Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1608/16.8T8VNF.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRAZO DE DECISÃO FINAL – ART.º 244.º
N.º 1 DO CIRE
PRESSUPOSTOS PARA RECUSA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante a que alude o art. 244º, nº 1 do CIRE é proferida depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência.
II - O princípio do contraditório, enunciado em termos gerais no art. 3º, nº 3, do CPC e quanto à exoneração do passivo restante no art. 244º, nº 1, do CIRE, cumpre-se permitindo à parte que se pronuncie sobre a concreta questão a apreciar, não exigindo que o tribunal a informe previamente do sentido em que vai proferir decisão.
III - O prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito. Consequentemente, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do aludido prazo, tal não preclude a possibilidade de a decisão ser proferida nem afeta a sua validade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Por sentença, de 7.3.2016, foi declarada a insolvência de AA, na sequência da sua apresentação à insolvência em que requereu também a exoneração do passivo restante.
*
Em 28.4.2016 teve lugar a assembleia de credores de apreciação do relatório e foi proferido despacho que considerou inexistirem elementos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixou o valor do rendimento disponível a ceder ao fiduciário no montante que exceda 1 salário mínimo, acrescido de € 150 para o filho menor do insolvente, conforme está regulado no acordo de responsabilidades parentais, durante 12 meses por ano.
*
Em 21.4.2017 foi proferido despacho (ref. Citius ...44) que declarou encerrado o processo de insolvência.
*
O Sr. Fiduciário elaborou o relatório anual relativo ao 1º ano de cessão, abrangendo o período de maio de 2017 a abril de 2018 (requerimento de 18.1.2019, ref. Citius ...60) no qual referiu que o insolvente manteve as suas funções de eletricista auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional, tendo concluído que não havia nenhum valor a ceder nesse ano e que o insolvente tinha cumprido os deveres previstos no nº 4 do art. 239º do CIRE.
*
O Sr. Fiduciário elaborou o relatório anual relativo ao 2º ano de cessão, abrangendo o período de maio de 2018 a abril de 2019 (requerimento de 14.7.2020, ref. Citius ...37) no qual referiu que o insolvente manteve as suas funções de eletricista auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional, tendo concluído que não havia nenhum valor a ceder nesse ano e que o insolvente tinha cumprido os deveres previstos no nº 4 do art. 239º do CIRE.
*
O Sr. Fiduciário elaborou o relatório anual relativo ao 3º ano de cessão, abrangendo o período de maio de 2019 a abril de 2020 (requerimento de 12.11.2020, ref. Citius ...34) no qual referiu que o insolvente manteve as suas funções de eletricista auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional, tendo concluído que não havia nenhum valor a ceder nesse ano e que o insolvente tinha cumprido os deveres previstos no nº 4 do art. 239º do CIRE.
*
O Sr. Fiduciário elaborou o relatório anual relativo ao 4º ano de cessão, abrangendo o período de maio de 2020 a abril de 2021[1] (requerimento de 18.11.2021, ref. Citius ...61) no qual referiu que o insolvente manteve as suas funções de eletricista auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional, tendo concluído que não havia nenhum valor a ceder nesse ano e que o insolvente tinha cumprido os deveres previstos no nº 4 do art. 239º do CIRE.
*
Em 30.5.2022, o insolvente apresentou requerimento (ref. Citius ...92) pedindo que que se considerasse findo o período de cessão, face à entrada em vigor da Lei nº 9/2022, de 11.1 e ao disposto no seu art. 10º, em virtude de nessa altura já ter decorrido o período de três anos de cessão.
*
O aludido requerimento foi notificado ao Sr. Fiduciário em 30.5.2023 (ref, Citius ...95) e, em 22.6.2022, foi proferido despacho (ref. Citius ...09) que ordenou o cumprimento do disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE.
*
Esse despacho foi notificado ao insolvente, com data de 23.6.2022, (ref. Citius ...61), na pessoa do seu mandatário Dr. BB, tendo tal notificação o seguinte teor:

Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia, e para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
Findo o prazo referido, o juiz decidirá nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artº 242º-A do CIRE, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (nº 1 do artº 244º do CIRE).
*
Em 29.6.2022 (requerimento ref. Citius ...72) o insolvente pronunciou-se no sentido de lhe dever ser concedida a exoneração do passivo restante invocando ter cumprido todos os deveres que lhe foram impostos durante o período de cessão, conforme consta dos relatórios juntos aos autos.
*
O Sr. Fiduciário elaborou o relatório anual relativo ao 5º ano de cessão, abrangendo o período de maio de 2021 a abril de 2022 (requerimento de 24.2.2023, ref. Citius ...01) no qual referiu que o insolvente manteve as suas funções de eletricista até julho de 2021 auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional.
A partir de agosto de 2021, ficou em situação de desemprego em virtude de o seu contrato de trabalho ter caducado por motivo relativo à entidade empregadora.
O pedido de atribuição de subsídio de desemprego foi indeferido.
Devido à cessação do seu contrato de trabalho, em agosto de 2021 o insolvente recebeu o montante de € 6 834,65 referente a diferentes créditos salariais, pelo que deveria ter entregue o rendimento disponível no valor de € 3 893,40.
Além disso, estando desempregado desde agosto de 2021, o insolvente não enviou ao Fiduciário quaisquer documentos comprovativos de que diligenciou pela procura ativa de emprego.
Houve uma penhora do seu vencimento nos meses de maio e julho de 2021
Perante o descrito, o Sr. Fiduciário entendeu que o insolvente incumpriu os deveres previstos nas als. b) e c) do nº 4 do art. 239º do CIRE e pediu a notificação do devedor a fim de esclarecer:

a) porque razão foi recusado o subsídio de desemprego solicitado à Segurança Social;
b) qual o processo de execução em que foi ordenada a penhora do seu vencimento nos meses de maio e julho de 2021;
c) quais as diligências encetadas em busca de emprego de agosto de 2021 a abril de 2022.
Pediu ainda a notificação do insolvente para depositar o valor em falta de € 3 893,40.
*
Em 3.3.3023, o Banco 1... apresentou requerimento (ref. Citius ...74) pedindo a cessação antecipada da exoneração do passivo restante por o insolvente ter violado as obrigações previstas na al. a) do nº 4 do art. 239º do CIRE.
*
O requerimento do Sr. Fiduciário de 24.2.2023 (ref. Citius ...01) e o requerimento do Banco 1... de 3.3.2023 (ref. Citius ...74) foram ambos notificados ao insolvente, na pessoa do seu mandatário, por notificação efetuada em 3.3.2023 (ref. Citius ...86).
*
Por requerimento de 8.3.2023 (ref. Citius ...97), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o insolvente pronunciou-se de forma concreta sobre o relatório do Sr. Fiduciário e sobre o requerimento do Banco 1..., rebatendo os factos e fundamentos invocados pelo Sr. Fiduciário e explicando os motivos pelos quais, na sua ótica, não ocorre qualquer violação dos deveres a que se encontrava adstrito e não existe motivo para ser recusada a exoneração.
Nesse requerimento invocou, nomeadamente, que quando ficou desempregado teve a expetativa fundada de arranjar um emprego, o que não se veio a concretizar, pelo que, passados dois meses, inscreveu-se no Centro de Emprego. Porém, a sua inscrição bem como a atribuição de subsídio de desemprego foram indeferidas. Por não saber o motivo porque tal sucedeu, deu acesso integral e incondicional ao Sr. Fiduciário à Segurança Social Direta.
Entretanto, no final de 2021, o insolvente teve de prestar auxílio aos seus progenitores devido a problemas de saúde crónicos destes e a uma intervenção cirúrgica a que um deles foi sujeito.
Tentou encontrar um posto de trabalho na zona de ... de maneira a poder estar próximo dos seus pais e lhes prestar o auxílio devido e necessário, mas não conseguiu.
Depois de ter ficado desempregado, o único rendimento que teve foi o valor que recebeu do Fundo de Garantia Salarial.
Esse valor fica aquém do montante anual que foi fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante, pelo que considera que não existe qualquer valor a ceder à fidúcia.
Alegou ainda que sempre transmitiu todas estas informações ao Sr. Fiduciário.
*
Em 30.3.2023 foi proferido despacho (ref. Citius ...45) que determinou ao Sr. Fiduciário que juntasse parecer, nos termos do art. 244º, nº 1, do CIRE.
*
Em 10.5.2023, o Sr. Fiduciário juntou o parecer (requerimento ref. Citius ...15) no qual, no essencial, reproduz o que já constava do requerimento de 24.2.2023 (ref. Citius ...01) e que supra sintetizámos, tendo concluído, relativamente ao 5º ano de cessão, que o devedor violou as obrigações elencadas nas als. b), c) e d) do nº 4 do art. 239º, do CIRE.
*
Em 23.5.2023 foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

