Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7105/19.2T8GMR-A.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Numa situação em que o Tribunal, aquando da prolação do despacho previsto nos art. 593º nº 1, 591º nº 1 d), e) e f) do C.P.C., suscita oficiosamente a questão da litigância de má fé de uma parte, é na sentença que o julgador tem que se pronunciar acerca dessa questão, sob pena de, fazendo-o posteriormente, se mostrar esgotado o poder jurisdicional do julgador.
II - O vício da decisão proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal é o da nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art. 615º nº 1 d) 2ª parte do C.P.C..
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

M. A. e A. V. intentaram a presente acção declarativa comum contra M. D., M. C., M. J. e M. R., pedindo:

a) a declaração de nulidade, por simulação relativa, do negócio a que se reporta a escritura pública de 24/01/1985, considerando-se válido o negócio que as partes realmente quiseram realizar, no qual o autor marido figura como comprador.
b) subsidiariamente, a declaração que os autores estão na posse do prédio que é objecto desse contrato, por si e antepossuidores, desde há mais de 30 anos, tendo-o adquirido por usucapião, devendo os réus ser condenados a reconhecer essa propriedade, abstendo-se da prática de quaisquer actos que contendam com o exercício de tal direito.
c) E pediram o cancelamento do registo do prédio em nome da ré M. D. e do seu falecido cônjuge.

Para tanto alegam, em síntese, que, na escritura de compra e venda outorgada em 24/12/1985, M. G., casado com a ré M. D., só surgiu como comprador para os autores, através dele, beneficiarem do regime legal para a compra de imóveis por cidadãos emigrantes (sistema “Poupança Crédito” ao abrigo do Dec.-Lei nº 540/76) que foi tido em conta no empréstimo solicitado ao Banco ..., regime esse mais vantajoso, designadamente no que respeitava às taxas de juro.
Nunca o pai da autora quis adquirir o bem em questão para si, tendo sido sempre os autores quem pagou as despesas com o negócio e as prestações referentes ao empréstimo bancário, o que sempre foi do total conhecimento dos réus. Seja como for, os autores, desde há mais de 30 anos que usam o prédio em questão como se seu fosse pelo que adquiriram a sua propriedade por usucapião.
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Os 2º a 4º réus contestaram impugnando toda a factualidade alegada e afirmando que o bem pertencia ao falecido M. G., no estado de casado com a ré M. D., tendo o ora autor actuado sempre e apenas como procurador daquele.
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Foi dispensada a audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova – onde se lê: “Para a litigância de má fé: se os réus sabiam do referido em 1) e 2)” -, admitidos os requerimentos probatórios e designada data para audiência final.
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Em 09/06/2021 foi proferida sentença, cuja parte dispositiva se reproduz na parte pertinente:

“Pelo exposto, vai a presente acção julgada parcialmente procedente, nos seguintes termos:
I. Improcedem os pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos de declaração de nulidade do negócio simulado e de validade do negócio dissimulado;
II. Procedem os pedidos formulados nas alíneas c) a e) do petitório, com o consequente reconhecimento e declaração que os ora autores M. A. e A. V. são proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., correspondente ao lote .. mencionado no negócio referido em 1) e à construção nele erigida, onde os autores residem.
III. Oportunamente, comunique à Conservatória do Registo Predial o cancelamento do registo existente, em conformidade com a titularidade do direito ora declarada.
Custas na proporção do decaimento, que se fixa em metade para cada uma das partes – art. 527º do CPC.
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Vão os réus M. C., M. J. e M. R. notificados para, querendo e em 10 dias, se pronunciaram quanto à condenação como litigantes de má-fé – art. 3º, nº3, do CPC. (…)”
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Os 2º a 4º réus pronunciaram-se em 23/06/2021 dizendo “limitaram-se a exercer um direito que lhes é legalmente conferido”, “não tendo alterado a verdade dos factos por si conhecidos ou as suas convicções, ou por qualquer forma, omitido os que se mostram relevantes para a boa decisão da causa”; “não utilizaram (…) qualquer expediente que extravase os legalmente admissíveis e aplicáveis ao caso vertente”, tendo-se “limitado a verter nos autos a sua própria convicção, ou a convicção que resultou do que lhes foi transmitido por terceiros que já faleceram e da apreensão da realidade com que ficaram, pelo que, salvo melhor opinião, não se verificam os fundamentos para que sejam condenados como litigantes de má-fé”.

