Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
77/10.0GAFAF.G1
Relator: LÍGIA MOREIRA
Descritores: OFENSAS À HONRA
OFENSAS AO BOM NOME
DIFAMAÇÃO
DIFAMAÇÃO DE AUTORIDADE PÚBLICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros.
II – Alguém declarar que fala como quiser, que conhece os seus direitos, que tem um tio cabo da GNR a quem vai ligar, que “já um guarda teve um processo”, não afecta relevantemente a honra e consideração dos destinatários, ainda que estes sejam elementos duma força policial no exercício das suas funções.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência os Juízes desta Relação:

DO RELATÓRIO

Por sentença publicada em 20/6/2012, no âmbito do processo comum perante Tribunal Singular nº 77/10.0GAFAF no Tribunal Judicial de Fafe, o arguido FILIPE O... foi condenado pela prática de crimes de difamação agravada (6) p.e p. pela conjugação dos art.s 180 nº 1 e 184 por referência ao art. 132 alínea l) do CPenal, na pena de 120 dias de multa à razão diária de € 7,00, por cada crime, e na pena única de 500 dias de multa à mesma razão diária, perfazendo o total de € 3.500,00.
DANIEL O..., co-arguido nos autos, foi condenado nos mesmos termos.
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Inconformado, o referido arguido FILIPE interpôs o recurso de fls. 234-262 dos autos, admitido a fls. 282 dos autos, apontando à sentença, em suma, erro notório na apreciação da prova por violação de regras de experiência comum e valoração de provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro de julgamento; sem prejuízo, exagero e desproporcionalidade na fixação da medida da pena única de multa e da sua razão diária.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido ofereceu resposta no sentido da improcedência do recurso.
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O Exmo Sr Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer, pugnando a final, no sentido da retirada do ponto da matéria de facto nº 8, do propósito do arguido de ofender os militares da GNR na sua honra e consideração, dadas as expressões provadas serem absolutamente neutras quanto aos valores da honra e consideração daqueles, pugnando pela absolvição do arguido-recorrente.
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Cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP, o arguido-recorrente veio dizer que concorda com a anterior posição, pugnando pelo entendimento de que as expressões a terem sido proferidas não são de natureza injuriosa e nem difamatória.

DA FUNDAMENTAÇÃO

DOS FACTOS PROVADOS pelo Tribunal a quo -transcrição-
1. No dia 17 de Janeiro de 2010, cerca das 01h30, foi solicitada a presença de uma patrulha da Guarda Nacional Republicana de Fafe, constituída pelos militares Tiago T... e Daniel P..., no estabelecimento “F... Bar”, sito na Avenida de S. Jorge, área desta comarca de Fafe, uma vez que existia uma alteração da ordem pública no local.
2. Lá chegados, e atento o elevado número de pessoas que ali se encontravam, foi solicitado reforço policial, tendo-se dirigido para o local os militares Amaro F..., Ricardo P..., José P..., Ricardo P... e Duarte A....
3. Após, o militar Amaro F... dirigiu-se ao arguido Filipe aconselhando-o a ter controlo e a acalmar-se, ao que o mesmo respondeu que “eu falo como eu quiser! Eu conheço os meus direitos! Eu tenho um tio que é Cabo da Guarda Nacional Republicana e vou já ligar com ele!”.
4. Simultaneamente, o arguido Daniel, dirigindo-se ao militar Ricardo Pinto disse “bate-me, anda lá, bate-me. Eu sei que vocês não podem fazer nada”.
5. Por se encontrar um grande aglomerado de pessoas no local, e por forma a proceder-se à identificação do arguido Daniel, foi-lhe solicitado que se deslocasse até junto da viatura policial, sendo que, lá chegado, o mesmo caiu no chão, simulando uma agressão e imputando-a a todos os militares que se encontravam no local, ao mesmo tempo que batia, deliberadamente, num gradeamento que existia no local e gritava que os militares o estavam a agredir.
6. Acto contínuo, o arguido Filipe, referindo-se a todos os militares presentes no local, proferiu, de viva voz, a seguinte expressão: “já um guarda teve um processo e teve de pagar uma indemnização! Eu tenho gravagens! Eu tenho gravagens”.
7. Os militares da Guarda Nacional Republicana, Tiago T..., Daniel P..., Amaro F..., Ricardo P..., José P... e Ricardo P... estavam devidamente fardados e identificados, pelo que a qualidade deles em representação da autoridade era do conhecimento dos arguidos.
8. Os arguidos, dirigindo-se a terceiros e proferindo as expressões supra descritas, actuaram com o propósito de ofender os militares da Guarda Nacional Republicana na sua honra e consideração.
9. Os arguidos agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
10. Do certificado do registo criminal dos arguidos nada consta.