Em suma, e como bem refere o Sr. Fiduciário, conclui-se pelo incumprimento das obrigações elencadas nas alíneas b), c) e d) do nº 4 do artigo 239º do CIRE pelo que, não se concede ao devedor AA o privilégio de Exoneração do Passivo Restante.”
*
O insolvente AA não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I- O Tribunal ao proferir uma decisão sem notificar a parte insolvente para se pronunciar, previamente, incorre na prolação de uma decisão surpresa.
II- A cessação antecipada ou indeferimento da exoneração do passivo restante é uma matéria que colide com os direitos fundamentais de qualquer insolvente e que, como tal, merece o cumprimento do devido contraditório.
III- Ao incorrer na prolação de uma decisão surpresa o tribunal incorre, com a sentença proferida, numa nulidade.
IV- Ao ter sido cumprido o prazo de exoneração do passivo restante em Abril de 2022, não pode o tribunal, mais de um ano depois, vir cessar antecipadamente o que já estava cessado por decurso natural do prazo de cinco anos.
V- A exoneração do passivo restante de cinco anos não visa colocar os insolventes ad aeternum vinculados a obrigações, mas, antes, exige um cumprimento escrupuloso, também, destes timings processuais.
VI- O insolvente não pode deixar de demonstrar o seu inconformismo pelo facto de o Sr. Fiduciário ter prolongado o processo por mais de 7 anos após o despacho inoicial da exoneração do passivo restante.
VII- O Tribunal poderia e deveria ter agido em tempo devido e que, no caso, era precisamente em Abril, Maio de 2021, quando perfizeram precisamente os 5 anos do período de cessão.
VIII- Mas mais, apesar da legislação permitir que o período de cessão seja prorrogado, no caso sub judice, não houve nenhuma decisão nem requerimento nesse sentido, por isso a pronúncia, mais de dois anos após o período de cessão ter já sido ultrapassado é manifestamente intempestiva e infundada, dado que os factos que supostamente dão fundamento à revogação da exoneração concedida.
IX- Acrescendo ainda em qualquer caso que, nos presentes autos, sequer existiram delongas ao nível da liquidação do activo que pudessem justificar a dilatação do período de cessão, já que a liquidação terminou poucos meses após o despacho inicial da exoneração do passivo restante, mais concretamente em 21 de Abril de 2017!
X- Mal andou também o Tribunal ao enveredar acriticamente pelas conclusões do relatório apresentado já em 2023, ignorando que já em 23 de Maio de 2022 ( precisamente um ano antes da prolação da sentença recorrida), o Sr. Fiduciário foi notificado para apresentar o relatório final, pese embora a clamorosa extrapolação do prazo do período de cessão em absoluto prejuízo e desfavor do insolvente que se viu verdadeiramente enredado numa teia de atrasos e pedidos de prorrogações sem qualquer justificação legal plausível.
XI- A sentença recorrida é meramente conclusiva não elencando qualquer facto onde se possa subsumir ou retirar qualquer comportamento culposo ( e a sua respectiva modalidade) ou prejuízo para os créditos da insolvência.
XII- Com efeito, de acordo com o referido 243.º, n.º1, alínea a) do CIRE, exige-se que, paralelamente à ocorrência de eventual violação das obrigações que lhe são impostas no artigo 239.º e que a sentença recorrida situa nas alíneas b), c) e d) do n.º4, existe um outro requisito essencial que terá de se dar como verificado e que seria que tais factos causassem prejuízo aos créditos da insolvência.
XIII- Em momento ou lugar algum a sentença recorrida dispõe que os comportamentos do insolvente causam ou seriam passiveis de causar prejuízo aos credores da insolvência e qual se os mesmos teriam ocorrido a titulo culposo e qual o tipo de culpa.
XIV- A sentença recorrida é totalmente omissa a esse respeito, sendo que, não se admitindo que tenham ocorrido tais violações a titulo de dolo ou negligência grosseira, antes existindo motivos legítimos para que o insolvente não trabalhasse na parte final do último período de cessão, resulta claro que ficam por preencher os requisitos da culpa e do prejuízo para os créditos da insolvência.
XV- A sentença sequer toca nesse ponto em particular, o que desde logo torna a decisão ilegal, na medida em que ignora claramente os requisitos basilares para que possa ocorrer o indeferimento da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º2, o qual remete para o disposto no artigo 243.º do CIRE.
XVI- Além de que não existiu qualquer prejuízo para os credores na medida em que no período respeitante ao último ano do período de cessão, o insolvente teria direito como rendimento disponível o equivalente ao SMN acrescido de €150,00 (cento e cinquenta euros) o que actualmente perfaz €855,00 (oitocentos e cinquenta e cinco euros), multiplicado pelos doze meses do ano perfaz €10260,00 (dez mil duzentos e sessenta euros).
XVII- O insolvente recebeu em Agosto de 2021 o valor de €6 834,75 (seis mil oitocentos e trinta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), a que acresce o valor de € 2 443,43, referente aos ordenados que ainda recebeu da entidade patronal, pelo que o valor que o insolvente auferiu nesse período de cessão perfaria o montante de €9278,18 (nove mil duzentos e setenta e oito euros e dezoito cêntimos), e como é bom de ver, abaixo do valor atribuído (€10260,00) ao insolvente por cada 12 meses.
XVIII- Como tal, o insolvente não recebeu qualquer quantia no ultimo período de cessão que tivesse que entregar à fidúcia, situando-se as quantias recebidas nesse período abaixo do valor fixado no despacho inicial da exoneração do passivo restante, e como tal, sem qualquer prejuízo para os créditos da insolvência.
XIX- Em face do exposto, resulta manifestamente claro que o insolvente, aqui recorrente não teve qualquer comportamento culposo, e nem tal é alegado, que pudesse subsumir-se na violação do disposto nos artigos 243.º, n.º1 , alíenas a) e nas alíneas b), c) e d) do nº 4 do artigo 239º do CIRE.
XX- A sentença recorrida violou os artigos 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 17.º do C.I.R.E, artigos 239.º, 243.º e 244.º do C.I.R.E.”