Na mesma data foi proferida a seguinte decisão:

Da litigância de má-fé (oficiosamente conhecida):
(…)
Pelo exposto, vai cada um dos réus M. C., M. J. e M. R. condenado a pagar, a título de litigância de má fé, uma multa no valor de 8 UC.”
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Não se conformando com esta decisão vieram os 2º a 4º réus, em 01/09/2021, dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“O presente recurso vem interposto do despacho proferido depois da decisão final/sentença, nos termos e para os efeitos previstos no disposto no nº 2 do artigo 644º nº 2 al. g) do Código de Processo Civil, que condenou os Recorridos como litigantes de má-fé, sendo que e a seu tempo será ainda interposto pelos aqui recorrentes recurso da sentença final proferida, uma vez que, a mesma ainda não transitou em julgado para os devidos efeitos legais.
2. O conhecimento da questão da litigância de má-fé é matéria cuja apreciação não podia ter sido efetuada no momento em que o foi, por parte do tribunal recorrido, uma vez que, tal decisão desrespeitou o disposto no artº 613º do CPC, sendo certo que, por outro lado, não se verificam os seus pressupostos e fundamentos.
3. Tal como é pacifico na nossa melhor Jurisprudência, sendo proferida sentença ou despacho a colocar fim ao processo, deve fazer-se aí, se não se fez antes, a apreciação da conduta processual assumida pelas partes que seja suscetível de configurar a litigância de má-fé.
4. É inerente à natureza/essência do processo que proferida a sentença final fique imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artº 613.º, nº 1, CPC), o que significa que, com a prolação da sentença fica precludida a possibilidade de o Juiz conhecer de qualquer questão (relativa ao antes processado nos autos), excetuado o que no nº 2 do mesmo artigo se dispõe em matéria de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença e, por outro lado, o que – em caso de recurso – seja determinado pelo tribunal superior que proceda à anulação da decisão.
5. Ora, a sentença final, que igualmente e a seu tempo será objecto de recurso, foi proferida em 09 de Junho de 2021, sendo que, na mesma, foram os Recorridos notificados para, querendo e em 10 dias, se pronunciarem quanto à sua condenação como litigantes de má fé, o que estes fizeram e alegaram este princípio.
6. A questão da má fé foi decidida através de despacho proferido pelo tribunal recorrido em momento posterior à prolação da sentença, datado do dia 23 de Junho 2021, conforme consta do sistema Citius com a referência 174002175.
7. Assim, no caso sub iudice, é entendimento dos Recorrentes que, o Tribunal recorrido ao não ter conhecido da questão da litigância de má-fé, com base em circunstâncias e fundamentos que já constavam do processo e que se verificavam já à data da prolação da sentença, conhecendo desta questão apenas depois de proferida a sentença final, infringiu o princípio da extinção do poder jurisdicional.
8. No caso de pretender oficiosamente condenar os recorrentes como litigantes de má-fé o Tribunal recorrido haveria sempre de, previamente à prolação da sentença proferida, ter notificado estes para se pronunciarem sobre tal questão, o que não fez.
9. No caso sub iudice não se verifica nenhum motivo para condenar os Recorrentes como litigantes de má fé, designadamente, com base nas alíneas a) e d) do preceito legal supra citado, pelo que, não podem os recorrentes acolher o entendimento expresso no douto despacho recorrido.
10. Importa denotar que na situação dos autos, embora o Tribunal deva naturalmente acolher a posição processual que lhe merece provimento, não deverá fazê-lo em termos que transmitam a ideia de que uns são os bons e outros os maus, como efetuou a sentença em crise.
11. O Tribunal tem que tomar em consideração que a versão dos factos que foi apresentada pelos Recorrentes não era destituída de fundamento, nem tão pouco ficou provado que o que alegaram não correspondia à verdade.
12. A versão dos Recorrentes, que corresponde aos factos por si conhecidos e que lhes foram transmitidos pelo falecido irmão da A. e filho da co-Ré, tem todo um suporte fático nos documentos juntos quer com a p.i. quer com a contestação.
13. Na verdade, nunca por ninguém, nem mesmo pelos os AA., salvo a interposição da presente ação, foi contestado que o prédio em apreço pertence à herança ilíquida e indivisa por morte de M. G., tal como resulta da relação de bens apresentada no processo de inventário e da própria participação do óbito efetuada junto da autoridade tributária, conforme documentos juntos com a p.i. e com a contestação.
14. E esta tese dos AA., totalmente nova e ao arrepio de todo o passado e histórico familiar foi trazida aos autos exclusivamente pelos AA., sem qualquer outo suporte probatório que não as próprias declarações e as da própria filha.
