Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
172/22.3T8PTB.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SERVIDÃO DE VISTAS
USUCAPIÃO
JANELAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O preceituado no art. 640º do CPC em conjugação com o que se dispõe no art. 662º do mesmo diploma legal permite ao Tribunal da Relação julgar a matéria de facto.
II – O conceito de janela é obtido pela negativa (por defeito) - será janela toda a abertura que não possa ser qualificada de fresta, seteira ou óculo de luz -, não podendo as aberturas cujas dimensões sejam superiores a 15 centímetros, quer na sua altura, quer na sua largura, configurar frestas, seteiras ou óculos de luz.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1 RELATÓRIO

Vieram AA, a título pessoal, e Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de BB, representada pelo A. como seu cabeça-de-casal, intentar acção[1] declarativa comum de condenação contra Herança Ilíquida e Indivisa de CC, representada pelos seus herdeiros, peticionando a condenação desta no reconhecimento do A. como usufrutuário do prédio melhor descrito no art. 1º da p.i. e da A. como proprietária de tal prédio, bem como na declaração de constituição de servidão de vistas, com a consequente obrigação de destapar as referidas aberturas, respeitar tal servidão de vistas e demolir a obra executada no logradouro do prédio da R.
Ademais, os AA. peticionam a condenação da R. numa indemnização de € 5.000,00 a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais sofridos e a indemnização que se vier a fixar em incidente de liquidação de sentença pelos danos patrimoniais sofridos.
Para tanto alegaram, sinteticamente, que o A. é usufrutuário e a A. proprietária do prédio melhor descrito no art. 1º da p.i., o qual sofreu alterações ao longo dos anos.
Continuam os AA. alegando que, a 28-08-2008, foram executadas obras no logradouro do prédio vizinho, que integra a herança aqui R., tendo sido construído um telheiro cujos barrotes de madeira e viga foram encastrados na parede de granito, empena lateral do prédio referido no art. 1º da p.i.
Na referida empena, alegam os AA. que existem duas aberturas, com 38 cm de largura, 85 cm de altura e caixilhos de alumínio, com grades de granito com 10 cm, que permitem a entrada de luz e ar, e que já existiam na data de compra da habitação – 17-08-1976.
Em Outubro de 2021, tais aberturas foram tapadas com canoas pertencentes ao herdeiro DD, o que não permite a passagem de luz e de ar, tendo tal provocado danos morais ao A. e, ainda, danos patrimoniais, provocando o aparecimento de humidade por falta de arejamento.
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Regularmente citados, a R. contestou a acção, defendendo que a p.i. padecia de ineptidão, uma vez que existia total falta de alegação de factos quanto à qualidade do A. de usufrutuário do prédio em causa, da qualidade de proprietária da herança representada pelo A. do mesmo prédio e da qualidade de cabeça-de-casal do A.
Subsidiariamente, em defesa por impugnação, veio a R. alegar que a composição do logradouro do seu prédio era diferente daquela alegada pelos AA., antes das obras de 2008, e que a parede onde existem as aberturas em causa foi construída pelos antepossuidores dos RR. e que somente depois foi usado para a construção da edificação a poente, sendo, pois, uma parede comum.
Ademais, a R. defende que as aberturas em causa não têm as características alegadas pelos AA., sendo apenas gateiras, podendo ser tapadas.
Por fim, a R. impugna os danos morais e patrimoniais alegados pelos AA.
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Foram admitidos a intervir na acção, como representantes da A. Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de BB, os seus restantes herdeiros, por forma a sanar a falta de legitimidade do cabeça-de-casal para, sozinho, interpor a acção.
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Os AA. foram convidados a especificar os danos patrimoniais sofridos e o porquê de não os conseguirem liquidar nesta altura.
Em resposta, os AA. alegaram que o A. teve de ser sujeito a operação ao coração no dia 11-06-2022, seguido de largo período de convalescença, e que é necessário limpar e pintar as paredes dos dois cómodos que ficaram sem luz e arejamento, o que tem o custo de € 970,00, acrescido de IVA.
A R. impugnou os novos factos alegados e o documento junto.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu pela improcedência da excepção alegada pela R.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em duas sessões, com observância de todo o legal formalismo como das respetivas actas se infere.
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No final, foi proferida sentença, que decidiu nos seguintes termos:
Nestes termos, de acordo com o exposto e segundo os preceitos legais supra citados, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
A) Condenar a Ré a reconhecer que os Autores são legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...95, registado com o n.º ...60, com a composição descrita nos pontos 1), 5) e 6);
B) Condenar a Ré a reconhecer que o Autor é usufrutuário do prédio referido no ponto anterior;
C) Condenar a Ré a reconhecer que sobre o seu prédio foi constituída, por usucapião, uma servidão de vistas, referente às aberturas descritas no ponto 21) a 24), em benefício do prédio descrito no ponto 1);
D) Condenar a Ré a respeitar tal servidão de vistas, abstendo-se de praticar qualquer acto que perturbe o seu exercício, nomeadamente, a entrada de ar e de luz;
E) Condenar a Ré a afastar o telheiro referido no ponto 16) um metro e meio da abertura referida no ponto 23), em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e de luz por tal abertura;
F) Absolver a Ré do restante peticionado;
G) Custas pelas partes consoante o seu decaimento, que se contabiliza em 15,01 % para os Autores e 84,93 % para a Ré.
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Registe e Notifique.
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Inconformados com essa sentença, apresentaram os RR. CC, por si e na qualidade de cabeça de casal da Herança Ilíquida e Indivisa de CC, recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou, com a apresentação das seguintes conclusões:

Sem prejuízo de não se mostrar cumprido o douto despacho que determinou, no decurso da audiência de julgamento a junção aos autos do original do documento n.º ... junto com a petição, e embora esse documento seja de difícil leitura, é ainda assim possível concluir que o mesmo, no que respeita aos limites do prédio do autor foi elaborado “de acordo com os limites indicados pelo proprietário”, pelo que, tendo sido impugnado (artigo 9.º da contestação) por se “desconhecer se o mesmo representa, pelo menos com rigor, o prédio” dos réus, e tendo-se o autor do documento, em audiência de julgamento, conforme adiante será comprovado, limitado a confirmar o que dele constava, isso é o bastante para se poder concluir que esse documento não pode servir, como serviu, para dar como provada a composição do prédio do autor, uma vez que essa matéria resulta afinal apenas da afirmação do próprio autor.
Assim sendo, a entender-se que a condenação nessa parte se justifica, a alínea a) do dispositivo da sentença deve limitar-se a “condenar a ré a reconhecer que os autores são legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...95 e registado com o n.º ...60”.
A decisão recorrida é de qualquer modo de todo inaceitável, porquanto, para além de a extensão e composição dos prédios de autora e ré não poder manter-se, pelas razões indicadas, a essas razões acresce a impossibilidade de configurar a existência de qualquer servidão de vistas em beneficio do prédio do autor, que teria como consequência, mas não pode ter, a existência de limitações ao direito de construção pelo réu no prédio deste, e ainda a impossibilidade de condenação da ré na reconstrução do telheiro referido na alínea e) da sentença, quer por razões de forma, quer por razões de substância.
Na verdade, na douta petição inicial pede-se a condenação do réu a:
a) “Reconhecer o autor como usufrutuário vitalício e a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mulher BB (…) como proprietária da raiz do prédio urbano sito na Rua ... (…) melhor descrito nos artigos 1º a 6º desta petição inicial”, referindo-se que esse prédio “encontra-se implantado num terreno com área total de 108,75 m2 (…);
b) Ver declarado que se encontra constituída sobre o prédio urbano vizinho pertença de todos eles a favor do prédio do autor e da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB (…) descrito nos artigos 1.º a 6.º uma servidão de vistas, ar e luz relativamente às aberturas situadas na respetiva parede/empena nascente melhor descrita nos artigos 28.º a 30.º do mesmo articulado”.
c) Desobstruir/destapar as referidas aberturas, para tal retirando as madeiras, malha e/ou materiais e/ou equipamentos que tapando-as, impedem a entrada de luz e ar nos compartimentos do prédio do autor e da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mulher por elas servidas;
d) Abster-se da prática de quaisquer atos perturbadores do exercício do direito de servidão de vistas, ar e luz que beneficia o seu descrito prédio”
e) Demolir a obra executada no logradouro do seu prédio melhor descrita nos artigos 22.º a 24.º deste articulado”
No entanto, a sentença decidiu:
A) Condenar a ré a reconhecer que os autores são legítimos proprietários do prédio urbano (…) com a composição descrita nos pontos 1, 5 e 6”, consignando-se no referido ponto 5 que “o prédio em causa encontra-se implantado num terreno com área total de 108,75 m2, sendo 105,10 m2 corresponde a área coberta e 3,75 m2 a área descoberta”.
“C) Condenar a ré a reconhecer que sobre o seu prédio foi constituída, por usucapião, uma servidão de vistas, referente às aberturas descritas no ponto 21 a 24 em benefício do prédio descrito no ponto 1”, declarando-se nestes pontos de facto que “na empena lateral do prédio referido no ponto 1), que dá para o logradouro do prédio da Ré, existem duas aberturas, cada uma numa divisão diferente (dois quartos de dormir, um usado actualmente como sala de estar), com caixilhos de alumínio, tendo cada uma dessas aberturas duas divisões, com as dimensões de 14 cm e 15 cm de largura e distando do solo, respetivamente, 186,5 cm e 197 cm
“D) Condenar a ré a respeitar tal servidão de vistas, abstendo-se de praticar qualquer ato que perturbe o seu exercício, nomeadamente a entrada de ar e de luz”
“E) Condenar a ré a afastar o telheiro referido no ponto 23 em toda a sua extensão não prejudicando a entrada de ar e luz por tal abertura”.
Ora, a sentença recorrida:
a) Só podia condenar a ré a reconhecer que os autores são legítimos proprietários do prédio que referem como seu, mas não podia condená-los a reconhecer que o seu prédio deles autores tinha a composição descrita nos pontos 1, 5 e 6 da matéria de facto (por absoluta falta de prova);
b) Condenar a ré a desobstruir as referidas aberturas e demolir a obra executada no logradouro do seu prédio, mas não podia condená-la a fazer obras no telheiro por forma a reconstruí-lo à distância de 1,50 m da abertura referida no ponto 23, porque essa matéria não correspondia ao pedido, e, para além disso nem sequer se alegou, para se poder provar, que a obra pretensamente ilegal foi executada por quem quer que fosse em nome da ré (o que, aliás, a própria sentença reconhece).
É, em consequência, a sentença nula por excesso de pronúncia, no que respeita à condenação contida na alínea a) (quanto à composição descrita nos pontos de facto 1, 5 e 6) e quanto à condenação da ré a reconstruir o telheiro por forma a que ele diste 1,50 m da abertura existente no prédio do autor (porque este apenas pediu a sua condenação a desobstruir as aberturas e demolir a obra executada), nulidades de que importa conhecer, com a consequência de, quanto à primeira ser eliminada da alínea a) do dispositivo da sentença a expressão “com a composição descrita nos pontos 1, 5, e 6” e, quanto à segunda, ser eliminada a condenação contida, por totalmente desconforme com o pedido.
Sem prescindir, consta do facto 16 que “a 28/08/2008, no logradouro do prédio referido no ponto anterior (prédio este que é o prédio do próprio autor) começaram a ser executadas obras de construção de um telheiro (…)”, afirmação que se deve a mero lapso de escrita uma vez que a referida construção foi feita sim, mas no logradouro do prédio dos réus, lapso este que nos termos do artigo 249.º do Código Civil deve dar lugar à substituição da referida expressão por “do prédio dos réus”.
Impõe o artigo 640.º do Código de Processo Civil que quando seja impugnada a matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, e os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo de gravação que impunham decisão diversa, concluindo pela formulação concreta da decisão que deve recair sobre as questões de facto impugnadas.
10º Em cumprimento dessa regra, o recorrente, para além de aludir nas alegações ao texto do referido artigo 3.º junto com a petição, com vista a demonstrar que o autor desse documento não assegurou nem podia ter assegurado, ao contrário do que a sentença supõe, que o prédio do autor tem a composição descrita nos pontos 1, 5 e 6 da matéria de facto, transcreveu da gravação da prova passagens do depoimento da testemunha, EE, autor desse documento, que confirmou que foi contratado pelo autor para o elaborar, não conhecia o prédio do autor pelo exterior e procedeu às medições do prédio deste apenas pelo interior (cfr. o depoimento a que se refere a ata da audiência de julgamento, com início às 16:18h e termo as 16:33h, indicando como pontos concretos a gravação iniciada em 00:00:00 até 00:00:50, a iniciada em 00:04:00 até 00:04:44, a iniciada em 00:05:07 até 00:05:21, a iniciada em 00:08:13 até 00:08:27 e a iniciada em 00:11:42 e terminada em 00:12:07).
11º E em cumprimento do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, sustentou o recorrente que:
a) Os factos 5.º e 6.º dados por provados devem ser eliminados porque a respetiva matéria nem corresponde à prova produzida nem interessa à discussão;
b) A manter-se a condenação constante da alínea a) do pedido da mesma deve ser amputada a expressão “com a composição descrita nos pontos 1, 5 e 6”, passando essa alínea a) a referir apenas que: “Encontra-se registada a aquisição a favor do autor AA e da sua falecida esposa BB (…) do prédio urbano sito na Rua ..., n.º
11, da União de Freguesias (…) inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...95, registado com o n.º ...60, tratando-se de casa de habitação de 2 pisos composta de ... e ... andar com 6 divisões, confrontando do norte com FF, sul com o ..., nascente com a ré e poente com a Rua ...”.
12º Sem prescindir, seja qual for a decisão que mereça a impugnação da matéria de facto que assim se fez, nem assim a sentença se pode manter, por mal fundada, por um lado, porque as aberturas questionadas respeitam inteiramente as condições postas no n.º 2 do artigo 1363.º do Código Civil, e, por outro lado, mesmo que assim não fosse, e as medidas das referidas aberturas fossem desconformes ao previsto no n.º 2 dessa norma, nunca o pedido podia proceder.
13º Com efeito, encontra-se provado que os prédios de autor e réu confinam entre si, que na empena lateral do prédio urbano dos autores, existem duas aberturas, deitando diretamente para o logradouro do prédio do réu, subdivididas cada uma em duas outras aberturas, que permitem apenas a entrada de luz e ar e que ali existem pelo menos desde ../../1976, tendo cada uma dessas 4 divisões, respetivamente 14 cm de largura e 15 cm de largura do lado esquerdo da primeira abertura, e 14 cm de largura do lado esquerdo e 15 cm de largura do lado direito da segunda abertura, distando do solo 1,865 cm de altura as primeiras e 1,84 as segundas (estas distando ainda, pelo exterior, 2,14 m do solo).
14º Ora, ao contrário do que a sentença supõe, (uma vez que sustenta que “as aberturas em causa não podem ser qualificadas como aberturas de tolerância, (…) já que ambas têm em algumas das suas dimensões mais de 15 cm”) a lei não faz tal exigência, limitando-se a exigir que apenas uma das dimensões tenha largura de 15 cm, pois “As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, devem situar-se pelo menos a 1,80 m de altura, a contar do solo ou do sobrado e não devem ter numa das suas dimensões, mais de 15 centímetros”.
15º Assim sendo, respeitando as 4 aberturas em causa rigorosamente os ditames da lei (distam pelo menos 1,80 m a contar do solo ou sobrado e não têm numa das suas dimensões mais de 15 cm) não é possível decidir que existe uma servidão tão pouco restrita apenas a receber luz e ar.
16º Nunca por nunca podia ter-se por constituída uma servidão de vistas sem que existisse uma abertura que, como a jurisprudência tem entendido, permitisse pelo menos passar uma cabeça humana e ver claramente para o prédio oposto, quer para o lado direito, quer para o lado esquerdo, quer para cima, quer para baixo, pois, a não ser assim, sempre as aberturas podiam ser eliminadas a todo o tempo pelo vizinho (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, página 223).
17º Sem prescindir, ainda que assim não fosse, isto é, ainda que se entendesse que as aberturas em questão violavam os limites estabelecidos pelo artigo 1362.º, n.º 2 do Código Civil, como a sentença supõe, certo é que elas nunca poderiam ser consideradas aberturas suscetíveis de conduzir à aquisição da servidão de vistas por usucapião, sempre “podendo ser eliminadas a todo o tempo a pedido do proprietário vizinho, independentemente de este fazer ou não qualquer edificação que as tape, ou substitui-las por outras aberturas que obedeçam às exigências da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 1363.º do mesmo código” já que “por frestas, seteiras ou óculos para luz e ar têm de entender-se as aberturas que não permitam ver e devassar o prédio vizinho alheio, por nela não caber uma cabeça humana”, (cfr. neste sentido jurisprudência que supomos unânime, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-1991, no processo n.º 079883, de que foi relator o Conselheiro Ricardo da Velha, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-09-2002, no processo n.º 02B2406, de que foi relator o Conselheiro Neves Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2004, no processo n.º 03B3498, de que foi relator o Conselheiro Santos Bernardino, disponível em www.dgsi.pt e Acórdão da Relação de Coimbra de 11-10-2017, no processo n.º 107/15.OT8MBR.C1, de que foi relatora a Desembargadora Maria João Areias, disponível em www.dgsi.pt, todos citados no texto das alegações).
18º Sempre sem prescindir, a condenação da ré (alínea e) “a afastar o telheiro referido no ponto 16) 1,50 m da abertura referida no ponto 23) em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e luz por tal abertura”), é também ilegal e inadmissível, quer porque o réu não pode ser condenado a repor uma situação para a qual não contribuiu, ou, pelo menos, não se alegou nem provou que tivesse contribuído, quer porque essa condenação está em desconformidade com o pedido, quer, por último porque fossem quais fossem as circunstâncias o autor só poderia pedir a demolição da obra e nunca a sua substituição (cfr. Acórdão do STJ de 15-05-2008, no processo n.º 08B1368, de que foi relator o Conselheiro Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt)
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a sentença recorrida ser revogada, na procedência da reclamação contra a fixação da matéria de facto, e ainda que assim se não entenda, sempre deverá ser revogada quanto ao decidido na alínea a) da condenação na parte que alude à composição do prédio dos autores e quanto ao decidido nas alíneas c), d) e e), por falta de fundamento legal, absolvendo-se os réus dos pedidos, assim se fazendo JUSTIÇA!
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Notificados das alegações de recurso apresentadas pelos RR., os AA. AA, por si e na qualidade de cabeça de casal da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de BB vieram apresentar as suas contra-alegações, que finalizaram com a apresentação das seguintes conclusões:

1ª- A recorrente mostra-se inconformada com a decisão sobre a matéria de facto e discorda da aplicação do direito aos factos pelo Tribunal recorrido, vendo excesso de pronúncia onde ele não existe.
2ª- Os AA. pediam na ação a demolição da totalidade da obra executada pela R. (o telheiro a tapar as aberturas); o Tribunal condenou-a a afastar o telheiro um metro e meio da abertura referida no ponto 23, em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e de luz por tal abertura. No demais sendo a ré absolvida do peticionado.
3ª- Objeto de controvérsia, questão a decidir pelo Tribunal, era, portanto, a da demolição de todas as obras executadas no prédio da recorrente, ou seja, todo o telheiro.
4ª- O Tribunal decidiu a questão ordenando não a demolição pedida mas o seu afastamento um metro e meio da abertura referida em 23, ou seja a abertura presente na divisão utilizada como quarto (segunda divisão quem entra pela cozinha), em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e luz por tal abertura.
5ª- O documento n.º ... junto com a petição inicial – um levantamento topográfico – foi oferecido para prova do artigo 3º, a saber:
«»
Tem, como referido, dois pisos, é de tipologia T3, possuindo os seguintes cómodos:
- no piso “0” – uma garagem com 16,15 m2, arrumos com 8,35 m2, arrumos com 4,70 m2, arrumos com 3,95 m2 e adega com 40,65 m2;
- no piso 1 – um alpendre com 19,75 m2, um hall com 6,65 m2, cozinha com 7,85 m2, arrumos com 3,50 m2, sala com 10,30 m2, quartos (3) com 6,90m2, 6,35 m2 e 9,55 m2, um corredor de circulação com 5,25 m2 e instalações sanitárias com 3,25 m2, tudo como melhor se alcança do levantamento topográfico que ora se junta como documento n.º ....
6ª- Na contestação, a R. impugnou o documento em mérito por “desconhecer a autoria da respetiva letra e assinatura e ainda por desconhecer se o mesmo representa, pelo menos com rigor, o prédio a que se faz referência nos artigos anteriores”, não arguindo a falsidade do mesmo.
7ª- Confrontado com o documento em audiência de julgamento, o seu autor, a testemunha EE, confirmou, a instâncias da então Ilustre Mandatária da Ré, a sua autoria, as medições dos diversos cómodos que visitou.
8ª- Pela R. não foi suscitado qualquer incidente suscetível de abalar o depoimento da testemunha, nomeadamente mediante o incidente de contradita – artigos 521º e 522º do CPC. A credibilidade da testemunha que elaborou o levantamento topográfico não foi, pois, posta em causa.
9ª- Se a R. queria pôr em causa a autenticidade do documento em mérito deveria ter suscitado o competente incidente de falsidade, o que não fez; menos ainda tendo oferecido prova em sentido contrário.
10ª- Estabelecida ficou, assim, a genuinidade do documento particular, uma vez que a apresentante demonstrou a sua veracidade, logo estabelecida ficou a sua força probatória plena, sendo certo que, se assim não fosse (e é) sempre constituiria meio de prova a ser livremente apreciado pelo julgador.
11ª- A respeito da composição do prédio diz a sentença recorrida: “a composição do prédio da A., em termos de divisões existente e, a olho nu, as suas dimensões foram observadas pelo tribunal na própria inspeção ao local. As medidas exatas, patentes nos pontos 5 e 6 resultaram do levantamento junto com a petição inicial que foi corroborado pela testemunha EE, que elaborou e que confirmou que visitou o local e fez as medições necessárias.”
12ª- O A. beneficia da presunção que deriva do artigo 7º do Código do Registo Predial (vide facto 1 da matéria provada), a sentença mostra que alegou e provou a aquisição derivada e originária do seu prédio tal como descrito na petição inicial.
13ª- As atas de audiência de julgamento ou de qualquer diligência judicial são documentos públicos qualificáveis como documentos autênticos – artigos 369º e ss do CC. A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade - art 372º.
14ª- Notificada do teor da ata/auto de inspeção ao local, a recorrente não lhe colocou quaisquer reservas, acatando o que da mesma consta.
15ª- Não apresentou qualquer requerimento de correção do seu teor (alguma inexatidão, alguma incorreção, nada!)
16ª- Não suscitou qualquer incidente de falsidade da mesma.
17ª- Nesta sede, e de modo assaz destemperado, arremete contra a mesma percebendo-se bem porque o faz: a inspeção judicial, neste como em outros casos de idêntica natureza, revelou-se fundamental para a apreciação da causa.
18ª- No caso concreto, a Senhora Juiz a quo conjugou a inspeção judicial (não impugnada pela apelante) com os demais meios de prova, mostrando-se tudo o a este respeito alegado pela recorrente perante o Tribunal de Segunda Instância destituído de fundamento.
19ª- Os factos a considerar são os apurados pela primeira instância que se deverão manter inalterados, como inalterada se deve manter a aplicação do direito à matéria provada.
20ª- A Mmª Juiz a quo decidiu, e bem, que a favor do prédio do A. existe, constituída por usucapião, uma servidão de vistas, ar e luz sobre o prédio da R.
21ª- A decisão recorrida acolheu a orientação de grande parte da doutrina e jurisprudência (que a recorrente contorna) que entende que o conceito de janela é obtido pela negativa (por defeito): será janela toda a abertura que não possa ser qualificada de fresta, seteira ou óculo de luz.
22ª- Seguiu, do mesmo modo, o entendimento pacífico que não podem as aberturas em causa configurar frestas, seteiras ou óculos de luz já que as referidas dimensões, quer na sua altura, quer na sua largura são superiores a 15 centímetros.
23ª- De qualquer modo, qualquer que seja a qualificação jurídica das aberturas dos autos, seguindo de perto os mais recentes arestos proferidos em casos semelhantes, forçoso é concluir que o caso dos autos contém uma situação “em que o direito do proprietário vizinho tem de se conformar e, portanto, de se limitar de modo a não viabilizar o seu abuso manifesto e intolerável pela ordem jurídica”.
24ª- Provado que na empena lateral da parede do prédio do A. existem, duas aberturas à data com caixilhos em alumínio (anteriormente em madeira) que deitam para o lado do logradouro da R. e que permitem a entrada de luz e ar nas divisões que servem, cujas são dois quartos, sendo um usado como sala de estar; que desde 1976 – há mais de 40 anos – o A. tem vindo a usar essas aberturas para iluminar e arejar os compartimentos que são por elas servidos, à vista de todos e sem oposição de ninguém.
25ª- Provado que no logradouro do prédio da R. foi, no ano de 2008, construído um telheiro, obra da qual o A. não foi informado ou consentiu na mesma; que em 2021, tal telheiro foi fechado com painéis de zinco, tipo lusalite e parcialmente transformado em arrecadação, trabalhos que não foram licenciados pela Câmara Municipal.
26ª- Provado que, em outubro de 2021, as descritas aberturas foram tapadas com umas canoas que, até então, estavam no solo do telheiro / arrecadação, que interpelado para retirar as canoas DD (um dos herdeiros da R.), o mesmo nada fez e as aberturas foram tapadas com painéis de madeira e tela, o que impede a entrada de luz e ar nos cómodos onde as aberturas se situam.
27ª- E que, por sua vez, notificado para demolir o telheiro e retirar as canoas e os painéis, o cabeça de casal da R. nada fez.
28ª- Tendo as aberturas dos autos sido mantidas pacificamente durante 47 anos, nada justifica “a razão da mudança de postura” da R. que se mostra intolerável, abusiva, injustificada, desafiadora e francamente sem interesse atendível à luz do direito.
29ª- Sempre sendo de considerar que age com abuso de direito o proprietário que, no contexto como o provado nos autos, sem motivo atendível, ao fim de quarenta e sete anos, decide proceder à tapagem de duas aberturas afetando o arejamento e a iluminação dos cómodos onde as mesmas se situam e a casa dos AA. de um modo geral.
30ª- A Ordem Jurídica estabelecida não premeia quem voluntaria e censuravelmente, contrariando conduta anterior, abusando dos direitos que lhe assistem afronta os direitos do proprietário vizinho como provado.
31ª- Improcedem, assim, todas as conclusões da apelação, devendo manter-se na íntegra a decisão recorrida.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
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A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida. Pronunciou-se sobre a arguida nulidade por excesso de pronúncia, entendendo que não se verificava e rectificou o lapso de escrita no ponto 16) da matéria de facto.
*

Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pelos apelantes, estes pretendem que:
I) - se declare nula a sentença proferida, por excesso de pronúncia (conclusões 1. a 7. das alegações);
II) - se rectifique o ponto 16) da matéria de facto provada (conclusão 8. das alegações)[2];
III) - por terem sido incorrectamente julgados, pela prova produzida, os factos dados como provados em 5) e 6), devem ser eliminados (conclusões 9. a 11. das alegações);
IV) - se reaprecie a decisão de mérito da acção (conclusões 12. a 18. das alegações)
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3 – OS FACTOS

Com relevância para a boa decisão da causa, o Tribunal deu como provados os seguintes factos:

