Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3106/23.4T8GMR.G2
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ACÇÃO POPULAR
PRINCÍPIO DA ADESÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A ação popular tem como objeto a tutela de interesses difusos, sendo essa a sua razão de ser.
II - A sua natureza, os bens jurídicos protegidos, os titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular, a tramitação processual a que está submetida, bem como os fins que tem em vista, conferem a esta ação uma autonomia não conciliável com a sua tramitação no âmbito de um processo-crime, isto é, a sua sujeição ao princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do Código de Processo Penal.
III - Deste modo, quando na ação popular se pede, para além do mais, o reconhecimento da violação de normas penais e contraordenacionais, a jurisdição cível não é incompetente em razão da matéria.
IV - Apesar de num dos artigos da petição inicial a autora afirmar que "a presente ação [é] movida contra a (…) sucursal [da EMP01... S.A.], com estabelecimento em Rua ..., ... ...", face ao concreto restante teor dessa peça, de que se destaca a menção no seu cabeçalho que a ação é instaurada «contra EMP01..., S.A., (doravante apenas "ré")», e ao processado subsequente, conclui-se que quem a autora efetivamente demanda é esta sociedade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
EMP02... instaurou a presente ação popular, que corre termos no Juízo Central Cível de Guimarães, identificando no cabeçalho da petição inicial como ré a EMP01... S.A..

A autora formulou os seguintes pedidos:
«Nestes termos e nos demais de direito, que Vossa Excelência doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e ser declarado que a ré:
"A. teve o comportamento descrito no §3 supra;
B. violou qualquer uma das seguintes normas:
1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;
2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;
3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;
4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;
5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;
6. do artigo 11, da lei 19/2012;
7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;
8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;
9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;
10. artigo 102, do TFUE;
C. especulou nos preços das embalagens de azeite de ..., marca ..., e cerveja de 21 cl, da marca ... na sua sucursal,
D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de azeite de ..., marca ..., e cerveja de 21 cl, da marca ..., na sua sucursal localizada em Rua ..., ... ..., distrito ...;
E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e
1. doloso; ou, pelo menos,
2. grosseiramente negligente;
F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;
G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhece-lo.
e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:
I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a titulo doloso ou negligente, em montante global:
1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0,01 euros e 0,29 euros por cada embalagem de azeite de ..., marca ..., e cerveja de 21 cl, da marca ..., respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Rua ..., ... ..., distrito ..., durante, pelo menos, entre ../../2023, às 08h00, e ../../2023, às 18h34;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente;
N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que EMP02..., agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.
subsidiariamente, e nos termos do §4 (m):
O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra.
em qualquer caso, deve:
P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou;
requer-se ainda que Vossa Excelência:
Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
X. declare a autora interveniente isenta de custas;
Y. condene a ré em custas."

Alega, em síntese, que:
"A ré dedica-se comercialmente à venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista, de produtos alimentares, nomeadamente na sua sucursal, com estabelecimento na Rua ..., ... ..., distrito ..., in casu, vendendo embalagens de azeite de ..., marca ..., e cerveja de 21 cl, da marca ..., por preço superior ao que consta dos letreiros elaborados por si;
A ré, por intermédio de um letreiro fixado junto das supra aludidas embalagens, preçava-as em 4,46 euros e 1,20 euros respetivamente e por embalagem, mas no momento do seu pagamento, tanto nas caixas eletrónicas de self-checkout, como nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da ré, cobrava 4,47 euros e 1,49 euros respetivamente e por embalagem, ou seja, a ré chegou a cobrar um preço 24,17 % superior ao anunciado por si;
Muitos consumidores, clientes da ré, os aqui autores populares, que não se aperceberam que o preço cobrado no momento do pagamento era superior ao anunciado no letreiro que anunciava o preço e que fundamentou a sua escolha, acabaram por pagar um sobrepreço que chegou a 0,29 euros por cada embalagem."