DOS FACTOS NÃO-PROVADOS pelo Tribunal a quo
Que os conflitos existentes estavam relacionados com uma sobrinha dos arguidos.
Que o arguido Filipe referiu que o valor da indemnização fora de € 6.500,00 e que iam avançar com outro processo.

APRECIANDO
O arguido-recorrente apresenta motivações e conclusões algo confusas, tendendo, por alegação de uma mesma matéria, a meter “num mesmo caldeirão” vícios distintos, seja, de erro notório na apreciação da prova, de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de erro de julgamento.
A referida insuficiência ocorrerá quando atenta a decisão recorrida em si ou conjugada com regras de experiência comum, a matéria de facto provada se mostre insuficiente para fundamentar a decisão de direito, porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão em causa, alegados pela acusação ou defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deveriam ter sido apurados por força da relevância para a decisão, assim se notando uma lacuna que comprometa uma boa decisão.
Já o erro de julgamento sobre a matéria de facto, enquanto patente divergência entre os factos provados e não-provados na decisão e aquilo que, atenta a prova produzida em julgamento, deveria ter sido dado por provado ou não-provado, constitui um vício cuja verificação por Tribunal Superior, demanda a reapreciação da prova produzida que haja sido documentada.
Ora, não nos parece que o recurso se funde, em rigor, em insuficiência para a decisão da matéria de facto e no que respeita ao erro de julgamento, não se mostra observado o ónus previsto no art. 412 nº 3 e 4 do CPP, sendo feita uma deficiente indicação das provas que no seu entender impõem decisão diversa e não sendo sequer feita uma indicação concreta das passagens da gravação da prova em causa.
De todo o modo, sempre aqui “primordialmente” se imporia apreciar do invocado vício de erro notório na apreciação da prova p. no art. 410 nº 2 c) do CPP---o que aliás “vai de encontro” com a questão suscitada no parecer do Exmo sr Procurador Geral Adjunto de se saber se as expressões provadas nos autos são neutras quanto aos valores de honra e de consideração dos agentes da GNR.
Aprecia-se que tal vício se verifica, relativamente à matéria de facto dada como provada no ponto nº 8 na sentençaOs arguidos, dirigindo-se a terceiros, e proferindo as expressões…, actuaram com o propósito de ofender os militares da Guarda Nacional Republicana na sua honra e consideração”.
Isto porque a fixação da mesma é expressamente motivada pelo Tribunal a quo nos seguintes termos: “No que respeita ao elemento subjectivo, exige-se que os arguidos tenham agido representando os elementos do tipo e actuado conformando-se, pelo menos, com a sua realização.
Ora, tratando-se de um elemento interno, qual seja o conhecimento e a vontade de praticar o facto ilícito, a sua imputação há-de resultar das circunstâncias exteriores que de qualquer modo possam ser expressão da relação psicológica do agente com o facto, inferindo unicamente de tais circunstâncias a existência dos elementos representativos e volitivos, na base das comuns regras de experiência que constituem o principio básico do processo penal em matéria de apreciação da prova, plasmado no art. 127 do CPP.
Ora nos presentes autos, não obstante o silêncio dos arguidos é possível fazer uma imputação do dolo directo. Com efeito, atentas as regras da experiência, é de crer que uma pessoa medianamente diligente tenha conhecimento de que a imputação a outrem de factos que constituem crime constitui uma ofensa na sua honra e consideração, fazendo-o porque quer atingir tal resultado. Ademais no caso concreto, estamos perante militares da Guarda Nacional Republicana, devidamente uniformizados, o que era do conhecimento dos arguidos. Nestes termos, conclui-se que os arguidos tinham conhecimento de que as expressões proferidas eram ofensivas da honra e consideração dos militares da Guarda Nacional Republicana e proferiram-nas querendo atingir tal resultado, sabendo que a sua conduta era punível por Lei, o que é do conhecimento geral”.