15. Os próprios documentos apresentados pelos AA. em abono da sua tese, vêm eles próprios justificar a posição conhecida pelos RR. de que o A. marido sempre agiu em todo o negócio como procurador do falecido M. G..
16. Ainda que o Tribunal possa acolher a tese dos AA., ou melhor, venha a acolher a tese da aquisição originária por usucapião do prédio objeto dos presentes autos por parte dos AA., tal não é incompatível com os factos alegados pelos RR. na sua contestação, pois os Recorrentes limitaram-se a reproduzir os factos que sempre conheceram e que lhes foram transmitidos pelo falecido marido da Ré viúva, Recorrente, e seu filhos.
17. O facto de o Tribunal não ter acolhido a tese dos Recorrentes não justifica por si só a sua condenação como litigantes de má-fé, atentos os factos em apreço e supra aludidos.
18. A Justiça não pode admitir instituir um sistema de que quem perde uma ação cai na alçada da litigância ilícita.
19. Os aqui recorrentes agiram sempre com verdade e probidade, pois que sobre eles (e sobre as partes) impende "o dever de, conscientemente, não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias" – neste sentido ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil 2ª edição, Coimbra, 1985, página 477
20. O princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo sendo que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem.
21. O poder confiar é condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica). - Baptista Machado in Tutela da Confiança e "venire contra factum proprium", in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, página 232.
22. O julgador deve ter, pois, uma atitude prudente e cuidadosa, só devendo proferir decisão condenatória por litigância de má fé no caso de se estar perante “uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
23. Isso para evitar que se acabem por englobar no conceito, casos de situações cujo decaimento sobreveio só por fragilidade da prova apresentada e produzida, de dificuldades em apurar ou interpretar os factos, ou de defesas convictas de posições que apenas não lograram convencer.
24. Ao apresentarem a sua versão dos factos à pretensão deduzida pelos Recorridos, os Recorrentes limitaram-se a exercer um direito que lhes é legalmente conferido, não tendo alterado a verdade dos factos por si conhecidos ou as suas convicções, ou por qualquer forma, omitido os factos que se mostrassem relevantes para a boa decisão da causa.
25. A má-fé processual traduz-se na violação do dever de correção processual plasmado no artº 8 do Código de Processo Civil, pressupondo a existência de dolo substancial ou instrumental, o que, in casu, manifestamente não ocorreu, uma vez que, no decurso do presente litígio, os Recorrentes sempre atuaram dentro das normas legais, jamais descurando as regras do bom senso e boa fé que lhe subjazem.
26. Todos os factos alegados pelos Recorrentes, limitaram-se a traduzir a realidade dos factos por si conhecida e que sempre lhes foi transmitida pela parte mais próxima e que lhes merece toda a credibilidade, em concreto, o falecido marido e pai dos recorrentes.
27. Os Recorrentes estavam e ainda estão convictos da sua razão e limitaram-se, portanto, a verter nos autos a sua versão dos factos, ainda que, a final, não tivessem logrado provar a mesma.
28. Os Recorrentes não omitiram factos nem tão pouco alegaram factos que não correspondessem á verdade por si conhecida e a qual sempre lhes foi sendo transmitida.
29. Mesmo quanto ao decidido na sentença final proferida, da qual irá ser interposto o competente recurso de apelação, dir-se-á que a mesma acolheu a tese da usucapião invocada pelos recorrentes.
30. Este tipo de aquisição originária tem por base a posse, a qual é doutrinal e legalmente entendida como “um poder de facto exercido em termos de um direito real”, ou seja, nesta forma de aquisição para além do “corpus” ou detenção do bem exige-se um “animus” ou intencionalidade ou subjetividade.
31. Assim, a convicção que para cada individuo/terceiro, no caso os Recorrentes, resulta dos atos e do comportamento do possuidor tem de revelar uma intencionalidade e uma subjetividade especificas insuscetível de ser controvertida, dai que os Recorrentes se tenham limitado a verter nos autos a sua própria convicção, ou a convicção que resultou dos factos que lhes foram transmitidos por terceiros, que já faleceram, e da apreensão da realidade com que ficaram, não se podendo imputar a estes qualquer consciente alteração ou omissão de factos, sendo que, só poderia ocorrer essa condenação se se pudesse concluir que estes litigaram sabendo que não tinham razão, o que não se verificou in casu.
32. A atuação dos recorrentes não preenche o pressuposto da atuação com dolo ou negligência grave, uma vez que a sua pretensão não caiu nas situações resultantes da falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar e que devem ser observadas nos usos correntes da vida.
