Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
446/20.8T8MNC.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
PAGAMENTO DO PREÇO
TITULARIDADE DAS QUANTIAS
PROPRIEDADE DO BEM
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

.1-- A cumulação de pedidos consiste na integração de pretensões distintas num mesmo processo; para que seja admissível exige-se que os pedidos, quando não são formulados subsidiariamente, não sejam contraditórios entre si ou nos seus fundamentos, que o reconhecimento de um não implique a negação de outro.
.2 --Além disso:
-- a cumulação não pode ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia (artigo 37º nº 1 ex vi artigo 555º, ambos do Código de Processo Civil );
-- aos pedidos tem de corresponder a mesma forma de processo ou, quando exista interesse relevante ou a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio, a tramitação das formas dos processos não pode ser manifestamente incompatível, cabendo, então, ao juiz adaptar o processado à cumulação autorizada (nº 2 desse preceito)
-- não pode existir inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente (nº 4 deste artigo).
.3- Estes critérios têm que ser apreciados casuisticamente, em concreto, perante cada processo e situação real, não só para a apreciação da grave inconveniência na cumulação, como no restante, como a tramitação do processo exigida pelos concretos pedidos e estado dos autos ou mesmo a determinação do tribunal competente: só assim se logra alcançar o objetivo da lei, que é permitir a cumulação de pedidos, exceto se esta tiver consequências gravosas para o processo e, em consequência, na decisão do pleito.
.4- Fora das situações impostas pelo regime de casamento, não é a titularidade das quantias utilizadas para o pagamento do preço de um bem que determina a propriedade do mesmo: a transmissão da propriedade por via do contrato de compra e venda é independente do efetivo pagamento do preço
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Autora e Apelante: G. M.
Réus e apelados: J. P., L. P., T. M. e N. S.,

Autos de: apelação em separado (em ação especial de divisão de coisa comum)

O presente recurso vem interposto da decisão que julgou inadmissível a cumulação de pedidos formulada pela Autora e absolveu os réus da instância quanto ao segundo pedido formulado.
A Autora veio intentar a presente ação de divisão de coisa comum, pedindo que se proceda à venda do veículo automóvel que identifica e ainda que seja reconhecida a união de facto existente entre si e o pai dos Réus.
Alega, em síntese, que a Autora e o progenitor dos Réus, falecido, viviam em união de facto, análoga à dos cônjuges, desde 2015 até à data do falecimento deste, contribuindo ambos para o sustento do lar, sendo predominante a contribuição da Autora, que sempre trabalhou; ambos contraíram um empréstimo pessoal para a compra do veículo automóvel objeto destes autos e foi sempre a autora que realizou o pagamento das suas prestações, sendo a Autora e os Réus donos e legítimos possuidores, cada um, de 1/2 indiviso do veículo acima identificado.
Mais invoca os requisitos do enriquecimento sem causa, remetendo para os artigos 473º, nº 1, e 474º do Código Civil, afirmando que a única forma da Autora se ver ressarcida de tudo aquilo que contribuiu para a compra do veículo é a presente ação.
Os Réus contestaram, invocando, em súmula, a incompatibilidade dos dois pedidos formulados, por seguirem diferente forma de processo e ofenderem regras de competência em razão de matéria. Também excecionaram a ilegitimidade dos Réus e impugnaram, defendendo que a autora e o seu pai terminaram a sua relação mais de um antes do falecimento deste.
A Autora respondeu.
Foi proferido despacho que julgou a cumulação inadmissível e, consequentemente, absolveu os réus da instância quanto ao segundo pedido.