"No ordenamento jurídico interno, o comportamento da ré é violador do(a):
1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;
2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;
3. o artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;
4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;
5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;
6. do artigo 11, da lei 19/2012;
7. lei 23/2008 - quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração ado direito da concorrência e ao direito de ação popular;
8. dos artigos 473 e 483, do Código Civil ("CC")
O comportamento da ré viola o seguinte direito da União Europeia:
1. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;
2. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;
3. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;
4. diretiva 2014/104/UE – quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração ado direito da concorrência;
5. artigo 102, do Tratado de Funcionamento da União Europeia ("TFUE")."
"A venda de azeite de ..., marca ..., e cerveja de 21 cl, da marca ... por preço superior ao que consta dos letreiros elaborados pela ré, é suscetível de induzir em erro o destinatário(a), consumidor(a) médio(a), consubstanciando tal em:
i. publicidade enganosa;
ii. numa prática restritiva da concorrência; e
iii. em especulação de preços".
A "EMP01..., S.A., Ré nos autos à margem identificados", apresentou contestação onde, para além do mais, suscitou a incompetência do tribunal em razão da matéria afirmando:
"O crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória (artigo 286.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal).
Por outro lado, também é sabido que, quando se verifique concurso de crime e contraordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contraordenação, o processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal (cf. cf. artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
Vigorando no nosso ordenamento o princípio da adesão obrigatória (artigo 71.º do Código de Processo Penal) – mediante o qual se visa, para além das evidentes razões de economia processual, obviar à existência de julgamentos contraditórios, mormente entre a jurisdição civil e a criminal -,
Os pedidos de indemnização formulados pela Autora nesta ação, assentes da alegada prática de um crime de especulação e da contraordenação de publicidade enganosa, teriam de necessariamente ser processados juntamente com a ação penal."
Mais alegou que «a Ré não tem sucursais, pelo que improcede essa qualificação, dada pela Autora, ao supermercado "EMP01..." (referenciado interna e publicamente pela Ré como loja de "... – Av. ...", cf. documento n.º 3 da p.i.), sito na Rua ..., em ...
Foi proferido despacho saneador onde se decidiu que:
"Não obstante a inclusão no segmento do pedido de que a conduta da Ré configura a prática de crimes, decorre da petição inicial que apenas estão em causa questões de natureza cível, o que não permite que se afirme que este Juízo Cível não é competente em razão da matéria para apreciar a presente ação, nos termos dos artigos 117.º, n.º 1 e 130.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Estes segmentos são meros pressupostos para a tutela jurisdicional efetivamente pretendida, visando a Autora com esta ação que a Ré seja condenada a indemnizar os autores populares pelos danos que lhes foram causados.
Por um lado, diretamente pela prática de sobre preço, em montante a determinar nos termos do artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (ou subsidiariamente de forma global, por equidade), acrescido do montante a fixar por equidade mas não inferior a 1 euro por autor popular por danos morais, e respetivos juros de mora legais.
Acresce pedindo ainda a condenação da Ré no pagamento de indemnização a todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global, nos termos do artigo 9.º, n.º 2 da Lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos, acrescida de juros de mora.
Para tanto alega, em síntese, que a Ré cobrou aos consumidores um preço superior ao que anunciava em letreiros com o preço por si elaborado e fixado, em 2 produtos (cerveja de 21 cl, da marca ... e azeite de ..., marca ...) na loja localizada na Rua ..., ... ..., no dia ../../2023, entre as 08h00 e as 18h34.
Esta é, nestes termos, uma ação popular civil reparatória, que revestirá, atendendo à finalidade de tutela pretendida, a forma comum de condenação (cfr. artigo 12.º, n.º 2 da Lei da Ação Popular -LAP-, aprovada pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto).
A competência tem, assim, de ser apreciada, nos termos da lei do processo civil, que determina, em cada caso, o tribunal competente, conforme dispõe o artigo 43.º, n.º 2 da LOSJ.
Neste caso, assistirá razão à Autora, uma vez que está em causa um simples pedido de condenação em indemnização baseada em responsabilidade civil por facto ilícito, localizado especificamente na loja de ... identificada, pelo que se aplica o disposto no artigo 71.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, que estabelece que o foro territorialmente competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.
Pelo exposto, julgo improcedente a exceção invocada e declaro este tribunal competente."