Ora reapreciando, não se confirma que unicamente “das circunstâncias exteriores no caso” ou “na base de comuns regras de experiência” se possa e deva crer que as expressões proferidas pelo arguido aqui recorrente FILIPE ---e atente-se que são as provadas nos pontos 3 e 6 “eu falo como eu quiser !” “eu conheço os meus direitos !” “eu tenho um tio que é cabo da GNR e já vou ligar com ele ! e “Já um guarda teve um processo e teve de pagar uma indemnização ! ”eu tenho gravagens, eu tenho gravagens ” as primeiras dirigidas apenas ao agente Amaro F... e as demais, a todos os agentes identif.s nos pontos 1 e 2---revelam o conhecimento, pelo mesmo, de que tais expressões eram ofensivas da honra e consideração dos agentes da GNR e o propósito de violar tais valores dos mesmos, sabendo assim adoptar conduta proibida por Lei.
As expressões em causa são proferidas aquando de acção de agentes da GNR, 2 agentes chamados por alteração da ordem, a um bar, entretanto reforçados para um total de 6 agentes (pontos 1 e 2), que se propõem aconselhar a ter controlo e a acalmar e a fazer identificações (ponto 3), assim correlativamente, os co-arguidos “alterados” e aqueles agentes “experimentados” neste tipo de situações que frequentemente geram posturas idênticas.
Não são, obviamente, expressões que traduzam uma postura pacífica, acomodada e simpática.
Antes traduzem uma postura conflituosa, reivindicativa, com animosidade, acintosa até.
Ensina-nos porém já, o Ac. do TRP de 12/6/02 no processo de recurso nº 332/02:
“É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”
Aqui a propósito, interessa atentarmos no ensinamento da Prof. Beleza dos Santos in RLJ nº 3152 pág. 164:
“A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público”.
Ora, declarar que se fala como se quiser, que se conhecem os nossos direitos, que se tem um tio cabo da GNR e se vai ligar ao mesmo, e que já um guarda teve um processo e se têm “gravagens” (gravações ?!) objectivamente, não afecta relevantemente, a honra ou a consideração do(s) destinatário(s).
Enfim, atento o seu teor, particular circunstancialismo e à luz de regras de experiência comum, não se pode e deve concluir que as expressões provadas referidas comportem, seja em si mesmas, seja na óptica de quem as proferiu no caso, um carácter ofensivo de valores pessoais de outrem, como são a honra e a consideração social dos agentes.
Impõe-se pois, aqui operar a modificação do facto provado no ponto 8 (cf. supra) para facto não-provado, por falta de qualquer elemento probatório nesse sentido.
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Consequentemente, passa a não se ter preenchido, no caso, o tipo legal de crime de injúria p. no art. 181 nº 1 do CPenal, sendo certo que mesmo que se mantivesse o quadro integral dos factos provados na sentença recorrida, as expressões em causa foram dirigidas ao(s) agente(s)/destinatário(s) ---e não, dirigidas a “terceiros”, referidas áquele(s) agente(s), caso em que aí sim, se equacionaria do preenchimento do tipo legal de difamação p. no art. 180 nº 1 do CPenal que foi configurado na sentença recorrida.
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Uma última nota:
Se pelo arguido aqui recorrente FILIPE, não foi atribuído qualquer facto, nem produzido qualquer juízo aos agentes Tiago T..., Daniel P..., Amaro F..., Ricardo C..., José P..., Ricardo B... e Duarte A..., objectivamente ofensivos da honra e consideração devida aos mesmos, tal também vale quanto ao comparticipante DANIEL que expressou: “bate-me, bate-me, eu sei que vocês não podem fazer nada” (ponto 4), acrescendo que a posterior “simulação de que era agredido” referida no ponto 5, se em si mesma já se configura pouco convincente e significativa (se se auto-agredia contra um gradeamento, os presentes no local facilmente o desmascaravam), assim desacompanhada de outro acto que relevantemente afecte o “núcleo essencial das qualidades morais dos agentes”, não tem a virtualidade de preencher tipo legal de crime (cf. supra).
Eis porque, e nos termos do disposto no art. 402 nº 2 a) do CPP, a absolvição dos crimes imputados lhe aproveita, a ele se estende nos seus efeitos.

DA DECISÃO
Atento o exposto, os Juízes desta Relação modificam o facto provado no ponto nº 8 “Os arguidos, dirigindo-se a terceiros, e proferindo as expressões, actuaram com o propósito de ofender os militares da Guarda Nacional Republicana na sua honra e consideração” para facto não-provado e decidem pela absolvição dos crimes imputados do arguido aqui recorrente FILIPE O..., e também do comparticipante DANIEL O... ao qual aproveita nos termos do art. 402 nº 2 a) do CPP.
Sem tributação.
Guimarães, 18 de Fevereiro de 2013