1) Encontra-se registada a aquisição, a favor do Autor AA e da sua falecida esposa, BB, com quem era casado no regime de comunhão geral, do prédio urbano sito na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...95, registado com o n.º ...60, tratando-se de casa de habitação de dois pisos, composta de ... e ... andar com seis divisões, confrontando do norte com FF, sul com ..., nascente com a Ré e poente com Rua ...;
2) Tal aquisição ocorreu a 17/08/1976, por compra efectuada a FF e mulher GG, pelo preço de trezentos e cinquenta mil escudos;
3) Desde a referida data que o Autor vem usando tal prédio como a sua habitação, pernoitando no mesmo, fazendo aí as refeições, recebendo amigos e familiares, à vista de toda a gente e sem oposição;
4) Por testamento outorgado a 25/07/2013, BB declarou legar, por conta da quota disponível, o usufruto de todos os seus bens ao Autor;
5) O prédio em causa encontra-se implantado num terreno com área total de 108,75 m2, sendo 105,10 m2 correspondentes a área coberta e 3,65 m2 a área descoberta;
6) Tem dois pisos, é de tipologia T3, possuindo os seguintes cómodos:
a. no piso “0” – uma garagem com 16,15 m2, arrumos com 8,35 m2, arrumos com 4,70 m2, arrumos com 3,95 m2 e adega com 40,65 m2;
b. no piso 1 – um alpendre com 19,75 m2, um hall com 6,65 m2, cozinha com 7,85 m2, arrumos com 3,50 m2, sala com 10,30 m2, quartos (3) com 6,90m2, 6,35 m2 e 9,55 m2, um corredor de circulação com 5,25 m2 e instalações sanitárias com 3,25 m2;
7) No ano de 1984, o Autor executou no referido prédio trabalhos, denominados “modificações, gateiras para duas janelas”, sitas no piso 0, a confrontar com a Rua ..., para tal obtendo o competente alvará de licença de obras a 01/08/1984;
8) No mesmo ano de 1984, com o alvará de licença n.º ...06, de 29/10, o Autor abriu uma porta e construiu uma dependência de arrumos;
9) No ano de 1996, tratou de construir um alpendre coberto sobre o terraço existente que dá acesso ao prédio;
10) Para tal, a 05/03/1996, o Autor entregou nos Serviços da Câmara Municipal ... um projeto de Arquitectura e Licenciamento da obra “Construção de uma cobertura num alpendre e alteração do telhado de moradia de estrutura em madeira para lajes de pré-esforçado”;
11) O projecto não foi, então, aprovado em virtude de “as soluções propostas ao nível construtivo” serem consideradas “demasiado pesadas para o edifício em causa”;
12) Aceitando as entidades camarárias “apenas a execução da estrutura de coberta em madeira”;
13) No ano de 2006, o Autor retomou o sobredito projeto de construção do alpendre e obteve, a 16/08 desse ano, o necessário alvará de licença de utilização n.º ...6;
14) Tendo sido, então, construído um alpendre coberto com pilares em pedra de natureza igual à da pedra da casa, viga estrutural em madeira, estrutura da cobertura em madeira, cobertura em telha cerâmica de barro vermelho, assente sobre estrutura de madeira, tapa-pó em madeira sob a telha e gradeamento do terraço e escadas de acesso em ferro, sendo arquitecto responsável HH;
15) No ano de 2012, porque a sua esposa havia sofrido dois AVC’s, apresentando dificuldades de mobilidade, a 23/11 desse ano, o Autor apresentou, junto dos serviços camarários, informação de início de trabalhos para executar os seguintes trabalhos: “diminuição de altura dos degraus de acesso”;
16) A 28/08/2008, no logradouro do prédio da Ré, começaram a ser executadas obras de construção de um telheiro com estrutura constituída por barrotes de madeira, uma viga em madeira, travejamento horizontal em madeira, assente sobre pilares de cimento e com cobertura de placas de zinco, tipo Lusalite;
17) O Autor não foi informado de tal obra, nem consentiu na mesma;
18) Antes de tal obra, existia outra construção, a sul da ora existente, entretanto demolida;
19) Em 2021, em data que não foi possível precisar, o telheiro mencionado no ponto 16) foi fechado com painéis de zinco, tipo Lusalite e parcialmente transformado em arrecadação onde se encontram umas canoas pertencentes a DD;
20) Tais trabalhos não foram licenciados pela Câmara Municipal;
21) Na empena lateral do prédio referido no ponto 1), que dá para o logradouro do prédio da Ré, existem duas aberturas, cada uma numa divisão diferente (dois quartos de dormir, um usado actualmente como sala de estar), com caixilhos de alumínio;
22) A abertura presente na divisão utilizada como sala de estar (primeira divisão quem entra pela cozinha), tem as seguintes medidas:
a. 36 cm de largura;
b. 79 cm de altura;
c. 14 cm de largura do lado esquerdo (fora da abertura);
d. 15 cm de largura lado direito (fora da abertura);
e. 87 cm de altura o pilar de cimento existente na abertura;
f. 58 cm de comprimento - o parapeito;
g. 101 cm de altura do parapeito ao chão;
h. 186,5 cm de altura do topo da janela até ao chão.
23) A abertura presente na divisão utilizada como quarto (segunda divisão quem entra pela cozinha) encontra-se coberta pelo telheiro referido no ponto 16) e tem as seguintes medidas:
a. 36 cm de largura;
b. 80 cm de altura;
c. 14 cm de largura do lado esquerdo (fora da abertura);
d. 15 cm de largura lado direito (fora da abertura);
e. 8 cm pilar de cimento existente no meio da abertura;
f. 86 cm de altura o pilar de cimento existente na abertura;
g. 52 cm de comprimento - o parapeito;
h. 99 cm de altura do parapeito ao chão;
i. 184 cm de altura do topo da janela até ao chão.
24) Tal abertura, medida pelo lado de fora, tem as seguintes medidas:
a. 197 cm de altura da janela até ao chão;
b. 38 cm de largura da janela em toda a sua extensão;
c. 90 cm de altura da janela em toda a sua extensão;
d. 8 cm o pilar de cimento que se encontra no meio da janela;
e. 16 cm de largura do lado esquerdo (fora da abertura);
f. 14,5 cm de largura lado direito (fora da abertura);
g. 2,14 cm de altura do chão até ao início da abertura.
25) Tais aberturas permitem a entrada de luz e ar nos referidos compartimentos;
26) Tais aberturas existem, pelo menos, desde a data de aquisição pelo Autor e sua esposa do prédio referido no ponto 1) - 17/08/1976;
27) A 17/08/1976, as descritas aberturas tinham a configuração que têm à presente data, apenas caixilharia diversa (então em madeira);
28) O Autor tem vindo a usar tais aberturas para iluminar e arejar os compartimentos por elas servidos e a casa, de um modo geral, à vista de todos, sem oposição de ninguém;
29) No mês de Outubro de 2021, em data não concretamente apuradas, as descritas aberturas foram tapadas, pelo lado do prédio da Ré, com umas canoas que, até então, estavam pousadas no solo do telheiro/arrecadação referido no ponto 16);
30) O Autor interpelou DD para retirar as canoas;
31) Porém, tal não ocorreu, tendo as referidas aberturas sido tapadas com painéis de madeira e tela;
32) Tal impede que entre luz e ar nos cómodos onde se situam as aberturas;
33) A 13/12/2021, o Autor procedeu à notificação do Cabeça-de-casal da Ré, representado pela Sra. Dra. II, advogada, com o seguinte conteúdo:
“(i) no prazo de 30 dias, proceder à demolição das obras referidas nos artigos 5º a 8º da notificação;
(ii) retirar de imediato as canoas e painéis colocados em frente das aberturas descritas nos arts 9º e 10ª;
(iii) abster-se da prática de quaisquer atos que impeçam ou por qualquer forma condicionem o exercício dos direitos do requerente sobre o seu prédio”
34) Todavia, os trabalhos referidos no ponto 16) não foram demolidos e não foram retiradas as canoas e painéis a tapar as aberturas em causa;
35) O Autor ficou ansioso e nervoso com a tapagem das aberturas, ficando preocupado com a situação.
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Com relevância para a boa decisão da causa, o Tribunal considerou como não provados os seguintes factos:

A) A 13/07/2008, o logradouro do prédio da Ré era um espaço aberto, relvado, sem qualquer cobertura;
B) A cobertura referida no ponto 16) está encastrada na parede de granito do prédio referido no ponto 1), nela se sustentando o travejamento, a viga e os barrotes de madeira;
C) As aberturas referidas no ponto 21) foram efectuadas em 2008, antes de 13/07/2008;
D) Nos cómodos servidos pelas duas aludidas aberturas, parede nascente e tectos, começam a surgir sinais de humidade por falta de arejamento;
E) Para resolver o referido no ponto anterior, o Autor terá de proceder à limpeza das paredes e pintura dos dois cómodos, carecendo de serem executados os seguintes trabalhos:
PREPARATÓRIOS
1.1 Preparação do espaço para início de trabalhos;
1.2 Retirar a mobília em dois quartos;
1.3 Isolar o chão e outros pormenores;
1.4 Limpar todas as manchas de humidade nos dois tectos e as paredes dos quartos.
DE CONSTRUÇÃO
2.1 Tapar as rachadelas existentes;
2.2 Dar o primário nas paredes e tectos;
2.3 Duas demãos de tinta da melhor qualidade. Cor a escolher pelo D.O.;
2.4 Limpeza de todo o espaço e colocar a mobília na posição inicial.
F) Foram os representantes da Ré, em seu nome, que colocaram a canoas e os painéis a tapar as referidas aberturas;
G) Foi a conduta da Ré que provocou ansiedade e nervosismo ao Autor;
H) O Autor sente-se humilhado e vexado com a tapagem das aberturas pela Ré;
I) O Autor ficou deprimido em virtude da referida tapagem, sofrendo também de insónias;
J) O Autor foi operado ao coração no dia 11/06/2022, seguindo-se largo período de convalescença, cuidados continuados e recuperação, devido ao seu estado de espírito em relação à tapagem das aberturas;
K) A parede referida no ponto 21) foi construída pelos antepossuidores do prédio da Ré.
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Motivação de facto