33. O princípio da licitude do exercício dos meios processuais tem uma limitação fundamental: que o exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.
34. Ora, a fundamentação do douto despacho recorrido limita-se a um juízo de valor generalista e baseado no “pré-suposto” de que “ao contrário do que dizem na pronúncia quanto à boa fé, não se limitaram a exercer um direito que lhes é legalmente conferido, antes tentaram, a coberto do formalismo legal, obter um direito que consabidamente não lhes assiste. E ao lançarem mão de uma contestação para esse efeito, utilizaram um expediente legal para obter uma pretensão ilícita”, sem atentar que a versão apresentada pelos recorrentes nos autos corresponde, sem dúvida, à verdade por si sempre conhecida.
35. Deveria, assim, o tribunal recorrido ter adotado uma atitude mais prudente e cuidadosa, no intuito de evitar que se acabem por englobar no conceito de má-fé, casos de situações cujo decaimento sobreveio só por fragilidade da prova apresentada e produzida, de dificuldades em apurar ou interpretar os factos ou de defesas de posições que apenas não lograram convencer.
36. Atento o exposto supra, deveria o Tribunal recorrido ter entendido que não utilizaram os Recorrentes qualquer expediente que extravase os seus direitos legalmente admissíveis e aplicáveis ao caso vertente, pelo que, não devia ter condenado estes como litigantes de má-fé.
37. A douta decisão impugnada não pode manter-se, pois violou, entre outras, o disposto nos artigos 542º e 613.º ambos do Código de Processo Civil.”
Pugnam pela revogação da decisão nos termos supra referidos
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Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso.
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Os mesmos réus interpuseram recurso da sentença em 09/09/2021 tendo os autores apresentado contra-alegações a este recurso.
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O primeiro e presente recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
O segundo recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios e com efeito devolutivo.
Por despacho de 09/12/2021 foi declarada suspensa a presente instância recursiva até que fosse proferido acórdão transitado em julgado no âmbito da acção principal e segundo recurso, o que entretanto ocorreu, mostrando-se junta a estes autos a respectiva certidão.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Saber se a decisão recorrida foi proferida num momento em que se mostrava já esgotado o poder jurisdicional do juiz (art. 613º, nº 1 do C.P.C.) e, na afirmativa, qual a consequência;
B) E, na negativa, se se mostram verificados os pressupostos da litigância de má fé por parte dos réus.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos – com a alteração introduzida por este Tribunal:
1) Por escritura pública denominada de compra e venda, datada de 24 de Janeiro de 1985, junta a fls. 17 ss. e cujo teor se dá por reproduzido, ficou exarado, entre o demais, que J. L., em representação da sociedade “X – Engenharia e Arquitectura, Ld.ª” declarava vender a M. G., representado nesse acto pelo ora réu A. V., pelo preço de “duzentos e cinquenta mil escudos”, uma parcela de terreno destinada à construção, com a área de 190 m2, sita em ..., Guimarães, parcela essa que foi destacada do prédio descrito na CRP sob o nº … e que integrava o lote 15 do loteamento em que se inseria.
2) A procuração que dava poderes a A. V. para representar M. G. é a que se mostra junta a fls. 25 verso ss., cujo teor se dá por reproduzido.
3) Por escritura pública denominada “mútuo com hipoteca”, datada de 19/03/1985, junta a fls. 20 ss., cujo teor se dá por reproduzido, o Banco ... declarou entregar a M. G. e cônjuge, M. D., a quantia de “três milhões de escudos”, para “auxiliar a construção de um prédio urbano”, sendo a “quantia emprestada entregue aos mutuários em função do estado de adiantamento das obras e mediante a sua comprovação”.
4) Como garantia da entrega da verba referida em 3), foi aí exarado que seria constituída hipoteca sobre o bem referido em 1).
5) Por escrito particular subscrito por A. V., como segundo outorgante, e “X- Engenharia e Construção Ld.ª”, esta declarou prometer vender àquele, ou a quem aquele indicasse, e aquele (ora autor) declarou prometer comprar-lhe, um edifício a construir no lote referido em 1), edifício esse composto por cave, rés-do-chão e andar, destinado a habitação, pelo preço global de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos).
6) Ficou previsto nesse escrito o pagamento faseado nas seguintes parcelas a) 300.000$00, em 20 de Agosto de 1984, 1.200.000$00 em 20 de Novembro de 1984, 1.500.000$00 em 20 de Janeiro de 1985 e 2.000.000$00 em 20 de Abril de 1985, contra a entrega das chaves.
