de consagração no âmbito da ilicitude penal, não obstante a generalidade das sociedades em que tal foi sucedendo ao longo da história nem sempre ter estado alinhada com esse pensamento legal, nem com a própria tributação cuja infração se penalizava – desde os judeus Zelotas do tempo de Jesus que, sob  o pretexto do, para eles, infame recenseamento ordenado por César Augusto, se insurgiram, na verdade, contra a tributação imposta por Roma, à revolta inglesa do sec. XIII contra o Rei João, que culminou com a Magna Carta de 1215, à Revolução Americana, originada com os novos impostos sobre o chá e de selo cobrados pelos britânicos, que desencadearam a Guerra da Libertação e levaram à Declaração de Independência em 1776, sem esquecer a própria Revolução Francesa, cuja origem profunda também esteve nos elevadíssimos impostos que Luís XVI lançou para sustentar os incomensuráveis gastos da sua casa real, e até à nossa Maria da Fonte, que além da questão da obrigação de sepultamento nos cemitérios se insurgia também ou principalmente contra a reforma fiscal de Costa Cabral, tudo são exemplos (e muitos outros se poderiam adiantar), uns mais intensos, outros menos, do recalcitrante inconformismo das sociedades em face do exercício concreto da odiosa soberania tributária.

“Mas as sanções jurídicas diferem, quanto à intensidade, e até quanto à natureza, segundo as reações de reprovação social provocadas pelas infrações. Nesta, como noutras matérias, não cabe ao legislador estabelecer as regras que lhe parecem preferíveis, ou tecnicamente mais aperfeiçoadas.  Cumpre-lhe, sobretudo, a missão de auscultar as tensões da sociedade e de apurar qual a sanção que institucionalmente deverá corresponder a cada infração. Até porque, conforme juízo já emitido por Pastoret em fins do século XVIII, e que mantém atualidade, os efeitos das penas perdem-se quando elas contrariam a opinião comum de assentimento geral em relação a determinada violação das leis.
Tanto basta para entender a complexidade que envolve a ilicitude fiscal, complexidade já entrevista por Beccaria através das suas considerações acerca do delito de contrabando. Segundo o citado penalista clássico, o contrabando é um delito que ofende gravemente a sociedade; mas, contudo, a sanção respetiva não devia ser infamante, porque a opinião pública não atribui a marca de infâmia a tal delito, pois os delitos que os homens não julgam ofensivos dos seus interesses não suscitam a sua indignação. As considerações de Beccaria sobre o contrabando poderiam estender-se a todo o domínio das infrações fiscais.
A violação generalizada das normas tributárias poria em causa a sobrevivência do Estado, toda a ordem social; donde poderá inferir-se que o bem jurídico ameaçado pela infração fiscal se situa a nível cimeiro; mas importa ponderar também que a reprovação social suscitada pelas infrações fiscais está longe de situar-se a esse mesmo nível.” – cfr. Pedro Soares Martínez, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 1984, pag. 307.

Ora, é precisamente por causa desta tensão permanente e quase universal entre a obrigação fiscal e o seu autor, por um lado, e o seu destinatário, por outro, e do correspondente muito diferente grau de gravidade atribuído à infração daquela por parte do soberano e do súbdito, que a lei prevê aquelas condições objetivas de punibilidade, que, no fundo, constituem como que uma segunda oportunidade que o coletor concede ao devedor para cumprir as suas  odiosas obrigações fiscais sem ser confrontado com a inerente e imediata responsabilidade penal – na verdade, não se vislumbra que, por exemplo, a punibilidade do crime de furto pudesse depender do decurso de um prazo de posse do bem furtado ou de uma notificação para o restituir, até porque será uma das infrações mais universalmente tidas como ilícitas, extremamente grave e merecedora de punição (nalguns casos, até, com penas absolutamente desumanas, como é consabido), não antevendo o legislador qualquer necessidade de temperar aqui a sua intervenção penal com adoçamentos desta ou de outra natureza (existem outras justificações adiantadas para esta opção legal do RGIT, designadamente para a que prevê a citada alínea a), do n.º 4 do art.º 105.º, como as que adianta, por exemplo, Susana Aires de Sousa, in Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra Editora, pag. 136/137).