É desta decisão que recorre a Autora, formulando as seguintes
conclusões

“1) A recorrente alegou e solicitou o reconhecimento da união de facto entre a mesma e os pais dos recorridos, para demonstrar que os mesmos viviam como marido e mulher fossem,
2) E que no âmbito dessa relação compraram para a utilização do referido casal o veículo que se solicita agora a divisão.
3) Apesar da lei civil não reconhecer efeitos patrimoniais a união de facto,
4) A recorrente entende que será importante o reconhecimento da referida união por parte do Tribunal a quo,
5) Pois o bem a partilhar foi comprado com o dinheiro de duas pessoas que viviam de forma marital,
6) E com o dinheiro fruto dos seus rendimentos compraram um veículo para ser disfrutado pelo casal.
7) No caso dos autos não estamos a falar de uma compropriedade de dois sócios que não estavam ligados uma relação sentimental,
8) Estamos perante um caso especial, em que um membro da união de facto comprou o veículo com o dinheiro de duas pessoas que viviam juntas (como marido e mulher),
9) E registou o veículo a seu nome por uma questão de mera comodidade.
10) Por mais que se entenda que o reconhecimento da compropriedade não possa ser alcançado através do pretendido reconhecimento da união de facto,
11) O reconhecimento da união de facto irá demonstrar o porquê a recorrente não fez questão de registar o veículo a seu nome, o que ocorreria em um caso em que não se verificasse uma união que os membros confiam plenamente um no outro.
12) Com o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo não esteve acertado julgar a cumulação de pedidos (realizados pela Autora na sua petição inicial) como inadmissível e em consequência absolveu os recorridos do pedido.
13) Pois a apreciação conjunta das duas pretensões é indispensável para a justa composição do litígio.
14) A decisão recorrida violou o disposto no artigo 37, nº 2 do CPC.”.

II - Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, caso os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das conclusões do recurso, são as seguintes as questões que cumpre apreciar quanto ao primeiro recurso sobre a arguição da nulidade invocada pela Apelante:

1- se se verificam os pressupostos que permitem a cumulação do pedido de venda do bem, como forma de extinguir a comunhão, com o pedido de reconhecimento da união de facto.

III- Fundamentação de Facto

Não há outros factos, para além dos de natureza processual já supra enunciados, que relevem para a apreciação do recurso.

IV- Fundamentação de Direito

Importa verificar os
pressupostos da cumulação de pedidos.

A cumulação de pedidos consiste na integração de pretensões distintas num mesmo processo. Tem a vantagem de reduzir a quantidade de processos existente nos tribunais, com proveito na utilização de meios e custos, para o sistema e para os cidadãos, e nos casos em que exista conexão entre eles, acautelar a duplicação de processos respeitantes aos mesmo grupo de factos, evitando-se decisões contraditórias.
É permitida no nosso processo civil como uma vertente em que se traduz o princípio da tutela efetiva, mas impondo-se-lhe limitações que visam evitar que o objeto processual seja de tal forma complexo e plúrimo que não seja passível de uma apreciação adequada e em prazo razoável.
Encontra-se prevista no artigo 555º do Código de Processo Civil, o qual estipula que o Autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.
Assim, para que esta cumulação opere, em primeiro lugar, exige-se que os pedidos, quando não são formulados subsidiariamente, sejam substancialmente compatíveis, isto é, que não sejam contraditórios entre si ou nos seus fundamentos, que o reconhecimento de um não implique a negação de outro.
A falta de compatibilidade substantiva dos pedidos objeto de cumulação real (simples, não aparente) determina a ineptidão da petição inicial, atenta a incompreensibilidade da petição inicial que advirá da sua contraditoriedade -artigo 186º nº2, alínea c) do Código de Processo Civil.
Na primeira instância foi já decidida, com trânsito em julgado, a compatibilidade substantiva dos pedidos formulados, pelo que não há que apreciar essa questão.
Assim, apenas cumpre ver se se verificam os pressupostos processuais dessa cumulação; a lei remete, na sua definição, para a inexistência das circunstâncias que impedem a coligação, previstas que estão no artigo 37º do Código de Processo Civil.

Esta norma exige:
-- em primeiro lugar, que a cumulação não ofenda regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia (nº 1 deste artigo);
-- em segundo lugar, que aos pedidos corresponda a mesma forma de processo ou, quando exista interesse relevante ou a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio, que a tramitação das formas dos processos não seja manifestamente incompatível, cabendo, então, ao juiz adaptar o processado à cumulação autorizada (nº 2 desse preceito)
-- e por fim, que não exista inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente (nº 4 deste artigo).

Estes critérios têm que ser apreciados casuisticamente, em concreto, perante cada processo e situação real, não só para a apreciação da grave inconveniência na cumulação, como no restante, como a tramitação do processo exigida pelos concretos pedidos e estado dos autos ou mesmo a determinação da competência do tribunal (tendo-se em conta que há normas que levam a que em determinados casos se apensem processos de diferentes jurisdições, vg no caso das insolvências e que os processos podem seguir diferentes caminhos, consoante exista ou não contestação, por exemplo). Só assim se logra alcançar o objetivo da lei, que é permitir a cumulação de pedidos, exceto se esta tiver consequências gravosas para o decurso do processo e em consequência na decisão do pleito.

