Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
87/24.0T8BRG.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA
REGULAÇÃO E SUPERVISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Se a parte formula o seu pedido com base exclusiva em alguns dos institutos previstos no artigo 112º, nº 3 e 4 da LOTJ, mesmo que para tanto tenha que recorrer a outros institutos como o simples direito do consumidor, a competência da ação caberá ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão; se ao formular os pedidos cumula causas de pedir, referindo o Direito da Concorrência, mas recorrendo diretamente e essencialmente a outros institutos, independentemente das consequência da ação no mercado concorrencial, fica excluída a jurisdição daquele Tribunal, por não se discutir matéria da sua exclusiva competência.
.2- Quando numa única ação são cumulados pedidos cuja competência material cabe a diversos tribunais, o tribunal onde foi proposta a ação conhece dos pedidos para os quais tem competência e absolve o réu da instância quanto aos demais.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I - Relatório

Apelante:
a Autora, AA

Apelada
a Ré, EMP01... DAC

Autos de: apelação em ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum

A Autora pediu que seja:
” A. declarado que a ré fazer depender a venda de um serviço da aquisição de outro serviço funcionalmente independente, nas circunstâncias descritas nesta petição inicial, é uma prática restritiva da concorrência e proibida por lei;
B. declarado que uma bagagem de mão não registada com dimensões até 55x40x20cm e que cumpra integralmente as regras aplicáveis em segurança e caiba na cabine no local próprio para esse tipo de bagagens, é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte aéreo, enquanto offspring da atividade da ré;
C. declarado que a ré não pode aplicar um sobrepreço ao preço final do serviço de transporte aéreo quando o consumidor se faz acompanhar de uma bagagem de mão, não registada, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpra integralmente as regras aplicáveis em segurança e caiba na cabine no local próprio para esse tipo de bagagens;
D. declarado que a ré que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, quanto à autora;
E. declarado que a ré violou qualquer um dos artigos do decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1,b,d), 9 (1,a) desse diploma;
F. declarado que a ré violou os artigos da lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7, (4) e 8 (1, a, c, d) (2) desse diploma;
G. declarado que a ré violou o artigo 2 (1) da lei 67/2003;
H. declarado que a ré violou o artigo 11 da lei 19/2012;
I. declarado que a ré violou o artigo 102 do TFUE;
J. declarado que o comportamento da ré supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e tido com a autora, é ilícito;
K. declarado que a ré com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses da autora, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidora;
L. declarado que em resultado do comportamento da ré supra descrito no § 3.2, provocou  os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no §4 (p) à autora;
e em consequência, para o caso de qualquer um dos pedidos supra proceder:
M. a ré condenada a indemnizar integralmente a ré pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas:
a. em €56,50
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar a autora pelo sobrepreço.
N. a ré condenada a indemnizar integralmente a autora pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a €5.
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar a autora pelos danos morais;
O. a ré condenada a indemnizar a autora pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
a. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos de €5;
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar a autora pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência.
P. em qualquer caso a autora baliza o computo dos pedidos a uma indemnização nunca superior a €66,5.”
Alegou, em síntese, que a autora contratou com a ré, na típica modalidade de contrato de adesão, serviços de transporte aéreo com destino ou chegada em Portugal e viu-se forçada a adquirir o embarque prioritário e a reserva de lugar, apesar de não pretender e nem necessitar de tais serviços, mas apenas para poder transportar consigo o trolley bag. A ré faz uma apresentação enganosa à autora da tarifa normal dos serviços de transporte aéreo oferecidos no sitio da internet da empresa em português. A ré não se comportou de forma honesta com a autora, tal como não se comporta com nenhum outro consumidor, seus passageiros, deixando de cumprir com as suas obrigações legais, colocando-os numa situação de sujeição e de extrema vulnerabilidade. Usou destas práticas desleais da concorrência, para distorcer as regras do mercado e com isso obter vantagens económicas que a sua hegemonia, enquanto líder no seu segmento de negócio e detendo uma posição dominante no mercado onde atua.
A Ré não contestou.
Veio a ser proferido despacho com a seguinte decisão: “Termos em que o Tribunal é incompetente em razão da matéria para os autos, o que constitui uma exceção dilatória que impede o conhecimento do mérito da causa (arts 4º, n.º 1, al.h) do ETAF, 64º, 96º, al.a), 576º, n.º 2 e 577º, al.a) do Cód de Proc Civil). Notifique a autora nos termos e para os efeitos do art 99º, n.º 2 do Cód de Proc Civil, atribuindo-se o prazo de 10 dias para o efeito.
 
 É desta decisão que a Autora apelou, formulando, para tanto, as seguintes
conclusões:

1. A autora, ora apelante, interpõe o presente recurso por entender que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito ao entender verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal para conhecer a presente ação e em consequência ter absolvido a ré da instância.
2. O presente recurso é de apelação e é feito nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (2, a), 631, 637, 639, 644 (1, a) e 647 (1), todos do CPC, para o VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo.
3. A autora tem legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).
4. A apelante, mui respeitosamente, discorda da douta sentença pelas razões de direito vertidas no §§ 5 e 6 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.
5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de não concordar com a verificação da exceção dilatória da competência material do tribunal para apreciar a ação, nos termos em que o tribunal a quo entendeu e decidiu: de que a competência material para julgar a presente ação é do Tribunal da Concorrência, da Relação e Supervisão.
6. Isto porque, uma vez que a aferição do pressuposto processual da competência em razão da matéria é retirada em função da relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, é absolutamente irrelevante o juízo de prognose relativamente ao mérito da causa.
7. Assim, focando-nos apenas em como a ação foi configurada, desde logo atento ao pedido e causa de pedir, supra depurados em §§ 2 e 3, que aqui se dá como reproduzido por uma questão de proficiência, recorta-se com elevada nitescência que nos presentes autos é discutido o direito que encontra estribo nos artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96, sendo que nenhum deles é direito da concorrência. Não obstante, o pedido e a causa de pedir versarem, também, sobre o direito da concorrência derivado da distorção das condições de equidade concorrencial e do abuso de posição dominante.
8. No entanto, apesar de se convocar o direito da concorrência, designadamente o disposto no artigo 11, da lei 19/2012, é suficiente para se afastar a competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão [cf. contrario sensu, artigo 112 (3) e (4), ab initio, da lei 62/2013]. O retro referido normativo estabelece que a competência do supra referido tribunal da concorrência para julgar ações de indemnização têm de se fundar exclusivamente em infrações ao direito da concorrência – que como se viu não é aqui o caso.
9. Atentos ao disposto nos artigos 130 e 117 (1, a), contrario sensu, da lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60 (1), 64 e 66, do CPC, é da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor não superior superior a (euro) 50 000,00.
10.   Por conseguinte, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Braga, é materialmente competente para prosseguir com a ação.
§8. Pedido

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença, nomeadamente pela não verificação da exceção dilatória invocada pelo tribunal recorrido, devendo ser considerado o Juízo Local Cível de Braga materialmente competente para julgar todos os pedidos formulados pelos autores populares.
Embora a manifesta simplicidade da questão possa levar o mui ilustre relator a concluir por uma decisão sumária, pugna-se, salvo sempre o devido respeito por decisão contraria, por uma decisão em acórdão por forma a que fique firmada a melhor jurisprudência a ser feita pelos Tribunais da Relação. Isto porque, numa pesquisa jurisprudencial não se encontra um único litígio resolvido quanto à questão suscitada, com exceção do muito recente acórdão supra citado.”
 
II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º, nº 2, do mesmo diploma.
 Assim, a questão a apreciar é se o tribunal recorrido é materialmente competente para a apreciação dos pedidos formulados pela Autora e as consequências da incompetência  material, caso se verifique.
 
III- Fundamentação de Facto

Os factos, de natureza processual, relevantes para a decisão já foram enunciados supra.

IV -Fundamentação de Direito

.A- Da cumulação de pedidos

Antes de mais, atenta a prolixidade e complexidade com que foram apresentados os pedidos, há que analisá-los, para se verificar se o tribunal é competente para a sua apreciação.
Embora se saiba que  a incompetência material impede a cumulação de pedidos (artigo 37º nº 1 ex vi artigo 555º, ambos do Código de Processo Civil), no caso de serem cumulados pedidos atribuídos a tribunais com diferentes competências materiais, entendemos que é de seguir a posição tomada pelo Tribunal da Relação do Porto, a  11/04/2018, no processo 1380/17.4T8PNF.P1 (na sequência do decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo  2419/2005-6 de 07/04/2005 e das posições, que doutamente cita, expressas por Alberto dos Reis Comentário ao CPC, vol, III, p. 168, por Castro Mendes Direito processual Civil, vol. II, p. 274-275 e por Lebre de Freitas) :  “Sendo os pressupostos processuais verificados relativamente a cada uma das ações, a cumulação, no mesmo processo, de ações ou pretensões para as quais o tribunal seja materialmente competente com outras para as quais ele não o seja, deve ter como consequência que o processo continuará exclusivamente para julgamento das ações relativamente às quais o tribunal é competente, paralisando apenas e tão só as ações relativamente às quais falece a competência do tribunal.”
 Como é sabido, o autor deve numa petição inicial traduzir a sua pretensão material (efeito substantivo que pretende obter) num pedido (processual), pelo qual explicita o efeito jurídico ou a providência que pretende que o tribunal lhe conceda. O mesmo tem que ter possibilidade legal (não ser manifestamente improcedente), ser consequência da causa de pedir, concreto (embora a lei em determinados casos admita pedidos genéricos) e atual (mesmo que não vencido). No caso de se formular mais do que um pedido os mesmos têm que ser compatíveis entre si. Mesmo as ações populares têm como objeto fazer cessar uma violação de um interesse ou prevenir tal violação, com a inerente abstenção da continuação nessa violação, correspondente ao pedido dessa determinação, não só a mera constatação da violação da lei.
Tendo estas considerações básicas em mente há que analisar a petição inicial.

concretização

- dos pedidos formulados nas alíneas A), F), G), H) e I)

A autora pretende em primeiro lugar, na alínea A), que se classifique o comportamento da Ré como prática restritiva da concorrência e proibida por lei. Também nas alíneas F), G), H), I) pretende que se declare que a Ré violou as normas que sucessivamente indica.
Veja-se que vem por este meio vem pedir a simples declaração da violação de determinadas regras do Direito da Concorrência, sem que peça que se vede em concreto a sua prática. Ora, a mera declaração da violação de determinadas normas, sem que se requeira que dele se retirem as consequências práticas, traduz-se num pedido teórico, que não protege de forma concreta o direito de qualquer ator económico, nomeadamente os consumidores, pelo que o pedido não tem em si ínsito qualquer utilidade e logo falece, quanto a ele, o pressuposto processual relativo ao interesse em agir. Tal foi salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo 7074/15.8T8LSB. L1-1, em 04/12/2018 “Ora, a verdade é que a autora não formulou qualquer pedido que tenha como objetivo direto a proteção da concorrência em Portugal. Em termos práticos, nenhum benefício resultará para a concorrência em Portugal da simples declaração da violação de determinadas regras do Direito da Concorrência”.
Não compete aos tribunais aplicar meras classificações aos atos das partes e resolver problemas teóricos, mas aplicar o direito na prática, resolvendo o conflito, declarando os direitos ou deveres das partes no âmbito do caso concreto e condenar ou absolver em conformidade com o direito.
Assim, sem mais, estes pedidos são, em si, inadmissíveis, sem, no entanto, o que neles consta deixar de ser um passo lógico da causa de pedir apresentada com a Autora a analisar e uma questão a apreciar caso se mostre necessário para decidir dos pedidos admissíveis deduzidos pela Autora.
Apesar de se situarem no âmbito do direito da concorrência, não podem ganhar autonomia e logo não relevam para concluir por alguma cumulação de pedidos.

- do pedido formulado na alínea B)

Na alínea B), a Autora faz um conjunto de considerações que pretende que o tribunal declare, de ordem geral e que nada têm imediatamente a ver com o direito, sendo um mero passo lógico e conclusivo relativo ao modo de considerar o preço do serviço aéreo, pelo que também não releva como um pedido autónomo.

- do pedido formulado na alínea C)

Na alínea C) pretende que o tribunal declare em abstrato que a parte não pode aplicar determinado “sobrepreço”, o que o tribunal também não pode fazer decidir fora do concreto contexto do pedido que não foi levado àquela alínea. De qualquer forma, visto que também aqui não pede claramente qualquer inibição de um comportamento à Ré, o pedido, por falta de interesse em agir, é inadmissível e logo não pode ser considerado senão como um passo lógico da causa de pedir, complexa, apresentada pela Autora.

- do pedido formulado nas alíneas D) e J)

Nas alíneas D) e J) do petitório é patente a total falta de autonomia da pretendida declaração, visto que são apenas o pedido de declaração de uma característica ou classificação jurídica que se atribui a uma ação da Ré, pedidos estes sem conteúdo prático.

- do pedido formulado nas alíneas K) e L)

Nas alíneas K) e L) a Autora pede também que se declare que a Ré lesou interesses e provocou danos, o que na sequência do que temos vindo a analisar não consiste num pedido com tutela processual, por falta de concretização do seu objeto, sendo em si, desgarrado do pedido concreto, uma mera declaração genérica, aliás sem utilidade e por isso inadmissível.

- do pedido formulado nas alíneas M) e N)

Nas alíneas M) e N) formula, sim, pedidos concretos e admissíveis, de condenação da Ré no pagamento da quantia de determinadas quantias - 56,60 € e 5,00 € (embora o refira como valor mínimo serve também como valor máximo, visto que o tribunal não pode condenar em mais do que o pedido e mais não foi concretamente pedido)- , a título indemnizatório, acrescida de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas foram praticadas.

- do pedido formulado na alínea O)

Formula ainda na alínea O) um outro pedido indemnizatório, o qual restringe, no próprio petitório, às normas da concorrência, por referência ao artigo 9º da Lei 23/2018.
Isto posto, ficamos reduzidos a três pedidos indemnizatórios: os formulados na alínea M), N) e O).
Há que aferir da competência do tribunal para cada um deles e se pode dizer que o tribunal recorrido é incompetente para a apreciação de qualquer um deles, sendo que os dois primeiros se baseiam num mesmo tipo de razões, mas no âmbito do pedido formulado em O) se restringe à partida a causa de pedir ao normativo que acabámos de citar.

.B- Da competência

A competência de um tribunal é a medida da jurisdição que lhe é atribuída. Este pressuposto processual funda-se na pretensão de entregar o processo e obter a decisão do tribunal mais apetrechado para o efeito.
A competência em razão da matéria afere-se em função do pedido enformado pela causa de pedir, tendo em conta a relação jurídica tal como é configurada pelo autor e com recurso aos critérios ou índices de competência que constam das diversas normas determinativas da competência.
Os Juízos Locais Cíveis, tribunais nos quais se desdobram os Tribunais de Comarca (artigo 81º da LOTJ), têm competência especializada (n.º 3 deste preceito) e residual, isto é, cabe-lhes a preparação e julgamento das ações que não sejam atribuídas a outros juízos da mesma comarca ou a um Tribunal de competência territorial alargada (artigo 130.º da LOSJ).
O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão é um tribunal de competência alargada (abrange todo o território nacional em matéria civil e contraordenacional), a qual está descrita no artigo 112º da LOTJ. No nº 1 e no nº 2 prevêem-se diversos processos de e relacionados com contraordenações e de decisões de determinadas entidades, que em nada se conexionam com a presente causa.
Já no nº 3 contempla-se a competência para julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.

Este diploma (a Lei n.º 23/2018), no artigo 2º, alínea l), remete:
----  para as violações das disposições previstas nos seguintes normativos da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio:
---- do artigo 9.º (Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas),
---- do artigo 11.º (Abuso de posição dominante, onde se inclui o nº 2, alínea d): “Pode ser considerado abusivo Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não tenham ligação com o objeto desses contratos”)
---- e do artigo  12.º (Abuso de dependência económica), considerando-se, no nº 1, “proibida, na medida em que seja suscetível de afetar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equivalente”)
---- e bem assim para as normas correspondentes de outros Estados-Membros e para os artigos 101.º e 102.º do TFUE.
Por seu turno, no artigo 102º alínea d) do TFUE, afirma-se que é incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja suscetível de afetar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. E que estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em: “d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos ou a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transação não equitativas.”
Nos temos do nº 4 do artigo 112 da LOTJ compete ainda ao tribunal julgar todas as demais ações civis cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.
Há que verificar se os pedidos formulados têm como causa de pedir exclusivamente a violação destes normativos, caso em que se verifica inequivocamente a incompetência em razão da matéria do tribunal onde a ação foi intentada: o Juízo Local Cível do Tribunal da Comarca de Braga.
Na leitura que fazemos do preceito, quando os pedidos, além de se fundarem em normas concorrenciais, se fundamentem em outras, de diferente natureza, fica afastada a competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
O Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 Setembro 2023, no processo 2/22.6YQSTR.L1-PICRS, parece negar esta conclusão: “Seria contrária ao exercício das funções emergentes das normas a aplicar, de protecção do mercado, uma leitura tão restritiva do vocábulo «exclusivamente» que deixasse de fora da sua tutela uma miríade de situações em que o que está verdadeiramente em causa é a avaliação da possibilidade de alguém ou alguma empresa ter assumido uma postura de utilização da sua situação de domínio para fins ínvios ou seja, para contrariar os interesses transversais da sociedade de garantir que todos os agentes económicos tenham iguais oportunidades de concorrer num determinado espaço de atividade e criação de riqueza.” Para tanto ainda esclarece no sumário, quanto à sua posição: “Os n.ºs 3 e 4 do art. 112.º da Lei n.º 62/2013, DE 26.08, atribuem ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão o múnus de julgar acção cuja «causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência»V.– A exclusividade referenciada na menção normativa não surge desviada por elementos circunstanciais tais como a inclusão do acto ilícito num quadro pré-contratual. O que importa é proteger o bom funcionamento do mercado, seja qual for o momento da prevalência abusiva do domínio.VI.– Também não afasta a subsunção à norma de competência o facto de a causa de pedir ser complexa, como sempre ocorre nas ações em que se invoque a responsabilidade civil aquiliana”.
Entendemos, no entanto, que a expressão “exclusivamente” utilizada na definição da competência do tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em matéria de “private enforcement” da concorrência não foi desprovida de intenção, pretendendo-se que a este apenas sejam atribuídas as ações estruturadas e fundadas no Direito em que aquele Tribunal deve ser especializado, baseadas apenas na violação das obrigações concorrenciais e centrado nas consequências dessa violação.
 “O private enforcement da concorrência abrange todas as circunstâncias em que uma pessoa, seja qual for a sua natureza (incluindo pessoas de direito público e de direito privado), promove uma ação perante uma autoridade judicial, ou entidade análoga com poderes vinculativos sobre as partes (e.g., arbitragem ou mediação), na qual invoca normas europeias e/ou nacionais de concorrência em prol dos seus direitos ou interesses, ou de direitos ou interesses coletivos ou difusos, sem que esteja diretamente em causa a aplicação de contraordenações ou de medidas ao abrigo da Lei da Concorrência ou do direito europeu da concorrência, ou em que se promove, através das mesmas entidades, passos para preparar ou dar sequência a tais ações” como explana Nuno Alexandre Pires Salpico, em nota de rodapé, a pag 105, citando Sousa Ferro “a operacionalidade do private enforcement do direito da concorrência – dissuasão, ações coletivas e third-part y litigation funding” disponível em  https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/imported-magazines/CR_4504_PT.pdf.
É claro que o direito da concorrência e o direito do consumidor têm campos de atuação muito próximos, até porque o direito da concorrência tem como um de seus princípios básicos a proteção do consumidor. Assim, a violação do direito concorrencial pode passar pela violação de normas que protegem o direito do consumidor, mas tal violação terá que ir mais além, visto que a função do direito da concorrência é proteger o funcionamento eficiente dos mercados, com os consequentes benefícios assim gerados aos consumidores, à economia e à sociedade como um todo. Assim, não basta o facto de serem invocadas normas do direito do consumidor para extirpar a causa do Tribunal da Concorrência.
 Necessário é, no entanto, que tais normas sejam invocadas como meros pressupostos de infrações ao direito da concorrência nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho e das infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, prevista  no nº 3 e 4 do artigo 112º da LOTJ e não como fundamento autónomo dos pedidos, independentemente da violação do Direito concorrencial.
Isto é: se a parte formula o seu pedido com base exclusiva em alguns dos institutos previstos no artigo 112º, nº 3 e 4 da LOTJ, mesmo que para tanto tenha que recorrer a outros institutos como o simples direito do consumidor, a competência  da ação caberá ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão; se ao formular os pedidos cumula causas de pedir, referindo o Direito da Concorrência, mas recorrendo diretamente e essencialmente a outros institutos, independentemente das consequência da ação no mercado concorrencial, fica excluída a jurisdição  daquele Tribunal, por não se discutir matéria da sua exclusiva competência.

concretização

A autora, na petição inicial, quando se debruça sobre esta matéria, afirma que o comportamento da Ré é violador do artigo 22 (1), do regulamento (CE) 1008/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativo a regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade e que esta invocação apenas diz respeito ao direito dos consumidores de serviços aéreos e não cabe no âmbito do direito da concorrência. A norma que invoca é uma norma de liberdade “Sem prejuízo do nº 1 do artigo 16º, as transportadoras aéreas comunitárias, e numa base de reciprocidade as transportadoras aéreas de países terceiros têm liberdade para fixar as tarifas aéreas de passageiros e de carga para serviços aéreos intracomunitários” e o artigo 16º nº 1 refere-se à possibilidade de um Estado Membro impor obrigações de serviço público, questão que aqui não foi levantada.
Dificilmente se consegue, ao ler a petição inicial, encontrar a violação dessa norma como fundamento do pedido (embora a Autora o diga), visto que a mesma não contém em si uma obrigação: a Autora, na petição inicial, teve que recorrer a outros preceitos para encontrar a ilicitude da cobrança da quantia de cujo pagamento quer ser ressarcida.
Lida a petição inicial verifica-se, sim,  que a mesma se funda no essencial na sua qualidade de consumidora para fundar o seu direito e na violação do direito que protege os consumidores, queixando-se da apresentação enganosa aos consumidores da tarifa normal dos serviços de transporte aéreo, dizendo abusiva a cláusula contratual das companhias aéreas, em particular da ré, que estabelece a cobrança de um suplemento para passageiros de tarifa normal que viajem com um acessório pessoal e uma mala à mão na cabine e afirmando que funda o seu direito à indemnização também nos termos gerais da responsabilidade civil, remetendo para um conjunto de normas que não as previstas no artigo 112º, nº 3 e 4, da LOTJ. Veja-se a título exemplificativo a referencia à violação das “regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade do “sumário” da petição inicial, o artigo 6º quanto à apresentação enganosa e os artigos 8º e 10º, todos desse articulado, com a referência à Lei 24/96.  E fá-lo muitas vezes sem se basear exclusivamente no efeito que tais comportamentos podem ter no mercado e não concretizando, nunca, em termos concretos tais efeitos.
Assim, dúvidas não temos que esta funda em primeiro lugar os pedidos indemnizatórios formulados em M) e N) na violação do direito do consumo e como consumidora, sendo o recurso ao direito da concorrência um mais em relação à causa de pedir central.
Já foi proferida jurisprudência em matérias similares que afastam a subsunção do alegado ás normas para que remetem os nºs 3 e 4 do 112º da LOSJ. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo 12110/23.1T8LSB.P1, de 27/11/2023: “Sendo a causa principal invocada na presente ação popular a da venda de determinado produto a preço diverso do anunciado – venda em “sobrepreço”, por essa forma enganando dolosamente ou pelo menos de forma grosseiramente negligente o consumidor, causando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais, tanto é quanto baste para se concluir pelo afastamento da competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão para a tramitação da presente ação, por não enquadrada em nenhuma das alíneas previstas no artigo 112º da LOSJ, e nomeadamente nos nºs 3 e 4 deste artigo.” No mesmo sentido também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 04/18/2024, no processo 6271/23.7T8VNG.P1-A.S1.
No pedido que formula sob a letra ...), a autora introduz uma restrição à causa de pedir, centrando-o expressa e exclusivamente no direito da concorrência, com a referência declarada à Lei 23/2018 (que regula o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência).
Assim, tal como a autora configurou a petição inicial formula três pedidos indemnizatórios, dois com uma causa de pedir comum, fundada, entre outros considerandos, na violação de normas que regulam os direitos dos consumidores, para o qual o tribunal onde foi apresentada a petição inicial é competente. Mas um terceiro pedido, explanado na alínea O), funda-se exclusivamente no direito da concorrência (– mais concretamente na Lei 23/2018) pelo que aquele é o tribunal exclusivamente com competência para o conhecimento daquele pedido.
Do exposto conclui-se que foi cumulado pedido para o qual o tribunal cível não tinha competência material, mas que o tinha para os demais pedidos viáveis.
Assim, tem parcialmente razão a Recorrente, quanto à competência do tribunal recorrido, mas só quanto aos pedidos formulados em M) e N), mas já não quanto ao pedido formulado em O).
Vimos já que a consequência desta cumulação ilegal é que a ação pode prosseguir como pretendido no recurso no tribunal em que foi interposta, para apreciação da maior parte dos pedidos efetivos formulados, mas não para o conhecimento do pedido formulado na alínea O), havendo, quanto a este que absolver a Ré da instância, por incompetência material.

V- Decisão

Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e em consequência revoga-se o despacho proferido, julgando-se o tribunal recorrido competente para o conhecimento de todos os pedidos com exceção do formulado na alínea O) do petitório.
Absolve-se a Ré da instância relativamente ao pedido formulado na alínea O) do petitório.
Não se condena a Autora nas custas do recurso por neste ter obtido no essencial ganho de causa e a Ré com a sua revelia não ter dado causa ao recurso.
Notifique.
Guimarães, 29 de maio de 2024

Sandra Melo
Elisabete Coelho de Moura Alves
Conceição Sampaio