É certo que há quem entenda que a previsão da alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho constitui uma causa de exclusão da punibilidade por estar dependente da vontade do agente, por estar aliada a uma componente pessoal e não puramente material – isto é, se o agente decidir pagar no prazo legalmente previsto depois de para tal notificado, não pode ocorrer a punição. Todavia, se em parte assim é, não podemos olvidar que a notificação, que também integra a materialidade excludente, não é de natureza pessoal, nem depende da vontade do agente, pelo que mais rigoroso seria atribuir uma natureza mista a esta previsão. E será causa de exclusão da punibilidade se ocorrer o pagamento e condição de punibilidade se ele não ocorrer, com a verificação da parte restante da norma.

De qualquer modo, devemos atender ao AUJ n.º 6/2008, publicado no DR n.º 94/2008, Série I, de 15/05/2008, segundo o qual a exigência prevista na al. b) do n.º 4 do art.º 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na redação introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objetiva de punibilidade (…). Por maioria de razão, assim será em relação à previsão da alínea a) do dito preceito legal.

As condições constantes das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, acima citado, são de verificação cumulativa, como adiante melhor se verá.

Assim, cumpre alegar e provar que:

- decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
- decorreram mais de 30 dias desde a notificação para pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.

Ou seja, é preciso esperar por 90 dias desde o termo do prazo legal de entrega da prestação, e, após isso, notificar o devedor para em 30 dias proceder ao pagamento em dívida, tudo num total de, pelo menos, 120 dias.

Isto remete-nos para a questão acima enunciada: essas condições são de natureza cumulativa?

A primeira delas - alínea a) - consta da versão original do diploma.

A segunda – alínea b) -, como já se disse, foi aditada ao diploma pela Lei n.º 53-A/2006, e tal como, numa tentativa algo enviesada de interpretação autêntica, refere o comunicado do Ministério das Finanças de 07/02/2007, citado no AUJ n.º 6/2008 acima mencionado, “ (…) essa alteração apenas abrange o caso em que a existência da dívida fiscal é participada pelo próprio sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respetivo meio de pagamento.”.

Diz-se ainda em tal comunicado que “só neste caso, e apenas neste caso, é que haverá lugar a uma “despenalização” nas situações sem que o sujeito passivo regularize a dívida em causa no prazo fixado, após uma notificação enviada ao contribuinte para que proceda ´regularização. Neste caso, a lei passa a considerar que existe apenas uma contraordenação para situações que antes eram consideradas crime de abuso de confiança fiscal.”

Assim, o que parecia resultar de tudo isto seria uma opção legal de conceder um prazo extra ao devedor tributário que declarou a sua dívida (a tal notificação adicional de 30 dias) para o discriminar positivamente em relação àquele que nada fez, que pura e simplesmente ocultou a situação. Compreende-se e é razoável esse benefício adicional que é, simultaneamente, um estímulo ao cumprimento da obrigação de declarar a dívida tributária – assim, quem cumprisse esta obrigação, disporia de 30 dias adicionais para se eximir à responsabilidade criminal mediante o pagamento.

Contudo, de modo desconcertante, o dito comunicado diz em seguida que “as alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT referem-se a duas situações diferentes, não devendo, por isso, serem entendidas como cumulativas. Assim, no primeiro caso (alínea a) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT) trata-se de ocultação, que é sempre crime de abuso fiscal. Já na alínea b) trata-se de atraso na entrega do valor declarado. E neste último caso será considerado crime, caso essa entrega não ocorra no prazo constante da notificação enviada ao sujeito passivo.”

Ou seja, segundo uma interpretação literal deste entendimento, o ocultador não pagador do tributo beneficiaria de um maior prazo para poder efetuar o pagamento excludente de responsabilidade criminal do que o cumpridor da obrigação de declaração, mas igualmente não pagador do tributo.

Ora, certamente que não é isto que a lei pretende, por ser totalmente desequilibrado, nem foi certamente isso que o Ministério das Finanças quis dizer, sob pena de se estar a criar um regime que beneficiaria claramente o infrator; o que faz sentido é premiar com um prazo adicional aquele que, pelo menos, admitiu e declarou a sua dívida ao Estado, embora não a tenha pago tempestivamente. Assim, a alínea a) será aplicável a todos, ou seja, àqueles que omitem totalmente a sua obrigação e àqueles que declaram a sua dívida ao Estado, embora a não paguem no momento devido (o da entrega da declaração), sendo certo que a estes últimos a lei ainda concede (cumulativamente), pela alínea b), um prazo adicional de 30 dias, depois de decorridos os 90 iniciais, para proceder ao pagamento excludente de responsabilidade penal, e além disso, impõe aos serviços do Fisco que procedam a uma notificação pessoal  expressa ao contribuinte em dívida para tal fim – note-se que, neste caso, o cuidado da lei é duplo: prazo adicional e notificação pessoal obrigatória para que o início da sua contagem ocorra, o quer dizer que enquanto (ou se) a notificação não for efetuada, ou enquanto (ou se) não for efetuada nos termos legais (pessoal), o incumpridor não pode ser perseguido criminalmente, independentemente do tempo que estiver em causa.