Os pontos 2), 7) a 17), 19) a 21), 29) a 31), 33) e 34) foram admitidos por acordo entre as partes, conforme disposto nos arts.º 574.º n.º 2 e 587.º n.º 1 do C.P.Civil.
O registo a favor do Autor e da sua esposa, entretanto falecida, do prédio referido no ponto 1), encontra-se documentalmente provado1[3] pela certidão de registo predial junta como documento n.º ... na petição inicial – ponto 1).
Já a existência de testamento a favor do Autor, no qual se constitui o direito de usufruto, resulta do testamento junto com o requerimento de 16/09/2022 – ponto 4).
Para prova e não prova da restante factualidade, o Tribunal formou a sua convicção na prova documental junta aos autos, na inspecção ao local e na prova testemunhal produzida.
A composição do prédio referido no ponto 1), em termos de divisões existentes e, a olho nu, as suas dimensões, foram observadas pelo Tribunal na própria inspecção ao local. As medidas exactas, patentes nos pontos 5) e 6), resultam do levantamento topográfico junto com a petição inicial, que foi corroborado pela testemunha EE, que o elaborou e que confirmou que visitou o local e fez as medições necessárias.
Da prova testemunhal produzida, foi unânime que o prédio referido no ponto 1) era a habitação do Autor – ponto 3).
A construção referida no ponto 18) é visível nas fotografias juntas pelos Autores, datadas de 2008, pelo que também se deu como não provado o ponto A).
As medidas constantes dos pontos 22) a 24) resultaram das medições feitas pelo Tribunal na inspecção ao local.
O ponto 25) é a visível a olho nu, como foi na inspecção ao local, e resulta da própria experiência comum.
Consequentemente, também se deu como provado o ponto 32), tendo em consideração que a própria tapagem das aberturas já tinha sido provada por acordo das partes.
As partes estavam em desacordo quanto ao ano de construção das aberturas em causa, uma vez que os Autores afirmam que estas existem desde que compraram a habitação – ou seja, 1976 – e a Ré defende que apenas foram construídas em 2008, pouco antes das fotografias juntas aos autos, referentes à construção do telheiro mencionado no ponto 16).
Analisada a prova testemunhal produzida, concluímos que prevalece a versão apresentada pelos Autores.
As testemunhas JJ (trabalhou em casa do Autor esporadicamente), KK (igualmente, conhecendo o Autor há 30 anos), LL (irmão da companheira do Autor, tendo também feito alguns trabalhos em casa do Autor), MM (amigo do filho do Autor), NN (vizinho do Autor) e OO (quem construiu o telheiro referido no ponto 16)) descreveram de forma objectiva e coerente as aberturas que se podem observar em casa do Autor, dizendo que estas sempre existiram.
Os testemunhos de NN e de OO são especialmente esclarecedores. O primeiro afirmou, sem dúvidas, que já na altura do anterior morador daquela habitação existiam aquelas aberturas, algo que observou directamente, por ser visita da casa. Ademais, demonstrou não ter qualquer animosidade com os herdeiros da Ré.
Já o segundo esclareceu que, quando foi fazer o telheiro/coberto em casa da Ré, as aberturas já existiam e que tinham aspecto de serem muito antigas, que podiam já ter 20 anos (isto em 2008). Note-se que esta testemunha trabalhou para ambas as partes, não tendo qualquer ligação especial a nenhuma delas.
A única prova em contrário que foi produzida resultou dos testemunhos de PP (neto de CC) e de QQ (nora de CC). Contudo, os mesmos não se mostraram credíveis.
Começando pelo testemunho de PP, não é comum que uma criança de 10 anos retenha na memória se existem ou não aberturas na casa do vizinho. Ademais, o facto de ter sido chamado à atenção para esse facto na sua festa de aniversário de 10 anos, não implica que as aberturas não estivessem lá há muito mais tempo.
Quanto ao depoimento de QQ, também não se mostra credível que, na primeira visita a casa dos futuros sogros, a testemunha se fosse lembrar que não existiam aberturas naquela parede.
É natural que as aberturas aqui em causa apenas tenham sido tema de conversa no seio familiar quando começou a construção do telheiro mencionado no ponto 16), porque foi nessa altura que se construiu uma edificação que confrontava com as referidas aberturas. Tal não significa que as mesmas não existissem antes, especialmente tendo em conta toda a prova testemunhal contrária que já supra referimos.
Por todo o exposto, deram-se como provados os pontos 26) e 27) e, consequentemente, como não provado o ponto C).
O ponto 28) baseou-se na prova testemunhal supra enumerada, uma vez que tais testemunhas descreveram as aberturas e os cómodos onde as mesmas se encontravam, referindo a existência de luz e de ar a entrar pelas mesmas. Ademais, é o uso habitual para aquele tipo de abertura.
As testemunhas RR (companheira do Autor), KK, LL, MM e NN observaram de forma próxima e directa o efeito que a tapagem das aberturas teve no Autor. Paralelamente, tais efeitos estão de com as regras de experiência comum, ou seja, é normal que, face a este tipo de conflito, o Autor ficasse nervoso, ansioso e preocupado – ponto 35).
Já a matéria referida no ponto H), I) e J) deu-se como não provada face à falta de prova da mesma, por não ter sido sequer referida pelas testemunhas e por não se poder, sem mais, ligar uma operação ao coração (sendo o Autor já doente) a este evento em específico.
Vejamos a restante matéria de facto não provada ainda não mencionada.
O ponto B) foi contrariado com a observação directa, pelo Tribunal, da cobertura e da sua estrutura. É de referir que não existiam sinais que demonstrassem que a cobertura havia estado encastrada na parede de granito, conforme se referiu na acta da inspecção ao local.
Quanto ao ponto D), no local não foi possível observar qualquer humidade, nem foram juntas pelo Autor quaisquer fotografias da mesma.
Apenas a testemunha RR referiu que surgiu humidade nos cómodos onde se situam as aberturas. Todavia, a testemunha disse, primeiramente, que os quartos foram pintados há cerca de três anos, porque estavam a ficar escuros. Ou seja, antes das aberturas serem fechadas.
Ademais, referiu que a divisão que é usada como quarto tinha sido pintada na semana antes (semana antes do seu depoimento e, também, da ida do Tribunal ao local), “para tirar os pretos das paredes”. Ora, não faz qualquer sentido que os Autores fossem pintar o quarto onde existiam vestígios de humidade uma semana antes do Tribunal se deslocar ao local, impedindo, assim, que os mesmos fossem directamente observados.
Pelo exposto, conclui-se que não foi feita prova suficiente da existência de humidade e, consequentemente, da necessidade de efectuar os trabalhos discriminados no orçamento junto pelos Autores aos autos a 16/09/2022 – pontos D) e E).
Relativamente à autoria da tapagem das aberturas nem sequer os Autores alegaram que foi a Ré (ou seja, os seus herdeiros, em seu nome), que tapou as aberturas. De qualquer das formas, não se provou que tal tenha ocorrido, pois nenhuma testemunha sabia quem tinha tapado, sabendo apenas que estava tapado – ponto F).
Não se tendo provado a autoria da tapagem das janelas, não se pode atribuir os seus efeitos a uma acção da Ré – ponto G).
Por fim, não foi feita qualquer prova do ponto K).

[transcrição dos autos].
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO

Comecemos pela questão relativa à arguição da nulidade da sentença.

I) Da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia - art. 615º/1, d), 2ª parte do Código de Processo Civil

Pretendem os recorrentes ser a sentença recorrida nula, por excesso de pronúncia, no que respeita à condenação contida na alínea a) (quanto à composição descrita nos pontos de facto 1, 5 e 6) e quanto à condenação da ré a reconstruir o telheiro por forma a que ele diste 1,50 m da abertura existente no prédio do autor (porque este apenas pediu a sua condenação a desobstruir as aberturas e demolir a obra executada). Nulidades que pretende que sejam conhecidas, com a consequência de, quanto à primeira, ser eliminada da alínea a) do dispositivo da sentença a expressão “com a composição descrita nos pontos 1, 5, e 6” e, quanto à segunda, ser eliminada a condenação contida, por totalmente desconforme com o pedido.
Assim o prescreve o art. 615°/1, d) do CPC, segundo o qual é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Um vício que tem a ver com os limites da actividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos quer no art. 608º/2 do CPC: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras», quer, com referência à instância recursiva, pelas conclusões da alegação do recorrente, delimitativas do objecto do recurso, conforme resulta dos artigos 635º/4 e 639º/1 e 2, do mesmo diploma legal.
Se o juiz deixa de conhecer questão submetida pelas partes à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia.
Mas importa precisar o que deve entender-se por «questões» cujo conhecimento ou não conhecimento integra nulidade por excesso ou falta de pronúncia.
Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras «questões» de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no art. 668º/1, d) do CPC.
Há, assim, que distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes[4].
Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia.
No que concerne à falta de pronúncia, dizia Alberto dos Reis, que «são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão»[5].
Dentro deste raciocínio do ilustre mestre se poderá acrescentar que quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas partes não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade.
Do que se conclui que apenas as questões essenciais, questões que decidem do mérito do pleito ou, convenhamos, de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por falta de pronúncia ou excesso de pronúncia.
Obviamente sempre salvaguardadas as situações onde seja admissível o conhecimento oficioso do tribunal.
Por último importa não confundir a nulidade por falta ou excesso de conhecimento com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz não decide acertadamente, por decidir «contra legem» ou contra os factos apurados[6].

Alegaram os apelantes ser a sentença nula por excesso de pronúncia, nos termos acima descritos.
Nas contra-alegações, os recorridos entendem que os recorrentes viram excesso de pronúncia onde ele não existe.
Tendo-se a Srª Juiz a quo, ao pronunciar-se sobre a arguida nulidade, entendido que a mesma não se verifica, pois, in casu, está-se perante uma mera divergência quanto ao enquadramento jurídico efectuado pelo Tribunal, e não perante a análise de questões que não foram levantadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso. E isto porque o Tribunal não está limitado pelo enquadramento jurídico que as partes defendem para os factos que alegam, pelo que, face à factualidade dada como provada, terá de aplicar as normas que entendem serem as aplicáveis e adequadas ao caso concreto. Ademais, a condenação no afastamento do telheiro é um minus face ao pedido de demolição do telheiro, o que até foi referido pelos Autores em sede de alegações. Note-se que a Ré entende que nunca poderia ser condenada a construir algo de novo, pois tem o direito de apenas demolir. Ora, parece-nos importante esclarecer que a Ré continua a ter o pleno direito de demolir o telheiro em causa, pois a sentença proferida não a impede de tal. Não é porque a Ré foi condenada a fazer “o menos” que perde o direito de fazer “o mais”, ou seja, demolir a estrutura em causa.
Quid iuris?

Não têm qualquer razão os apelantes.
Mas vejamos as questões separadamente.

I - Quanto à questão do reconhecimento, como assertivamente refere a Sr. Juiz a quo, estamos perante uma mera divergência quanto ao enquadramento jurídico efectuado pelo Tribunal, e não perante a análise de questões que não foram levantadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso. Sendo que, tal como já supra exposto, o Tribunal não está limitado pelo enquadramento jurídico que as partes defendem para os factos que alegam, pelo que, face à factualidade dada como provada, terá de aplicar as normas que entendem serem as aplicáveis e adequadas ao caso concreto. E relembrando-se que o eventual erro de julgamento não deve ser confundido com o excesso de conhecimento.
*
II - E quanto à questão da demolição, isto é, da condenação da ré a reconstruir o telheiro por forma a que ele diste 1,50 m da abertura existente no prédio do autor, resulta dos autos que os AA. pediam na acção a demolição da totalidade da obra executada pela R. (o telheiro a tapar as aberturas).
Ora, o Tribunal condenou-a a afastar o telheiro um metro e meio da abertura referida no ponto 23, em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e de luz por tal abertura. No demais sendo a R. absolvida do peticionado.
Verifica-se, pois, que o objecto de controvérsia, questão a decidir pelo Tribunal, era a da demolição de todas as obras executadas no prédio da recorrente, ou seja, todo o telheiro.
Logo, tendo o Tribunal decidido a questão ordenando não a demolição pedida, mas o seu afastamento um metro e meio da abertura referida em 23, ou seja, a abertura presente na divisão utilizada como quarto (segunda divisão quem entra pela cozinha), em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e luz por tal abertura, afigura-se-nos intuitivo, tal como bem mencionado pela Srº Juiz a quo, que a condenação no afastamento do telheiro é um minus face ao pedido de demolição do telheiro.