7) Quando do negócio referido em 1), M. G. não queria declarar comprar o prédio ali identificado e a vendedora sabia que os reais compradores eram os ora autores.
8) O nome de M. G. figurou na escritura para que os ora autores pudessem beneficiar de um regime mais vantajoso na obtenção de crédito bancário, destinado a emigrantes.
9) Desde há mais de 30 anos que os autores residem, fazem obras designadamente as referidas em 5) e 6), cuidam e organizam convívios familiares na moradia que veio a ser construída na parcela de terreno referida em 1).
10) Desde há mais de 30 anos que são os autores que pagam as contribuições e impostos relativos ao prédio referido em 1) e à moradia nele erguida.
11) O referido em 9) e 11) ocorreu sempre com a consciência de que o bem lhes pertence, como proprietários.
12) O referido em 9) a 11) ocorre de modo ininterrupto e visível para todos, sem que, pelo menos até 01 de janeiro de 2012, tal propriedade tenha sido posta em causa. – a redacção deste facto provado foi dada pelo Tribunal da Relação.
13) Os réus sabiam e sabem do referido em 7) a 12).
14) No dia 27.12.2017, M. D. apresentou-se no Cartório Notarial do Ex.mo Sr. Dr. C. T. e outorgou o instrumento junto a fls. 26 verso ss., cujo teor se dá por reproduzido, declarando o seguinte: “Que o preço do prédio sito na Rua ..., nº …, freguesia de ... (…) foi pago integralmente por sua filha M. A., (…) casada com A. V. (…)”.
15) No instrumento referido em 14) intervieram dois médicos, ali identificados, que garantiram a sanidade mental da outorgante.
16) M. G. faleceu no dia - de Abril de 1992.
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E com pertinência para o mérito da causa não se provou que:
a) Os herdeiros de M. G. alguma vez tivessem aceitado e reconhecido que o imóvel pertencia à herança daquele e de M. D..
b) M. D. não tivesse tido consciência e vontade de outorgar o instrumento referido em 14) e 15).
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Da eventual violação da extinção do poder jurisdicional
Defendem os apelantes que, ao proferir a decisão referente à litigância de má fé depois de proferida a sentença, o tribunal recorrido fê-lo num momento em que já se mostrava esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa.

Quid iuris?

Quando a parte, na pendência da causa, assume uma conduta processual subsumível ao disposto no art. 542º nº 1 do C.P.C., diploma a que se refere os preceitos a citar sem menção de origem, é na sentença que põe termo ao processo que o juiz deve fazer essa apreciação e condenar a referida parte como litigante de má fé aí fixando a multa que julgue adequada.
Isto resulta do disposto no nº 3 do art. 543º que permite apenas relegar para momento posterior, depois de ouvidas as partes, a fixação da indemnização pedida.
Com efeito, com a prolação da sentença esgota-se o poder jurisdicional do tribunal (art. 613º) que abrange, quer a questão de mérito, quer a questão da litigância de má fé referente a comportamentos processuais tidos até esse momento. Ambas são “questões” nos termos e para os efeitos do disposto no art. 608º. Depois desse momento apenas é lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença (nº 2 do art. 613º).
O referido conhecimento na sentença vale, quer para os pedidos de condenação da parte como litigante de má fé, quer para as situações em que o tribunal assim conclui oficiosamente.
Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed. Coimbra Ed., p. 281, em anotação ao art.º 466º do C.P.C. de 1939, escrevia: “A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo em tal multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, não o habilite a determiná-lo.”.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 463, referem: “(…) Havendo elementos suficientes para tanto, deve ser fixada a indemnização que deles resulte. Não havendo, o juiz, ouvidas as partes, fixará, já depois da sentença em que proferira a condenação por má-fé, mas nos autos da ação, aquilo que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável, não havendo assim lugar para a condenação no que se liquidar em execução de sentença.”
Assim sendo, numa situação em que nenhuma das partes pede a condenação como litigante de má fé da contraparte, mas o julgador, no momento da elaboração da sentença, se apercebe da existência de factos subsumíveis a tal conceito, o seu comportamento correcto será abster-se de proferir de imediato a sentença, reabrir a audiência (art. 607º nº 1), proceder à audição das partes (art. 3º nº 3) e só depois proferir tal decisão, na qual conheça do mérito da causa, bem como da litigância de má fé.