O tribunal recorrido analisou a questão apenas quanto à forma do processo, considerando implicitamente que a cumulação não ofendia as regras de competência internacional, da matéria e da hierarquia, com o que se concorda, porquanto o artigo 8º nº 3 da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio atribui competência para declarar a dissolução da união de facto ao tribunal que à partida é competente para decretar os efeitos que o interessado pretende retirar dessa dissolução. (Neste caso a Autora invoca uma situação em que a união de facto está extinta -mais que não fosse por força do óbito do pai dos Réus, como decorre do artigo 8º nº 1 alínea a) desta Lei-, embora pedindo o seu reconhecimento, sem mencionar tal extinção, mas há que entender o seu pedido conformado pela causa de pedir, interpretando-o no seu contexto.)
Ultrapassada a questão da competência material, analisemos em que medida a circunstância de ser diferente a forma dos processos adequada a cada um dos pedidos influência a possibilidade de os cumular.
- A influência da forma do processo na admissibilidade da cumulação dos pedidos
Determina-se a forma de processo em função do pedido deduzido pelo Autor em sede de petição inicial, enformado pela causa de pedir em que se sustenta.
O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial (artigo 546º nº 2 do Código de Processo Civil).
Assim, para determinar o tipo de processo que corresponde ao pedido, verifica-se em primeiro lugar se existe alguma forma especial de processo prevista para o pedido formulado, seja no próprio Código de Processo Civil, seja noutra legislação. Só se não existir é que se segue o processo comum.
A própria Autora invoca que a ação que interpõe é uma ação de divisão de coisa comum, formulando a final o pedido de venda do bem, considerando que o mesmo será indivisível.
Mas, em cumulação, peticiona também que seja “reconhecida a união de facto existente entre a Autora e o pai dos Réus”. Pretende, pois, nesta parte, que o tribunal declare a existência de uma situação jurídica, objeto típico de uma ação declarativa de declaração, prevista no artigo 10º nº 3, alínea a) do Código de Processo Civil, no que ao fim diz respeito e, porque nenhum processo foi especialmente desenhado para a sua apreciação, sujeito ao processo comum, nos termos do artigo 546º nº 2 do Código de Processo Civil.
A ação especial de divisão de coisa comum, adequada ao primeiro pedido, que se destina a pôr termo à contitularidade de direitos (artigos 925º do Código de Processo Civil e 1412.º do Código Civil), compreende duas etapas distintas, uma declarativa, destinada a apreciar e decidir a existência e os termos do direito à divisão, como a compropriedade e a divisibilidade da coisa, e outra, executiva, destinada a materializar que o foi apurado na fase declarativa.
A fase declarativa processa-se, em regra, de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, exceto se o juiz verificar que a questão não pode ser decidida sumariamente, passando então o processo a seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum. - artigo 926º nº 2 e 3 do Código de Processo Civil.
Já se tem entendido que no processo especial de divisão de coisa comum é sempre admissível a cumulação de pedidos que sigam o processo comum, em razão da forma, (tal como a formulação de pedido reconvencional), por este tipo de processo prever a eventualidade deste tipo de ação seguir os termos do processo comum.
Não logramos concordar, na sequência do que afirmámos supra: o processo de divisão de coisa comum é um processo especial, cuja fase declarativa foi desenhada para ser, em regra, simplificada. Assim, o facto de poder seguir o iter do processo comum após a contestação não implica que não deva ser atendida a existência de uma divergência de forma de processo, nos termos previstos no nº 2 do artigo 37º do Código de Processo Civil, nos casos em que se pretenda alargar o âmbito do processo, seja pela coligação, pela cumulação de pedidos, seja pela reconvenção.
Esta divergência na forma do processo impõe que, nestes casos, para que possa ocorrer a cumulação, se encontre na mesma um interesse relevante ou que a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. Só essa especial vantagem na cumulação justifica que se criem condições para o processo se tornar mais complexo e demorado, com a inerente dificuldade que tal pode trazer ao seu objetivo: a aplicação da justiça, tempestivamente.
Só caso a caso se poderá ir encontrando o que se entende por “interesse relevante” e em que situações é necessária a apreciação conjunta das pretensões para a justa composição do litígio. No entanto, no primeiro caso, exige-se sempre que surja um benefício para quem se quer fazer valer desta cumulação e que tal situação tenha tutela jurídica com amplitude suficiente para se considerar que o nosso sistema jurídico lhe atribui importância. No segundo caso, exige-se que o conhecimento de ambas as pretensões crie condições para que o litígio seja julgado de modo mais global, permitindo uma solução mais equitativa ou mais abrangente.
Entendeu-se na decisão recorrida que no presente caso não ocorreu nenhuma destas situações.
Lida a petição, no seu todo, verifica-se que a Autora pretende ver declarado que viveu em união de facto com o pai dos Réus, por um lado e por outro, vendo reconhecido o seu direito sobre o veículo automóvel, como comproprietária, terminar com essa comunhão no direito real. Na petição inicial funda-se na existência de uma união de facto para concluir que adquiriu o veículo automóvel em disputa, mas referindo também o instituto do enriquecimento sem causa. Na sequência do despacho ora recorrido, vem defender que “apesar da lei não reconhecer efeitos patrimoniais à união de facto” … “o reconhecimento da união de facto irá demonstrar o porquê a recorrente não fez questão de registar o veículo a seu nome”…
Para se poder alcançar da justeza da solução operada na primeira instância há que subir à análise substantiva das questões em debate.