Ora, tudo considerado, verifica-se que no caso em apreciação, o tribunal recorrido não conheceu de questões de que não devesse conhecer.
Não se verifica, pois, a nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia.
*

Passemos, agora, à questão da alteração da matéria de facto.

III) Da alteração da matéria de facto quanto ao decidido nos factos dados como provados em 5) e 6)

Divergem os apelantes RR. da decisão da matéria de facto dada como provada em 5) e 6), por alegadamente ter sido incorrectamente julgada pela prova produzida, entendendo que os mesmos devem ser eliminados.
Para tanto, indicam o sentido da decisão e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso.
Mostram-se, assim, cumpridos todos os ónus impostos pelo art. 640º do CPC (cfr. as três alíneas do n.º 1).
Cumpre, pois, apreciar.
O art. 662º do actual CPC regula a reapreciação da decisão da matéria de facto de uma forma mais ampla que o art. 712º do anterior Código, configurando-a praticamente como um novo julgamento.
Assim, a alteração da decisão sobre a matéria de facto é agora um poder vinculado, verificado que seja o circunstancialismo referido no nº 1, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como fez constar da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
Assim, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c), do nº 2, e sem prejuízo de se ordenar a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu à Relação o poder/dever de investigação oficiosa, devendo realizar as diligências de renovação da prova e de produção de novos meios de prova, com vista ao apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
As regras de julgamento a que deve obedecer a Relação são as mesmas que devem ser observadas pelo tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. arts. 466º/3 e 607º/4 e 5 do CPC, que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos arts. 341º a 396º do CC.
Deste modo, é assim inequívoco que a Relação aprecia livremente todas as provas carreadas para os autos, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.
Provar significa demonstrar, de modo que não seja susceptível de refutação, a verdade do facto alegado. Nesse sentido, as partes, através de documentos, de testemunhas, de indícios, de presunções etc, demonstram a existência de certos factos passados, tornando-os presentes, a fim de que o juiz possa formar um juízo, para dizer quem tem razão.
Como dispõe o art. 341º do CC, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
E, como ensina Manuel de Andrade, aquele preceito legal refere-se à prova “como resultado”, isto é, “a demonstração efectiva (…) da realidade dum facto – da veracidade da correspondente afirmação”.
Não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida[7].
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreve Antunes Varela[8].
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também nesta, que está a apreciar, as coisas se passaram do mesmo modo.
Como ensinou Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência[9].
Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
O juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. art. 607º/5 do CPC, cabendo a quem tem o ónus da prova “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como refere Antunes Varela[10].
Se se instalar a dúvida sobre a realidade de um facto e a dúvida não possa ser removida, ela resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no art. 414º do CPC, que, no essencial, confirma o que, sobre a contraprova, consta do art. 346º do CC.
De acordo com o que acima ficou exposto, cumpre, pois, reapreciar a prova e verificar se dela resulta, com o grau de certeza exigível para fundamentar a convicção, o que os apelantes pretendem neste recurso.
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Como já referido supra, pretendem os apelantes RR. a alteração da matéria de facto, com a eliminação da matéria de facto dada como provada em 5) e 6). Isto porque entendem ter havido erro na apreciação da prova pelo Tribunal a quo, no que concerne a esses factos.
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Mas vejamos os factos em questão.

A Meritíssima Juiz a quo considerou provado que:
5) O prédio em causa encontra-se implantado num terreno com área total de 108,75 m2, sendo 105,10 m2 correspondentes a área coberta e 3,65 m2 a área descoberta;
6) Tem dois pisos, é de tipologia T3, possuindo os seguintes cómodos:
a. no piso “0” – uma garagem com 16,15 m2, arrumos com 8,35 m2, arrumos com 4,70 m2, arrumos com 3,95 m2 e adega com 40,65 m2;
b. no piso 1 – um alpendre com 19,75 m2, um hall com 6,65 m2, cozinha com 7,85 m2, arrumos com 3,50 m2, sala com 10,30 m2, quartos (3) com 6,90m2, 6,35 m2 e 9,55 m2, um corredor de circulação com 5,25 m2 e instalações sanitárias com 3,25 m2;
Motivando tal decisão, o Tribunal a quo considerou o que extensamente consta supra transcrito em 3 – OS FACTOS, aqui dado por reproduzido, a fim de evitar repetições, mas rememorando-se de seguida o seguinte trecho:
Para prova e não prova da restante factualidade, o Tribunal formou a sua convicção na prova documental junta aos autos, na inspecção ao local e na prova testemunhal produzida.
A composição do prédio referido no ponto 1), em termos de divisões existentes e, a olho nu, as suas dimensões, foram observadas pelo Tribunal na própria inspecção ao local. As medidas exactas, patentes nos pontos 5) e 6), resultam do levantamento topográfico junto com a petição inicial, que foi corroborado pela testemunha EE, que o elaborou e que confirmou que visitou o local e fez as medições necessárias.
Com o que discordam os apelantes, que pretendem que sejam eliminados tais factos, dado que o recorrente, para além de aludir nas alegações ao texto do referido artigo 3.º junto com a petição, com vista a demonstrar que o autor desse documento não assegurou nem podia ter assegurado, ao contrário do que a sentença supõe, que o prédio do autor tem a composição descrita nos pontos 1, 5 e 6 da matéria de facto, transcreveu da gravação da prova passagens do depoimento da testemunha, EE, autor desse documento, que confirmou que foi contratado pelo autor para o elaborar, não conhecia o prédio do autor pelo exterior e procedeu às medições do prédio deste apenas pelo interior.
Entendendo os RR. recorridos que não lhe assiste razão, pois o documento n.º ... junto com a petição inicial – um levantamento topográfico – foi oferecido para prova do artigo 3º, sendo que na contestação, a R. impugnou o documento em mérito por “desconhecer a autoria da respetiva letra e assinatura e ainda por desconhecer se o mesmo representa, pelo menos com rigor, o prédio a que se faz referência nos artigos anteriores”, não arguindo a falsidade do mesmo, e confrontado com o documento em audiência de julgamento, o seu autor, a testemunha EE, confirmou, a instâncias da então Ilustre Mandatária da Ré, a sua autoria, as medições dos diversos cómodos que visitou. (…) Pela R. não foi suscitado qualquer incidente suscetível de abalar o depoimento da testemunha, nomeadamente mediante o incidente de contradita – artigos 521º e 522º do CPC. A credibilidade da testemunha que elaborou o levantamento topográfico não foi, pois, posta em causa. (…) Se a R. queria pôr em causa a autenticidade do documento em mérito deveria ter suscitado o competente incidente de falsidade, o que não fez; menos ainda tendo oferecido prova em sentido contrário. (…) Estabelecida ficou, assim, a genuinidade do documento particular, uma vez que a apresentante demonstrou a sua veracidade, logo estabelecida ficou a sua força probatória plena, sendo certo que, se assim não fosse (e é) sempre constituiria meio de prova a ser livremente apreciado pelo julgador (vd. conclusões a 11ª das contra-alegações).
Quid iuris?

Antes de mais, diga-se que a R. impugnou efectivamente o documento em causa - levantamento topográfico -, por “desconhecer a autoria da respetiva letra e assinatura e ainda por desconhecer se o mesmo representa, pelo menos com rigor, o prédio a que se faz referência nos artigos anteriores”, não tendo, todavia, arguido a falsidade do mesmo. E, em audiência de julgamento, o autor de tal documento, a testemunha EE, confirmou a sua autoria e corroborou-o, tendo confirmado que visitou o local e fez as medições necessárias, prestando todos os esclarecimentos pretendidos. Assim tendo também contribuído para a formação da convicção do Tribunal, que na motivação mencionou especificando, a prova que foi considerada.
Ora, quanto a esta concreta impugnação da matéria de facto, revisitada a respectiva prova produzida, tendo-se ouvido o depoimento da citada testemunha EE, não se logrou adquirir convicção diferente daquela obtida pelo Tribunal da 1ª instância. Mesmo sem a mais valia que representa a imediação, não nos ficaram quaisquer dúvidas quanto à credibilidade atribuída ao depoimento, bem como ao documento em causa. Verificando-se, pois, não resultar da argumentação usada nas alegações, qualquer fundamento para alteração da decisão de facto tomada na 1ª instância, quanto à matéria em apreço, tanto mais que aquando da “Fundamentação”, o Tribunal a quo fez uma análise crítica e detalhada de toda a prova produzida nos autos. Com efeito, na decisão proferida sobre a matéria de facto, a Mmª Juiz, que desenvolveu a fundamentação da sua decisão de modo criterioso e aprofundado, apreciando criticamente a prova produzida, deixou bem claros os motivos do seu julgamento, referindo o que lhe mereceu credibilidade e porquê, esclarecendo por forma a permitir compreender o raciocínio lógico que conduziu à decisão sobre a matéria de facto que nela se mostra explanada, com os fundamentos que aqui acolhemos porque os compreendemos. Verificando-se, pois, da motivação da decisão de facto, que o Tribunal a quo na sentença analisou criticamente as provas e formou livremente a sua convicção, sem a violação de qualquer imposição legal quanto ao ónus ou necessidade de meio probatório para ser dado determinado facto como provado ou não provado.
O que os recorrentes pretendem é impor a sua própria versão e ilações, às convicções do Tribunal, o que não é admissível.
Para alterar a matéria de facto dada como provada ou como não provada na sentença, é necessário demonstrar concretos meios de prova que existam no processo ou no registo da gravação, que imponham decisão diversa à constante na sentença e não alegar convicção diferente à convicção do Tribunal.
Os apelantes, no essencial, dissentem da decisão, assentando exclusivamente na sua versão dos factos e interpretação que entendem deles resultar.
Porém os apelantes, em abono da alteração dos factos, não podem fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa.
E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjectiva convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem julga é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, devem eles efectivar uma concreta e discriminada análise objectiva, crítica, lógica e racional de toda a prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão. O que não fizeram.

Logo, porque todos os elementos convocados pelo tribunal a quo constam do processo e foram devidamente ponderados, decide-se pela improcedência da impugnação desta matéria de facto.
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Passemos, finalmente, à questão da reapreciação do mérito da acção.