Num caso em que a questão da litigância de má fé é suscitada oficiosamente pelo Tribunal num momento processual prévio à sentença e disso é dado conhecimento às partes não se afigura necessário dar cumprimento ao princípio do contraditório.
Na jurisprudência já se defendeu que era ainda admissível que o julgador, na sentença, depois de conhecer do mérito, consignasse que, no seu entender, alguma das partes podia ter incorrido em litigância de má fé e que concedesse prazo para o exercício o contraditório, e só depois deste haver sido exercido, proferisse nova decisão na qual eventualmente condenasse a parte em multa como litigante de má fé. Argumentam que, num caso como este, sendo a questão do mérito da acção distinta da questão da litigância de má fé, com a prolação da sentença, esgota-se o poder jurisdicional do tribunal apenas no que concerne à primeira questão, mas não em relação à segunda que não foi objecto de apreciação, ponderação e decisão na sentença. Acrescentam que há outras situações previstas na lei em que a decisão sobre a litigância de má fé não é simultânea com a sentença que conhece do mérito da causa como, por ex. nas situações previstas nos arts. 123º, 970 nº 3, no caso de condenação na indemnização a fixar posteriormente (art. 543 nº 3) ou em que haja a necessidade de cumprir o contraditório (3º, nº 3).
Neste sentido vide Ac. da R.E. de 18/10/2012 (António Manuel Ribeiro Cardoso), in www.dgsi.pt, endereço a que pertencerão os acórdãos a citar sem menção de origem, onde se lê: “1- A decisão condenatória por litigância de má fé, não tem que ser simultânea ou contemporânea da que conhece do mérito da causa. 2- Proferida decisão sobre o mérito da causa e consignando-se nesta que se indicia a litigância de má fé e determinando-se a audição das partes nos termos do art. 3º, nº 3 do Código de Processo Civil, não fica esgotado o poder jurisdicional, no que tange à litigância de ma fé, podendo e devendo a decisão sobre essa questão ter lugar em momento posterior.”.
No Ac. da R.C. de 21/12/2010 (Falcão de Magalhães) decidiu-se que, apenas quando a decisão final é absolutamente omissa quanto à existência de litigância de má fé, é que é vedado ao juiz, em despacho posterior, pronunciar-se acerca dessa questão.
O Ac. desta mesma Relação de 02/02/2016 (Jorge Arcanjo) refere: “(…) V - O art. 613º do nCPC deve ser interpretado no sentido de que o poder jurisdicional que se esgota com a sentença é o poder jurisdicional relativo ao mérito da causa, sobre as questões aí concretamente decididas. VI - Não viola o art. 613º do CPC a decisão posterior à sentença que condenou o autor como litigante de má fé, após haver determinado na sentença a sua audição prévia.”.
Ora, afastamo-nos deste entendimento (e alterarmos a posição por nós defendida no Ac. desta Relação de 19/09/2019 no Proc. nº 2251/17.0T8GMR.G1, não publicado) e concluímos que é na sentença que o julgador tem que se pronunciar acerca da questão da litigância de má fé que se reporte a factos ou incidentes anteriores àquele momento processual, aí condenando a parte a tal título e fixando a multa e indemnização respectivas ou absolvendo a mesma, sob pena de se mostrar esgotado o poder jurisdicional (sendo que apenas pode relegar para momento posterior a fixação da indemnização pedida caso não haja no processo os elementos para tal). Naturalmente que, no que concerne a factos ou incidentes supervenientes à sentença, que possam configurar litigância de má fé, pode e deve proferir, em momento posterior àquela, decisão em que conheça dessa questão.
O vício da decisão proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal é o da nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art. 615º nº 1 d) 2ª parte do C.P.C. e não de inexistência jurídica da decisão uma vez que a mesma foi proferida por quem funcionalmente investido de poder jurisdicional
Neste sentido vide, entre outros, Ac. desta Relação de 02/06/2016 (Jorge Seabra), onde se lê: “I. Assumindo a conduta processual da parte, na pendência da causa e até à prolação da sentença, contornos que a permitam qualificar como litigância de má-fé, tem o juiz que o afirmar e proferir a consequente decisão de condenação da parte, enquanto litigante de má-fé, na sentença, ali fixando, ainda, a multa que julgue mais adequada, fixando-a sempre em quantia certa. II. Não é consentido ao juiz, salvo casos excepcionais (de incidentes ou factos supervenientes à sentença), relegar tal decisão quanto à litigância de má-fé para momento posterior à sentença, por a tanto se oporem os limites do seu poder jurisdicional, que cessa com a prolação da mesma. III. Apenas quanto à indemnização a arbitrar a favor da parte contrária (e se esta se mostrar pedida) é consentido ao juiz relegar a sua quantificação para momento posterior à sentença e se os autos não contiverem elementos que o habilitem a fazer, desde logo, na sentença, essa quantificação. IV. Todavia, essa quantificação só é viável se, previamente e na sentença, o juiz tiver proferido decisão no sentido de declarar e condenar a parte como litigante de má-fé, ali fixando a multa processual devida em quantia certa. V. Se tal não tiver sucedido, o poder jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria mostra-se esgotado, não sendo lícito reabrir a instância para tal fim. VI. O despacho proferido, após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo, à luz do disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC. e de acordo com a sua interpretação extensiva, é nulo por excesso de pronúncia. (…)”.