Inconformada com esta decisão, dela a "EMP01..., S.A., Ré nos autos à margem identificados", interpôs recurso findando a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:
1.º. A Autora pede pela presente ação declarativa de condenação que se declare que a Ré cometeu um crime de especulação e as contraordenações de publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, sustentando os pedidos indemnizatórios na violação das disposições legais que preveem aqueles tipos legais de ilícito.
2.º. A interpretação feita pela Mm. ª Juíza a quo de que "[n]ão obstante a inclusão no segmento do pedido de que a conduta da Ré configura a prática de crimes, decorre da petição inicial que apenas estão em causa questões de natureza cível", ignora a dupla dimensão do ato postulativo tal como apresentado pela Autora, que comporta um pedido de declaração e, como consequência deste, os pedidos de condenação da Ré no pagamento de várias indemnizações (cf. artigo 10.º, n.º 3, al. b) do CPC).
3.º. O ato postulativo tem não só uma eficácia vinculante para o tribunal, como também uma função delimitadora da atuação do tribunal, ditando designadamente que o juiz não possa condenar em objeto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade – artigos 3.º, 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC.
4.º. Vale por dizer que, logicamente, não faz sentido, nem é admissível, interpretar restritivamente o petitório da Autora, desmembrando-o do pedido declarativo apresentado pela Autora, tanto mais que a própria Autora formulou os pedidos de condenação como consequência do pedido de declaração de que a Ré cometeu o crime e as contraordenações que identifica.
5.º. Por outro lado, o pedido, como ato postulativo, tem de ser interpretado de acordo com as regras do artigo 236.º do Código Civil e, atendendo ao alegado e pedido pela Autora, é manifesto que esta está precisamente a pedir à la carte ao tribunal que aprecie matéria do foro criminal, mas sem as suas consequências penais, e que, por outro lado, com base nessa mesma matéria, aprecie e julgue os pedidos de condenação em indemnização que deduziu.
6.º. Sendo evidente que não compete ao juízo central cível ajuizar e declarar (mesmo que a declaração seja desacompanhada da correspondente punição) se a Ré cometeu um crime de especulação ou as contraordenações que a Autora lhe imputa, por serem matérias da competência dos juízos criminais, tampouco faz sentido ignorar aquele pedido declarativo e manter o procedimento para apreciação dos pedidos de indemnização que assentam na prática daqueles supostos ilícitos.
7.º. Por conseguinte, impunha-se que o Tribunal declarasse a sua incompetência material para apreciação dos pontos A a H do petitório, com a consequente incompetência para conhecer dos pedidos de condenação que, de acordo com a própria versão da Autora, são consequência daquele (cf. artigo 10.º, n.º 3, al. b) do CPC).
8.º. Assim, ao esgarçar o objeto da ação, desconsiderando o pedido declarativo formulado pela Autora e dispondo-se a conhecer apenas do pedido de condenação, assente naquele, o Tribunal violou os artigos 3.º, 10.º, n.º 3, al. b), 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC.
9.º. O crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória (artigo 286.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal), pelo que é irrelevante que a Autora não tenha pedido a condenação criminal da Ré.
10.º. Por isso, a Autora, patrocinada por mandatário, seguramente sabia que não poderia pedir a condenação criminal da Ré neste foro, bem como que, ao participar nesta ação que a Ré praticou aquele crime, a correspondente matéria por si alegada deve ser necessariamente denunciada, dando lugar ao correspondente inquérito criminal.
11.º. Assim, vigorando no nosso ordenamento o princípio da adesão obrigatória (artigo 71.º do Código de Processo Penal), os pedidos de indemnização formulados pela Autora nesta ação, assentes da alegada prática de um crime de especulação e das contraordenações que identifica, têm de ser necessariamente processados juntamente com a ação penal.
12.º. Sendo o tribunal criminal o materialmente competente para proceder ao julgamento e aos termos subsequentes no processo de crime de especulação (cf. artigos 118.º, n.º 1 a contrario e 130.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), não pode a factualidade atinente aos alegados crimes de especulação e ilícitos contraordenacionais, e os consequentes pedidos de condenação em indemnização, serem apreciados pelo tribunal cível.