Termina pedindo a revogação da sentença e prolação de decisão que defira a exoneração do passivo restante.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
O tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade invocada nos seguintes termos:
“Entendo não se verificar a nulidade invocada em sede de alegações, porquanto resulta dos autos que o ora recorrente foi, nos termos do disposto no art.º 244 CIRE, notificado para, querendo, se pronunciar.”
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a decisão padece de nulidade por violação do princípio do contraditório;
II - saber quais as consequências da não prolação da decisão final no prazo de 10 dias a que alude o art. 244º, nº1 do CIRE;
III - saber se se verificam, ou não, os pressupostos legais para recusar a exoneração do passivo restante.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados relevantes para a decisão da causa os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

“- No caso em apreço, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante em 29 de Abril de 2016, fixando-se como rendimento disponível o valor que exceda o valor de 1 salário mínimo, acrescido de € 150,00, para o seu filho menor conforme está regulado no acordo de responsabilidades parentais, durante doze meses por ano.
- Decretou-se o encerramento do processo de insolvência, decretado por despacho datado de 21-4-17, iniciou-se o período de cessão do rendimento disponível,
- No 1º Ano Período Cessão (Maio de 2017 a Abril de 2018), o devedor exerceu funções como Eletricista na sociedade “EMP01..., Lda.”, NIPC ..., auferindo um rendimento mensal bruto equivalente ao salário mínimo nacional, cfr. recibos do Anexo A do relatório junto aos autos em 18 de Janeiro de 2019.
- No 2º Ano Período Cessão (Maio de 2018 a Abril de 2019), o devedor continuou a exercer funções como Eletricista na sociedade “EMP01..., Lda.”, auferindo o mesmo rendimento mensal bruto (equivalente ao salário mínimo nacional)
- No 3º Ano Período Cessão (Maio de 2019 a Abril de 2020), manteve-se o mesmo posto de emprego e o mesmo rendimento mensal bruto.
- No 4º Ano Período Cessão (Maio de 2020 a Abril de 2021), a situação manteve-se inalterada.
- No 5º Ano Período Cessão (Maio de 2021 a 11 de Abril de 2022), o devedor manteve as suas funções até Julho de 2021 como Eletricista na sociedade “EMP01..., Lda, sendo que a partir de Agosto de 2021 o devedor ficou em situação de desemprego face à caducidade do contrato por impossibilidade superveniente absoluta e definitiva do empregador, uma vez que foi este declarado insolvente
- Foi indeferido o pedido de subsídio de desemprego formulado pelo devedor à Segurança Social.
- Fruto da cessação do seu contracto de trabalho, em Agosto 2022 o devedor recebeu o montante líquido de Euros 6 834,75 referente a diferentes créditos salariais, conforme declaração do Fundo de Garantia Salarial, pelo que o rendimento disponível do devedor no decurso do quinto ano do período de cessão ascendeu a Euros 3 893,40, conforme quadro que junto no Anexo E com o relatório do Sr. Fiduciário.
- Este valor não foi, até à data, entregue à massa fiduciária, conforme extracto bancário que junto no Anexo F do relatório.
- Desempregado desde Agosto de 2021, apesar de dever o devedor diligenciar pela procura ativa de emprego, em momento algum o devedor remeteu ao fiduciário quaisquer documentos que comprovem o cumprimento desta obrigação.”
*
Para além destes factos há ainda a considerar os factos que se encontram descritos no relatório, os quais resultam da consulta do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório

O recorrente considera que o tribunal a quo proferiu a decisão recorrida sem ter assegurado o contraditório e sem ter dado conhecimento ao recorrente da sua intenção de não concessão da exoneração do passivo restante, não lhe permitindo pronúncia sobre tal matéria, o que, na sua perspetiva, constitui decisão surpresa e determina a sua nulidade.
Com estes fundamentos pede a anulação da decisão recorrida para que o tribunal a quo dê cumprimento ao contraditório.

Como é consabido, a proibição das decisões surpresa é decorrência do princípio do contraditório consagrado no art. 3º, nº 3, do CPC, que estabelece que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O princípio do contraditório, que é o princípio basilar ou estruturante do processo civil, visa permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte por ela afetada possa pronunciar-se sobre a mesma.
O conceito de decisão-surpresa tem vindo a ser densificado na jurisprudência “em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos.
Visa-se, assim, obstar a que as partes se defrontem com uma interpretação judicial que não poderiam antecipar ou com uma tramitação processual que escape ao modelo formal aplicável e não tenha sido submetida a pronúncia.
Em tais casos, o respeito pelo contraditório impõe audição específica das partes, possibilitando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, assim trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, assim influenciando a decisão” (Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, Relatora Ana Azeredo Coelho, in www.dgsi.pt).
Como se refere no Acórdão do STJ, de 17.6.2014, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) ocorreu “um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja” (sublinhado nosso).
E o respeito pelo contraditório não implica que haja que apresentar às partes um projeto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica (Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, supra citado).
Levar a esse ponto o dever de, nos termos do artº 3º, nº 3, CPC, fazer cumprir o contraditório e de prevenir as partes da exacta interpretação normativa a empreender e dos precisos termos da sua consequente aplicação ao caso para sobre a solução, assim na prática previamente revelada, se pronunciarem, seria, por um lado, postergar o princípio da liberdade de julgamento consagrado no artº 5º, nº 3, e, por outro, antecipar uma impugnação que, de acordo com a metodologia adjectiva vigente, só deve ter lugar depois de proferida a decisão e por via do respectivo recurso” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 21.5.2020, Relator José Amaral, in www.dgsi.pt).