IV) Da reapreciação da decisão de mérito da acção

Fixada a matéria de facto, que não sofreu qualquer alteração, levando em conta as conclusões do recurso, passemos agora à também pretendida reapreciação da decisão de mérito da acção, pois entendem os recorrentes que nem assim a sentença se pode manter, por mal fundada, por um lado, porque as aberturas questionadas respeitam inteiramente as condições postas no n.º 2 do artigo 1363.º do Código Civil, e, por outro lado, mesmo que assim não fosse, e as medidas das referidas aberturas fossem desconformes ao previsto no n.º 2 dessa norma, nunca o pedido podia proceder. E ainda que se entendesse que as aberturas em questão violavam os limites estabelecidos pelo artigo 1362.º, n.º 2 do Código Civil, como a sentença supõe, certo é que elas nunca poderiam ser consideradas aberturas suscetíveis de conduzir à aquisição da servidão de vistas por usucapião, sempre “podendo ser eliminadas a todo o tempo a pedido do proprietário vizinho, independentemente de este fazer ou não qualquer edificação que as tape, ou substitui-las por outras aberturas que obedeçam às exigências da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 1363.º do mesmo código” já que “por frestas, seteiras ou óculos para luz e ar têm de entender-se as aberturas que não permitam ver e devassar o prédio vizinho alheio, por nela não caber uma cabeça humana”. Sendo que a condenação da ré (alínea e) “a afastar o telheiro referido no ponto 16) 1,50 m da abertura referida no ponto 23) em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e luz por tal abertura”), é também ilegal e inadmissível, quer porque o réu não pode ser condenado a repor uma situação para a qual não contribuiu, ou, pelo menos, não se alegou nem provou que tivesse contribuído, quer porque essa condenação está em desconformidade com o pedido, quer, por último porque fossem quais fossem as circunstâncias o autor só poderia pedir a demolição da obra e nunca a sua substituição.
Entendendo os recorridos que a Mmª Juiz a quo decidiu, e bem, que a favor do prédio do A. existe, constituída por usucapião, uma servidão de vistas, ar e luz sobre o prédio da R. Tendo a decisão recorrida acolhido a orientação de grande parte da doutrina e jurisprudência (que a recorrente contorna) que entende que o conceito de janela é obtido pela negativa (por defeito): será janela toda a abertura que não possa ser qualificada de fresta, seteira ou óculo de luz, seguindo, do mesmo modo, o entendimento pacífico que não podem as aberturas em causa configurar frestas, seteiras ou óculos de luz já que as referidas dimensões, quer na sua altura, quer na sua largura são superiores a 15 centímetros. (…) De qualquer modo, qualquer que seja a qualificação jurídica das aberturas dos autos, seguindo de perto os mais recentes arestos proferidos em casos semelhantes, forçoso é concluir que o caso dos autos contém uma situação “em que o direito do proprietário vizinho tem de se conformar e, portanto, de se limitar de modo a não viabilizar o seu abuso manifesto e intolerável pela ordem jurídica”. (…) Tendo as aberturas dos autos sido mantidas pacificamente durante 47 anos, nada justifica “a razão da mudança de postura” da R. que se mostra intolerável, abusiva, injustificada, desafiadora e francamente sem interesse atendível à luz do direito. (…) Sempre sendo de considerar que age com abuso de direito o proprietário que, no contexto como o provado nos autos, sem motivo atendível, ao fim de quarenta e sete anos, decide proceder à tapagem de duas aberturas afetando o arejamento e a iluminação dos cómodos onde as mesmas se situam e a casa dos AA. de um modo geral.
Quid iuris?

Comecemos por rememorar a decisão de direito na sentença recorrida em consonância com os factos dados como provados:
Os Autores intentaram a presente acção alegando que são proprietários (Autora Herança) e usufrutuário (Autor) do prédio melhor descrito no artigo 1.º da petição inicial e que se encontra constituída uma servidão de vistas a favor de tal prédio, que onera o prédio da Ré.
Alegou ainda o Autor que o comportamento da Ré – tapar as aberturas com canoas, painéis de madeira e tela – lhe causou danos não patrimoniais.
Por fim, os Autores defendem que sofreram danos patrimoniais também em virtude da tapagem de tais aberturas.
Vejamos, separadamente, cada uma das questões a decidir.
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Da propriedade do prédio referido no ponto 1) e constituição do direito de usufruto
Conforme decorre do ponto 1) da matéria de facto provada, a aquisição dos prédios aí referidos encontra-se registados a favor do Autor e de BB desde 1976.
Ademais, ficaram provados diversos actos de posse sobre tal prédio por parte do Autor, tais como a realização de obras e usar o prédio como sua habitação, à vista de toda a gente e sem oposição.
A própria Ré não coloca em causa que a aquisição do referido prédio está registada a favor do Autor e da sua falecida esposa, apensas impugnando a composição de tal prédio.
Porém, a composição do prédio da Autora Herança encontra-se provada – pontos 1), 5) e 6), pelo que se reconhecerá, em sede de dispositivo, tal direito de propriedade, com a composição que se apurou em juízo.
Por outro lado, ficou provado que, por testamento outorgado a 25/07/2013, BB declarou legar, por conta da quota disponível, o usufruto de todos os seus bens ao Autor, tendo a primeira já falecido e fazendo o prédio em causa parte da referida herança.
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Da servidão de vistas

Nos termos do art.º 1543.º do C.Civil, “a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia” (sublinhado nosso).
As servidões podem ser constituídos por contrato, testamento, usucapião ou por destinação do pai de família (cfr. art.º 1547.º do C.Civil).
Dispõe o art.º 1287.º do C.Civil, na secção dedicada à usucapião, que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação” (destacado e sublinhado nosso).
Ao exposto chama-se usucapião.
Quando se constituem por usucapião, as servidões não podem ser não aparentes, ou seja, têm de se revelar por sinais visíveis e permanentes (cfr. art.º 1548.º do C.Civil).
Ora, no caso concreto estamos perante uma alegada servidão de vistas, constituída por usucapião, pelo que teremos de atender ao disposto nos arts.º 1360.º, 1362.º e 1363.º do C.Civil.
O art.º 1360.º do C.Civil prevê as regras que o proprietário que quer abrir janelas, portas, varandas e obras semelhantes no seu prédio terá de cumprir para o fazer. Assim, o seu n.º 1 prevê que “o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio” (destacado nosso). Tal restrição aplica-se igualmente “às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela” (cfr. n.º 2 do mesmo normativo).
Porém, determina o n.º 1 do art.º 1362.º do C.Civil que “a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei[11] pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião” (sublinhado e destacado nosso).
Consequentemente, terá de se avaliar se a servidão de vistas se constituiu tendo em consideração os prazos previstos nos arts.º 1295.º e seguintes do C.Civil, referentes à usucapião de imóveis.
Nos bens imóveis, não existindo registo do título nem da mera posse, “a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé” (cfr. art.º 1296.º do C.Civil).
Importa, pois, analisar o que se entende por posse e quais os diferentes tipos de posse.
O art.º 1251.º do C.Civil define posse como “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
A posse é demonstrada a partir da prática por quem alega ser possuidor de actos próprios do proprietário, como sejam a administração e/ou a fruição da coisa (elemento material – corpus), bem como da intenção do possuidor de se comportar como proprietário (elemento psicológico – animus).
Em termos de aquisição, determina o art.º 1263.º do C.Civil que a posse pode ser adquirida “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”, “pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor”, “por constituto possessório” ou “por inversão do título da posse”.
No caso das servidões de vistas, apenas se pode falar de início da posse quando a abertura está concluída e em condições de se ver e de se devassar o prédio vizinho. Consequentemente, a posse exerce-se apenas com a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante, e não com a efectiva devassa, diária, pelo proprietário do prédio vizinho. A abertura em causa não poderá estar definitivamente fechada[12].
As modalidades de posse estão elencadas no art.º 1258.º do C.Civil (“a posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”), definindo a lei nos artigos seguintes cada um dos conceitos avançados.
Importa ainda referir que a posse admite a existência de sucessão. Assim, “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa” (cfr. art.º 1255.º do C.Civil).
Uma vez constituída tal servidão, “ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras” (sublinhado nosso; cfr. n.º 2 do art.º 1362.º do C.Civil).
Tal restrição apenas se aplica na extensão da abertura em causa, não se prejudicando, igualmente, a entrada de ar e de luz.
Já o n.º 1 do art.º 1363.º do C.Civil esclarece que “não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas” (destacado e sublinhado nosso). Ou seja, não se aplicam as restrições de um metro e meio prevista no n.º 2 do art.º 1362.º do C.Civil.
Porém, para que uma abertura se considera uma fresta, seteira ou óculos para luz e ar, esta deve-se situar “pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado” e não deve ter numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram” (sublinhado nosso; cfr. n.º 2 do art.º 1363.º do C.Civil).
Caso a abertura não respeite as medidas indicadas (qualquer uma delas), não será considerada uma fresta, seteira ou óculo, não sendo, assim, uma abertura de tolerância e tendo de respeitar os limites impostos pelo art.º 1360.º do C.Civil[13].
Vejamos o caso concreto.
Ficou provado que, na empena lateral do prédio referido no ponto 1), que dá para o logradouro do prédio da Ré, existem duas aberturas, cada uma numa divisão diferente (dois quartos de dormir, um usado actualmente como sala de estar), com caixilhos de alumínio.
Quanto à abertura presente na divisão utilizada como sala de estar (primeira divisão quem entra pela cozinha), ficaram provadas as seguintes medidas:
1) 36 cm de largura;
2) 79 cm de altura;
3) 14 cm de largura do lado esquerdo (fora da abertura);
4) 15 cm de largura lado direito (fora da abertura);
5) 87 cm de altura o pilar de cimento existente na abertura;
6) 58 cm de comprimento - o parapeito;
7) 101 cm de altura do parapeito ao chão;
8) 186,5 cm de altura do topo da janela até ao chão.
Já quanto à abertura presente na divisão utilizada como quarto (segunda divisão quem entra pela cozinha), ficaram provadas as seguintes medidas:
1) 36 cm de largura;
2) 80 cm de altura;
3) 14 cm de largura do lado esquerdo (fora da abertura);
4) 15 cm de largura lado direito (fora da abertura);
5) 8 cm pilar de cimento existente no meio da abertura;
6) 86 cm de altura o pilar de cimento existente na abertura;
7) 52 cm de comprimento - o parapeito;
8) 99 cm de altura do parapeito ao chão;
9) 184 cm de altura do topo da janela até ao chão.