13.º. Ao decidir nos termos constantes do despacho saneador recorrido, o Tribunal recorrido terá violado os artigos 3.º, 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC, o artigo 112.º da LOSJ e o artigo 71.º do CPP, impondo-se, por conseguinte, julgar procedente a exceção de incompetência material do Tribunal, com a consequente absolvição da Ré da instância.
14.º. Por outro lado, "Sendo a presente ação movida contra a sua sucursal, com estabelecimento em Rua ..., ... ..., distrito ..." (artigo 20.º da p.i) e não havendo qualquer sucursal da EMP01..., S.A., designadamente naquele local, mas sim um mero estabelecimento comercial, deve concluir-se que a Ré carece de personalidade judiciária, devendo, em consequência, ser absolvida da instância.
15.º. A falta de personalidade judiciária é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, a qual deveria ter sido apreciada pelo Tribunal recorrido, pelo que, não se tendo pronunciado sobre essa matéria, foram violados os artigos 577.º, al. c), 578.º e 595.º, n.º 1, al. a) do CPC, padecendo o despacho saneador da nulidade prevista pelo artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
A autora não contra-alegou.
No despacho de 12-3-2025, que ordenou a subida do recurso, a Meritíssima Juiz deixou dito:
«Para os efeitos previstos no artigo 617.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aqui se mantém o despacho proferida, indeferindo a nulidade arguida, por falta de pronúncia relativo à exceção de falta de personalidade judiciária.
De facto, quer na apreciação da exceção da competência territorial, quer na segunda parte, onde se apreciou as restantes exceções invocadas, em conjunto, por se entenderem estarem todas ligadas à natureza da ação popular, o Tribunal pronunciou-se sobre a delimitação do objeto do processo e localização, sendo que, apesar de no artigo 20.º da PI estar indicado que a ação é intentada contra "a sua sucursal, com estabelecimento em Rua ..., ... ...", a ação foi de facto (reiterado no articulado), intentada contra a EMP01..., S.A. e foi esta que contestou, entendendo-se aquela referência apenas como delimitação da causa de pedir e para evitar a litispendência.»
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "não compete ao juízo central cível ajuizar e declarar (mesmo que a declaração seja desacompanhada da correspondente punição) se a Ré cometeu um crime de especulação ou as contraordenações que a Autora lhe imputa, por serem matérias da competência dos juízos criminais", pelo que "impunha-se que o Tribunal declarasse a sua incompetência material para apreciação dos pontos A a H do petitório, com a consequente incompetência para conhecer dos pedidos de condenação"[1];
b) "não havendo qualquer sucursal da EMP01..., S.A., designadamente naquele local [Rua ..., ...], mas sim um mero estabelecimento comercial, deve concluir-se que a Ré carece de personalidade judiciária, devendo, em consequência, ser absolvida da instância"[2].

II
1.º
Para a decisão das questões sub iudice importa considerar o que acima já foi exposto e ainda que:
- no cabeçalho da petição inicial se diz que a ação é instaurada «contra EMP01..., S.A., (doravante apenas "ré")»;
- a citação foi dirigida à EMP01... S.A. e remetida para a morada "Rua ..., ..., ... ..., ...";
- a procuração junta aos autos a 16-6-2023 foi emitida pela "EMP01..., SA com sede na Rua ..., ..., ...";
- nas peças processuais apresentadas pela EMP01... S.A., designadamente na contestação e no presente recurso, figuram expressões como "EMP01..., S.A., Ré nos autos à margem identificados", "Ré nos autos acima e à margem identificados", "Ré nos autos de ação popular supra identificados" ou "Ré nos autos à margem identificados".
- no artigo 19.º da petição inicial consta «EMP01..., SA., (doravante apenas "ré"), pessoa coletiva ...93 e matriculada com o mesmo número na conservatória do registo comercial ..., tem sede na Rua ..., ..., ..., distrito ....»
- no artigo 20.º da petição inicial a autora alega "sendo a presente ação movida contra a sua sucursal, com estabelecimento em Rua ..., ... ..., distrito ...".
- no artigo 5.º da contestação consta que "a Ré [tem] a sua sede na morada indicada pela Autora na p.i., em ...".