Na verdade, e parece ser isso que o Fisco pretendeu esclarecer no seu comunicado, embora de modo pouco claro, estas alíneas são de aplicação cumulativa quando o devedor tributário cumpriu a sua obrigação de declarar a dívida tributária, e não o são quando o devedor omite completamente as suas obrigações, ocultando totalmente a sua situação tributária, caso em que se aplica apenas a alínea a) -  a tal folga de 90 dias.

A respeito destas questões, o recorrente alega, ainda que de modo algo perfunctório ou incidental, que as referidas notificações não poderiam ter lugar (como tiveram) na pendência do inquérito, querendo com isto dizer, parece-nos, que o decurso dos sucessivos prazos de 90 dias e de 30 dias tem de estar verificado em momento anterior à instauração do procedimento criminal. Ora, as condições de instauração de inquérito são condições de procedibilidade, ao passo que as notificações que aqui se apreciam são condições de punibilidade, pelo que nada obsta a que sejam materializadas na pendência do inquérito, sendo apenas imprescindível que isso não possa prejudicar os direitos do notificando, seja no sentido de poder exercer as faculdades conferidas pela notificação, seja no sentido de exercer os eu legítimo direito de defesa – como é evidente, nenhum destes direitos foi postergado pelo facto de as notificações terem sido efetuadas na pendência do inquérito, já que acusação apenas foi formulada em 30/05/2018, ou seja, mais de sete meses depois das mencionadas notificações.

É verdade que, tal como ensina o Insigne Mestre Prof. Cavaleiro de Ferreira, acima citado, há quem entenda que a factualidade em causa é condição de procedibilidade. Não nos parece que assim seja, e, além disso, nada obsta a que as condições de procedibilidade sejam reunidas in integrum durante a fase de inquérito, ma sempre antes da acusação, e respeitando, naturalmente, os prazos legais existentes para a sua completude. Note-se até, apenas a título de exemplo, que há vozes autorizadas a defender que a lei deve ser alterada no sentido de se conceder à vítima um prazo para apresentação de queixa se na audiência de julgamento se proceder à convolação de um crime público para um crime semipúblico, não tendo aquela sido exercida durante o processo, por se supor que não seria necessária, ou por qualquer outro motivo – André Lamas Leite, A falta de condições de procedibilidade para a ação penal e verdadeiras “decisões surpresa”: interrogações e proposta de iure concedendo, Revista do Ministério Público, n.º 155, Julho/Setembro de 2018.

Ora, atento o que se disse, e o que acima se decidiu em relação à impugnação do julgamento de facto, dúvidas não restam que a presente questão só pode receber resposta positiva, improcedendo, de novo, o recuso.

C
A decisão final proferida enferma uma nulidade, por violação do princípio da igualdade de armas entre Acusação e Defesa, atento o preceituado no n.º 4, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa?

Esta vertente recursiva radica, o que parece, na inconstitucionalidade da decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, não obstante se invocar uma nulidade.
Trata-se de um segmento do recurso que ocupa apenas um parágrafo, quer na motivação, quer nas conclusões – o último, por sinal.

Estamos, portanto, ao que parece, no campo da fiscalização concreta da constitucionalidade, uma vez que o recorrente impetra ao tribunal comum um juízo de inconstitucionalidade numa decisão individual ou, como indicia o título do mecanismo de escrutínio em causa, numa concreta decisão.
E não esqueçamos que o interesse último da invocação da inconstitucionalidade nas decisões (não das decisões) radica no recurso para o Tribunal Constitucional da decisão com essa imperfeição proferida.
A este propósito, dispõe a Lei n.º 28/82, de 15/09 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional):

Artigo 70.º
Decisões de que pode recorrer-se
1 - Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
c) Que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado;
d) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional, com fundamento na sua ilegalidade por violação do Estatuto da Região Autónoma ou de lei geral da República;
e) Que recusem a aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, com fundamento na sua ilegalidade por violação do Estatuto de uma Região Autónoma;
f) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e);
g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional;
h) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pela Comissão Constitucional, nos precisos termos em que seja requerida a sua apreciação ao Tribunal Constitucional;
i) Que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional.
2 - Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
3 - São equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência.
4 - Entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários, nos termos do n.º 2, quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respetivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual.
5 - Não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respetiva lei processual.
6 - Se a decisão admitir recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, a não interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de interpô-lo de ulterior decisão que confirme a primeira.

Ora, por aqui se vê que, neste caso, a inconstitucionalidade é de normas e não de decisões; isto é, a decisão só padecerá de inconstitucionalidade, por assim dizer, se aplicar norma jurídica inconstitucional (ou cuja inconstitucionalidade haja sido invocada) ou interpretada de modo inconstitucional. Todavia, o recorrente não aponta qualquer inconstitucionalidade às normas aplicadas na decisão, nem à sua concreta interpretação, que, aliás, é de incontornável clareza. O que o recorrente diz é que o raciocínio decisório, a concreta decisão, é inconstitucional, o que não é matéria que possa ser apreciada – é o mesmo que dizer que uma pena de prisão de 10 anos num homicídio é inconstitucional por violar o direito constitucional de liberdade, ou que uma pena de multa de 220 dias, correspondendo cada dia a € 10,00, num crime de furto, padece de idêntico vício por violar o direito constitucional de propriedade.

Para formular um juízo de inconstitucionalidade de acordo com os requisitos legais, o recorrente teria de dizer que uma das normas aplicadas na decisão é inconstitucional, ou que interpretada essa norma no sentido que da decisão consta, neste caso concreto, também o é, sempre por assim violar, tal como invocado, o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, o que está bem longe do que o recorrente alega, e que, a ser assim alegado, naturalmente, estaria, obviamente, votado ao fulminante insucesso. Mas haveria, sem embrago, um juízo concreto de inconstitucionalidade para fazer.

Concluindo, o juízo de inconstitucionalidade relevante processualmente é um juízo sobre normas jurídicas ou sobre a sua interpretação no caso concreto, sempre em face das normas constitucionais, mas não um juízo sobre decisões jurisdicionais em face destas – assim, afirmar que uma decisão é inconstitucional é tão redutoramente proclamatório como apodá-la de injusta, não obstante poder transmitir um respeitável estado de alma, mas juridicamente inconsequente.

A Constituição da República Portuguesa, no invocado segmento, tem o seguinte teor:

Artigo 20.º
(Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)
(…)
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
(…).
 
Assim sendo, como é evidente, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade nos autos, nem ela foi validamente invocada.

Mas, ainda que esteja em causa apenas uma nulidade, tal como expressamente se invoca, convém ter presente que, tal como decorre com clareza dos artigos  118.º e seguintes do Código de Processo Penal, as invalidades processuais só assumem a categoria de nulidade quando estão expressamente previstas como tal, sendo umas insanáveis e de conhecimento oficioso, e outras dependentes de arguição; ora, não se nos afigura que exista qualquer das nulidades previstas no artigo 119.º do Código de Processo Penal, sendo certo que também não ocorre nem ocorreu a arguição de qualquer das que se encontram previstas no artigo 120.º do mesmo Código, ou noutra disposição legal. Entendemos ainda que dos autos não resulta qualquer ofensa ao caráter equitativo do processo, nem o recorrente explicita devidamente por que motivo assim entende, limitando-se a qualificar por tal modo, e apenas num parágrafo, a concreta tramitação dos autos, impedindo-nos de compreender integralmente o seu ponto de vista. Um dado é certo: como já dissemos, a realização das notificações relativas às condições objetivas de punibilidade durante o inquérito, em momento prévio à acusação, não constitui qualquer nulidade, nem se vislumbra qual a norma aplicada nos autos que, por si, ou por via da sua interpretação, possa ser considerada como inconstitucional.

O recurso deve, assim, soçobrar ainda nesta sua vertente, e, portanto, improceder na totalidade.

III DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso apresentado por BB, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCs.
Guimarães, 23 de Abril de 2024,

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Paulo Almeida Cunha
Ana Teixeira