- a união de facto e a aquisição da propriedade
O pedido principal formulado pela Autora tem como pressuposto que a mesma é titular do direito de propriedade sobre o veículo conjuntamente com os Réus, o que implica que a mesma tenha adquirido tal direito.
A Lei n.º 7/2001, que visa a proteção das uniões de facto, não contém um regime patrimonial geral relativamente ao património dos seus membros e as regras substantivas que regulam as relações entre os cônjuges, bem como entre estes e terceiros, são regras especiais que não compreendem aplicação analógica (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/24/2017, no processo 3712/15.0T8GDM.P1.S1, disponível no portal dgsi.pt.).
É certo que os conviventes, enquanto dura a união de facto, podem adquirir património em conjunto, mediante um esforço económico compartilhado por ambos ou só por um, assim como suportar despesas comuns só com o património um deles, colocar bens no património de um deles à custa do património comum ou do património do outro e todas estas situações têm que ter uma resposta caso se criem situações desequilibradas em grave prejuízo de algum deles.
Apesar da Lei de proteção das uniões de facto conter regras especificas que visam proteger os unidos de facto, respeitando a liberdade de quem se não quis sujeitar às regras do casamento, intervém, no âmbito do direito civil (e só deste aqui tratamos), essencialmente nos casos em que algum dos seus membros precisa de proteção adicional ou em que o tratamento diferenciado da união de facto e do casamento criaria situações injustas.
Assim, para a resolução das questões que não sofreram regulação específica no âmbito da legislação que regulou as uniões de facto, “consoante o tipo de questão em análise (titularidade dos bens, prestação de serviços ou atividade não remunerada a favor do outro, danos causados pela rutura da união, relação dos conviventes com terceiros credores…) ter-se-á de recorrer ao instituto de Direito comum que melhor se enquadrará na situação fáctica a resolver.”. (Cfr. Cristina Dias, O regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges: problemas, críticas e sugestões, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 1018, nota de rodapé n.º 1768.)
No âmbito que aqui nos toca, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo 219/14.7TVPRT.P1.S1 de 04/11/2019 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) explana lapidarmente: “À liquidação e partilha dos bens adquiridos pelos membros de uma união de facto e à míngua de enquadramento normativo próprio não se aplica o regime do casamento nem o regime de dissolução de sociedades de facto (até porque este já foi eliminado pelo atual CPC), podendo-se, contudo, recorrer ao regime de compropriedade (caso ambos os conviventes tenham tido intervenção no ato de aquisição) ou ao instituto do enriquecimento sem causa (na hipótese em que apenas um dos conviventes conste do título aquisitivo, tendo, porém, ambos contribuído para aquisição do bem, diretamente ou através da propiciação de poupanças significativas ao adquirente).