2.º
Quanto à incompetência em razão da matéria do tribunal a quo a ré, reafirmando a posição assumida na contestação, diz:
"Acresce que, como é facto público e notório (porque divulgado no site e nas redes sociais da Autora e pela Comunicação Social), a Autora imputou sistematicamente à Ré a prática de crimes de especulação "e de publicidade enganosa", tendo sido condenada em providência cautelar que determinou a retirada dessas publicações (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 08.02.2024, publicado e acessível nesta ligação).
É sabido que o crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória (artigo 286.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal).
Por outro lado, também é sabido que, quando se verifique concurso de crime e contraordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contraordenação, o processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal (cf. cf. artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
Ora, a consequência juridicamente necessária e obrigatória da participação materializada na p.i. será a denúncia destes para instauração do procedimento criminal, até porque a Autora foi enfática no enquadramento desses mesmos factos como subsumíveis ao tipo legal do crime de especulação e aos ilícitos contraordenacionais indicados (sobre os quais rege o princípio da competência por conexão).
O mesmo é dizer que, não faz sentido nem está na disponibilidade da Autora desaforar a matéria sub judice, sob a capa de não pretender o efeito jurídico que o ordenamento confere à participação em juízo daqueles factos, articulados na sua p.i.
Posto isto, é evidente que não compete ao juízo central cível ajuizar e declarar (mesmo que a declaração seja desacompanhada da correspondente punição) se a Ré cometeu um crime de especulação ou as contraordenações que a Autora lhe imputa, por serem matérias da competência dos juízos criminais."
Vejamos.
A ação popular tem consagração constitucional no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República, onde se dispõe que:
"É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais."
Ora, "o direito de ação popular consagrado no n.º 3 garante a todos, individualmente ou através de entidades jurídicas que prossigam determinados fins, o acesso aos tribunais para defesa de interesses supra-individuais. Superando a garantia de tutela subjetiva prevista no artigo 20.º, n.º 1, o direito de ação popular permite a todos os membros de uma comunidade que atuem como «guardiães» de bens jurídicos em que todos são indistintamente interessados apenas pela circunstância de integrarem a comunidade em causa. Com efeito, o autor popular representa em juízo, por sua iniciativa e com dispensa de mandato ou de autorização expressa, todos os demais titulares de um dado interesse supra-individual."[3] E "o que caracteriza juridicamente os interesses tuteláveis por via da ação popular é o respeitarem, por igual, a todos os membros de um certo grupo e serem insuscetíveis de apropriação individual. Por isso, se dizem difusos: são indivisíveis e irredutivelmente supra-individuais."[4] Na verdade, os interesses difusos não se "reportam a pessoas individual­mente consideradas nem a grupos definidos, na medida em que são enca­beçados por entidades representativas de interesses supra-individuais. Trata-se de interesses concernentes às pessoas, mas não individual­mente determinadas, e, por isso, por elas não apropriados ou subjetiva­dos, como é o caso dos interesses relativos à proteção da saúde, do ambiente, do património cultural e dos consumidores em geral. Ou, noutra perspetiva, em termos objetivos, são os relativos a gru­pos de extensão indeterminada, que se estruturam em termos de supra­-individualidade, pertencentes a todos, mas onde há também o interesse de cada um, pelo facto de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se referem as normas que os tutelam."[5]
Portanto, é claro que a "ação popular tem como objeto a tutela de interesses difusos"[6]. É essa a sua razão de ser, a sua essência, o seu âmago.
A ação popular encontra-se regulada na Lei 83/95, de 31 de agosto, dispondo o n.º 1 do seu artigo 1.º que "a presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos (…) o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição", esclarecendo o n.º 2 do artigo 12.º que "a ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil".
No seu artigo 2.º n.º 1 consagra-se a regra de que "são titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda."
E o n.º 1 do artigo 22.º do mesmo diploma diz-nos que "a responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no artigo 1.º constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados"; ou seja, a ação popular tem em vista proteger "designadamente interesses" relativos à "saúde pública, (…) ambiente, (…) qualidade de vida, (…) proteção do consumo de bens e serviços, (…) património cultural e (…) domínio público".