E ainda Ac. da R.C. de 08/09/2020 (Fonte Ramos), onde se escreve: “I. A apreciação da má fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, o não habilite a determiná-lo. II. Nestas circunstâncias, não se tratando de conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação da sentença, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má fé, esgotado fica o poder jurisdicional relativamente a esta matéria. III. É nulo por excesso de pronúncia o despacho proferido após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo (art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1 al. d), 2ª parte, do CPC).”
No caso em apreço, face às posições inconciliáveis das partes, a litigância de má fé foi suscitada oficiosamente pelo tribunal aquando do despacho que enunciou os temas da prova, despacho este que foi notificado às partes.
Assim sendo, chegado o momento da prolação da sentença afigura-se-nos que o tribunal a quo, entendendo que estava demonstrada a litigância de má fé dos réus podia e devia ter conhecido da sua litigância de má fé tanto mais que não havia nesse momento, quanto a nós, a necessidade de exercer o contraditório ou exercê-lo novamente.
Logo, no despacho proferido em 23/06/2021, em que conheceu da litigância de má fé, conheceu de questão que não podia conhecer pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida procedendo a apelação.
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Consequentemente fica prejudicado o conhecimento da eventual verificação dos pressupostos da litigância de má fé que o Tribunal a quo entendeu estarem reunidos.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - Numa situação em que o Tribunal, aquando da prolação do despacho previsto nos art. 593º nº 1, 591º nº 1 d), e) e f) do C.P.C., suscita oficiosamente a questão da litigância de má fé de uma parte, é na sentença que o julgador tem que se pronunciar acerca dessa questão, sob pena de, fazendo-o posteriormente, se mostrar esgotado o poder jurisdicional do julgador.
II - O vício da decisão proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal é o da nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art. 615º nº 1 d) 2ª parte do C.P.C..
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida.
Sem custas.
A presente decisão é elaborada conforme grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
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Guimarães, 24/03/2022

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues (Voto vencido)

Voto vencido
Voto vencido a decisão na parte em que concluiu que, “no despacho proferido em 23/06/2021, em que conheceu da litigância de má fé, conheceu de questão que não podia conhecer”, o que configura nulidade por excesso de pronúncia nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1 , al. d), 2ª parte do C.P.C.
A questão central a apreciar reside em saber se, no momento em que o Tribunal “a quo” decidiu condenar cada um dos ora apelantes (2º a 4º réus) como litigantes de má-fé numa multa no valor de 8 UC`s, estava já esgotado o poder jurisdicional daquele Tribunal sobre tal matéria.
No tocante ao momento processual adequado a inserir a decisão judicial quanto à questão da litigância de má-fé oficiosamente apreciada ou sob solicitação de uma das partes, tem-se entendido que esse momento será a sentença final ou qualquer outra decisão que ponha termo ao processo, como ocorre com o despacho saneador-sentença (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, Vol. I, Almedina, p. 333; no mesmo sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p. 281, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 463); no entanto, o juiz pode e deve deixar para depois da sentença a fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, não disponha dos elementos necessários à sua determinação (art. 543º, n.º 3, do CPC).
Poderá, todavia, dar-se o caso de somente com a prolação da sentença o juiz estar em condições de aquilatar oficiosamente duma atuação processual censurável por banda de uma das partes – pense-se, por exemplo, numa situação em que uma das partes alterou a verdade dos factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa, circunstâncias estas de que o juiz apenas se consegue inteirar ao proferir a resposta à matéria de facto, a qual, no atual regime processual civil, faz parte integrante da sentença (art. 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC) –, não podendo de imediato proferir decisão condenatória quanto à litigância de má-fé por carecer de garantir o contraditório no caso em que a questão da má-fé não foi objeto de discussão anterior – art. 3º, n.º 3, do CPC –, sob pena de nulidade da decisão.