No caso, estamos perante uma decisão final proferida no âmbito da exoneração do passivo restante.
Conforme decorre do art. 244º do CIRE, a decisão final de concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor é proferida depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência.
No caso, foi determinado o cumprimento do disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE por despacho proferido em 22.6.2022 (ref. Citius ...09), o qual foi notificado ao insolvente, com data de 23.6.2022, (ref. Citius ...61), na pessoa do seu mandatário Dr. BB, tendo tal notificação o seguinte teor:

Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia, e para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
Findo o prazo referido, o juiz decidirá nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artº 242º-A do CIRE, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (nº 1 do artº 244º do CIRE).

Em 29.6.2022 (requerimento ref. Citius ...72) o insolvente pronunciou-se no sentido de lhe dever ser concedida a exoneração do passivo restante invocando ter cumprido todos os deveres que lhe foram impostos durante o período de cessão, conforme consta dos relatórios juntos aos autos.

Para além da notificação datada de 23.6.2022, o insolvente foi ainda notificado do requerimento do Sr. Fiduciário de 24.2.2023 (ref. Citius ...01) e do requerimento do Banco 1... de 3.3.2023 (ref. Citius ...74).
O requerimento do Sr. Fiduciário, acima sintetizado, contém os factos que, em seu entender, integram violação dos deveres do insolvente e justificam a não concessão da exoneração e o requerimento do Banco 1... pronuncia-se no sentido de não ser concedida a pedida exoneração.

O insolvente pronunciou-se sobre ambos os requerimentos em 8.3.2023 (requerimento ref. Citius ...97) de forma concreta, rebatendo os factos e fundamentos invocados pelo Sr. Fiduciário e explicando os motivos pelos quais, na sua ótica, não ocorre qualquer violação dos deveres a que se encontrava adstrito e não existe motivo para ser recusada a exoneração.
*
Posteriormente, o Sr. Fiduciário, por determinação expressa do Tribunal, apresentou parecer final em 10.5.2023, (requerimento ref. Citius ...15) no qual, no essencial, reproduziu o que já constava do requerimento de 24.2.2023 (ref. Citius ...01) e que supra sintetizámos, tendo concluído que o devedor violou as obrigações elencadas nas als. b), c) e d) do nº 4 do art. 239º, do CIRE.
De seguida, foi proferida a decisão recorrida.
Ora, deste relato de atos conclui-se que o devedor insolvente foi ouvido, como impõe o art. 244º, nº 1, do CIRE, antes de ser proferida a decisão final e pronunciou-se de forma concreta e efetiva sobre os factos e fundamentos invocados pelo Sr. Fiduciário, factos e fundamentos esses que são aqueles em que a decisão recorrida se baseou para recusar a exoneração do passivo.
Como referimos anteriormente, o cumprimento do contraditório não exige que o tribunal informe a parte do sentido em que vai proferir decisão ou que lhe remeta um projeto prévio de decisão, apenas impondo que se permita à parte pronúncia sobre a concreta questão a decidir.
E foi o que no caso concreto sucedeu, como resulta dos atos já relatados, pois o insolvente teve a possibilidade de se pronunciar, e pronunciou-se efetivamente, quer de forma genérica quanto ao pedido de exoneração (o que fez no requerimento de 29.6.2022, ref. Citius ...72), quer de forma concreta sobre o invocado pelo Sr. Fiduciário e pelo Banco 1... (o que fez no requerimento de 8.3.2023 ref. Citius ...97), deste modo tendo sido cabal e integralmente cumprido o contraditório.

Assim sendo, não ocorre no caso concreto qualquer violação do princípio do contraditório geradora de nulidade, pelo que improcede esta questão recursória.
*
II – Consequências da não prolação da decisão final no prazo de 10 dias a que alude o art. 244º, nº1 do CIRE

O recorrente invoca que a decisão final que recusou a exoneração do passivo restante e que é objeto de recurso violou o disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE, visto que não foi proferida no prazo de 10 dias a que alude tal normativo e que o Sr. Fiduciário prolongou o período de cessão por mais de 7 anos.

De acordo com o disposto no art. 239º, nº 2 do CIRE, na versão vigente em 28.4.2016, data em que foi proferido o despacho liminar que admitiu a exoneração do passivo restante, o período de cessão era de cinco anos e iniciava-se com o encerramento do processo.
O despacho que declarou encerrado o processo de insolvência foi proferido em 21.4.2017, o que significa que o período de cessão de 5 anos terminaria em 21.4.2022.

Em 11.4.2022 entrou em vigor a Lei nº 9/2022, de 11.1, que alterou a redação do art. 239º do CIRE e reduziu o período de cessão para três anos, norma esta que é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, conforme estabelecido no art. 10º, nº 1 do aludido diploma legal.
De acordo com o art. 10º, nº 3 da referida Lei, nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data da sua entrada em vigor, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data da sua entrada em vigor, considera-se findo o referido período com a sua entrada em vigor.

Face a esta norma, o período de cessão no caso em análise considera-se findo em 11.4.2022, data em que entrou em vigor a Lei 9/2022, pois nessa altura já se tinha completado o prazo de 3 anos contado desde 21.4.2017, data em que foi proferido o despacho de encerramento do processo.

Por conseguinte, o período de cessão a considerar no caso em apreço decorre de 21.4.2017 e 11.4.2022.

Ora lendo os relatórios apresentados pelo Sr. Fiduciário e que acima se encontram referidos e lendo ainda o parecer final verifica-se que o mesmo teve em conta precisamente o período de 21.4.2017 a 11.4.2022.

Por conseguinte, ao contrário do defendido pelo recorrente, não houve nenhuma prorrogação ilegal do período de cessão.

De acordo com o disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE, não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.

Tendo em conta que o período de cessão terminou em 11.4.2022 e que o despacho final sobre o pedido de exoneração foi proferido em 23.5.2023 é manifesto que não foi respeitado o prazo de 10 dias constante do art. 244º, nº 1, do CIRE.

Não obstante, tal prazo é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito.

Por isso, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE, isso nem preclude a possibilidade de a decisão final ser proferida nem afeta a sua validade.

Improcede assim esta questão recursória.
*
III – Análise da verificação dos pressupostos legais para recusa da exoneração do passivo restante

O recorrente considera que não se verificam os pressupostos legais para que seja recusada a exoneração do passivo alegando que não violou os deveres constantes das als. b), c) e d) do nº 4 do art. 239º do CIRE além de que, mesmo a admitir-se qualquer violação, não existem quaisquer factos provados que permitam concluir que a mesma foi culposa e que causou prejuízo aos credores.

Vejamos se lhe assiste razão.

A exoneração do passivo restante, que se encontra prevista nos arts. 235º a 248º-A, do CIRE, é uma figura que tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência de recomeçar vida nova no fim do período de 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo (cf. Acórdãos do STJ de 21/10/2010 e 19/04/2012, in www.dgsi.pt).
Conforme se afirma relativamente à figura jurídica da exoneração do passivo restante no nº 45 do preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. (...)
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. (...)
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”

A exoneração do passivo restante inspira-se, pois, no chamado modelo de fresh start amplamente difundido no ... e acolhido no código da insolvência alemão visando permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.
Subjacente a este instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.1.2016, Relatora Maria Cristina Cerdeira, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Catarina Serra, (in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103) trata-se de um instituto “tributário da ideia de fresh start”, sendo o seu objectivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica”.

A concessão da exoneração passa por dois momentos fundamentais caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que, durante os 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário destinando-se ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, ao reembolso ao IGFEJ das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por fim, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 239º e 241º do CIRE.
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração podendo a mesma ser recusada com base nos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos que poderiam ter levado à cessação antecipada e que se encontram previstos no art. 243º, para o qual remete o art. 244º, nº 2, ambos do CIRE.

Caso a exoneração seja concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não ficando abrangidos pela extinção unicamente os créditos elencados no art. 245º, nº 2, do CIRE.

Dadas as consequência da concessão da exoneração, e como assertivamente se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 5.3.2020, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt)porque o instituto em causa pressupõe uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e a concordância prática entre eles, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor insolvente e, bem assim os dos seus credores (estes, a título secundário), é indiscutível que o instituto da exoneração não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”, pelo que o perdão das dívidas não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material e se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.
Por isso, prossegue aquele Acórdão dizendo que o devedor “terá de passar por uma espécie de período de prova (período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes, isto é, que permanecem por pagar uma vez feita a liquidação da massa insolvente, e durante o qual o insolvente ficará sujeito a um conjunto de obrigações. Apenas findo esse período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício.
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor que se assiste no instituto da exoneração, a filosofia e a ratio que lhe está subjacente e porque a exoneração é rigorosamente uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente às causas de extinção das obrigações previstas no CC (arts. 837º a 874º do CC), para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º do CIRE), o devedor singular justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”.
Do expendido decorre que o despacho inicial de deferimento liminar do incidente de exoneração nada garante quanto ao desfecho do procedimento pois “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de cinco anos” (atualmente três anos) “observar certo comportamento que lhe é imposto” (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pág. 853.)
Durante o período de cessão, que vigora nos três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o devedor fica sujeito a uma espécie de “regime de prova” no qual lhe é imposto um muito exigente conjunto de deveres que tem de cumprir como condição demonstrativa de que é merecedor da pretendida segunda oportunidade.
Nesse conjunto de deveres integra-se uma obrigação ou dever principal que consiste na cessão ao fiduciário do rendimento disponível (art. 239º, nºs 2 e 3, do CIRE) e um elenco de deveres acessórios estabelecido no nº 4, do art. 239º, do CIRE, segundo o qual o devedor fica obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

Assunção Cristas (in artigo publicado na Revista Themis (edição especial 2005 “Novo Direito da Insolvência”, F.D.U.N.L, pág.167) agrupa estas obrigações em três áreas: obrigações destinadas a garantir a transparência da situação patrimonial e pessoal do insolvente; obrigações destinadas a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa satisfazer os credores e obrigações que se destinam a atestar a probidade e lisura de comportamento do próprio devedor.

Os motivos que podem levar à recusa da exoneração do passivo restante coincidem com os motivos que podem levar à cessação antecipada do procedimento de exoneração, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 243º e 244º, do CIRE.
Da leitura conjugada dos aludidos normativos decorre que o juiz deve recusar a exoneração, quando:
a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência;
d) o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-la.

A decisão recorrida recusou a exoneração do passivo restante com base no incumprimento das obrigações elencadas nas als. b), c) e d) do nº 4 do art. 239º, do CIRE.

Da leitura da decisão recorrida, que é decalcada do parecer final apresentado pelo Sr. Fiduciário, conclui-se que a mesma considerou violada a al. c) por o insolvente, em agosto de 2021, ter recebido uma indemnização do Fundo de Garantia Salarial, devendo ter entregue a quantia de € 3 893,40 visto a mesma corresponder ao valor do rendimento disponível.

Analisando e interpretando o quadro junto no parecer final relativo ao 5º ano de cessão verifica-se que aí consta que em agosto de 2021 o insolvente recebeu a quantia global de € 4 708,40, sendo € 4 156,20 de indemnização do FGS, pelo que, sendo o valor do rendimento indisponível de € 815 (1 SMN+€ 150), o valor a ceder seria de € 3 983,40.
Nos restantes meses do 5º ano de cessão, atentos os valores auferidos, o Sr. Fiduciário considerou não existir nenhum valor a ceder.

Importa analisar se se mostra ou não correta a conclusão alcançada pelo Sr. Fiduciário quanto ao valor do rendimento disponível, a qual obteve total acolhimento na sentença recorrida que reproduziu a nível factual o que mais não é do que uma conclusão.

Como regra, propendemos para o entendimento de que o valor disponível que é objeto de cessão é calculado por referência a cada mês em concreto, e não por referência ao valor anual ou a valores médios mensais.
Com base neste entendimento, o raciocínio do Sr. Fiduciário mostrar-se-ia correto pois o insolvente em agosto de 2021 teria de entregar o valor que excedesse € 815, correspondente ao valor indisponível, e, tendo recebido € 4 708,40 teria a entregar a diferença, ou seja, € 3 983,40 (€ 4 708,40 - € 815 = € 3 983,40).
Porém, no recebimento daquele valor inclui-se uma indemnização paga pelo Fundo de Garantia Salarial ao insolvente na sequência da cessação do seu contrato de trabalho decorrente da insolvência da sua entidade empregadora.
E, como resulta do documento emitido pelo FGS e junto no Anexo C do relatório relativo ao 5º ano de cessão, esse montante refere-se a indemnização pela cessação do contrato de trabalho.
Esta indemnização visa compensar o trabalhador pelo facto de o seu contrato de trabalho ter cessado, com a inerente perda da sua fonte de rendimentos, e visa permitir a sua subsistência nos meses subsequentes até que consiga obter novo emprego que lhe permita voltar a angariar rendimentos.
É com base no valor da indemnização recebida que o trabalhador terá de subsistir nos meses subsequentes até que encontre nova fonte de rendimentos.
Foi exatamente o que sucedeu no caso concreto pois o insolvente, após o pagamento da indemnização, em agosto de 2021, apenas recebeu a quantia de € 67,83 nos meses de setembro a dezembro de 2021, no total de 271,32 (€ 67,83 x 4), nada tendo auferido nos meses de janeiro a março de 2022.
Assim, dada a específica natureza e finalidade da indemnização por cessação do contrato de trabalho, entende-se que, para efeitos de calcular o valor do rendimento disponível do insolvente, tem que se ter em conta a média mensal dos rendimentos auferidos no período de agosto de 2021 a março de 2022, e não o concreto valor recebido em agosto de 2021, mês em que foi paga a indemnização.

Do quadro junto no parecer resulta que no período de 8 meses, que decorreu de agosto de 2021 a março de 2022, o insolvente recebeu a quantia global de € 4 979,72 (€ 4 708,40 + € 67,83 x 4), o que equivale a uma média mensal de € 622,47 (€ 4 979,72 :8).

Tal valor é inferior ao valor do rendimento indisponível o qual corresponde à quantia mensal de € 815 nos meses de agosto a dezembro de 2021 e à quantia mensal de € 855 nos meses de janeiro a março de 2022.
Por conseguinte, entende-se que não existe qualquer valor disponível objeto de cessão que tivesse de ser entregue à fidúcia, não tendo o insolvente violado a obrigação imposta pelo art. 239º, nº 4, al. c).
*
A sentença recorrida considerou ainda que o insolvente incumpriu as obrigações elencadas nas alíneas b) e d) do nº 4 do art. 239º, do CIRE.

Dessas alíneas decorrem para o insolvente as obrigações de:

b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

Percorrendo a factualidade considerada relevante na decisão recorrida conclui-se que a única que pode relevar para a violação destas obrigações é a seguinte:
 “Desempregado desde Agosto de 2021, apesar de dever o devedor diligenciar pela procura ativa de emprego, em momento algum o devedor remeteu ao fiduciário quaisquer documentos que comprovem o cumprimento desta obrigação.”

Ora esta factualidade não integra a violação das obrigações das alíneas b) e d).
Não se enquadra na al. b) porque o devedor não abandonou a sua profissão, visto que, à luz da factualidade provada, o seu contrato de trabalho cessou por caducidade em virtude da declaração de insolvência da sua entidade empregadora.
Não se provou que tenha recusado algum emprego e também não se provou que não tenha procurado diligentemente profissão.
E não integra a al. d) porque o insolvente não está obrigado a espontaneamente remeter ao fiduciário quaisquer documentos que comprovem o cumprimento da obrigação de diligenciar pela procura ativa de emprego. A referida alínea apenas lhe impõe a obrigação de, no prazo de 10 dias após tal lhe ter sido solicitado, informar sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego.
Ora, não está provado que o tribunal ou o Sr. Fiduciário tenham solicitado ao insolvente informação sobre diligências pelo mesmo realizadas com vista à obtenção de emprego e que este não as tenha prestado.
Por isso, estando apenas provado que o devedor não remeteu ao fiduciário quaisquer documentos que comprovem o cumprimento da obrigação de diligenciar pela procura ativa de emprego, tal comportamento não viola a obrigação imposta pela al. d) pois esta alínea pressupõe um prévio pedido de informação dirigido ao insolvente, pelo tribunal ou pelo fiduciário, sendo certo que o pedido de informação não tem necessariamente que ser cumprido por meio de envio de documentos, que até podem não existir, podendo as informações sobre as diligências efetuadas ser prestadas por outros meios.
Para além de não constar da matéria de facto provada que tenha sido efetuado pedido prévio para que o insolvente informasse sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego, verifica-se ainda que quando o Sr. Fiduciário apresentou o requerimento de 24.2.2023, no qual requeria a notificação do insolvente para esclarecer quais as diligências encetadas em busca de emprego desde agosto de 2021 até abril de 2022, o insolvente respondeu, conforme requerimento de 8.3.2023, no qual explicou, nos termos que já supra referimos, a expectativa de encontrar emprego mantida nos dois meses seguintes ao termo do seu contrato de trabalho, a subsequente inscrição infrutífera no Centro de Emprego, a posterior necessidade de dar apoio aos seus progenitores por razões de saúde destes, a impossibilidade de encontrar emprego na zona de ... que permitisse prestar o necessário apoio aos seus progenitores.

Por conseguinte, a factualidade dada como provada na sentença recorrida não permite concluir que o devedor violou as obrigações impostas pelo art. 239º, nº 4, als. b) e d).

Não havendo violação das obrigações fica prejudicada a análise dos demais requisitos do art. 243º, nº 1, al. a), do CIRE, aplicável por via da remissão do art. 244º, nº 2, nomeadamente da violação ter sido praticada com dolo ou grave negligência prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
 
Do exposto se conclui que não se verificam os requisitos para a recusa da exoneração do passivo, pelo que o recurso procede e a decisão recorrida tem que ser revogada e substituída por outra que conceda ao insolvente a exoneração do passivo restante.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, aplicável ex vi art. 17º., nº 1, do CIRE, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente é o recorrido Banco 1... responsável pelo pagamento das custas porquanto, embora não tenha apresentado contra-alegações, pediu a recusa da exoneração do passivo restante sendo de considerar parte vencida em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e concedem ao insolvente AA a exoneração do passivo restante (com exclusão de créditos que se incluam nas categorias referidas no art. 245º, nº 2 do CIRE).
Custas da apelação pelo Banco 1....
Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante a que alude o art. 244º, nº 1 do CIRE é proferida depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência.
II - O princípio do contraditório, enunciado em termos gerais no art. 3º, nº 3, do CPC e quanto à exoneração do passivo restante no art. 244º, nº 1, do CIRE, cumpre-se permitindo à parte que se pronuncie sobre a concreta questão a apreciar, não exigindo que o tribunal a informe previamente do sentido em que vai proferir decisão.
III - O prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito. Consequentemente, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do aludido prazo, tal não preclude a possibilidade de a decisão ser proferida nem afeta a sua validade.
*
Guimarães, 26 de outubro de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Maria Gorete Morais
(2º Adjunto) Gonçalo Oliveira Magalhães


[1] Embora no requerimento se faça menção ao período de maio de 2019 a abril de 2020 tal decorre de lapso de escrita, o qual se corrigiu no texto, pois maio de 2019 a abril de 2020 integrou o 3º ano de cessão sendo que o 4º ano de cessão abrange o período de maio de 2020 a abril de 2021 e os recibos de vencimento que foram juntos no anexo A bem como o quadro que contém os valores auferidos e que consta do anexo B respeitam precisamente a esse período temporal.