Aqui chegados, "a verdade é que do disposto no artigo 52.º, n.º 3, da CRP e nos artigos 1.º e 12.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31.08 (direito de ação procedimental e de ação popular) resulta que o exercício da ação popular para alguma das finalidades que lhe estão assinaladas, entre as quais a de obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, é sempre exercido autonomamente, ainda que, como se diz no artigo 25.º da referida lei, a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal.
Nesta medida, é possível dizer que a hipótese a que se dirige o artigo 71.º do CPP (princípio de adesão) é a de um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, enquanto o que está em causa na ação popular (e ainda que o único pedido nela deduzido seja a indemnização baseada na violação dos interesses previstos no n.º 1 da Lei n.º 83/95 que revista natureza penal) é o exercício de um direito de natureza distinta – o direito de ação popular. Este é exercido sempre nos termos daquela lei, correspondendo-lhe uma tramitação própria e, em certa medida, autónoma.
Confirma esta leitura o recente regime das ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores – o DL n.º 114-A/2023, de 5.12 –, onde se regulam as numerosas especificidades que as caracterizam.
Ora, estas ações coletivas são, incontestavelmente, próximas da ação popular, podendo dizer-se que a disciplina delas consubstancia, de certa forma, uma "atualização" da disciplina desta última.
Para isto apontam as palavras de Teixeira de Sousa quando diz:
"A primeira observação que importa fazer respeita ao âmbito sectorial da transposição. Vigorando na ordem jurídica portuguesa uma lei sobre a ação popular – que é a L 83/95, de 31/8 – e destinando-se esta – até por imperativo constitucional (art. 52.º, n.º 3, al. a), CRP) – à defesa, entre outros, dos interesses dos consumidores, poder-se-ia esperar que o legislador nacional tivesse aproveitado a oportunidade para reformular globalmente a L 83/95. A favor desta reformulação global poder-se-ia invocar não só a própria necessidade de atualizar a L 83/95, como também a vantagem de evitar dois regimes para a ação popular: um regime para a defesa dos interesses dos consumidores e outro regime para a defesa de outros interesses difusos".
O que se pretende dizer, enfim, é que a ação popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada."[7]
Deste modo, "a derradeira conclusão a tirar é (…) que a legitimidade popular penal se restringe ao direito da constituição como assistente, não compreendendo o direito de deduzir pedido de indemnização civil e, portanto de intervir, como parte civil, no processo penal nem, muito menos, o dever de dedução injuntiva da pretensão ressarcitória, incidentalmente, no processo penal, por via do pedido de indemnização civil. Por outras palavras: a ação popular, ainda que, no todo ou em parte, de finalidade ou de feição puramente ressarcitória está excluída do principio da adesão ou da interdependência, não dispondo o autor popular do direito nem estando adstrito ao dever de fazer aderir ao processo penal a ação popular civil indemnizatória."[8]
A sua natureza, os bens jurídicos protegidos, os titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular, a tramitação processual a que está submetida[9], bem como a sua finalidade, conferem a esta ação uma autonomia não conciliável com a sua tramitação no âmbito de um processo-crime; isto é, a sua sujeição ao princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, não ocorre a apontada incompetência em razão da matéria.
3.º
A ré sustenta ainda que "não havendo qualquer sucursal da EMP01..., S.A., designadamente naquele local [Rua ..., ...], mas sim um mero estabelecimento comercial, deve concluir-se que a Ré carece de personalidade judiciária, devendo, em consequência, ser absolvida da instância"[10].
Atenta a posição assumida pela Meritíssima Juiz no despacho de 12-3-2025, ficou sanada a nulidade arguida pela ré na conclusão 15.ª.
Como já se deu nota, no cabeçalho da petição inicial a autora identifica como ré a EMP01... S.A., mencionando de modo claro que esta será tratada «doravante apenas [por] "ré"», ideia que repete no artigo 19.º dessa peça processual. Portanto, onde na petição inicial se encontra a expressão "" podemos ler EMP01... S.A.. Também vemos que a autora não pediu que a citação de quem demandou tivesse lugar na "Rua ..., ... ...". E não foi suscitada qualquer questão por se ter citado a EMP01... S.A. nem por essa citação ter tido lugar na Rua ..., ..., ..., morada esta que nos artigos 19.º da petição inicial e 5.º da contestação se diz ser a da sua sede.
Porém, no artigo 20.º a autora também afirma que "a presente ação [é] movida contra a sua sucursal, com estabelecimento em Rua ..., ... ...", gerando com isso a dúvida quanto a saber quem é que aquela realmente demanda.
Dadas as duas referências, no cabeçalho e no artigo 19.º, à EMP01... S.A., a quem "doravante" a autora se refere como "", a citação da EMP01... S.A. na sua sede, a aceitação da regularidade dessa citação, a inexistência de uma sucursal desta na Rua ..., ... ..., a ausência de um pedido da autora para citar a demandada nesta morada e a menção da EMP01... S.A. nas peças processuais que apresenta de que é "Ré nos autos", facto que a autora não questiona, concluímos que é esta sociedade quem na presente lide tem tal posição. E «não há razões para duvidar de que, nas passagens em que se refere também à sucursal, a intenção da autora é de demandar esta enquanto "desdobramento" da sociedade ré, ou seja, da sociedade EMP01..., S.A.»[11].
Assim, falta o pressuposto essencial em que se funda a posição da ré, isto é, não foi demandada a sucursal da Rua ..., ... ..., sendo pacífico que a EMP01... S.A., aqui ré, tem personalidade judiciária.
De qualquer modo, caso se entendesse que a lide tinha sido instaurada contra a (alegada) sucursal, então "o juiz deveria, em observância do princípio da economia processual, da necessidade de evitar a realização de atos inúteis (cfr. artigo 130.º do CPC) e, acima de tudo, do seu dever de gestão processual [cfr., em especial, os artigos 6.º, n.º 2, e 590.º, n.º 2, al. a), do CPC], considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual nos termos legais aplicáveis"[12].
Lembra-se que o artigo 14.º do Código de Processo Civil estabelece que "a falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado".
No nosso caso regista-se que, como já se disse, quem foi citada e quem tem intervindo ao longo do processo é a EMP01... S.A.. Significa isso que, usando a linguagem do citado artigo 14.º, a "administração principal" intervém nesta ação desde o início. Deste modo, na hipótese de a demandada ser a sucursal da Rua ..., ... ..., não haveria necessidade de chamar a "administração principal" nem de ratificar ou repetir qualquer processado.
Portanto, mesmo nesse cenário a lide estaria em condições de prosseguir, não havendo em tal hipótese lugar à absolvição da instância pretendida pela ré.

III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela ré.
Notifique.

António Beça Pereira
Afonso Cabral de Andrade
Paulo Reis


[1] Cfr. conclusões 6.ª e 7.ª.
[2] Cfr. conclusão 14.ª.
[3] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, pág. 1029.
[4] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, pág. 1035.
[5] Salvador da Costa, do Regulamento das Custas Processuais Anotado, 2.ª Edição, pág. 153.
[6] Ac. STJ de 8-9-2016 no Proc. 7617/15.7T8PRT.S1, www.gde.mj.pt.
[7] Ac. STJ de 13-3-2025 no Proc. 5623/23.7T8BRG.S1, www.gde.mj.pt.
[8] Ac. STJ de 8-4-2025 no Proc. 3704/23.6T8BRG.S1. Neste sentido Ac. Rel. Guimarães de 2-4-2025 no Proc. 7267/22.1T8BRG.G3. Nesta direção também parece apontar o Ac. STJ de 26-11-2024 no Proc. 2661/23.3T8GMR.S1, todos em www.gde.mj.pt.
[9] Dos artigos 1.º n.º 1 e 12.º emerge a ideia de que a ação popular, administrativa ou civil, revestindo, respetivamente, "qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos" e "no Código de Processo Civil", não é tramitada e julgada na jurisdição penal.
[10] Cfr. conclusão 14.ª.
[11] Ac. STJ de 13-3-2025 no Proc. 5623/23.7T8BRG.S1. Neste sentido Ac. STJ de 9-4-2025 no Proc. 5193/23.6T8GMR.S1 e Ac. STJ de 8-4-2025 no Proc. 3704/23.6T8BRG.S1, todos em www.gde.mj.pt.
[12] Ac. STJ de 13-3-2025 no Proc. 5623/23.7T8BRG.S1, www.gde.mj.pt.