Daí que seja de admitir que a oportunidade da condenação como litigante de má-fé em multa, logo na sentença, implicitamente estabelecida no art. 543º, n.º 3, do CPC, se dirige aos casos em que a matéria dos correspondentes pressupostos foi já objeto de discussão anterior; não sendo esse o caso, a subsequente decisão condenatória tem natureza complementar relativamente à sentença que formalmente a antecede [cfr., em sentido similar, Ac. da RL de 12/07/2012 (relator Ezagüy Martins), in www.dgsi.pt.].
Preceitua, por sua vez, o art. 613º, n.º 1 do CPC, que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional.
Quer isto dizer que, após a sentença, o juiz não pode, por regra, independentemente do trânsito em julgado, proferir nova decisão sobre a causa.
Mas isso não obsta a que o juiz mantenha ainda o exercício do poder jurisdicional para resolver os incidentes e questões que surjam no desenvolvimento posterior do processo, contanto que não se repercutam na sentença ou no despacho que proferiu.
A razão pragmática do princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1981, volume V, Coimbra Editora, 1984, p. 127).
Ora, o citado art. 613º do CPC deve ser interpretado no sentido de que o poder jurisdicional que se esgota com a sentença é o poder jurisdicional relativo ao mérito da causa, sobre as questões aí concretamente decididas e que não viola o aludido normativo a decisão posterior à sentença que condenou a parte como litigante de má fé, após haver determinado na sentença a sua audição prévia [cfr. Ac. da RL de 12/07/2012 (relator Ezagüy Martins), Ac. da RC de 2/02/2016 (relator Jorge Arcanjo) e desta Relação de 31/10/2019 (relator Paulo Reis) e de 10/05/2018 (por nós relatado), todos disponíveis in www.dgsi.pt.].
Na verdade, «[n]ão constitui alteração do decidido o proferimento, subsequente à decisão de mérito, de decisão sobre matéria diversa. Assim, não há violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional quando, posteriormente à sentença, o juiz condena o autor como litigante de má fé» (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, p. 731).
No caso sub júdice, não obstante no despacho saneador, a propósito da identificação do objeto do litígio, a Mmª Juíza “a quo” tenha feita menção à aferição da litigância da má fé das partes [“(…), atenta a inconciliabilidade total de posições, importará concluir qual das partes litiga de má-fé, sancionando em conformidade”], e na enunciação dos temas da prova de igual modo também lhe tenha feito referência [“Para a litigância de má fé: se os réus sabiam do referido em 1) e 2)”], a verdade é que só com a resposta à matéria fáctica provada (inserida na sentença) ficou habilitada a formar um juízo fundado e seguro sobre o comportamento processual das partes.
Acresce que, não obstante as antecedentes referências à litigância da má-fé, a verdade é que não consta dos autos que, antes da prolação da sentença, tivesse sido cumprido o contraditório no tocante a tal matéria oficiosamente suscitada – ou que a referida matéria tivesse, efetivamente, sido objeto de discussão anterior, mediante concessão às partes da oportunidade de sobre ela se defenderem (aliás, a audiência prévia foi dispensada) –, o que obstaria a que pudesse logo na sentença emitir um juízo condenatório sobre esse tema.
Isto porque – importando garantir o contraditório em todos esses casos em que a questão da má fé não foi objeto de discussão anterior (art. 3º do CPC) – «a alternativa ao procedimento adotado na 1ª instância seria a pactuação com essa sorte de comportamentos processualmente desviantes
Ou então, impor-se-ia ao juiz a elaboração de um projeto de sentença, em ordem a poder perspetivar cabalmente a condenação da parte como litigante de má fé, sobrestando depois na prolação da sentença, e ordenando a notificação das partes para se pronunciarem a propósito.
Apenas depois de decorrido o prazo para o efeito…começando a correr o prazo para a elaboração da sentença.
O que nada seguramente esteve nas intenções do legislador (…)» [cfr. Ac. da RL de 12/07/2012 (relator Ezagüy Martins), in www.dgsi.pt.].
Por conseguinte, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, entendo que, na situação sub júdice, aquando da prolação da decisão que condenou os recorrentes como litigantes de má-fé não se encontrava já esgotado o poder jurisdicional do Tribunal “a quo”, pelo que não teria julgado procedente a nulidade da decisão recorrida.
Consequentemente, julgando improcedente este fundamento da apelação, teria conhecido dos pressupostos da condenação dos recorrentes como litigantes de má-fé.