Tendo em consideração tais medidas, torna-se óbvio que as aberturas em causa não podem ser qualificadas como aberturas de tolerância, nos termos do art.º 1363.º do C.Civil, já que ambas têm, em algumas das suas dimensões, mais de 15 cm. Desde logo, têm mais de 15 cm de altura (79 cm no caso da primeira e 80 no caso da segunda) e de largura (ambas com 36 cm).
Consequentemente, conforme já explanado, são aberturas que teriam de respeitar o disposto no art.º 1360.º do C.Civil, guardando a distância de um metro e meio para o prédio vizinho.
Tal não acontece, já que as aberturas em causa se encontram na empena lateral do prédio referido no ponto 1), que dá para o logradouro do prédio da Ré.
Contudo, também ficou provado que as aberturas existem, pelo menos, desde a data de aquisição pelo Autor e sua esposa do prédio referido no ponto 1), ou seja, 17/08/1976, com a mesma configuração (apenas mudando a caixilharia) e que o Autor as tem vindo a usar para iluminar e arejar os compartimentos por elas servidos e a casa, de um modo geral, à vista de todos, sem oposição de ninguém.
Assim, têm sido praticados actos de posse de forma pacífica (não ficou provado qualquer facto que demonstre que a posse foi obtida através de coação física ou moral – cfr. art.º 1261.º do C.Civil) e pública (não oculta), por poderem ser conhecidos pelos seus interessados (cfr. art.º 1262.º C.Civil).
Não existe registo nem da posse, nem da mera posse, pelo que a posse em causa é não titulada. Contudo, a mesma ocorre há mais de 40 anos, pelo que qualquer um dos prazos previstos no art.º 1296.º C.Civil (quer o de quinze anos, quer o de vinte anos) estão ultrapassados.
Pelo exposto, constituiu-se uma servidão de vistas a favor do prédio da Autora nos termos do art.º 1362.º n.º 1 do C.Civil, o que terá de ser reconhecido e respeitado pela Ré.
A usucapião tem efeito retroactivo (cfr. art.º 1288.º do C.Civil), pelo que a servidão de vistas se constituiu a 17/08/1976.
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Dos efeitos da constituição da servidão de vistas

Recordemos que, “constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras” (destacado e sublinhado nosso; cfr. art.º 1362.º n.º 2 do C.Civil).
Ora, ficou provado que, a 28/08/2008, no logradouro do prédio da Ré, começaram a ser executadas obras de construção de um telheiro com estrutura constituída por barrotes de madeira, uma viga em madeira, travejamento horizontal em madeira, assente sobre pilares de cimento e com cobertura de placas de zinco, tipo Lusalite.
Já em 2021, em data que não foi possível precisar, o mencionado telheiro foi fechado com painéis de zinco, tipo Lusalite e parcialmente transformado em arrecadação onde se encontram umas canoas pertencentes a DD.
Tal construção não se encontra a um metro e meio da segunda abertura existente no prédio da Autora – ponto 23) –, violando, assim, o n.º 2 do art.º 1362.º do C.Civil.
Consequentemente, terá a Ré de ser condenada a afastar o telheiro referido no ponto 16) um metro e meio da abertura referida no ponto 23), em toda a sua extensão, não prejudicando a entrada de ar e de luz por tal abertura.
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Dos danos patrimoniais e morais

Vieram os Autores alegar que a tapagem da abertura pela Ré fez com que aparecessem humidades nas duas divisões onde se encontram tais aberturas, sendo necessário limpar e pintar as paredes de tais divisões, o que teria um custo de 1.193,10 €.
Ademais, veio o Autor alegar que o referido comportamento lhe causou danos morais.
Estaríamos, pois, perante um caso de responsabilidade civil extracontratual, prevista nos arts.º 483.º[14] e ss do C.Civil.
Todavia, não ficou provado que a tapagem das aberturas tivesse provocado o aparecimento de humidades.
Por outro lado, apesar de se ter provado que o Autor ficou ansioso, nervoso e preocupado, a realidade é que tal adveio da tapagem das aberturas, que não se provou ter sido efectuada pela Ré.
Uma coisa é a responsabilidade da Ré, que se trata de uma herança, outra é a responsabilidade individual dos herdeiros da Ré.
Apenas ficou provado que as canoas eram do herdeiro DD. Nem sequer ficou provado quem tapou as referidas aberturas, até porque tal nem foi alegado pelos Autores, que se limitaram a alegar que “alguém” o fez e que as canoas eram do referido herdeiro.
Não se provando quem praticou o facto lesivo e, no caso dos danos patrimoniais alegados, não se provando sequer os danos, não se provaram os pressupostos necessários para que se aplique o instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Pelo exposto, terá o pedido dos Autores de improceder nesta parte.

Ora, diga-se desde, já que a sentença recorrida não merece qualquer espécie de censura, já que não violou nenhuma disposição legal ou convencional em vigor. Antes se mostrando adequada e correcta face à factualidade apurada e aos normativos aplicáveis, nada mais se impondo acrescentar, aderindo-se à apreciação jurídica da causa nos seus precisos termos, aqui também dados por reproduzidos, a fim de evitar repetições.
Efectivamente, como assertivamente se decidiu na decisão recorrida, em face da factualidade apurada, existe constituída por usucapião a favor do prédio do A., uma servidão de vistas, ar e luz sobre o prédio da R. Esta decisão acolheu a orientação da doutrina e jurisprudência que também seguimos, que entende que o conceito de janela é obtido pela negativa (por defeito) - será janela toda a abertura que não possa ser qualificada de fresta, seteira ou óculo de luz -, e que não podem as aberturas em causa configurar frestas, seteiras ou óculos de luz já que as referidas dimensões, quer na sua altura, quer na sua largura são superiores a 15 centímetros[15].
De qualquer modo, qualquer que seja a qualificação jurídica das aberturas dos autos, seguindo de perto os mais recentes arestos proferidos em casos semelhantes, forçoso é concluir que o caso dos autos contém uma situação “em que o direito do proprietário vizinho tem de se conformar e, portanto, de se limitar de modo a não viabilizar o seu abuso manifesto e intolerável pela ordem jurídica[16].
Lembrando-se que, in casu, se apurou que na empena lateral da parede do prédio do A. existem, duas aberturas à data com caixilhos em alumínio (anteriormente em madeira) que deitam para o lado do logradouro da R. e que permitem a entrada de luz e ar nas divisões que servem, cujas são dois quartos, sendo um usado como sala de estar; que desde 1976 – há mais de 40 anos – o A. tem vindo a usar essas aberturas para iluminar e arejar os compartimentos que são por elas servidos, à vista de todos e sem oposição de ninguém (…), que no logradouro do prédio da R. foi, no ano de 2008, construído um telheiro, obra da qual o A. não foi informado ou consentiu na mesma; que em 2021, tal telheiro foi fechado com painéis de zinco, tipo lusalite e parcialmente transformado em arrecadação, trabalhos que não foram licenciados pela Câmara Municipal (…), que em outubro de 2021, as descritas aberturas foram tapadas com umas canoas que, até então, estavam no solo do telheiro /arrecadação, que interpelado para retirar as canoas DD (um dos herdeiros da R.), o mesmo nada fez e as aberturas foram tapadas com painéis de madeira e tela, o que impede a entrada de luz e ar nos cómodos onde as aberturas se situam (…), e que notificado para demolir o telheiro e retirar as canoas e os painéis, o cabeça de casal da R. nada fez.
E quanto à questão da condenação ser ilegal e inadmissível, quer porque o réu não pode ser condenado a repor uma situação para a qual não contribuiu, ou, pelo menos, não se alegou nem provou que tivesse contribuído, quer porque essa condenação está em desconformidade com o pedido, quer, por último porque fossem quais fossem as circunstâncias o autor só poderia pedir a demolição da obra e nunca a sua substituição, já nos pronunciámos supra, aquando da análise da suscitada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, que inexiste, sendo intuitivo que a condenação no afastamento do telheiro é um minus face ao pedido de demolição do telheiro.

Logo, não assistindo qualquer razão aos recorrentes RR., improcede totalmente o recurso, com custas a pagar pelos mesmos (art. 527º do CPC).
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e consequentemente manter a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
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Guimarães, 23-05-2024
                                                              
(José Cravo)
(Eva Almeida)
(Alcides Rodrigues)


[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, ... - JL Cível
[2] Como já supra referido, esta rectificação já foi feita, estando já a versão correcta incorporada na transcrição da matéria de facto assente no que concerne ao ponto 16), pelo que esta questão se mostra prejudicada.
[3] Arts.º 363.º n.º 2 1.ª parte e 371.º n.º 1, ambos do C.Civil.
[4] Ver Abílio Neto In “Código do Processo Civil”, Anotado, 14.ª ed., pág. 702 e Acórdão da Relação de Lisboa, de 2.07.1969, publicado JR, 15.
[5] In Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, pag. 143.
[6] Vd. A. dos Reis, In “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume V, pag. 130.
[7] In “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192.
[8] In “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420.
[9] In B.M.J. nº 112, pág. 190.
[10] In obra supracitada.
[11] Ou seja, em contravenção do disposto no art.º 1360.º do C.Civil, não respeitando a distância de um metro e meio.
[12] Neste sentido, vide PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª Ed., Almedina, Fevereiro de 2011, pág. 219. 
[13] Vide PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 223.
[14] Art.º 483.º n.º 1 do C.Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
[15] Cfr. Acs. do STJ de 22-04-2004 e 15-05-2008, prolatados respectivamente nos Procs. nºs. 04B652 e 08B1368, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[16] Vd. por todos, o Ac. desta RG de 15-11-2018, proferido no Proc. nº 1724/15.3T8VRL.G1 e acessível in www.dgsi.pt.