Ora, como se viu, o bem em causa – um veículo automóvel sujeito a registo - mostra-se, nos termos em que a Autora o alega, adquirido apenas pelo pai dos Réus e registado em seu nome. Defende a Autora que contribuiu com os fundos para a sua aquisição, mas como se esmiuçará, tal não determina que possa considerar-se comproprietária do mesmo, tão só que possa peticionar compensação pelo empobrecimento que sofreu com o enriquecimento a que deu causa.
Como é sabido, a propriedade pode ingressar num património por via de uma aquisição originária ou derivada.
Não é a titularidade das quantias utilizadas para o pagamento do preço de um bem que determina a propriedade do mesmo: a transmissão da propriedade por via do contrato de compra e venda é independente do efetivo pagamento do preço. A compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço, mas transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço, como dispõem os artigos 879º e 886º do Código Civil.
Está claramente expresso, no artigo 408º nº 1 do Código Civil, o princípio do nosso direito que reconhece ao contrato de compra e venda eficácia real, para além da sua eficácia obrigacional, ressalvadas as exceções previstas na lei. A lei não atribui ao simples pagamento do preço de um bem a virtualidade de o adquirir, sem que seja celebrado o respetivo contrato; da mesma forma não releva diretamente para esse efeito quem suporta ou suportou o empréstimo que permitiu custear o bem.
O contrato de compra e venda de veículos automóveis não está sujeito a qualquer forma, sendo um contrato consensual. No entanto, é obrigatório o registo de aquisição de um veículo automóvel (cf artigos 5.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Dec.-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro). O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, como é sabido (artigo 7º do Código do Registo Predial, ex vi, para os veículos automóveis, artigo 29º do Dec.-Lei n.º 54/75).
Para ilidir esta presunção, é necessário, ou fazer a prova da nulidade do registo ou demonstrar a invalidade do negócio ou ato jurídico com base no qual foi feito o registo (cf. Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência ano 118, página 307 e nada foi alegado nesse sentido) ou, ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mediante a invocação de um meio de aquisição originária do bem.
Verificar-se se ocorreu ou não enriquecimento sem causa do adquirente do bem à custa de quem suportou ou ajudou a custear o preço do bem, questão que a Autora aflora na petição inicial, é questão muito diversa da aquisição da propriedade, visto que o enriquecimento sem causa não é um instituto vocacionado à aquisição de bens, mas a criar a obrigação de restituir tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 479º nº 1 do Código Civil).
Já nas alegações de recurso refere que “Apesar da lei civil não reconhecer efeitos patrimoniais à união de facto, a recorrente entende que será importante o reconhecimento da referida união por parte do Tribunal a quo, pois o bem a partilhar foi comprado com o dinheiro de duas pessoas que viviam de forma marital e com o dinheiro fruto dos seus rendimentos compraram um veículo para ser disfrutado pelo casal. No caso dos autos não estamos a falar de uma compropriedade de dois sócios que não estavam ligados uma relação sentimental, estamos perante um caso especial, em que um membro da união de facto comprou o veículo com o dinheiro de duas pessoas que viviam juntas (como marido e mulher) e registou o veículo a seu nome por uma questão de mera comodidade.”
Ora, como se viu, os factos invocados pela Autora, integrados no que denomina união de facto (visto que não a concretizou no tempo, nem nos efetivos comportamentos em que se teria traduzido) não têm, de modo algum, a virtualidade de sustentar a aquisição da compropriedade: não basta ter pago ou ajudado a pagar o bem, para o adquirir, visto que não é o pagamento do preço que conduz à aquisição da propriedade.
Assim, é irrelevante para a decisão sobre a propriedade do veículo automóvel se ocorreu ou não qualquer união de facto entre a Autora e o pai dos Réus, nada tendo a Autora a beneficiar aqui com a declaração de que esta terá existido. Esta declaração apenas vem complicar o processo, impedindo que o mesmo seja decidido mesmo sem a produção de prova adicional. (É certo que nesta sede a Autora invocou a sua contribuição económica para o pagamento do preço com o inerente empobrecimento, mas não pediu a restituição da diferença.)
Desta forma, não existe qualquer interesse relevante na apreciação conjunta das pretensões que a Autora formulou nestes autos – a divisão da propriedade do veículo automóvel e o reconhecimento da união de facto - nem esta é indispensável para a justa composição do litígio, pelo que a diferente forma de processo adequada a ambos os pedidos implica a rejeição da cumulação, tal como decidiu a primeira instância.

II. Decisão

Pelo exposto, julga -se o recurso totalmente improcedente e, em consequência, este Tribunal confirma o despacho recorrido.
Custas pelo Apelante (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves